CIRÍACO
Era um caboclo
reforçado, cabreiro numa fazenda antiga, em decadência, no interior de
Pernambuco. Isento de família, possuía apenas o nome de batismo, Ciríaco, que
se pronunciava Ciríaco, e alguns entendidos encurtavam para Cirico.
Se tratasse de
bois, Ciríaco andaria a cavalo e usaria perneiras, gibão, guarda-peito,
sapatões duros com esporas de grandes rosetas. Ocupando-se, porém, de bichos
miúdos, era pedestre e exibia arreios somenos: alpercatas, calças de algodão
tinto, camisa de algodão branco por fora das calças, bisaco a tiracolo, chapéu
inamolgável como chifre, sapecado, negro de suor e detritos, de beiras roídas,
traste insignificante que um vaqueiro desdenharia.
Dispunha de
vocabulário escasso e falava aos arrancos, misturando assuntos, deixando as
frases incompletas, entre silêncios.
— Hoje de
manhã, no caminho das Sete Lagoas, encontrei uma tubiba. Sim senhor.
Remexia o aió,
procurando fumo e palha, tirava da cintura a faca de ponta.
— Quando mal
me precatava, o diabo da sem-vergonha me deu um coice. Torci o corpo.
— A tubiba deu
um coice, Ciríaco?
— Não, é outra
história. A vaca laranja, ali no canto da cerca, ontem. A tubiba foi hoje de
manhã.
Nessa
linguagem capenga, feita de avanços, recuos e perífrases, narrava sucessos
longos, que os ouvintes percebiam de modos diferentes. Mas de ordinário não
gostava de falar: preferia atiçar as conversas dos outros com apartes, vagos
comentários de aprovação mastigada:
— An? an! Está
bem. Pois é.
A voz grossa e
abafada escorria lenta, um sorriso iluminava o rosto moreno, coberto de rugas e
pelos de alvura respeitável. Ótimo sujeito. Nunca o vi zangar-se.
Meio selvagem,
dormia ao relento, no chão. Só se recolhia no mau tempo, quando as nuvens
rolavam baixas, crescia o ronco dos trovões, o relâmpago clareava os morros
distantes, quase invisíveis na sombra repentina, única elevação naqueles
descampados. Entrava resmungando, apreensivo, estendia na sala um couro de boi
e arriava em cima dele os ossos velhos, que iam começando a emperrar.
Desentocava-se logo que as coisas melhoravam lá fora. O céu de novo se alargava
e subia, o sol brabo tirava da campina grisalha as manchas frescas de verdura.
E Ciríaco estava contente.
O meu quarto
na casa arruinada ficava à esquerda, junto ao quintalzinho onde resistiam, sob
os galhos de uma baraúna enorme, garranchos escuros, flores murchas, craveiros
e panelas de losna. Era um quarto excelente, porque tinha reboco, ordinário e
rachado, mas luxo excessivo comparado ao resto da habitação, taipa negra
revestida de pucumã. A porta, escancarada, mostrava alguns esteios do copiar, o
chiqueiro das cabras, um carro de bois, os montes afastados e, no fim do pátio
branco, onde jumentos zurravam dia e noite, dois pés de juá. Os móveis de que
me utilizava eram mesquinhos: uma rede encardida, um caixão de livros, uma
cadeira meio desarticulada, com emendas e vários pregos, a mesa pequena e
manca, de tábuas quase soltas.
Chateava-me
horrivelmente ali, tentava curvar as juntas duras, arrastava a doença teimosa,
pezunhando no chão sem ladrilho, cheio de barrocas, onde folhas secas, trazidas
pelo vento morno, sacudiam pontas de cigarros. Bocejava, monologava, da rede
para a mesa. E, tendo-me imposto uma dieta rigorosa, sem poesia nem romance,
enchia-me de gramática, parafusava no clássico, lia adivinhando umas línguas
estrangeiras e cobria de notas muitas folhas de papel. Distraía-me observando
as teias de aranha, o chiqueiro das cabras, os montes, a campina, as árvores, o
carro de bois e os jumentos. À tardinha as catingueiras escureciam de chofre, o
barulho da miunça vencia os outros rumores.
Ciríaco andava
pelos arredores, apanhando gravetos, raízes de macambira, estacas podres, que
empilhava defronte da casa. Varria com um molho de vassourinha alguns metros do
pátio coberto de seixos miúdos, acocorava-se, tirava fogo do binga e, quando as
labaredas espirravam da lenha, estirava-se na poeira, como os viventes
desprovidos de fala, e roncava um sono pesado, sem sonhos, na paz do Senhor.
Essa boa
criatura me visitava muitas vezes. Aproximava-se devagar, arrumava-se num
canto, dizia casos embrulhados. Em seguida fazia uma pergunta e amoitava-se,
punha-se a escutar, a assuntar, concordando:
— An! an!
Entrou-me um
dia assim no quarto, ao lusco-fusco, e interrompeu-me o estudo com um discurso
armado pouco mais ou menos deste jeito:
— Você lê
muito, estraga a saúde lendo. Deve saber demais, deve saber tudo. Saber é bom,
saber vale mais que dinheiro. Como é isso lá por cima? Que é que os livros
dizem?
Ciríaco
desejava notícias sobre a origem do mundo. E eu, rapazola ingênuo, admirando
semelhante curiosidade num tipo bronco, entusiasmei-me, venerei a espécie
humana, joguei para Ciríaco, usando as precauções que a ignorância me sugeria,
a nebulosa e Laplace.
— Entende?
— Está bem.
Evitei as
expressões técnicas em que me enganchava, resumi a formação e solidifiquei o
globo rapidamente. Busquei em redor qualquer coisa que servisse de Sol, e o que
achei foi o candeeiro de folha colocado na ponta da mesa, sujo, com uma luzinha
trêmula, uma protuberância fuliginosa.
— Isso é o
Sol. Não é Sol, não é nada, mas suponha. Um Sol bem ruim. O outro é muito
maior, está claro, um bichão. Queima a Terra brincando e vem a seca. Terrível.
O Sol tem muitos poderes.
— Maior que
Deus?
— Sei lá!
Parece que os dois são fortes. Agora só tratamos de um. O candeeiro. Um
candeeiro enorme, redondo, quente como o diabo, uma fornalha do inferno. Por
aqui deve andar a Terra, girando, bancando carrapeta. Na vizinhança há outras,
grandes e pequenas, um pelotão delas, com luas, tudo se mexendo. E o Sol no
meio, importante.
Em falta dum
objeto que representasse a Terra, peguei o meu chapéu de couro e o chapéu de
Ciríaco. Juntei-os, movi-os em torno do candeeiro.
— Aí na banda
clara temos o dia. No outro lado é noite. Bonito, hem?
— Vá dizendo.
Esse planeta,
muito mais volumoso que o Sol, não era propriamente esférico. Os polos formavam
dois bicos. O equador, feito pelas abas, salientava-se em demasia.
A exposição
durou cerca de meia hora. Ciríaco balançava a cabeça e grunhia as duas sílabas
guturais de aprovação, no sorriso permanente:
— Ah! an!
Excedi-me,
expliquei negócios que até então havia ignorado. Falei muito sobre os
movimentos. Conhecia uns dois ou três, mas arranjei outros. Ao findar,
sentia-me otimista, satisfeito com a população rural do meu país:
— Compreendeu?
Ciríaco
esfregou as mãos calosas e largou uma risada grossa.
— Compreendi.
Você quer-me empulhar. Pensa que eu acredito nessas besteiras.
Rio de Janeiro, julho 1941.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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