A SAFRA DOS
TATUS
— Como foi aquele negócio dos tatus que a
senhora principiou a semana passada, minha madrinha? perguntou Das Dores.
O rumor dos bilros esmoreceu e Cesária
levantou os óculos para a afilhada:
— Tatus? Que invenção é essa, menina? Quem
falou em tatu?
— A senhora, minha madrinha, respondeu a
benzedeira de quebranto. Uns tatus que apareceram lá na fazenda no tempo da
riqueza, da lordeza. Como foi?
Cesária encostou a almofada de renda à
parede, guardou os óculos no caritó, acendeu o cachimbo de barro ao candeeiro,
chupou o canudo de taquari:
— Ah! Os tatus. Nem me lembrava. Conte a
história dos tatus, Alexandre.
— Eu? exclamou o dono da casa, surpreendido,
erguendo-se da rede. Quem deu seu nó que o desate. Você tem cada uma!
Dirigiu-se ao copiar e ficou algum tempo
olhando a lua.
— Se os senhores pedirem, ele conta, murmurou
Cesária aos visitantes. Aperte com ele, seu Libório.
Ao cabo de cinco minutos Alexandre voltou
desanuviado, pediu o cachimbo à mulher, regalou-se com duas tragadas:
— Ora muito bem.
Restituiu o cachimbo a Cesária e foi
sentar-se na rede. Mestre Gaudêncio curandeiro, seu Libório cantador, o cego
preto Firmino e Das Dores exigiram a história dos tatus, que saiu deste modo.
— Saberão vossemecês que este caso estava completamente
esquecido. Cesária tem o mau costume de sapecar umas perguntas em cima da
gente, de supetão. Às vezes não sei onde ela quer chegar. Os senhores
compreendem. Um sujeito como eu, passado pelos corrimboques do diabo, deve ter
muitas coisas no quengo. Mas essas coisas atrapalham-se: não há memória que
segure tudo quanto uma pessoa vê e ouve na vida. Estou errado?
— Está certo, respondeu mestre Gaudêncio. Seu
Alexandre fala direitinho um missionário.
— Muito
agradecido, prosseguiu o narrador. Isso é bondade. Pois a história que Cesária
puxou tinha-se esvaído sem deixar mossa no meu juízo. Só depois de tomar um
deforete pude recordar-me dela. Vou dizer o que se deu. Faz vinte e cinco anos.
Hem, Cesária? Quase vinte e cinco anos. Como o tempo caminha depressa! Parece
que foi ontem. Eu ainda não tinha entrado forte na criação de boi, que me
rendeu uma fortuna, já sabem. Ganhava bastante e vivia sem cuidado, na graça de
Deus, mas as minhas transações voavam baixo, as arcas não estavam cheias de
patacões de ouro e rolos de notas. Comparado ao que fiz depois, aquilo era
pinto. Um dia Cesária me perguntou: — “Xandu, por que é que você não aproveita
a vazante do açude com uma plantação de mandioca?” — “Han? disse eu distraído,
sem notar o propósito da mulher. Que plantação?” E ela, interesseira e sabida,
a criatura mais arranjada que Nosso Senhor Jesus Cristo botou no mundo: —
“Farinha está pela hora da morte, Xandu. Viaja cinquenta léguas para chegar
aqui, a cuia por cinco mil-réis. Se você fizesse uma plantação de mandioca na
vazante do açude, tínhamos farinha de graça.” — “É exato, gritei. Parece que é
bom. Vou pensar nisso.” E pensei. Ou antes, não pensei. O conselho era tão
razoável que, por mais que eu saltasse para um lado e para outro, acabava
sempre naquilo: não havia nada melhor que uma plantação de mandioca, porque
estávamos em tempo de seca braba, a comida vinha de longe e custava os olhos da
cara. Íamos ter farinha a dar com o pau. Sem dúvida. E plantei mandioca.
Endireitei as cercas, enchi a vazante de mandioca. Cinco mil pés, não, catorze
mil pés, ou mais. No fim havia trinta mil pés. Nem um canto desocupado. Todos
os pedaços de maniva que peguei foram metidos debaixo do chão. — “Estamos
ricos, imaginei. Quantas cuias de farinha darão trinta mil pés de mandioca? Era
uma conta que eu não sabia fazer, e acho que ninguém sabe, porque a terra é
vária, às vezes rende muito, outras vezes rende pouco, e se o verão apertar,
não rende nada. Esses trinta mil pés não renderam, isto é, não renderam
mandioca. Renderam coisa diferente, uma esquisitice, pois, se plantamos maniva,
não podemos esperar de modo nenhum apanhar cabaças ou abóboras, não é verdade?
Só podemos esperar mandioca, que isto é a lei de Deus. A gata dá gato, a vaca
dá bezerro e a maniva dá mandioca, sempre foi assim. Mas este mundo, meus
amigos, está cheio de trapalhadas e complicações. Atiramos num bicho, matamos
outro. E sinha Terta, que mora aqui perto, na ribanceira do rio, escura e
casada com homem escuro, teve esta semana um filho de cabelo cor de fogo e olho
azul. Há quem diga que sinha Terta não seja séria? Não há. Sinha Terta é um
espelho. E por estas redondezas não existe vivente de olho azul e cabelo
vermelho. Boto a mão no fogo por sinha Terta e sou capaz de jurar que o menino
é do marido dela.
Vossemecês estão-se rindo? Não se riam não,
meus amigos. Na vida há muita surpresa, e Deus Nosso Senhor tem desses
caprichos. Sinha Terta é mulher direita. E as manivas que plantei não deram
mandioca. Seu Firmino está aí fala não fala, com uma pergunta na boca, não é,
seu Firmino? Tenha paciência e escute o resto. Ninguém ignora que plantação em
vazante não precisa de inverno. Vieram umas chuvinhas e a roça ficou uma
beleza, não havia coisa parecida por aquelas beiradas. — “Valha-me Deus,
Cesária, desabafei. Onde vamos guardar tanta farinha?” Mas estava escrito que
não íamos arrumar nem uma prensa. Quando foi chegando o tempo da arranca, as
plantas começaram a murchar. Supus que a lagarta estivesse dando nelas. Engano.
Procurei, procurei, e não descobri uma lagarta. — “Santa Maria! cismei. A terra
é boa, aparece chuva, a lavoura vai para diante e depois desanda. Não entendo.
Aqui há feitiço!” Passei uns dias acuado, remexendo os miolos, e não achei explicação.
Tomei aquilo como castigo de Deus, para desconto dos meus pecados. O que é
certo é que a praga continuou: no fim de S. João todas as folhas tinham caído,
só restava uma garrancheira preta. — “Caiporismo, disse comigo. Estamos sem
sorte. Vamos ver se conseguimos levar ao fogo uma fornada.” Encangalhei um
animal, pendurei os caçuás nos cabeçotes, marchei para a vazante. Arranquei um
pau de mandioca, e o meu espanto não foi deste mundo. Esperava tamboeira choca,
mas, acreditem vossemecês, encontrei uma raiz enorme e pesada que se pôs a
bulir. A bulir, sim senhor. Meti-lhe o facão. Estava oca, só tinha casca. E,
por baixo da casca, um tatu-bola enrolado. Arranquei outra vara seca: peguei o
segundo tatu. Para encurtar razões, digo aos amigos que passei quinze dias
desenterrando tatus. Os caçuás enchiam-se, o cavalo emagreceu de tanto caminhar
e Cesária chamou as vizinhas para salgar aquela carne toda. Apanhei uns
quarenta milheiros de tatus, porque nos pés de mandioca fornidos moravam às
vezes casais, e nos que tinham muitas raízes acomodavam-se famílias inteiras.
Bem. O preço do charque na cidade baixou, mas ainda assim apurei alguns contos
de réis, muito mais que se tivesse vendido farinha. A princípio não atinei com
a causa daquele despotismo e pensei num milagre. É o que sempre faço: quando
ignoro a razão das coisas, fecho os olhos e aceito a vontade de Nosso Senhor,
especialmente se há vantagem. Mas a curiosidade nunca desaparece do espírito da
gente. Passado um mês, comecei a matutar, a falar sozinho, e perdi o sono.
Afinal agarrei um cavador, desci à vazante, esburaquei tudo aquilo. Achei a
terra favada, como um formigueiro. E adivinhei por que motivo a bicharia tinha
entupido a minha roça. Fora dali o chão era pedra, cascalho duro que só dava
coroa-de-frade, quipá, e mandacaru. Comida nenhuma. Certamente um tatu daquelas
bandas cavou passagem para a beira do açude, topou uma raiz de mandioca e
resolveu estabelecer-se nela. Explorou os arredores, viu outras raízes, voltou,
avisou os amigos e parentes, que se mudaram. Julgo que não ficou um tatu na
catinga. Com a chegada deles as folhas da plantação murcharam, empreteceram e
caíram. Estarei errado, seu Firmino? Pode ser que esteja, mas parece que foi o
que se deu.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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