12/29/2023

A propósito de seca (Crítica, 1937), por Graciliano Ramos


A PROPÓSITO DE SECA

O estrangeiro que não conhecesse o Brasil e lesse um dos livros que a nossa literatura referente à seca tem produzido, literatura já bem vasta, graças a Deus, imaginaria que aquela parte de terra que vai da serra Ibiapaba a Sergipe é deserta, uma espécie de Saara.

Realmente, os nossos ficcionistas do século passado, seguindo os bons costumes de uma época de exageros, contaram tantos casos esquisitos, semearam no sertão ressequido tantas ossadas, pintaram o sol e o céu com tintas tão vermelhas, que alguns políticos, sinceramente inquietos, pensaram em transferir da região maldita para zonas amenas os restos da gente flagelada. Tiveram esta ideia feliz e depois se lembraram de contar os famintos e transportá-los. Verificou-se então que ali se apertava, em seis estados miúdos, quase um quinto da população do Brasil.

Houve suspiros de alívio, alguma surpresa e uma vaga decepção. Não seria fácil conduzir aquele povo todo, através de lugares hostis, para uma nova Canaã. Não seria fácil, nem seria necessário. Afinal, se os nordestinos, seguindo o preceito bíblico, se tinham multiplicado tanto, então é que não se alimentavam apenas de raiz de imbu, semente de mucunã, couro de mala e carne humana. Pois até a antropofagia serviu para dramatizar a seca, em jornal e em livro. Suprimiu-se a antropofagia, nos caminhos brancos as ossadas diminuíram, os poentes tornaram-se menos vermelhos — e reconheceu-se por fim que o Nordeste, para sustentar população tão numerosa, tinha fatalmente de produzir alguma coisa. Mesmo admitindo que os seus habitantes fossem demasiado econômicos, tanto como as plantas que nascem entre pedras ou bichos que vivem entre espinhos, era preciso supor na terra, para que os homens pudessem propagar-se, a existência de plantas e de bichos. Porque, enfim, ninguém conseguia nutrir-se de literatura, coisa que, em falta de melhor, o Nordeste produziu com abundância.

Mas os horrores das estiagens que tinham originado poesias muito bonitas ainda estavam nos espíritos, a visão de “grandes bois sequiosos mugindo soturnamente” persistia — e acreditava-se que vários milhões de pessoas vivessem em estado de fome permanente, imaginando a fartura que dão os cafezais de São Paulo e a riqueza que se arrancava à borracha do Amazonas, fartura problemática e riqueza hoje impossível. A figura do retirante, celebrado em prosa e verso, inspirou compaixão e algum desprezo, compaixão porque ele era evidentemente infeliz, desprezo por ser um indivíduo inferior, vagabundo e meio selvagem. O sentimentalismo romântico sempre viu as famílias dos emigrantes vagando à toa pelas estradas, rotas, sujas, trocando crianças por punhados de farinha de mandioca.

Certamente há demasiada miséria no sertão, como em toda parte, mas não é indispensável que a chuva falte para que o camponês pobre se desfaça dos filhos inúteis. Não há dúvida de que a seca engrossou as correntes emigratórias que se dirigiram ao norte e ao sul do país, mas a seca é apenas uma das causas da fome, e de qualquer forma os nordestinos, em maior ou menor quantidade, teriam ido cortar seringa no Amazonas ou apanhar café no Espírito Santo ou em São Paulo.

Que é que determina penúria tão grande no Nordeste? Por que a fuga da gente de lá? A verdade é que essas coisas são evidentes em consequência do elevado número de habitantes. Se excluíssemos a seca, ainda nos restaria bastante miséria, e ela avultaria mais que em Mato Grosso, por exemplo, onde, sendo muito espalhada, pode não ser percebida. O êxodo dos flagelados é um modo de falar. Não há êxodo. Mas sai muita gente. Sai gente de toda parte. Numa região, porém, onde se espremem quase 10 milhões de indivíduos mal acomodados, o total dos que emigram deve ser considerável. Do Pará e de Goiás não poderiam sair muitos.

Temos um deserto estranhamente povoado, um deserto com doze habitantes por quilômetro quadrado no Ceará, densidade igual à do Rio Grande do Sul, e quarenta e sete em Alagoas, densidade apenas inferior à do estado do Rio. Essa gente prolífica e tenaz, amontoada numa terra pobre, de agricultura rotineira e indústria atrasada, naturalmente vive mal. De ordinário, as grandes fortunas não existem, e nos meios rurais é um eterno recomeçar.

Reduzida a produção, surgem dezenas de ofícios parasitários, e o nordestino dedica-se a um deles antes de emigrar, torna-se negociante ambulante, trocador de animais, atravessador, salteador, encarrega-se enfim de fazer circular o pouco que existe.

O tipo heroico do cangaceiro do século passado, espécie de Quixote que se rebelava contra a ordem para corrigir injustiças, por questões de honra ou desavença política, é uma figura que vai desaparecendo ou desapareceu completamente. O cangaceiro atual é uma criatura que luta para não morrer de fome. Aquele era um proprietário que, perseguido por vizinhos mais fortes, tomava armas e, com um pequeno grupo de parentes e aliados, resolvia eliminar o delegado, o juiz, todas as autoridades que favoreciam os seus inimigos; este é um sujeito sem melindres, que provavelmente não conserva a lembrança de ofensas recebidas e se alguma vez teve negócio com a polícia, e dormiu no tronco, acha o fato natural, pois “apanhar do governo não é desfeita”. O cangaço antigo, em que surgiam rasgos de cavalheirismo, certamente duvidoso, mas afinal aceitos sem dificuldade e propagados pelos trovadores broncos do interior, era um fenômeno de ordem social; o de hoje, bárbaro, monstruoso, é uma consequência da desorganização econômica. O primeiro deu Jesuíno Brilhante, o segundo produziu Lampião.

Essa desorganização não é talvez efeito apenas da seca. Processos rotineiros na agricultura, indústria precária, exploração horrível do trabalhador rural, carência de administração devem ter contribuído, tanto como a seca, para o atraso em que vive a quinta parte da população do Brasil.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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