COMANDANTES DE BURROS
Quando Lampião
esteve no município de Palmeira dos Índios, onde se demorou alguns dias
mandando bilhetes para a cidade e sem poder entrar nela, trazia mais de cem
homens que não se escondiam na capoeira nem transitavam em veredas. Corriam
pela estrada real, bem-montados, espalhafatosos, pimpões, chapéus de couro
enfeitados de argolas e moedas, cartucheiras enormes, alpercatas que eram uma
complicação de correias, ilhós e fivelas, rifles em bandoleira, lixados,
azeitados, alumiando.
O major José
Lucena, chefe do destacamento que perseguia bandidos, notando a pequena
eficiência da sua tropa de peões, entendeu-se com os proprietários sertanejos,
que lhe ofereceram cavalos e burros para o restabelecimento da ordem. Houve
algumas escaramuças e Lampião deixou Alagoas, tomou rumo para o Rio Grande do
Norte, entrou em Mossoró, onde Jararaca morreu e a cabroeira se espalhou.
Os burros se
tornaram inúteis.
O major Lucena
separou-os em dois lotes, mandou um deles para um engenho de Viçosa, e o outro
para uma povoação de Palmeira dos Índios.
Neste tempo o
sr. Álvaro Paes, que projetou e iniciou trabalhos excelentes de organização
municipal, viajava todas as semanas pelo interior do estado. Foi um viajante
incansável e chegou a conhecer perfeitamente as árvores e os homens do sertão.
Um dia parou
num povoado, com o intuito de ensinar aos matutos a cultura da pinha, da mamona
e de outros vegetais que se desenvolviam bastante na imprensa da época. Estava
tratando de convencer o maioral da localidade quando se aproximou dele um
soldado com duas fitas, um botão fora da casa, chapéu embicado, faca de ponta à
cinta. Continência e apresentação:
— Pronto, seu
governador, cabo fulano, comandante dos burros do major Lucena.
Era o
encarregado de tomar conta dos animais que tinham servido para afugentar
Lampião.
Esta história
podia findar aqui, mas não serão talvez excessivas algumas palavras sobre a
classe a que pertencia esse extraordinário comandante. Horrível. Sujeitos
insolentes, provocadores, preguiçosos.
A parte mais
forte da nossa população rural está com Lampião — os indivíduos que dormem
montados a cavalo, os que suportam as secas alimentados com raiz de imbu e
caroços de mucunã, os que não trabalham porque não têm onde trabalhar, vivem
nas brenhas, como bichos, ignorados pela gente do litoral.
Os que não têm
coração mole encontram-se, quando o verão queima a catinga, numa situação
medonha. Três saídas: morrer de fome, assentar praça na polícia, emigrar para o
Sul. Antes da morte, da emigração ou da farda, essas criaturas são maltratadas
pelas diligências, que não querem saber quem é bom nem quem é ruim: espancam
tudo.
O caboclo
apanha bordoada sempre: apanha do pai, da mãe, dos tios, dos irmãos mais
velhos, apanha do proprietário que lhe toma a casa e abre a cerca da roça para
o gado estragar as plantações, apanha do cangaceiro que lhe raspa o osso da
canela a punhal e lhe deita espeques nas pálpebras, para ver a mulher, a filha,
a irmã serem possuídas. E se um inimigo vai à rua e o acusa, o delegado manda
prendê-lo e ele aguenta uma surra de facão no corpo da guarda, outra de cipó de
boi no xadrez, aplicada pelo preso mais antigo, que recebe quinhentos-réis do
torno e é o juiz da cadeia.
Suporta esses
últimos tormentos resignado, quase com indiferença, porque enfim prisão se fez
para homem e apanhar do governo não é desfeita. Às vezes morre das sovas.
Outras vezes atira-se para São Paulo, para o Espírito Santo, para algum lugar
onde haja café. Ou espera que a lagarta coma o algodão e as cacimbas se
esgotem.
Nesse ponto
tendo ódio a Deus e aos homens que o tratam mal, tem vontade de vingar-se. Pede
um cartão ao doutor juiz de direito, vende o cavalo, arranja o malote e marcha
para a capital, donde volta alguns meses depois, transformado, calçando
perneiras, vestindo uniforme cáqui, falando difícil, terrivelmente besta,
desconhecendo os amigos e perguntando o nome das coisas mais vulgares.
Abre as vogais
escandalosamente, diz: Éxercito, sérviço.
Anda a
peneirar-se, todo pachola, com o quepe à banda, a grenha parecendo por baixo da
pala.
Bebe, não trabalha,
dorme demais!
À noite
mete-se nos botequins dos bairros safados ou derruba as portas das meretrizes.
É mais ou menos casado com uma sujeita que lhe prepara a comida, lava a roupa e
possui um baú de folha, um sagui e um papagaio.
Vai aos
batuques de ponta de rua, sem ser convidado, e é bem recebido. Muita
consideração. Mas quer dançar com todas as damas, e se alguma lhe mostrar má
cara, faz um barulho feio: apaga-se a luz e a festa acaba em pancadaria.
É vaidoso,
cheio de suscetibilidades. Importância imensa. Em horas de aborrecimentos sai à
calçada do quartel, nu da cintura pra cima, e grita:
— Esta terra
não tem homem:
Como nenhum
homem responde, torna a gritar:
— Apareça um.
Ninguém aparece.
Vai para as
encruzilhadas tomar as facas dos matutos. Os matutos que têm facas levam murros
porque são desordeiros, os que não têm facas levam murros porque são mofinos.
Levam murros e
sentem, como é natural, o desejo de ser soldados, o desejo de cochilar horas e
horas, de papo pra cima, sem obrigações, sem exercícios, sem a botina quarenta
e quatro a apertar-lhes os calos, o desejo de beber vinho branco na feira e
pisar os pés dos pobrezinhos que só têm armas fracas: o buranhém e a quicé de
picar fumo, o desejo de comer massa, o desejo de tomar as mulheres dos outros,
o desejo de comprar fiado nas bodegas sem intenção de pagar.
Um cartão do
doutor juiz de direito, do promotor público, do coronel chefe político tem
muito valor!
Entrouxam a
roupa e embarcam.
Quando
voltarem dormirão tranquilos, baterão nas prostitutas, beberão cachaça nas
toldas, em companhias do inspetor e do subdelegado.
E serão, com a
ajuda de Deus, alguma coisa grande.
Comandante de
burros por exemplo.
Maceió, 27 de maio de 1933.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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