CARNAVAL 1910
Em três dias
bem desagradáveis. Sujeitos precavidos fechavam-se, olhavam suspeitosos a rua,
mas isto não os livraria de pesares: se se distraíam, inundavam-nos jatos
d’água suja. Iam mudar a roupa, furiosos. Avizinhavam-se depois das janelas,
atentos aos moleques armados de bisnagas enormes de bambu. Além desses
inimigos, havia os indivíduos que traziam, em mochilas, pacotes de alvaiade,
zarcão, ocre, tintas de todas as cores, com que se pintavam os transeuntes.
Um doutor
verboso declamava discursos irados nas esquinas, referia-se aos selvagens, aos
tupinambás. Ninguém lhe dava importância — e a zanga esfriava. Bem, agora,
molhado, não valia a pena recolher-se. O jeito que tinha era entrar na função,
tornar-se também selvagem, vingar-se, provocar outras indignações e arrastar
para a folia os amigos cautelosos.
Animavam-se
todos e perdiam a compostura, acabavam achando aquilo interessante. Alguns viam
perfeitamente que estavam fazendo maluqueira, e desregravam-se com moderação,
quase a pedir desculpas encabuladas à cidadezinha pacata. Homens graves, pais
de família, tisnados, bebendo, aos gritos. Mau exemplo, doidice. Na
quarta-feira retomariam a sisudez necessária.
Cadeiras nas
calçadas. Meninas sérias e bicudas reprovando os excessos, sacudindo com
espanto e enjoo as cabeças, onde se arrumavam papelotes. Não se contaminavam,
estavam livres da pintura, dos banhos, de atracações perigosas: comportavam-se
direito, como se aguardassem a passagem da procissão. Rapazes ousados atiravam
nelas esguichos d’água-de-cheiro e eram mal recebidos. Muxoxos. Que assanhamento!
Nada de confiança. Brincadeira com moça findava na igreja ou rendia pancada. Os
desejos não se escondiam sob nuvens de confete, não se amarravam com
serpentinas, não se excitavam com éter.
Ainda se
desconhecia o automóvel. A gente escassa pezunhava nas barrocas do calçamento
ruim, equilibrava-se nas pedras pontudas.
As negras se
haviam tingido com papel vermelho molhado. E andavam tesas para não desmanchar
os enfeites do pixaim, branco de fiapos.
De longe em
longe desfilavam parafusos, tipos envoltos em numerosas anáguas que se iam
encurtando. As de cima, perto do pescoço, eram camisas de crianças. Esses
espantalhos andavam inchados por dentro e por fora, pacholas, cobertos de renda
engomada.
Papangus vagabundos enrolavam-se em sacos de estopa, sujos, as caras escondidas em fronhas, as mãos calçadas em meias.
Bobos de
máscaras horríveis se esforçavam por aterrorizar os meninos. Gingavam, falavam
rouco e fanhoso:
— Você me
conhece?
Se não
conseguiam disfarçar-se, recebiam vaia e ficavam arreliados.
O índio, de
penacho e tanga, era personagem obrigatória e silenciosa.
Passava o
cordão, levantando poeira, causando entusiasmo. Um frevo decente em redor da
porta-bandeira. Repetiam-se cantigas de dez anos sem nenhuma alteração, muito
bem ensaiadas. As figuras marchavam na disciplina; o homem da maromba conduzia
o bando, importante; papai velho exibia vaidoso a cabeleira de algodão e as
longas barbas de espanador; o morcego, na frente, fazia piruetas, agitando as
asas de guarda-chuva.
Mascarados
solitários produziam hilaridade com pilhérias antigas e ditos grosseiros,
inconvenientes. Outros, reunidos, formavam as críticas, motivo de receios e
alarmas. Alusões a notáveis acontecimentos do lugar, comentários a fatos
melindrosos e particulares, mexericos tolos, sem graça nenhuma. Criavam-se
inimigos. E às vezes se liquidavam contas velhas.
Um cidadão
espiava o morcego e o parafuso, de longe. Dois ou três embuçados musculosos
entravam-lhe em casa, batiam-no a cacete. Berros, súplicas, sangue, apitos,
sumiam-se na festa. Ninguém sabia donde vinham as pauladas — e era bom evitar
opiniões. No ano seguinte as críticas seriam menos ofensivas.
Rio de Janeiro, março de
1941.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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