12/27/2023

Dois dedos (Conto), de Graciliano Ramos



DOIS DEDOS

Dr. Silveira atravessou a antecâmara e aproximou-se do reposteiro. O contínuo velho barrou-lhe a passagem, quis exigir cartão de visita, mas vendo-lhe o rosto, a mão que se agitava como afastando uma coisa importuna, curvou-se, entreabriu o pano verde e foi encolher-se num vão de janela:

  Deve ser troço na política.

Dr. Silveira entrou no gabinete do governador. Entrou de coração leve, como se pisasse em terreno conhecido, os braços alongados para um abraço. Um abraço, perfeitamente. O homem que ali estava fora vizinho dele, colega de escola primária, colega de liceu, amigo íntimo, unha com carne. A mulher de dr. Silveira tinha dito:

  Visita sem jeito. Esqueça-se disso. Política! E ele respondera:

— Que política! Eu me importo com política? É que fomos criados juntos. Assim, olhe.

Juntava o médio e o indicador da mão direita, de modo que se conservassem em posição horizontal, movia-os ligeiramente.

Nenhum dos dedos ultrapassava o outro.

  Assim.

Estirava o indicador e contraía o médio, para que ficassem do mesmo tamanho. Infelizmente não tinham ficado. Um deles estudara Direito, entrara em combinações, trepara, saíra governador; o outro, mais curto, era médico de arrabalde, com diminuta clientela e sem automóvel. Por isso a mulher dissera:

  Não gosto de misturas. Visita sem jeito. Cada macaco no seu galho.

— Que galho! retrucara dr. Silveira. Éramos dois irmãos. Estudávamos juntos, vivíamos juntos. Vou. Se não fosse, o homem havia de reparar. Um irmão.

Escovara e vestira a roupa menos batida. Isso de roupa era tolice, mas afinal fazia uma eternidade que não via o amigo, o irmão, unha com carne.

  Assim.

Tomara um automóvel. Chegara ao palácio, onde nunca havia posto os pés, atravessara o hall, hesitando. O gabinete do governador seria à direita ou à esquerda? Perguntas cochichadas a funcionários carrancudos.

O amigo, o irmão, havia sido reprovado em química vinte anos antes, enganchara-se no átomo. Agora dominava aquilo tudo, e o átomo era inútil.

Informado por um guarda, dr. Silveira transpusera uns metros de corredor sombrio, entrara na antecâmara, chegara-se ao reposteiro, afastara o contínuo velho, que se encolhera num vão de janela:

  Deve ser troço.

Bem. Dr. Silveira estava no gabinete, livre de incertezas e das informações daquelas caras antipáticas. Avançou dois passos, os braços estirados como para abraçar alguém, sem ver nada. Infelizmente escorregou no soalho muito lustroso e parou. Veio-lhe então a ideia de que escorregar era inconveniente. Não devia escorregar. Pisando no paralelepípedo, caminhava direito. Mas ali, na madeira envernizada, a segurança desaparecia. Cócegas nas solas dos pés, suor nas solas dos pés. Um escorrego —  confissão de inferioridade.

Aprumou-se, estendeu os olhos em redor, e foi aí que notou o lugar onde se achava. No salão, fechado, o que lhe provocou a atenção foi a mesa de tamanho absurdo, entre cadeiras de altura absurda. Teve a impressão extravagante de que a mesa era maior que o salão. Nunca havia entrado em gabinetes, mas acostumara-se a julgá-los pequenos. E o salão era enorme, cercado de vidros por um lado, de livros pelo outro. Aquilo tinha aparência de biblioteca pública.

De relance percebeu uma fileira de volumes taludos, bem encadernados, e entristeceu. Devia ser um dicionário monstruoso, uma enciclopédia, qualquer coisa assim, para contos de réis. Engano: era simplesmente uma coleção do Diário Oficial. Mas isto produzia efeito extraordinário, e dr. Silveira imaginou ali grande soma de ciência. Deu um passo tímido no soalho, temendo escorregar de novo. Nenhuma segurança. Os braços, que se arqueavam para um abraço, caíram desajeitados ao longo do corpo meio corcunda.

Desviando-se das prateleiras onde se enfileiravam as dezenas de volumes grossos, os olhos pregaram-se no chão e assustaram-se com o brilho excessivo das tábuas. Insensatez fazer o pavimento das casas assim lustroso e escorregadio. Arriscou algumas passadas, convencido de que o observavam e censuravam. Certamente havia ali pessoas, talvez pessoas conhecidas, que ele se esquecera de cumprimentar. Notara apenas a mesa enorme, as cadeiras altas demais, as vidraças e os livros, especialmente a coleção encadernada a couro, com letras douradas nos lombos. Teve raiva da timidez que o amarrava, ergueu a cabeça e quis pisar firme. Uma criança, um matuto, encabulado.

Examinou a sala. Na extremidade da mesa, um homenzinho escrevendo. No momento em que dr. Silveira se certificava disto, a personagem soltou a pena, mostrou uns olhos empapuçados e deixou escapar um gesto de repugnância. Contrariado, sem dúvida, interrompido no trabalho maçador.

Dr. Silveira arrependeu-se de não ter ouvido o conselho da mulher. Que entendia ele de política? Devia ter ido visitar os doentes do arrabalde. Estupidez aproximar-se de figurões.

O movimento de repugnância do homem que escrevia na cabeça da mesa durara um segundo, transformara-se num sorriso de resignação. O antigo camarada tinha aquele sorriso, mas não tinha o gesto de aborrecimento nem os olhos empapuçados. Que mudança! E em pouco tempo.

Na verdade fazia pouco tempo que eles estudavam juntos no quintal de Silveira pai, debaixo das mangueiras, deitados nas folhas secas. As meninas dançavam e cantavam. Uma tia do outro vinha vigiá-los, com óculos e um romance. Não vigiava nada, mas a presença dela, dos óculos e do romance era um hábito necessário. Parecia que aquilo tinha sido na véspera. A tia idosa, com o nariz em cima do livro; as meninas dançando e cantando; eles deitados nas folhas secas, decorando os pontos.

O companheiro fora reprovado em química. Rapaz inteligente, mas perturbara-se, atrapalhara-se no átomo. Chorara, jurara vingar-se do dr. Guedes, inimigo do pai dele. Injustiça, não valia a pena estudar. Perseguição a um excelente aluno, bem comportado, avesso a badernas. Dr. Guedes tinha feito canalhice. Para que servia o átomo a quem ia ser bacharel? Vinte anos. Em vinte anos o mundo muitas voltas, mas realmente parecia que aquilo acontecera na véspera.

— Como a gente muda depressa!

O antigo colega não tinha os olhos empapuçados nem o gesto de aborrecimento. Era um menino amável e risonho. Por isso ele o animara, consolara, citara exemplos de homens importantes que haviam sido reprovados. Tolice amofinar-se por causa de uma safadeza do dr. Guedes.

Vinte anos. Agora tudo era diferente. O salão enorme, a mesa enorme. Dr. Silveira estava numa extremidade da mesa e via na outra os olhos empapuçados que se fixavam nele, tranquilos. O gesto de impaciência desaparecera, o sorriso desaparecera. O que havia eram os olhos cansados que não o reconheciam. Estaria transformado a ponto de não ser reconhecido? Devia estar. A calva, a corcunda, a palidez. Era outro, certamente. Moço ainda. Mas aquela vida agarrado aos defuntos e aos doentes inutilizava um homem. Velho. Ambos velhos. A calva, a corcunda, a palidez; os olhos empapuçados, frios, indiferentes. Se encontrasse o amigo na rua, passaria distraído, com o pensamento no hospital, no necrotério, na mesa de operações. Passaria distraído, lembrando-se de uma artéria que havia sido cortada. Essas coisas tinham grande importância para ele e nada significavam para o homem que escrevia, ali a alguns metros. Que estaria escrevendo? Telegrama ao ministro do Interior, ao ministro da Agricultura. Dr. Silveira não saberia redigir telegramas a esses ministros. Podia ser que aquilo fosse apenas um cartão a chefe político da roça. Dr. Silveira não seria capaz de redigir sequer um desses cartões vagabundos.

Avançou um passo para contornar a mesa e chegar-se ao homem pelo lado direito; recuou, avançou pelo lado esquerdo —  e permaneceu no mesmo lugar. Indecisão estúpida. Suor nas palmas das mãos, suor nas solas dos pés. Felizmente a mesa estava sobre um tapete e não havia o receio de escorregar. Podia aproximar-se andando com segurança, mas os olhos empapuçados, a mão esmorecida no papel, uma interrogação no rosto parado, davam-lhe vergonha e tremuras. Quis retroceder, abandonar a sala triste e silenciosa; olhou para trás, encontrou os volumes do Diário Oficial, terríveis, com letras douradas nos lombos de couro. Não conseguiria adquirir uma coleção assim rica, mesmo a prestações. Que fazia num salão que tinha livros tão ricos? Queria voltar, atravessar o espaço que o separava da porta, levantar o reposteiro, fugir do contínuo, do guarda, alcançar a rua. Mas ninguém entra numa sala para sair correndo como doido. Difícil escapulir-se, deixar os olhos empapuçados que tentavam reconhecê-lo. Estava cheio de constrangimento e notava que produzia constrangimento a um desconhecido perturbado no seu trabalho: telegrama ou cartão, a ministro ou a prefeito do interior. Esse trabalho estranho confundia-o. Difícil escrever o cartão ao prefeito.

Compreendeu que havia procedido mal não dando o cartão de visita ao contínuo. Cultivavam ali uma etiqueta, costumes bestas que ele ignorava e não procurara conhecer, porque do outro lado do reposteiro se achava um homem que fora para ele unha com carne. Dois dedos, assim, juntos, movendo-se no mesmo nível e quase do mesmo comprimento. A mulher não acreditara na história dos dedos e aconselhara-o a ficar em casa, de pijama, lendo revistas de medicina. Revistas, naturalmente: impossível obter volumes grossos como aqueles encadernados a couro, com letras douradas nos dorsos.

Criatura inferior. Sem dúvida, inferior. Não avançava nem recuava. Iria aproximar-se pela direita ou pela esquerda?

Os pontos do liceu eram cacetes. À noite Silveira pai interrogava-os em geografia e história, queria saber se eles aproveitavam o tempo. As meninas dançavam e cantavam, fazendo rodas. Onde estariam elas? Longe, casadas, mortas, diferentes, outras criaturas que não dançavam nem cantavam.

O antigo companheiro também era outro, um dedo amputado. Dr. Silveira desejava apenas aproximar-se, dizer algumas palavras. As palavras, estudadas, sumiam-se. Como se chegaria? Pela direita ou pela esquerda? Era melhor fugir, sair do tapete, pisar no soalho lustroso, arriscar-se a escorregar novamente. Suava. Impossível evitar os olhos que não o reconheciam. Agora tinha medo de que o homem supusesse que ele ia chorar, pedir emprego. Não ia. Imaginava fazer o gesto de virar os bolsos pelo avesso, mostrar que não precisava mendigar os cobres mesquinhos do imposto. Vivia satisfeito. Visitava doentes pobres, trabalhava no hospital, assinava as revistas indispensáveis. Tranquilo. Não ia pedir. Nenhuma ambição, poucas necessidades. Queria abraçar o amigo, felicitá-lo, conversar uns minutos, lembrar os tempos velhos, os pontos decorados sob as mangueiras, as meninas, a senhora idosa. Não ia pedir. A roupa estava realmente safada, os sapatos cambavam. E a corcunda, a palidez, a magreza, o modo encolhido. Mas tinha os doentes do arrabalde, que só acreditavam nele, o hospital, que dava ordenado magro e trabalho excessivo, a mulher econômica. Sentiria se o privassem do hospital. Muitos casos interessantes.

Uma visita de cortesia. A roupa era de mendigo. Não tinha pensado na roupa ao sair de casa. A gola suja, a gravata enrolada como corda. Desleixado. Nunca prestava atenção à mulher, que o importunava diariamente: —  “Feche esse paletó.” Não fechava. E arrependia-se, ali na ponta da mesa, mostrando a camisa, que entufava na barriga.

O homem dos olhos empapuçados julgava-o um pulha, um pedinte de emprego, uma dessas criaturas que aparecem nas audiências públicas e levam cartas de recomendação. Por isso estava com o rosto parado, pronto a murmurar uma recusa seca, defendendo o osso roído. Dr. Silveira não precisava do osso. Queria conversar uns minutos, lembrar o tempo de liceu, a senhora velha que lia o romance, as meninas, os pontos, o átomo, as amolações de Silveira pai. Impossível falar sobre essas coisas. Tinham sido dois dedos, assim, mas estavam separados. Como vencer a separação, a mesa enorme que se interpunha entre eles, rodeada de cadeiras altas? Iria pela direita ou pela esquerda? Dr. Silveira afastava-se para um lado, afastava-se para outro lado, e permanecia no mesmo lugar. O homem dos olhos empapuçados não o reconhecia. Reconhecia-o. Talvez não o reconhecesse. Um antigo condiscípulo, um sujeito encontrado em qualquer parte. Amigo, certamente, desses que a gente saúda com indiferença: —  “Olá! Como vai?” Procurava lembrar-se do nome de dr. Silveira. Colega de escola primária, de liceu ou de academia. Tentava recordar-se, a pena suspensa, o telegrama interrompido. Visita importuna, tempo perdido.

— Esses tipos têm as horas contadas, tantos minutos para isto, tantos para aquilo. Não se ocupam em conversas fiadas.

Negócios sérios, públicos. Dr. Silveira sentia-se amarrado, preso ao tapete, junto a uma cadeira alta que tinha uma águia sobre o espaldar. As encadernações não lhe saíam da cabeça. Muitos livros, aparência de biblioteca. Volumes grossos, com letras douradas nos lombos.

Recordações tão minguadas! A senhora velha folheando o romance, as crianças dançando e cantando, as mangueiras, os dois ouvindo as explicações de Silveira pai. Ele e aquele indivíduo que se aborrecia a alguns metros de distância, a pena suspensa, o telegrama interrompido, uma interrogação vaga nos olhos empapuçados:  “Olá! Como vai?”

Estupidez lembrar-se do passado inútil. A mulher tinha razão. Acabar depressa com aquilo, voltar ao subúrbio, vestir pijama, calçar chinelos, ler as revistas indispensáveis.

Avançou. Não sabia se avançava pela direita ou pela esquerda. Completamente atordoado. Acabar depressa com aquilo. A mulher tinha razão.

— Olá! Como vai? perguntou o homem de olhos empapuçados.

Dr. Silveira sentou-se numa das cadeiras altas demais, começou a gaguejar. Cadeiras tão altas! Esfregou as mãos. E pediu o emprego. Uma sinecura, um gancho na Saúde Pública. Não se referiu aos acontecimentos antigos. Necessidade, pobreza, tempos duros. Esfregava as mãos encabulado, mostrando a esmeralda. Um emprego na Saúde Pública.

— Está bem, disse lentamente o homem de olhos empapuçados. Vamos ver. Apareça. E encostou a pena no papel, manifestou a intenção de continuar o telegrama.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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