BAGUNÇA
A cidade
amanheceu calma e tudo indicava que assim permaneceria muitos anos. As lojas
abriram-se na hora certa, os meninos marcharam para a escola, os pais de
família buscaram meios de aumentar a receita, as moças leram os programas do
cinema e as notas sociais, os funcionários assinaram o ponto na repartição.
Um jornal
afirmou que as coisas iam bem, outro arriscou timidamente que talvez elas
pudessem melhorar um pouco. Nenhuma novidade. Os matutinos requentaram
notícias, os vespertinos copiaram os matutinos.
Ao meio-dia
chegou, num telegrama curto do presidente da República, a informação de que
tudo se achava em ordem. Os boatos relativos a distúrbios no Sul não mereciam
importância, e as classes armadas se mantinham vigilantes, em defesa da
autoridade.
O governador
enviou o telegrama à Imprensa Oficial, depois telefonou mandando suspender a
publicação dele. Entrou no automóvel, deu uma volta lenta pelas ruas,
observando os grupos. Evidentemente o público estava satisfeito: não valia a
pena agitá-lo anunciando bagunças. Regressou ao palácio, folheou alguns papéis
e telefonou à Imprensa Oficial ordenando a publicação do telegrama. Às duas
horas reuniu os secretários, o comandante da polícia e amigos de confiança.
— O negócio
está piorando.
— Onde?
— No Rio
Grande do Sul, em Minas, na Paraíba. Creio que em Pernambuco já começou.
— Estamos
fritos, murmurou alguém. Se Pernambuco for abaixo, tomam isto sem um tiro.
Mas o
comandante da polícia exibia disposições belicosas: num instante organizou
planos, guarneceu as fronteiras e dinamitou as pontes sem dificuldade.
À tardinha
zoaram cochichos e a torcida manifestou-se. No dia seguinte houve alarma.
Cidadãos pacíficos mostraram-se moderadamente revolucionários. Outros apoiaram
o governo, resolutos. Sempre se haviam conservado longe dele, mas na hora do
perigo estavam decididos e queriam sacrificar-se. Essa firmeza durou uma
semana, com intercadências.
A sala de
jantar do palácio abriu-se. E a noite inteira ali fervilhavam sujeitos do
interior, que pisavam nas pontas dos pés, segredavam nos vãos das janelas,
escutavam as opiniões dos políticos sentados em redor da mesa enorme. Nunca se
tinha visto democracia tão perfeita. Os deputados estiravam o beiço com
desânimo. Nenhum desejo de luta. Havia, porém, um otimismo renitente.
— Governo é
governo.
Embora
defendendo-se pouco, era natural que se aguentasse. A multidão crescia,
aumentou demais quando apareceram os fugitivos do Recife. Chegou primeiro um
delegado de polícia, magro, fúnebre, de fala doce, óculos pretos e modos de
pastor protestante. Depois vieram muitos, narraram casos. E os voluntários
perderam o ânimo. Continuaram a andar em torno da mesa, a reunir-se em magotes
perto das janelas, mas retiravam-se logo, escorregando no soalho muito
encerado. O comandante da polícia esqueceu os planos de resistência e entrou a
falar em hospitais de sangue, aflito.
Uma noite
alguns cavalheiros ponderosos tiveram uma longa entrevista com o governador.
Ignoram-se os termos da conversa. Provavelmente se referiram a d. Pedro II e às
desgraças que ameaçavam o Estado. Às onze horas S. Exa. embarcou.
E ao amanhecer
toda a cidade se cobriu de bandeiras vermelhas. Declamaram-se discursos
inflamados em meetings, um orador furioso aconselhou o povo a queimar jornais.
Foi apupado, deixou a tribuna, veio outro, que recomendou prudência.
As repartições
feriaram, os estabelecimentos comerciais fecharam-se, a guarda civil,
hesitante, não sabia a quem obedecer.
Tinha-se
evitado o barulho, graças a Deus. Espalhou-se nas ruas uma alegria sincera.
Alguns ataques ao governo caído, ataques ligeiros: realmente estavam
agradecidos a ele por se ter ido embora antes da briga.
No outro dia
começaram a entrar nos quartéis as tropas rebeldes, pouco numerosas — e os
cidadãos que se haviam apressado a chamá-las inquietaram-se. O palácio fora
abandonado muito cedo. Se o presidente da República endurecesse e triunfasse,
viriam complicações, desgostos.
Felizmente a
invasão engrossou, em poucas horas todo o Estado era uma vasta caserna.
Explicava-se que ele não se tivesse defendido. E para que defesa? Na verdade os
frequentadores do café sorriam, certos de que sempre tinham vivido na oposição,
e até pessoas que uma semana antes cochichavam na sala de jantar do palácio
surgiram fardadas, com energia e galões.
Vários se
acautelavam, pensando no Rio, e, bastante dignos para renegar de chofre
convicções antigas, limitavam-se a introduzir no bolso um lencinho encarnado.
Via-se dele uma ponta discreta, que, em conformidade com as notícias,
mergulhava ou reaparecia. Depois da vitória foram esses os mais afoitos e
intransigentes. Não mereceram demasiada atenção.
A maioria
animava-se de verdade, oferecia moedas de prata para a liquidação da dívida
externa, esperava que altos-fornos se construíssem de repente, corresse o
petróleo e a população subisse a duzentos milhões. Esses desejos encurtaram-se,
mas ainda ficaram extensos, e moços verbosos, falando muito na realidade
brasileira, procuraram em países distantes receitas convenientes aos males
nacionais. Os políticos maduros, educados na poesia e na retórica,
arrepiavam-se ouvindo sujeitos imberbes que se agarravam à economia e à
sociologia, citavam livros desconhecidos.
— Que
materialismo!
Rio de Janeiro, novembro de
1941;
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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