12/29/2023

D. Maria (Crítica, 1941), por Graciliano Ramos


D. MARIA

A mãe de dona Maria perdeu muito cedo o marido, pequeno proprietário sertanejo, e esforçou-se desesperadamente para cultivar a fazenda, impedir que os vizinhos lhe abrissem as cercas e metessem animais na roça. Defendeu-se como pôde, conservou-se viúva e, cabeluda, musculosa, quase transformada em homem, deu uma rija educação masculina à filha única.

D. Maria exercitou-se na equitação e no tiro ao alvo, combinou as letras necessárias para redigir bilhetes curtos, confiou muito na cabeça e nos braços, desenvolveu os pulmões gritando ordens rigorosas à cabroeira que se derreava no eito, arrastando a enxada de três libras. Chegando à fase das vigílias e das olheiras, casou, como era preciso; ligou-se a um ser tranquilo, pouco exigente, de raça branca, está visto, condição indispensável para não se estragar a família.

Tornou-se órfã de mãe, chorou, deitou luto, consolou-se. E, depois da missa do sétimo dia, afligiu o tabelião e os oficiais de justiça, importunou o juiz, conseguiu reduzir as custas, tomou conta da herança e entrou a dirigir os negócios em conformidade com as instruções maternas.

Tudo andou bem. A lavoura prosperou, construíram-se várias casas, levantou-se uma capela — e surgiu na fazenda uma povoação que a digna mulher governou, apesar de não lhe permitirem as leis certos atos. As leis foram cumpridas. D. Maria usava, nas transações em que a sua firma era insuficiente, um pseudônimo. A princípio o marido, vaga criatura resignada e silenciosa, tinha alguns préstimos conjugais. Despojou-se deles. E afinal, encolhido, assinava papéis de longe em longe. Recebia mesada, escondia-se das visitas, encharcava-se de aguardente na venda estabelecida a um canto da casa-grande e realizava trabalhos somenos: lavava cavalos, ia buscar o jornal na agência do correio, transmitia recados.

Aos quarenta anos, d. Maria, sacudida pelos ventos, queimada pelo sol, era uma bela mulher de carnes enxutas e olhos vivos, risonha, desembaraçada, franca, possuidora de opiniões e hábitos esquisitos, muito diferentes das opiniões e dos hábitos das proprietárias comuns. Aparecia nas feiras da cidade com vastas roupas de ramagens vistosas, sapatos de homem, xale cor de sangue, enorme cigarro de fumo picado, forte. Rodeava-a um magote de protegidos, que ela abonava nas lojas, recomendava ao prefeito, ao chefe político e ao delegado. Não podia votar, mas dispunha de alguns eleitores que a tornavam capaz de obter sentenças favoráveis no júri.

Tinha religião moderada e prática. Ia à igreja pelo Natal e evitava as confissões, mas estava em harmonia com o vigário. Naturalmente. Estava em harmonia com todas as autoridades. Mandava rezar novenas na capela do povoado, dedicava a S. Sebastião e a outros santos valiosas festas que reuniam os habitantes dos arredores. Jogavam bozó e sete e meio, rodavam nos cavalinhos, dançavam, bebiam, compravam fitas e espelhos nos baús de miudezas. Desenvolvia-se o comércio do lugar. E a natalidade aumentava. Aumentava fora das normas e da conveniência, mas d. Maria não se incomodava com preceitos. Necessário o crescimento da população. Necessários trabalhadores na roça e fregueses na venda.

Essa criatura enérgica exprimia-se em linguagem bastante livre e adotava um código moral próprio. Não estava isenta de preconceitos, mas os preconceitos eram individuais. Os pecados ordinários não tinham para ela nenhuma significação. Considerava culpados os indivíduos que de qualquer modo lhe causavam prejuízo: devedores velhacos, serviçais preguiçosos, ladrões de galinhas. Aos outros viventes manifestava indulgência. E era madrinha de todos os meninos que nasciam pelas redondezas. As pessoas sisudas encolhiam os ombros e toleravam certas derrapagens dela.

— Fraquezas de d. Maria.

Disparate, pois não consta que d. Maria se houvesse, em situações difíceis, revelado fraca. Realmente não podiam acusá-la. Progresso na fazenda, crédito no armazém, os impostos pagos.

— Somos palmatória do mundo?

Só lamentavam que a extraordinária mulher falasse tão claramente, sem nenhum respeito às ideias alheias.

— Fraquezas.

Pouco antes de 1930 Lampião chegou ao município e esteve uma semana rondando a cidade, procurando meio de assaltá-la. Aboletou-se na terra de d. Maria, passou algum tempo divertindo-se e mandando espiões examinar a defesa da rua. Descontente com as observações, retirou-se e foi pedir a bênção do padre Cícero.

Sábado, como de costume, d. Maria apeou-se na feira, de xale vermelho e cigarro, cercada por numerosos protegidos. E sujeitos de olho arregalado se aproximaram dela.

— Como é, d. Maria? A senhora viu Lampião?

— Claro. Hospedou-se em minha casa.

— Em sua casa, d. Maria? Que desgraça!

— Qual é a desgraça? Bom homem. Tudo correu direito. Hospedei os mais importantes. O pessoal miúdo acomodou-se nos ranchos dos moradores. Matei gado, preparei muita comida. Bons tipos. Pagaram tudo certinho. Beberam a cerveja e a cachaça que havia, caíram num furdunço louco e dançaram como uns condenados.

— Dançaram?

— É. Convidamos as moças da vizinhança. Naturalmente não pudemos dar pares a cento e vinte caboclos. Vieram umas trinta.

— Que horror, d. Maria! Coitadas! Como ficaram essas moças?

D. Maria abriu a boca num espanto verdadeiro. Em seguida largou uma risada:

— O senhor tem perguntas! Parece criança. Como haviam de ficar? Imagine. Tolice, nenhuma delas se julga diminuída. Os cabras estavam sujos, mas despejaram frascos de perfume na cabeça e na roupa. E distribuíram voltas de ouro, cortes de seda, notas de cem mil-réis. As meninas gostaram. Vão achar casamento.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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