CARNAVAL
A cidade tem
uns cinco mil habitantes. Contando bem, talvez achássemos seis mil, número que
os naturais, bairristas em excesso, duplicam. Há um cinema silencioso, onde as
fitas se quebram durante longas horas, sem risco para os frequentadores,
atentos aos dramas em série, e há um semanário, adstringente, espinhoso, que
divulga boatos cochichados nas esquinas, na farmácia e na barbearia, em redor
dos tabuleiros de gamão. Tudo se realiza às claras, no cinema ou na rua, e as
casas estão fiscalizadas rigorosamente. Qualquer derrapagem medíocre, sorriso
considerado impróprio, suspiro ou afoiteza de opinião, determina comentários,
zangas, críticas acerbas, equívocos.
Faz trinta
anos que S. Revma. profere no púlpito, com ligeiras variantes, o mesmo sermão,
ataque feroz ao mundo, à carne e ao diabo, férteis em tentações não
especificadas. Prudente, S. Revma. impugna o exterior do mal. Acusou as
primeiras mulheres que vestiram calças e montaram a cavalo de frente,
escanchadas, como os homens, mas este indício de perdição vulgarizou-se
rapidamente, os silhões e o costume de cavalgar de banda caíram em desprestígio
— e o vigário passou a denunciar outras manhas dos inimigos da alma. Agrediu as
saias curtas das moças e os braços descobertos. Ante a resistência foi inexorável:
esbaforiu-se e enrouqueceu depois da missa, usou argumentos rijos e, no
batismo, afastou da pia as madrinhas não inteiramente agasalhadas. Recusou
desculpas, triunfou. Idoso e de óculos, enxerga sem dificuldade os colos
expostos. E julga que alguns centímetros de pele nua ocasionam prejuízo sério à
cristã.
Na campanha
mais enérgica do reverendo, contra o carnaval, um aliado considerável
rendeu-se, o hebdomadário noticioso e austero, que entrou na folia para não
desgostar os assinantes. O vigário compreendeu que perdia terreno e
contemporizou: admitiu a festa pagã, limitando-se a condenar exageros, que
nunca existiram.
O lugar é
morigerado. Os homens nascem oportunamente, casam oportunamente, morrem
oportunamente. E entre essas ocorrências comportam-se direito, mais ou menos
direito, e examinam as vidas alheias, achando sempre nelas motivo para
desagrado, o que muito influi na purificação do ambiente.
Efetua-se o
carnaval, com decência, com ordem. Famílias reúnem-se na praça, em magotes
limpos de misturas perniciosas. Notam-se várias categorias. A senhora do
prefeito e a senhora do médico presidem: sentam-se à porta do bar e oferecem
cadeiras à representação feminina dos engenheiros da estrada de ferro. Será
verdade que, depois de tantos estudos, a estrada de ferro vai chegar? Juntam-se
ao grupo a gente do promotor e a do juiz. Conversas, amabilidades, escolha
rigorosa de palavras, para que as engenheiras, hóspedas, não formem conceito
mau da terra. Provavelmente não formam.
Tudo no largo
está bonito e animado. Andam ali negociantes, funcionários, artífices,
indivíduos que não pertencem a nenhuma corporação, outros que se ingerem
sub-repticiamente em diversas. Pilhérias velhas se repetem, provocam
hilaridade. O escrivão da coletoria tem uma graça! É apenas escrivão da
coletoria, no serviço ninguém dá nada por ele, mas de domingo a terça-feira
gorda cai na farra e não há quem o vença. Por isso tem prerrogativas: é
geralmente aceito.
Desfilam
cordões, aproximam-se bandeiras em cumprimentos, e as cantigas do ano passado
aperfeiçoaram-se. Abrem-se garrafas de cerveja. Em coretos enfeitados com
bandeirinhas duas charangas tocam em desafio, capricham nos sambas e nas
marchas. A iluminação pública melhorou: as lâmpadas mortiças cochilam, mas
estão numerosas. Se se apagassem de repente, como às vezes acontece, haveria
uma confusão.
A prefeita,
alarmada, suspende a conversa, olha os rapazes do comércio, que gingam e dançam
misturando-se aos cordões, alguns caixeiros-viajantes, tipos viciados, com
certeza, mulheres duvidosas. Que diriam as engenheiras se as luzes se
extinguissem? Felizmente a usina elétrica se esforça: vê-se, através das
grades, o maquinista mexendo zeloso naqueles ferrinhos.
— Parece que o
motor aguenta.
A cidade não
tem razão para se envergonhar. O largo vai-se enchendo. Na vizinhança crescem
os rumores dum frevo honesto.
Antigamente
não era assim. Marmanjos, de saco a tiracolo, armados de enormes bisnagas,
molhavam as pessoas, jogavam-lhes punhados de ocre e vermelhão.
Agora estamos
civilizados, bastante civilizados. Concertaram-se todos os automóveis. Meia
dúzia deles, arrastando serpentinas, buzinando pelas ruas, transporta risos, a
alegria indispensável. Não é só meia dúzia. Passam três ou quatro
desconhecidos: vieram carros de outros municípios, sinal de que temos um
carnaval excelente, o melhor destas redondezas.
Os negociantes
resmungam. Papel cortado, rasgado, pisado, roupas desnecessárias. O ano
vindouro, muitos daqueles trajes coloridos estarão imprestáveis. Ora sim
senhores. O ajudante da farmácia despejou cinco lança-perfumes na filha do
telegrafista. Onde foi ele buscar dinheiro para dar banho de éter numa
sirigaita? Hem? Na gaveta do patrão, é claro. O instrutor do tiro bebe cerveja
e namora uma professora do grupo escolar. Bem, bem, esse pode consumir
lança-perfumes e cerveja. Não manipula em botica nem compra fiado. Está certo.
A prefeita se
aborrece também. Aquela agarração da menina do telegrafista com o ajudante da
farmácia é um escândalo. A sonsa, que vive na igreja, confessando-se,
comungando, perde os estribos e dá amostra péssima da localidade. Bom que o
vigário amanhã se inteire do fato: haverá no domingo um sermão terrível. A professorinha
avança, mas com jeito. E essa é de fora, educada em princípios diferentes.
A cidade,
tradicionalista, acomoda-se aos hábitos modernos. Acomoda-se, pois não. É o que
diz muitas vezes o promotor, homem de leitura e poesia. Acomoda-se devagar.
Nada de choques, perturbações. A prefeita admira e teme certas liberdades, ora
boas, ora ruins. Quer explicar-se, usa circunlóquios e atrapalha-se.
— A senhora
não acha?
—
Perfeitamente, concorda a engenheira, sem adivinhar a intenção da outra.
— Pois é.
Esse caso da
filha do telegrafista, por exemplo, destoa. Uma sujeitinha nascida na roça,
criada na fé, sem emprego, tola como peru novo, pode tomar o freio nos dentes,
desembestar? Com franqueza, não pode.
— Sim senhora,
destoa.
O fonfonar dos
automóveis une-se aos roncos do trombone e aos gritos da flauta. A prefeita
cerra os ouvidos, olha um rancho de maracatus, retira do pensamento a mocinha
do grupo escolar e a filha do telegrafista:
—
Estamos longe disso, graças a Deus.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...