12/29/2023

Ciríaco (Crônica), por Graciliano Ramos


CIRÍACO

Era um caboclo reforçado, cabreiro numa fazenda antiga, em decadência, no interior de Pernambuco. Isento de família, possuía apenas o nome de batismo, Ciríaco, que se pronunciava Ciríaco, e alguns entendidos encurtavam para Cirico.

Se tratasse de bois, Ciríaco andaria a cavalo e usaria perneiras, gibão, guarda-peito, sapatões duros com esporas de grandes rosetas. Ocupando-se, porém, de bichos miúdos, era pedestre e exibia arreios somenos: alpercatas, calças de algodão tinto, camisa de algodão branco por fora das calças, bisaco a tiracolo, chapéu inamolgável como chifre, sapecado, negro de suor e detritos, de beiras roídas, traste insignificante que um vaqueiro desdenharia.

Dispunha de vocabulário escasso e falava aos arrancos, misturando assuntos, deixando as frases incompletas, entre silêncios.

— Hoje de manhã, no caminho das Sete Lagoas, encontrei uma tubiba. Sim senhor.

Remexia o aió, procurando fumo e palha, tirava da cintura a faca de ponta.

— Quando mal me precatava, o diabo da sem-vergonha me deu um coice. Torci o corpo.

— A tubiba deu um coice, Ciríaco?

— Não, é outra história. A vaca laranja, ali no canto da cerca, ontem. A tubiba foi hoje de manhã.

Nessa linguagem capenga, feita de avanços, recuos e perífrases, narrava sucessos longos, que os ouvintes percebiam de modos diferentes. Mas de ordinário não gostava de falar: preferia atiçar as conversas dos outros com apartes, vagos comentários de aprovação mastigada:

— An? an! Está bem. Pois é.

A voz grossa e abafada escorria lenta, um sorriso iluminava o rosto moreno, coberto de rugas e pelos de alvura respeitável. Ótimo sujeito. Nunca o vi zangar-se.

Meio selvagem, dormia ao relento, no chão. Só se recolhia no mau tempo, quando as nuvens rolavam baixas, crescia o ronco dos trovões, o relâmpago clareava os morros distantes, quase invisíveis na sombra repentina, única elevação naqueles descampados. Entrava resmungando, apreensivo, estendia na sala um couro de boi e arriava em cima dele os ossos velhos, que iam começando a emperrar. Desentocava-se logo que as coisas melhoravam lá fora. O céu de novo se alargava e subia, o sol brabo tirava da campina grisalha as manchas frescas de verdura. E Ciríaco estava contente.

O meu quarto na casa arruinada ficava à esquerda, junto ao quintalzinho onde resistiam, sob os galhos de uma baraúna enorme, garranchos escuros, flores murchas, craveiros e panelas de losna. Era um quarto excelente, porque tinha reboco, ordinário e rachado, mas luxo excessivo comparado ao resto da habitação, taipa negra revestida de pucumã. A porta, escancarada, mostrava alguns esteios do copiar, o chiqueiro das cabras, um carro de bois, os montes afastados e, no fim do pátio branco, onde jumentos zurravam dia e noite, dois pés de juá. Os móveis de que me utilizava eram mesquinhos: uma rede encardida, um caixão de livros, uma cadeira meio desarticulada, com emendas e vários pregos, a mesa pequena e manca, de tábuas quase soltas.

Chateava-me horrivelmente ali, tentava curvar as juntas duras, arrastava a doença teimosa, pezunhando no chão sem ladrilho, cheio de barrocas, onde folhas secas, trazidas pelo vento morno, sacudiam pontas de cigarros. Bocejava, monologava, da rede para a mesa. E, tendo-me imposto uma dieta rigorosa, sem poesia nem romance, enchia-me de gramática, parafusava no clássico, lia adivinhando umas línguas estrangeiras e cobria de notas muitas folhas de papel. Distraía-me observando as teias de aranha, o chiqueiro das cabras, os montes, a campina, as árvores, o carro de bois e os jumentos. À tardinha as catingueiras escureciam de chofre, o barulho da miunça vencia os outros rumores.

Ciríaco andava pelos arredores, apanhando gravetos, raízes de macambira, estacas podres, que empilhava defronte da casa. Varria com um molho de vassourinha alguns metros do pátio coberto de seixos miúdos, acocorava-se, tirava fogo do binga e, quando as labaredas espirravam da lenha, estirava-se na poeira, como os viventes desprovidos de fala, e roncava um sono pesado, sem sonhos, na paz do Senhor.

Essa boa criatura me visitava muitas vezes. Aproximava-se devagar, arrumava-se num canto, dizia casos embrulhados. Em seguida fazia uma pergunta e amoitava-se, punha-se a escutar, a assuntar, concordando:

— An! an!

Entrou-me um dia assim no quarto, ao lusco-fusco, e interrompeu-me o estudo com um discurso armado pouco mais ou menos deste jeito:

— Você lê muito, estraga a saúde lendo. Deve saber demais, deve saber tudo. Saber é bom, saber vale mais que dinheiro. Como é isso lá por cima? Que é que os livros dizem?

Ciríaco desejava notícias sobre a origem do mundo. E eu, rapazola ingênuo, admirando semelhante curiosidade num tipo bronco, entusiasmei-me, venerei a espécie humana, joguei para Ciríaco, usando as precauções que a ignorância me sugeria, a nebulosa e Laplace.

— Entende?

— Está bem.

Evitei as expressões técnicas em que me enganchava, resumi a formação e solidifiquei o globo rapidamente. Busquei em redor qualquer coisa que servisse de Sol, e o que achei foi o candeeiro de folha colocado na ponta da mesa, sujo, com uma luzinha trêmula, uma protuberância fuliginosa.

— Isso é o Sol. Não é Sol, não é nada, mas suponha. Um Sol bem ruim. O outro é muito maior, está claro, um bichão. Queima a Terra brincando e vem a seca. Terrível. O Sol tem muitos poderes.

— Maior que Deus?

— Sei lá! Parece que os dois são fortes. Agora só tratamos de um. O candeeiro. Um candeeiro enorme, redondo, quente como o diabo, uma fornalha do inferno. Por aqui deve andar a Terra, girando, bancando carrapeta. Na vizinhança há outras, grandes e pequenas, um pelotão delas, com luas, tudo se mexendo. E o Sol no meio, importante.

Em falta dum objeto que representasse a Terra, peguei o meu chapéu de couro e o chapéu de Ciríaco. Juntei-os, movi-os em torno do candeeiro.

— Aí na banda clara temos o dia. No outro lado é noite. Bonito, hem?

— Vá dizendo.

Esse planeta, muito mais volumoso que o Sol, não era propriamente esférico. Os polos formavam dois bicos. O equador, feito pelas abas, salientava-se em demasia.

A exposição durou cerca de meia hora. Ciríaco balançava a cabeça e grunhia as duas sílabas guturais de aprovação, no sorriso permanente:

— Ah! an!

Excedi-me, expliquei negócios que até então havia ignorado. Falei muito sobre os movimentos. Conhecia uns dois ou três, mas arranjei outros. Ao findar, sentia-me otimista, satisfeito com a população rural do meu país:

— Compreendeu?

Ciríaco esfregou as mãos calosas e largou uma risada grossa.

— Compreendi. Você quer-me empulhar. Pensa que eu acredito nessas besteiras.

 

Rio de Janeiro, julho 1941.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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