ANTÔNIO SILVINO
O automóvel deixou a cidade, atravessou arrabaldes de pequena importância, rodou aos solavancos numa estrada que margina casas decrépitas, miúdas e descascadas. Moleques de cabelos de fogo, tranquilidade, silêncio, tudo morno e brasileiro. A agitação e o cosmopolitismo ficaram atrás, sumiram-se na poeira; agora parece que as coisas em redor se imobilizaram. O carro que nos transporta avança rápido, inutilmente. Há meia hora tínhamos pressa contagiosa, mas isto desapareceu. Seria melhor subirmos a cavalo essa ladeira empinada e cheia de buracos, onde as rodas se enterram. Com dificuldade, lá nos vamos sacolejando, dobramos um cotovelo, entramos numa rua esquisita, a máquina cansada geme e para.
Desço, bocejando. Para bem dizer, não sinto curiosidade. Cheguei até ali porque tive preguiça de resistir e porque me era agradável a companhia de dois amigos. Conversando com eles, teria ido a um museu ou a qualquer outro lugar.
O homem que desejam ver gastou anos correndo os sertões do Nordeste, numa horrível existência fecunda em histórias que povoaram a infância, com certeza enfeitadas pela imaginação dos cantadores. Depois uma emboscada e o cárcere provavelmente o desmantelaram. Talvez as marchas, as lutas, a fome, a sede, a fuga constante e as fadigas das travessias não o tenham abalado; mas a boia da cadeia, as grades, a esteira suja na pedra, os mesmos gestos repetidos, as mesmas palavras largadas em horas certas, infinitas misérias e porcarias, inutilizaram o velho herói de encruzilhadas. É quase certo irmos encontrar um indivíduo sombrio e cabisbaixo, embrutecido pela desgraça, indiferente às façanhas antigas, hoje atenuadas, esparsas. Está ali perto um fantasma triste e desmemoriado, mostrando vagos sinais de vida em movimentos de autômato.
Penso assim, olhando o pátio duma habitação coletiva. Alguém foi anunciar a nossa visita. E, enquanto espero, vejo com desgosto à entrada uma enorme criatura que se achata, que se derrama, gorda, paralítica, medonha. Essa figura monstruosa perturba-me, fixa-me a ideia de que ali vive outro ser doente, com deformações invisíveis, piores que as que agora me surgem. Desejo não ser recebido, receio tornar a ver um daqueles rostos, pavorosos, que há tempo me cercavam.
Recebem-nos. Dois minutos de espera. E estamos na presença de Antônio Silvino, um velho que me desnorteia, afugenta a imagem que eu havia criado, tipo convencional, símbolo idiota, caboclo ou mulato que, medido por um dos médicos encarregados de provar que os infelizes são degenerados, servisse bem: testa diminuta, dentes acavalados, cabelo pixaim, olhos parados e sem brilho, enfim um desses pobres-diabos que morrem no eito e não fazem grande falta, aguentam facão de soldado nas feiras das vilas e não se queixam.
Enganei-me, estupidamente. Antônio Silvino é um homem branco. Seria mais razoável que fosse um representante das raças inferiores, que, no Nordeste e em outros lugares, constituem a maioria da classe inferior. Mas é um branco e, se for examinado convenientemente, não dá para bandido. Não dá e não quer ser bandido. Por isso malquistou-se com alguns repórteres desastrados que o ofenderam.
Conosco é amável em demasia. A hospitalidade sertaneja revela-se em apertos de mãos, em abraços, num largo sorriso que lhe mostra dentes claros e sãos. Esse pé de mandacaru, transplantado para um subúrbio remoto do Rio, deita raízes na pedra do morro e esconde cuidadosamente os seus espinhos. Antes de refletir, aperto a garra poderosa. Antigamente, essa aproximação teria sido impossível: fui, como outros, um sujeito muito besta e convencido de não sei que superioridade. Felizmente esqueci isso. Dou razão a Antônio Silvino, que não quer ser bandido, não porque os bandidos sejam muito piores que os outros homens, mas porque a palavra odiosa se tornou um estigma.
Um dos meus companheiros é o escritor José Lins do Rego, que em menino conheceu o sertanejo temível no engenho do coronel José Paulino, hoje famoso por ter figurado em vários romances notáveis. José Lins, em poucas palavras, reata o conhecimento antigo, e Antônio Silvino logo se torna íntimo dele, conta histórias do cangaço, brigas, visitas que fez a outros personagens de romances. Ultimamente, ao sair da prisão, parece que andou nas terras do velho Trombone e, com sisudez e prudência, espalhou conselhos úteis que resolveram certas dificuldades de família.
Conversando, narrando as suas aventuras numa linguagem pitoresca, ri alto, mexe-se, os olhos miúdos atiçam-se, uma bela cor de saúde tinge-lhe o rosto enérgico, vincado pelo sofrimento. Apesar das rugas, tem uma vivacidade de rapaz; um tiro no pulmão e vinte anos de cadeia não demoliram essa organização vigorosa. Os cabelos estão inteiramente brancos, mas a espinha não se curva, a voz não hesita. É o mais robusto dos que se acham na sala acanhada, em torno duma pequena mesa. Lembro-me dos seus antigos subordinados, viventes mesquinhos que ele submetia a uma disciplina rude. Nas visitas ao velho José Paulino, ficavam no alpendre, encolhidos, silenciosos como colegiais tímidos, enquanto lá dentro o chefe conferenciava com o proprietário. Certamente esses pobres seres anônimos, sem menção nas cantigas dos violeiros, desfizeram-se na poesia social, mas o seu comandante está rijo, palestrando com um neto do coronel, não muito diferente do que era há trinta anos. Penso na distância enorme que os separava do patrão.
Antônio Silvino dirigiu-se com altivez, não ombreou com eles. Teve amigos poderosos, combateu longamente inimigos poderosos também. Os oficiais das tropas volantes eram seus adversários, o que teve sorte de feri-lo e vencê-lo foi, segundo ele afirma, um adversário leal. Na catinga imensa, perseguido, queimado pela seca, Antônio Silvino teve sempre os modos dum grande senhor, muitas vezes mostrou-se generoso e caprichou em aparecer como uma espécie de cavaleiro andante, protetor dos pobres e das moças desencaminhadas. Na prisão desviou-se com soberba dos criminosos vulgares e, não obstante ter vivido em Fernando de Noronha, nunca se misturou com eles. A convicção que manteve do próprio valor manifesta-se em todos os seus atos.
Não parece que o regime penitenciário seja bom para endireitar os condenados. Os guardas da correção sabem perfeitamente como é difícil um indivíduo conservar-se ali sem se degradar. De alguma forma a degradação justifica a pena: ordinariamente o que volta do cárcere é um farrapo.
Antônio Silvino isolou-se, achou meio de não se contaminar. Foi um preso muito bem comportado, tanto que lhe permitiram esta coisa estranha: alojar os filhos no cubículo onde vivia. Criou-os, dividiu com eles a ração magra, conseguiu, fabricando botões de punhos, obter os recursos necessários para educá-los. E educou-os de maneira espantosa. Na situação em que se achava seria natural que lhes incutisse ideias de vingança. Nada disso. Ensinou-lhes o respeito à lei, à lei que os afastava do mundo, cultivou neles sentimentos religiosos e patriotismo. Orgulha-se de os ter formado assim, de os ver hoje servidores fiéis do Exército e da Marinha.
O trabalho desse sertanejo deve ter sido enorme, mas a verdade é que
ele não se transformou para realizá-lo. Homem de ordem, indispôs-se com outros
homens de ordem, fez tropelias no sertão, caiu numa cilada e penou vinte anos
para lá das grades. Continuou, porém, a ser o que era, apesar da cadeia: homem
de ordem, membro da classe média, com todas as virtudes da classe média.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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