D. MARIA AMÁLIA
O gabinete de
S. Exa., como todos os gabinetes de pessoas importantes, estava sempre cheio.
Pedidos, choradeiras, desejos de vingança, vaidades, calúnias, reedições vivas
de cartas anônimas — um inferno.
O governador
aborreceu-se disso, abandonou as audiências e começou a rodar num automóvel
pelo interior do Estado, ensinando agricultura e zootecnia aos matutos e
tentando endireitar os orçamentos municipais. Em cada semana eram dois dias de
fuga.
O pior é que
nesses dois dias, passados aos solavancos, entre atoleiros, lá vinham, mal o
carro parava, as cenas do gabinete: as mesmas lamúrias, os mesmos enredos, as
mesmas pequeninas safadezas. Somente, como não havia sala de espera, o
governador se punha em contato com todas as misérias da terra. E as misérias
vestiam-se mal e falavam linguagem incorreta.
Ora, das
criaturas que aperreavam S. Exa., d. Maria Amália era a mais incômoda. No
gabinete, no sertão, livre das horas de expediente, no cinema, assistindo a uma
cerimônia oficial, respirando poeira em vagão da Great Western ou escondido num
desses recantos indispensáveis que não é preciso mencionar, descansando,
fazendo a barba, dormindo, comendo, amando, o governador era atenazado por d.
Maria Amália, pelos representantes de d. Maria Amália ou pela recordação de d.
Maria Amália.
Senhora
terrível, sempre com um inimigo para deitar abaixo e um amigo para colocar.
Nunca estava satisfeita: achava poucos os favores que os seus amigos recebiam e
julgava os inimigos demasiadamente favorecidos.
D. Maria
Amália era mulher dum chefe político influente. Às vezes prefeito, outras vezes
deputado ou senador, o marido de d. Maria Amália tinha grandeza. Na câmara, no
senado, nas secretarias, nas diretorias, imaginavam que ele dispunha de dois
mil votos e respeitavam-no.
Mas no
município dele todos sabiam que os votos eram de d. Maria Amália, que manejava
o delegado, o subdelegado e os inspetores de quarteirões, o administrador da
recebedoria, o coletor federal, o promotor, os jurados, os conselheiros
municipais e o prefeito. Dessas autoridades heterogêneas, umas, maleáveis,
quebravam a cabeça para adivinhar os pensamento de d. Maria Amália e corriam a
contentá-la; outras, de têmpera rija e carranca, resistiam, discutiam e
obedeciam com independência.
O governador
começou a fugir daquela mulher temerosa, que, depois da eleição, exigia
empregos para todos os eleitores, adotava, por intermédio do marido, o negócio
de vendas à vista, tanto por voto.
S. Exa.
precisava dos votos, mas não possuía a quantidade necessária de empregos.
Espremido o orçamento, ainda ficavam muitos candidatos afastados do tesouro,
desgostosos, dizendo cobras e lagartos do governo.
Caso sério. O
eleitor cambembe vota para receber um par de tamancos, um chapéu e o jantar que
o chefe político oferece à opinião pública; mas o eleitor considerado quer modo
de vida fácil, ordenado certo e a educação dos filhos.
S. Exa.
compreendia perfeitamente que a oposição engrossava.
Paciência.
Depois dos votos, promessas.
Os homens
acreditavam nas promessas, mas d. Maria Amália não se deixava embromar:
examinava as coisas por miúdo, reclamava paga, toma lá, dá cá. E o seu nariz
bicudo farejava os decretos que se ocultavam nas diretorias, nas secretarias e
nas oficinas da Imprensa Oficial.
Essa figura
antipática e exigente cresceu tanto que tomou para o governador as proporções
duma calamidade. D. Maria Amália tornou-se um símbolo. Foi a representação da
nossa trapalhada econômica, social e política.
E S. Exa.,
desprezando o gabinete e percorrendo os municípios distantes da capital,
procurava debalde evitar as manifestações que d. Maria Amália lhe trazia de
malandragem e parasitismo. Quando a malandragem e o parasitismo, embrulhados em
boa sintaxe e enfeitados de retórica, mostravam a cauda numa coluna de jornal
ou nas declamações excessivas dum discurso, S. Exa. franzia a testa e
queixava-se de d. Maria Amália.
Um conselho
municipal aprovava as contas do prefeito que esquecia as obras públicas e
gastava mundos e fundos com pessoal.
—
Administração de d. Maria Amália.
Um coronel
mandava o júri absolver ou condenar criminosos.
— Justiça de
d. Maria Amália.
Um delegado
tomava a faca dum cabra e ia vendê-la a outro.
— Polícia de
d. Maria Amália.
Todos os anos,
no dia 7 de setembro, o governador recebia um telegrama que nunca mudava:
“Congratulo-me com eminente amigo comemoração data independência querida
pátria. Cordiais saudações.”
— Política de
d. Maria Amália. E d. Maria Amália crescia.
Hoje é uma senhora
bem-conservada, respeitável, com excelentes relações.
Algumas
pessoas julgaram há tempo que ela ia morrer. Tolice. Morrer tão moça, quando,
como diz o poeta, este mundo é um paraíso!
Resistiu a
todas as comissões de sindicância e está forte, gorda e bonita.
Rio de Janeiro, abril 1941.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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