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POEMAS DIVERSOS
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À memória de Olavo BiIac
Semeador de harmonia e de
beleza
Que num glorioso túmulo
repousas,
Tua alma foi um cântico
diverso,
Cheio da eterna música das
cousas:
Uma voz superior da Natureza
E uma ideia sonora do Universo!
Onde passaste, ao longo das
estradas,
Linhas de imagens rútilas e
vivas,
Em filigrana,
Foram tecendo, como o olhar
das fadas,
Nas mais nobres e belas
perspectivas,
O panorama dos ideais da Terra
E a ondulante paisagem da alma
humana.
Toda a emoção, que anda nas
cousas, fala,
Nos seus diversos tons e
reflexos e cores,
Pela tua palavra irisada de
opala,
Feita de radiações e finas
tessituras:
Desde a vida sutil da
borboleta
À alma leve das águas e das
flores
À exaltação do Sol e ao sonho
das criaturas:
Toda a sensualidade esparsa do
Planeta.
Freme em tua arte o sangue de
Dionisos,
Diluído nas virtudes
apolíneas;
E do seu seio voluptuoso
chovem
Alvas formas pagãs, ardentes
frisos,
Baixos-relevos, camafeus, sanguíneas,
Numa palpitação de carne
jovem.
Desfolhando um esplêndido
destino,
A tua mão teve, por
sentimento,
A sutileza platônica e a
doçura
De um florentino do
Renascimento,
Que, atormentado de ímpetos
românticos,
Trabalhasse em esmalte do
Piemonte,
Contendo no cinzel lascivo e
fino
O sonho capitoso de Anacreonte
E o lirismo sensual do Cântico
dos Cânticos.
Vieste de longe para longe. A
tua
Alma encarnou-se em outras
entidades,
Em outros povos, tempos e
países,
E, deslumbrante, continua,
Plástica, móvel, irisada e
nua,
A longa emigração pelas
idades,
Deixando atrás de si seus
frutos e raízes.
Foste o Homem de sempre, no
prestígio
De poeta sensualista,
atravessando as eras,
Por toda parte encontro o teu
vestígio:
Um dia, na Índia védica,
sonhando
No limiar das eternas
primaveras,
– As mãos cheias de rosas e
ametistas –
Fazes oblatas líricas e votos
Aos poderosos gênios avatares
E escreves os teus poemas
animistas
Na folha dos nelumbos e dos
lótus,
Na flor sonâmbula dos
nenúfares...
E os teus versos, nos quais um
grande sonho abranges,
Vão descendo a cantar na
corrente do Ganges.
Depois, pastor na Argólida ou
no Epiro,
Vivendo entre os rebanhos, em
retiro,
Ao luar, sobre as montanhas,
passo a passo
Vais contando as estrelas pelo
espaço,
E a sonata sutil da tua avena
Tem o sabor do favo das
abelhas
E a melodia simples e serena
Da alma dócil e errante das
ovelhas.
Mais tarde, na Tessália, entre
as selvas e os rios,
Companheiro dos sátiros
vadios,
Modulas o teu canto
surpreendente,
E vais buscar o som das tuas
rimas
No intermezzo das fontes, ao
nascente,
Na canção das águas frescas,
Na orquestração nostálgica dos
ventos,
No tropel dos centauros
truculentos,
Nas gargalhadas faunescas,
Na púrpura radiante das
vindimas.
Mal doura o sol a folha das
videiras
E ouves o ruído das primeiras
frautas,
Sais a espreitar, horas e
horas,
Sobre a areia de prata das
ribeiras,
As oréades trêfegas e
incautas,
De braços entrelaçados,
Urdindo a teia de ouro das
auroras,
Na fantasmagoria dos bailados.
Reapareces, depois de vidas
tantas,
Com o mesmo coração sonoro e
imenso,
Dentro das cortes bíblicas e
cantas,
Na harpa esguia e ritual,
entre espirais de incenso,
As vitórias dos reis e as
searas benditas,
As lendas do Jordão e o olhar
das moabitas.
Voltas ainda à Grécia, onde
pertences
Ao povo e és o poeta da
cidade.
Honras a velha raça dos
rapsodos;
A tua voz tem a sublimidade
Do perfume dos parques
atenienses;
E é uma expressão da pátria e
o evangelho de todos.
Trazes mirtos e pâmpanos na
fronte;
Entoas
hinos a Febus
E bailas, com Anacreonte,
No arabesco da ronda dos éfebos.
Depois, em Mitilene, és o
único homem
Nessa ilha extravagante das
mulheres.
Lá os epitalâmios que
proferes,
Entre ruídos de crótalos e
taças,
Sobem no ar e se consomem;
Despertam nossos desejos,
E consegues possuir para os
teus beijos
A própria Safo numa noite – e
passas.
Vais a Roma, no vértice do
Império,
Onde a predileção do César te
conforta.
Dão-te em Tíbure estâncias e
domínios;
Vais a Capri na corte de
Tibério;
Instalas teu palácio no
Aventino;
Tens eunucos etíopes à porta
E liteiras de estofo damasquino.
És a alma delirante dos
triclínios;
Exortas os circenses sobre
vícios;
Cantas no banho azul das
cortesãs cesáreas;
És íntimo nos tálamos
patrícios,
Onde os teus versos sacros e
profanos
São guardados nas urnas
legendárias
Em custosos papiros africanos.
Mais tarde, já na idade
alexandrina,
De novo, a terra helênica
conquistas,
E, poeta irônico e brando,
No tom fresco e loução dos
idilistas,
Passas cantando
As canções que Teócrito te
ensina.
Revejo-te, depois,
indiferentemente,
Em Córdoba, em Bagdá, quase em
segredo,
No teu destino ideal de
citaredo:
Cantor do califado, entre os
tesouros
Do Islamismo e os mistérios do
Oriente.
Dormes no harém real e vais às
guerras.
Continuando de seres, entre os
mouros,
O mesmo de outro tempo em
outras terras.
Na Germânia feudal encontras
nas distâncias,
Um bando de harmonias que
comunguem
Com o teu coração de poeta
heleno.
Murmura-te no ouvido, em
ressonâncias,
A legenda pagã dos
“Niebelungen”.
És
todo o amor das castelãs do Reno
E a tua voz de “minnesinger”
se ergue
Ora veemente e funda, ora em
trêmulos suaves:
Com “Tannhäuser” visita
“Venusberg”
E canta nos castelos dos
margraves.
Mais adiante,
Renasces na Florença azul da
“Senhoria”.
Florença eleva na canção dos
sinos
A sua alma de Vênus e Maria.
É um sonho de amor nos
Apeninos.
A cidade das flores e dos
poetas,
Das paixões elegantes e
discretas,
Das fontes, dos jardins e das
duquesas,
Das obras-primas e das
sutilezas.
É todo um povo amável que se
anima
E que a amar e a sorrir, da
alvorada ao sol posto,
Faz da Vida uma obra-prima
De sensibilidade e de bom
gosto...
Há guirlandas votivas,
De acantos e de louros pelas
ruas!
O Grande Pã voltou! As formas
vivas
Da
Grécia, emergem, fúlgidas e nuas!
Nas casas senhoriais e nas
vilas burguesas,
Toda a gente, animada de surpresas,
Aprende o homérico idioma,
Entretém-se de Erasmo e de
Bocácio.
De humanistas e letrados,
E dos últimos mármores achados
Sob a poeira católica de Roma.
Nos belvederes do Arno andam
as grandes damas:
Smeralda, Lucrezia, Simonetta,
Entre rosas, sorrisos e
epigramas...
Botticelli olha o céu azul
violeta;
Lê-se Platão nos templos: e eu
te vejo,
Sereno e lindo,
Diante do “Ponte-Vecchio”, num
cortejo,
Dizendo aos príncipes sonetos
de ouro
E Lourenço de Médicis te
ouvindo!
Compões ainda com teu gênio
afoito,
Na forma antiga que se
cristaliza,
Certos versos do século
dezoito,
Quando Watteau pintava, em
plena primavera,
O “Embarque” para Citera
E Rousseau escrevia a Nova
Heloísa.
Poeta cosmopolita, alma
moderna,
Com Leconte e Banville, em
Paris de setenta,
Buscas nas viagens teus
motivos de arte,
Fazes o inverno em Nice e o
verão em Lucerna
E a tua sombra cíclica se
ostenta
Nos salões de Matilde
Bonaparte.
***
Na amplitude geral do teu
abraço:
– Fora do Tempo e do Espaço,
Na Humanidade e no Mundo –
Vejo-te sempre presente
Onde há um homem que sente
Que a vida é um sentimento
esplêndido e profundo!
As almas como a tua a quem
n’as fite
Transmitem a emoção da vida
soberana.
Seja onde for se pode
compreendê-las,
Porque, sem fim, sem pátria e
sem limite,
Têm no conceito eterno da alma
humana
A universalidade das estrelas.
Se a Humanidade fosse feita
delas,
Na dúvida em que não cabe
E em que se estreita,
Talvez não fosse mais feliz,
quem sabe?
– Mas seria mais bela e mais
perfeita...
Dignificaste a Espécie, na nobreza
Das grandes sensações de
Harmonia e Beleza;
Disseste a Glória de viver, e,
agora,
O teu eco a cantar pelos
tempos em fora,
Dirá aos homens que o melhor
destino,
Que o sentido da Vida e o seu
arcano,
É a imensa aspiração de ser
divino,
No supremo prazer de ser
humano!
PÓRTICO
Alma de origem ática, pagã,
Nascida sob aquele firmamento
Que azulou as divinas epopeias,
Sou irmão de Epicuro e de
Renan,
Tenho o prazer sutil do
pensamento
E a serena elegância das ideias...
Há no meu ser crepúsculos e
auroras,
Todas as seleções do gênio
ariano,
E a minha sombra amável e
macia
Passa na fuga universal das
horas,
Colhendo as flores do destino
humano
Nos jardins atenienses da
Ironia...
Meu pensamento livre, que se
achega
De ideologias claras e
espontâneas,
É uma suavíssima cidade grega,
Cuja memória
É uma visão esplêndida na
história
Das civilizações
mediterrâneas.
Cidade da Ironia e da Beleza,
Fica na dobra azul de um golfo
pensativo,
Entre cintas de praias
cristalinas,
Rasgando iluminuras de
colinas,
Com a graça ornamental de um
cromo vivo:
Banham-na antigas águas
delirantes,
Azuis, caleidoscópicas,
amenas,
Onde se espelha, em refrações
distantes,
O vulto panorâmico de
Atenas...
Entre os deuses e Sócrates
assoma
E envolve na amplitude do seu
gênio
Toda a grandeza grega a que
remonto;
Da Hélade dos heróis ao fim de
Roma,
Das cidades ilustres do
Tirreno
Ao mistério das ilhas do
Helesponto...
Cidade de virtudes
indulgentes,
Filha da Natureza e da Razão,
– Já eivada da luxúria
oriental, –
Ela sorri ao Bem, não crê no
Mal,
Confia na verdade da Ilusão
E vive na volúpia e na
sabedoria,
Brincando com as ideias e com
as formas...
No passado pensara muito e,
até,
Tentara penetrar o mundo das
essências,
Sofrera muito nessa luta
inútil,
Mas, por fim, foi perdendo a
íntima fé
No pensamento, e agora pensa
ainda,
Numa serenidade indiferente,
Mas se conforta muito mais,
talvez,
Na alegria das belas
aparências,
Que na contemplação das ideias
eternas.
Cidade amável em que a vida
passa,
Desmanchando um colar de
reticências:
Tem a alma irônica das
decadências
E as cristalizações de um fim
de raça...
Conserva na memória dos
sentidos
A expressão das origens
seculares,
E entre os seus habitantes há
milhares
Descendentes dos deuses
esquecidos;
Que os demais todos têm, inda
bem vivo,
Na nobre geometria do seu
crânio
O mais puro perfil
dólico-louro...
Os deuses da cidade já
morreram...
Mas, amando-os ainda,
alegremente,
Ela os tem no desejo e na
lembrança;
E foi a ela (é grande o seu
destino!)
Que Julião, o Apóstata,
expirando,
Mandou a sua última esperança.
Pela boca de Amniano
Marcelino...
Cidade de harmonias deliciosas
Em que, sorrindo à ronda dos
destinos,
Os homens são humanos e
divinos
E as mulheres são frescas como
as rosas...
Jardins
de perspectivas encantadas
– Hermas de faunos nas
encruzilhadas –
Abrem ao ouro do sol leques de
esguias
Alamedas: efebos, poetas,
sábios
Cruzam-nas, dialogando,
suavemente,
Sobre a mais meiga das
filosofias,
Fímbrias de taças lésbias
entre os lábios
E emoções dionisíacas nos
olhos...
Como são luminosos seus
jardins
De alegres coloridos musicais!
No florido beiral dos tanques,
debruados
De rosas e aloés e anêmonas e
mirtos,
Bebem pombas branquíssimas e
castas,
E finamente límpidas e
trêmulas
Irisadas, joviais e
transparentes,
As águas aromáticas, sorrindo,
Tombam da boca austera dos
tritões,
Garganteando furtivos
ritornelos...
Dentro a moldura em fogo das
auroras,
Pelas praias de opala e de
ouro, antigas,
Na maciez das areias, em
coréias,
Bailam rondas sadias e sonoras
De adolescentes e de raparigas,
Copiando o friso das
Panatenéias...
Na orla do mar, seguindo a
curva ondeante
Do velho cais esguio e
deslumbrante,
Quando o horizonte e o céu, em
lusco-fusco
Somem na porcelana dos ocasos,
Silhuetas fugitivas
De lindas cortesãs de
Agrigento e de Chipre,
Como a sonhar, olham,
perdidamente,
A volta das trirremes e das
naves,
Que lhes trazem o espírito do
Oriente,
Em pedrarias, lendas e
perfumes...
Então, ondulam no ar diáfano e
fluente
Suavidades idílicas, acordes
De avenas, cornamusas e
ocarinas
Que vêm de longe, da alma
branca dos pastores,
Trazidas pelos ventos
transmontanos
E espiritualizadas em
surdinas...
Terra que ouviu Platão
antigamente...
Seu povo espiritual, lírico e
generoso,
Que sorri para o mundo e para
os seus segredos,
Não ouve mais o oráculo de
Elêusis,
Mas ama ainda, quase
ingenuamente,
A saudade gloriosa dos seus
deuses,
Nas canções ancestrais dos
citaredos
E nos epitalâmios do
nascente...
Seus filhos amam todas as ideias,
Na obra dos sábios e nas epopeias;
Nas formas límpidas e nas obscuras,
Procurando nas cousas
entendê-las
– Fugas de sentimento e
sutileza –
E as entendem na própria
natureza,
Ouvindo Homero no rumor das
ondas,
Lendo Platão no brilho das
estrelas...
Seus poetas, homens fortes e
serenos,
Fazem uma arte régia, aguda e
fina
Com a doçura dos últimos
helenos
Estilizada em ênfase latina...
E os velhos da cidade, suaves
poentes
De radiantes retores e
sofistas,
Passam, olhando as cousas e as
criaturas,
Com piedosos sorrisos
indulgentes,
Em que longas renúncias
otimistas
Se vão abrindo, entre ironias
puras,
Sobre todos os sonhos do
Universo...
Revendo-se num século
submerso,
Meu pensamento, sempre muito
humano,
É uma cidade grega decadente,
Do tempo de Luciano,
Que, gloriosa e serena,
Sorrindo da palavra nazarena,
Foi desaparecendo lentamente,
No mais suave crepúsculo das
cousas...
Manhã
de outono...
Través
a gaze fluida da neblina,
Teu
panorama, trêmulo, hesitante,
Se
vai furtivamente desenhando,
Na
alva doçura de uma renda fina...
Do
florido balcão de San Miniato,
Como
num cosmorama imaginário,
Vejo aos poucos despir-se o
teu cenário,
Dentro de um sereníssimo
aparato...
Em tons de madrepérola
cambiante,
Ao reflexo de um íris fugidio,
Sob o ar transparente e o céu
macio,
Abre-se em luz a concha
colorida
Do vale do Arno...
Longe onde a névoa azul se
dilui sobre as linhas
Amáveis das colinas,
Em caprichosas curvas
serpentinas
De oliveiras em flor, de
olmeiros e de vinhas,
De pinheiros reais e
amendoeiras tranquilas,
Fiésole, bucólica e galante
Mostra, numa expressão fresca
de tintas,
O esmalte senhorial das suas
vilas
E o cromo pastoril das suas
quintas,
Dentro dos bosques do
Decameron...
Surgem zimbórios em mosaico,
perfis duros
De arrogantes palácios
gibelinos,
Silhuetas de basílicas
votivas,
Torres mortas e suaves
perspectivas
E o coleio longínquo dos teus
muros,
Recortando a moldura azul dos
Apeninos...
Teus sinos cantam num prelúdio
lento
A elegia das horas imortais;
É a canção do teu próprio
sentimento
Na voz sonâmbula das
catedrais...
E é, então, que transponho as
tuas portas
E ouvindo as tuas ruínas
pensativas
Sinto-me em corpo e espírito
em Florença:
A mais humana das cidades
vivas,
A mais divina das cidades
mortas!...
Florença, ó meu retiro
espiritual!
Suave vinheta do meu
pensamento!
Sempre te amei com o mesmo
afeto humano
Dês que tu eras a comuna
guelfa
Idealista, rebelde e
sanguinária,
Até o dia
Em que tua alma, flor
litúrgica e sombria
Do espírito cristão,
Fugindo do “Jardim das
Escrituras”,
Foi, para ver a luz de outras
alturas,
Sentar-se no “Banquete de
Platão”!
Nobre e amável Florença!
Doce filha de Cristo e de
Epicuro!
Flor de Volúpia e de
Sabedoria!
Na tua alma de Vênus e Maria
Há uma estranha harmonia
ambígua, indescritível:
A castidade melancólica dos
lírios
E a graça afrodisíaca das
rosas;
A mansuetude ingênua de Fra
Angélico!
E a alegria picante de
Bocácio!
Amo-te
assim, indefinida e vária!
Casta e viciosa – gótica e
pagã,
Harmoniosa entre a Acrópole e
o Calvário.
Ó Pátria sereníssima
Das formas puras, das ideias
claras;
Das igrejas, das fontes, dos
jardins;
Dos mosaicos, das rendas, dos
brocados;
Dos coloristas límpidos e
meigos;
Das almas furta-cor e da graça
perversa;
Da discreta estesia dos
requintes;
Dos vícios raros, das
perversões elegantes;
Dos venenos sutis e dos
punhais lascivos;
Deliciosa no crime e na
virtude,
Onde a existência foi uma bela
atitude
De sensibilidade e de bom
gosto
E passou pela História, assim,
na ronda viva
Meditativa e brilhante
De uma “Fête Galante”!...
***
Trago-te a minha gratidão
latina
Porque foi no teu seio que se
fez
Toda a ressurreição da Vida
luminosa:
Ó Florença! Florença!
A mais humana das cidades
vivas!
A mais divina das cidades
mortas!...
Há horas em que minha alma
sente e pensa,
Num tempo nobre que não mais
se avista,
Encarnada num príncipe
humanista,
Sob o Lírio Vermelho de
Florença.
Vejo-a, então, nessa histórica
presença,
Harmoniosa e sutil, sensual e
egoísta,
Filha do idealismo epicurista,
Formada na moral da
Renascença.
Sinto-a, assim, flor amável do
Helenismo,
Virtuose – restaurando os
velhos mapas
Do gênio antigo, entre exegeta
e artista.
E ao mesmo tempo, por
diletantismo,
Intrigando a política dos
papas,
Com a perfídia
elegante de um sofista...
No
parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,
Sob
a lenda encantada do luar...
Os
pinheiros pensavam cousas longas,
Nas
alturas dormentes e desertas...
O
aroma nupcial dos jasmins delirantes,
Diluindo
um cheiro acre de resinas,
Espiritualizava
e adormecia
O
ar meigo e silencioso...
A
ronda dos espíritos noturnos,
Em
medrosos rumores,
Gemia
entre os ciprestes e os loureiros...
Na
penumbra dos bosques, o luar
Entreabria
clareiras encantadas,
Prateando
o verde-malva das latadas
E
as doces perspectivas do pomar...
As
nascentes sonhavam, em surdina,
Numa
tonalidade cristalina,
Monótonos
murmurinhos,
Gorgolejos
de águas frescas...
Sobre a areia de prata dos
caminhos,
A sombra espiritual dos
eucaliptos,
Bulindo ao sopro tímido da
aragem,
Projetava ao luar desenhos
indecisos
Ágeis bailados leves de
arabescos,
Farândolas de sombras fugitivas...
E das perdidas curvas das
estradas,
De paragens distantes
Como fantasmas de serenatas,
Ressonâncias sonâmbulas
traziam
A longa, a pungentíssima
saudade
De cavatinas e mandolinatas...
Lembro-me bem, quando em
quando,
Entre as sebes escondidas,
Um insidioso grilo
impertinente,
Roendo um som estridente,
Arranhava o silêncio...
No parque antigo, a noite era
afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do
luar...
Eu era bem criança e, já
possuindo
A sensibilidade evocadora
De um poeta de símbolos profundos,
Solitário e comovido,
No minarete do solar paterno,
Com os pequeninos olhos
deslumbrados,
Passei a noite inteira, o
olhar perdido,
No azul sonoro, o azul
profundo, o azul eterno
Dos eternos espaços
constelados...
Era a primeira vez que eu
contemplava o mundo,
Que eu via face a face o
mistério profundo
Da fantasmagoria universal
No prodígio da noite
silenciosa.
Era a primeira vez...
E foi aí, talvez,
Que começou a história
atormentada
Da minha alma, curiosa dos
abismos,
Inquieta da existência e doente
do Além...
Filha da maldição do Arcanjo
rebelado...
Sim, que foi nessa noite, não
me engano,
– Noite que nunca mais
esquecerei –
Que – a alma ainda em
crisálida, – velando
No minarete do solar paterno,
Diante da noite azul – eu
senti e pensei
O meu primeiro sofrimento
humano
E o meu primeiro pensamento
eterno...
Como fora do Tempo e além do
Espaço,
Ser sem princípio, espírito
sem fim,
Sofria toda a humanidade em
mim,
Nessa contemplação
imponderável!
Já nem ouvia o trêmulo
compasso
Das horas que fugiam pela
noite,
Que os olhos soltos pela
imensidade,
Numa melancolia deslumbrada,
Imaginando cousas nunca ditas,
Todo eu me eterizava e me
perdia
Na ideia das esferas
infinitas,
Na lenda universal das
distâncias eternas...
No parque antigo, a noite era
afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do
luar...
Foi nessa noite antiga
Que se desencantou para a
vertigem
A suave virgindade do meu ser!
Já a lua transmontava as
cordilheiras...
Cães ladravam ao longe, em
sobressalto;
No pátio das mansões, na
granja das herdades,
O cântico dos galos estalava,
Desoladoramente pelos ares,
Acordando as distâncias
esquecidas...
E, então, num silencioso
desencanto,
Eu fui adormecendo lentamente,
Enquanto
Pela fria fluidez azul do
espaço eterno
Em reticências trêmulas,
sorria
A ironia longínqua das
estrelas...
I
Eu era uma alma fácil e macia,
Claro e sereno espelho matinal
Que a paisagem das cousas
refletia,
Com a lucidez cantante do
cristal.
Tendo os instintos por
filosofia,
Era um ser mansamente natural,
Em cuja meiga ingenuidade
havia
Uma alegre intuição universal.
Entretinham-me as ricas
tessituras
Das lendas de ouro, cheias de
horizontes
E de imaginações maravilhosas.
E eu passava entre as cousas e
as criaturas,
Simples como a água lírica das
fontes
E puro como o espírito das
rosas...
II
Espírito flexível e elegante,
Ágil, lascivo, plástico,
difuso,
Entre
as cousas humanas me conduzo
Como um destro ginasta
diletante.
Comigo mesmo, cínico e
confuso,
Minha vida é um sofisma espiralante;
Teço lógicas trêfegas e abuso
Do equilíbrio da Dúvida
flutuante.
Bailarino dos círculos
viciosos,
Faço jogos sutis de ideias no
ar
Entre saltos brilhantes e
mortais,
Com a mesma petulância
singular
Dos
grandes acrobatas audaciosos
E
dos malabaristas de punhais...
III
Alma estranha esta que abrigo,
Esta que o Acaso me deu,
Tem tantas almas consigo,
Que eu nem sei bem quem sou
eu.
Jamais na Vida consigo
Ter de mim o que é só meu;
Para supremo castigo,
Eu sou meu próprio Proteu.
De instante a instante, a me
olhar,
Sinto, num pesar profundo,
A alma a mudar... a mudar...
Parece que estão, assim,
Todas as almas do Mundo,
Lutando
dentro de mim...
IV
Feriram-te,
alma simples e iludida.
Sobre
os teus lábios dóceis a desgraça
Aos
poucos esvaziou a sua taça
E
sofreste sem trégua e sem guarida.
Entretanto,
à surpresa de quem passa,
Ainda
e sempre, conservas para a Vida,
A
flor de um idealismo, a ingênua graça
De
uma grande inocência distraída.
A
concha azul envolta na cilada
Das
algas más, ferida entre os rochedos,
Rolou
nas convulsões do mar profundo;
Mas inda assim, poluída e
atormentada,
Ocultando puríssimos segredos,
Guarda
o sonho das pérolas no fundo.
I
Sombra
do nosso Sonho ousado e vão!
De
infinitas imagens irradias
E, na dança da tua projeção,
Quanto mais cresces, mais te
distancias...
A alma te vê à luz da posição
Em que fica entre as cousas e
entre os dias:
És sombra e, refletindo-te,
varias,
Como todas as sombras, pelo
chão...
O Homem não te atingiu na vida
instável
Porque te embaraçou na
filigrana
De um ideal metafísico e
divino;
E te busca na selva
impraticável,
Ó Bela Adormecida da alma
humana!
Trevo
de quatro folhas do Destino!...
II
Basta saberes que és
feliz, e então
Já
o serás na verdade muito menos:
Na
árvore amarga da meditação,
A
sombra é triste e os frutos têm venenos.
Se
és feliz e o não sabes, tens na mão
O
maior bem entre os mais bens terrenos
E
chegaste à suprema aspiração,
Que
deslumbra os filósofos serenos.
Felicidade...
Sombra que só vejo,
Longe
do Pensamento e do Desejo,
Surdinando
harmonias e sorrindo,
Nessa tranquilidade distraída,
Que as almas simples sentem
pela Vida,
Sem
mesmo perceber que estão sentindo...
Poente no meu
jardim... O olhar profundo
Alongo sobre as árvores
vazias,
Essas em cujo espírito
infecundo
Soluçam silenciosas agonias.
Assim estéreis, mansas e
sombrias,
Sugerem à emoção com que as
circundo
Todas as dolorosas utopias
De todos os filósofos do
mundo.
Sugerem... Seus destinos são
vizinhos:
Ambas, não dando frutos, abrem
ninhos
Ao viandante exânime que as
olhe.
Ninhos, onde vencidas de
fadiga,
A alma ingênua dos pássaros se
abriga
E a tristeza dos homens se
recolhe...
No meu grande otimismo de
inocente,
Eu nunca soube por que foi...
um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era...
Não sabia...
Desde então, transformou-se,
de repente,
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples
cortesia
E a vida foi andando para a
frente...
Nunca mais nos falamos... vai
distante...
Mas, quando a vejo, há sempre
um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu
repousa,
E eu sinto, sem no entanto
compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me
qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...
ARTISTA
Por um destino acima do teu
Ser,
Tens que buscar nas cousas
inconscientes
Um sentido harmonioso, o alto
prazer
Que se esconde entre as formas
aparentes.
Sempre o achas, mas ao tê-lo
em teu poder
Nem n’o pões na tua alma, nem
n’o sentes,
Ao sonho de outras almas
diferentes...
Vives humilde e inda ao morrer
ignoras
O Ideal que achaste...
(Ingratidão das musas!)
Mas não faz mal, meu bômbix
inocente:
Fia na primavera, entre as
amoras,
A tua seda de ouro, que nem
usas
Mas que faz tanto bem a tanta
gente...
Nunca mais me esqueci!... Eu
era criança
E em meu velho quintal, ao
sol-nascente,
Plantei, com a minha mão
ingênua e mansa,
Uma linda amendoeira
adolescente.
Era a mais rútila e íntima
esperança...
Cresceu... cresceu... e, aos
poucos, suavemente,
Pendeu os ramos sobre um muro
em frente
E foi frutificar na
vizinhança...
Daí por diante, pela vida
inteira,
Todas as grandes árvores que
em minhas
Terras, num sonho esplêndido
semeio,
Como aquela magnífica
amendoeira,
Eflorescem nas chácaras
vizinhas
E vão dar frutos no pomar
alheio...
TORRE MORTA DO
OCASO
Esguia torre ascética,
esquecida
Na bruma de um crepúsculo
profundo!
És, no mais triste símbolo do
mundo,
A renúncia tristíssima da
Vida!
Tua existência é um pensamento
fundo
Levantado na pedra adormecida:
Bem sentes quanto é inútil e
infecundo
O esforço na vertigem da
subida!...
Como és profética de longe...
quando
Na moldura do poente de ouro e
rosa,
Interpretando todos os
destinos,
Vais por todos os ventos
espalhando
Tua filosofia dolorosa,
Na
balada sonâmbula dos sinos!...
Poente!
Estas horas que estão
passando, surdamente,
Nunca mais voltarão no tempo
imaginário:
No jardim solitário,
Estão-se desfolhando,
ingloriamente,
Tantas rosas divinas, a
sonhar;
Rosas que poderiam debruar
Leitos de fadas, em guirlandas
luminosas,
Emoldurar cabeças de poetas
E que jamais florescerão ante
os meus olhos...
Por que, então,
Deixá-las, numa morte inútil e
secreta
Esfolharem-se, assim anônimas
e virgens,
Na sombra do jardim
Sobre a tarde serena?!...
Ah! se eu fosse colhê-las para
mim!...
Não vale a pena!
***
Poente!
Estas horas que estão passando
surdamente
Nunca mais voltarão no tempo
imaginário!
Na sombra do meu ser profundo
e solitário
Tantas ideias límpidas,
bailando,
Estão dizendo cousas
infinitas...
Ideias que seriam minha
história,
Minha imortalidade, minha
glória,
E que por certo eu nunca mais
encontrarei...
Por que, então,
Vê-las morrer, assim, sem voz,
sem serem ditas?!...
Ah! se eu as animasse em
palavras eternas,
De uma vida magnífica e
serena!...
Não
vale a pena!
Afinal, tudo que há de mais
nobre e mais puro
Neste mundo de sombras e
aparências
Fui eu quem revelou ou
concebeu...
Fui a primeira luz neste
planeta obscuro!
Fui a suprema voz de todas as
consciências!
Fui o mais alto intérprete de
Deus!
Dei alma à Natureza
indiferente,
Inteligência às cousas,
sentimentos
Às forças cegas e automáticas
do Cosmos!...
Acompanhei e dirigi os povos
Na sua eterna migração para o
Poente;
Levantei os primeiros
monumentos
E os primeiros impérios
milenários:
Teci as grandes lendas
tutelares,
Despertei na memória das
criaturas
A sua antiga tradição divina,
Criando as religiões, as
fábulas, os mitos
Para iludir a dor universal;
Abri os horizontes infinitos;
Bebi o néctar das primeiras
taças;
Plasmei os altos símbolos
humanos;
Sutilizei o instinto e
imaginei o amor;
Fui a força ideal das
civilizações!
O gênio transfigurador da
História!
O espírito anônimo dos
séculos!
E, harmonioso, profético,
profundo,
Passei humanizando as cousas
pelo mundo,
Para divinizar os homens sobre
a Terra!
Também nós, seres raros, de
divinas
Intenções e humaníssimas
virtudes,
Levando os nossos sonhos para
a frente,
– Com a nossa íntima luz
desconhecida –
Vamos fazendo cotidianamente,
Pelo mundo das almas pequeninas,
Nossas “Viagens de Gulliver”
na Vida.
Lilliput... em farândolas
grotescas
Os anõezinhos trêfegos,
daninhos,
Diabólicos fantoches
hilariantes,
Formigando nas estradas,
Bailando pelos caminhos,
Imaginam ridículas ciladas,
Insidiosas e inúteis emboscadas,
Ao passo distraído e imenso
dos gigantes...
Eles passam... seu vulto enche
os espaços,
E toda Lilliput alvoroçada,
– Simples despeitos de anão –
Erguendo em gestos maus todos
os braços,
Deita impropérios, maldições,
ameaças,
Mas eles vão e vêm e vêm e
vão,
Num desprezo triunfal,
Com essa tolerância azul das
grandes raças,
Tão ironicamente e mansamente,
Que os coitados pigmeus, não
lhes tocando
Sequer o calcanhar,
contentam-se, afinal,
Com pisar-lhes a sombra
indiferente...
A calúnia do anão, pisar as
sombras!...
“Por que será, então, que tudo
é tão pequeno
Nessa cidadezinha universal?!
As paisagens, as almas, o
ideal,
As figuras, a vida, os
sentimentos?!”
E, assim pensando, com piedade
e com doçura,
Os gigantes, de espírito
sereno,
Vão passando, sorrindo, e
repassando
Por essa humanidade em
miniatura...
Sim, porque é mesmo assim e
sempre foi assim:
Quem vai pelo mistério das
estradas,
Rumo ao país dos deuses e das
fadas,
Por mais que evite ou que
lute,
Tem de sempre passar por
Lilliput,
Nessas “Viagens de Gulliver”
da Vida...
Desce um longo poente de
elegia
Sobre as mansas paisagens
resignadas;
Uma humaníssima melancolia
Embalsama as distâncias
desoladas...
Longe, num sino antigo, a
Ave-Maria
Abençoa a alma ingênua das
estradas;
Andam surdinas de anjos e de
fadas,
Na penumbra nostálgica,
macia...
Espiritualidades comoventes
Sobem da terra triste, em
reticência,
Pela tarde sonâmbula,
imprecisa...
Os sentidos se esfumam, a alma
é essência
E entre fugas de sombras
transcendentes,
O Pensamento se volatiliza...
Não aprofundes nunca, nem
pesquises
O segredo das almas que
procuras:
Elas guardam surpresas
infelizes
A quem lhes desce às
convulsões obscuras.
Contenta-te com amá-las, se as
bendizes,
Se te parecem límpidas e puras,
Pois se, às vezes, nos frutos
há doçuras,
Há sempre um gosto amargo nas
raízes...
Trata-as assim, como se fossem
rosas,
Mas não despertes o sabor
selvagem
Que lhes dorme nas pétalas
tranquilas,
Lembra-te dessas flores
venenosas!
As abelhas cortejam de
passagem,
Mas não ousam prová-las nem
feri-las...
Não se pode sonhar impunemente
Um grande sonho pelo mundo
afora,
Porque o veneno humano não
demora
Em corrompê-lo na íntima
semente...
Olhando no alto a árvore
excelente,
Que os frutos de ouro
esplêndidos enflora,
O Sonhador não vê, e até
ignora
A cilada rasteira da Serpente.
Queres sonhar? Defende-te em
segredo,
E lembra, a cada instante e a
cada dia,
O que sempre acontece e
aconteceu:
Prometeu e o abutre no
rochedo,
O Calvário do Filho de Maria
E a cicuta que Sócrates bebeu!
Quando fores sentindo que o
fulgor
Do teu Ser se corrompe e a
adolescência
Do teu gênio desmaia e perde a
cor,
Entre penumbras em deliquescência,
Faze a tua sagrada penitência,
Fecha-te num silêncio superior,
Mas não mostres a tua
decadência
Ao mundo que assistiu teu
esplendor!
Foge de tudo para o teu nadir!
Poupa ao prazer dos homens o
teu drama!
Que é mesmo triste para os
olhos ver
E assistir, sobre o mesmo
panorama,
A alegoria matinal subir
E a ronda dos crepúsculos
descer...
Deitando os olhos sobre a
perspectiva
Das cousas, surpreendo em cada
qual
Uma simples imagem fugitiva
Da infinita harmonia
universal,
Uma revelação vaga e parcial
De tudo existe em cada cousa
viva:
Na corrente do Bem ou na do
Mal
Tudo tem uma vida evocativa.
Nada é inútil; dos homens aos
insetos
Vão-se estendendo todos os
aspectos
Que a ideia da existência pode
ter;
E o que deslumbra o olhar é
perceber
Em todos esses seres
incompletos,
A completa noção de um mesmo
ser...
O Homem desperta e sai cada
alvorada
Para o acaso das cousas... e,
à saída,
Leva uma crença vaga,
indefinida,
De achar o Ideal n’alguma
encruzilhada...
As horas morrem sobre as
horas... Nada!
E ao Poente, o Homem, com a
sombra recolhida
Volta, pensando: “Se o Ideal
da Vida
Não veio hoje, virá na outra
jornada...”
Ontem, hoje, amanhã, depois,
e, assim,
Mais ele avança, mais distante
é o fim,
Mais se afasta o horizonte
pela esfera;
E a Vida passa... efêmera e
vazia:
Um adiamento eterno que se
espera,
Numa eterna esperança que se
adia...
Glória ao Instinto, a lógica
fatal
Das cousas, lei eterna da
criação,
Mais sábia que o ascetismo de
Pascal,
Mais bela do que o sonho de
Platão!
Pura sabedoria natural
Que move os seres pelo
coração,
Dentro da formidável ilusão,
Da fantasmagoria universal!
És a minha verdade, e a ti
entrego,
Ao teu sereno fatalismo cego
A minha linda e trágica
inocência!
Ó soberano intérprete de tudo,
Invencível Édipo, eterno e
mudo
De todas as esfinges da
Existência!...
PLATÔNICO...
As ideias são seres
superiores,
– Almas recônditas de
sensitivas –
Cheias de intimidades
fugitivas,
De escrúpulos, melindres e
pudores.
Por onde andares e por onde
fores,
Cuidado com essas flores
pensativas,
Que têm pólen, perfume, órgãos
e cores
E sofrem mais que as outras
cousas vivas.
Colhe-as na solidão... são
obras-primas,
Que vieram de outros tempos e
outros climas
Para os jardins de tua alma
que transponho,
Para com elas teceres, na
subida,
A coroa votiva do teu Sonho
E a legenda imperial da tua
Vida.
Scherazada do espírito, que
rendas
Num fio ideal de
verossimilhança
O Símbolo e a Ilusão, únicas
prendas
Que nos vieram dos deuses como
herança!
Transformando em alambras
nossas tendas,
Na tua voz o nosso olhar
alcança
As Mil e uma Noites da
Esperança
E a esfera azul dos sonhos e
das lendas!
Quando o despeito da Realidade
Nos fere, és quem de novo nos
persuade,
Com teu consolo que nem sempre
engana.
Porque, na tua esplêndida eloquência,
És o sexto sentido da
Existência
E a memória divina da alma
humana!
Homem que pensas e que dizes o
que pensas!
Se queres que entre os homens
e entre as cousas
Tuas ideias vivam pelo mundo
Crê bem nelas primeiro,
sofre-as bem,
Faze com que elas vivam na tua
alma,
Na mais sincera intimidade do
teu Ser!
Há ideias que na vida
cultivamos,
Pela volúpia inútil de pensar,
Pela simples beleza, pela
graça
Floral, pelo prazer que elas
nos dão...
Por esse estado de ilusão
chinesa
Em que nos adormecem a
consciência:
Aquarelas efêmeras do
espírito,
Paisagens meigas da
imaginação,
Ideias lindas que não criam
nada!
Elas passam, radiantes,
coloridas,
Na flutuação superficial do
Pensamento;
Sim, são plantas aquáticas,
nelumbos
De ouro equatorial, ninféias
encantadas
Pela prata dos luares
sedativos,
Leves vegetações de tintas
luminosas,
Sonhos das águas trêmulas que
passam
– Raízes a boiar no espelho
das correntes, –
Com músicas de cores pelas
plumas,
Vaidades femininas pelas
palmas,
Mas sem um grão de vida, sem
um fruto,
Nessa esterilidade
deslumbrante...
As ideias que criam, as ideias
Vivas que elevam religiões e
impérios,
Gênios e heróis e mártires e
santos;
As ideias orgânicas e eternas
Que dão nomes aos séculos,
destinos
Às raças, glória aos homens,
força à Vida,
Que nutrem almas e orientam
povos,
Fecundam gerações e geram
deuses
E que semeiam civilizações,
Essas terão que vir da nossa
fonte humana,
Deitando profundíssimas raízes
No generoso espírito em que
nasçam:
Terão que ser humanas, quer
dizer,
Ser a nossa energia e a nossa
fé,
Ser sementes recônditas, ser
dores,
Sentimentos, paixões e quase
instintos.
Ser vozes dos abismos
transcendentes
Da consciência profunda... ser
nós mesmos...
Porque as árvores mais
fecundas são aquelas
Que mais fundas estão nas
entranhas do solo
E mais fazem sofrer o coração
da Terra...
Tarde! Estou muito triste,
triste, assim
De uma tristeza imóvel e
vazia...
E uma ronda de crianças
esfuzia
Na aquarela chinesa do
jardim...
Aos poucos a farândola leviana
Chega-se a mim, cerca-me
ousadamente:
Inquietas larvazinhas de alma
humana,
Misteriosos destinos em
semente,
Vêm parar a meus pés depois –
meigas violetas,
Sob a sombra de uma árvore
doente.
Não tenho nada para dar-lhes,
sou
Como um pinheiro
contemplativo,
Cujos ramos dolentes não têm
frutos
Que há muito um vento cruel os
arrancou...
Mas elas pedem qualquer cousa
e eu me comovo.
Eu tenho tanta pena das
crianças!
Elas são todo o mundo a
começar de novo
Para as mesmas incertas
caminhadas,
Para o mistério das
encruzilhadas;
São toda a Humanidade que
renasce,
Ingênua, simples e
maravilhada,
Como a primeira vez que
apareceu.
E, então (isso é dos santos e
dos sábios)
Penduro na tristeza dos meus
lábios
Cousas alegres que não são
minhas;
Fábulas mansas, contos de
fadas,
Histórias de anjos e rainhas
E uma porção de cousas
encantadas,
Que vou distribuindo pelo
bando...
E à tarde que se vai
lentamente apagando,
Na aquarela chinesa do jardim,
Semeando alegrias e esperanças
–
Minha tristeza é assim uma
piedosa e linda
Árvore de Natal entre as
crianças...
Eras fraco e feliz, sem
meditar,
E na tua consciência vaga e
obscura,
A vida, sob um luar de
iluminura,
Era um conto de fadas para o
olhar.
Um dia, um rude e pérfido
avatar
Vestiu-te de uma força ingrata
e impura
E sonhaste a ciclópica
aventura
De o espírito das cousas
penetrar.
Mas, ah! homem ingênuo, desde
quando
Deste o primeiro passo da
escalada,
Foste, como um tristíssimo
Sansão,
Na fúria da tua obra
desgraçada,
Estremecendo, aluindo,
derrubando
As colunas do Templo da
Ilusão!...
VIVENDO...
Nós, incautos e efêmeros
passantes,
Vaidosas sombras
desorientadas,
Sem mesmo olhar o rumo das
passadas,
– Vamos andando para fins
distantes...
Então, sutis, envolvem-nos
ciladas
De pequenos acasos
inconstantes,
Que vão desviando, a todos os
instantes,
A linha leviana das
estradas...
Um dia, todo o fim a que
chegamos,
Vem de um nada fortuito,
entretecido
Nas surpresas das horas em que
vamos...
Para adiante! ó ingênuos
peregrinos!
Foi sempre por um passo
distraído
Que começaram todos os
destinos...
Duas almas deves ter...
É um conselho dos mais sábios;
Uma, no fundo do Ser,
Outra, boiando nos lábios!
Uma, para os circunstantes,
Solta nas palavras nuas
Que inutilmente proferes,
Entre sorrisos e acenos:
A alma volúvel das ruas,
Que a gente mostra aos
passantes,
Larga nas mãos das mulheres,
Agita nos torvelinhos,
Distribui pelos caminhos
E gasta, sem mais nem menos,
Nas estradas erradias,
Pelas horas, pelos dias...
Alma anônima e usual,
Longe do Bem e do Mal,
Que não é má nem é boa,
Mas, simplesmente, ilusória,
Ágil, sutil, diluída,
Moeda falsa da Vida,
Que vale só porque soa,
Que compra os homens e a
glória
E a vaidade que reboa:
Alma que se enche e
transborda,
Que não tem porquê nem quando,
Que não pensa e nem recorda,
Não ama, não crê, não sente,
Mas vai vivendo e passando
No turbilhão da torrente,
Través intricadas teias,
Sem prazeres e sem mágoas,
Fugitiva como as águas
Ingrata como as areias.
Alma que passa entre ápodos
Ou entre abraços, sorrindo;
Que vem e vai, vai e vem,
Que tu emprestas a todos,
Mas não pertence a ninguém.
Salamandra furta-cor,
Que muda ao menor rumor
Das folhas pelas devesas;
Alma que nunca se exprime,
Que é uma caixa de surpresas
Nas mãos dos homens prudentes;
Alma que é talvez um crime,
Mas que é uma grande defesa.
A outra alma, pérola rara,
Dentro da concha tranquila,
Profunda, eterna e tão cara
Que poucos podem possuí-la,
É alma que nas entranhas
Da tua Vida murmura
Quando paras e repousas.
A que assiste das Montanhas
As livres desenvolturas
Do panorama das cousas
Para melhor conhecê-las.
Essa que olha as criaturas,
Sem jamais comprometê-las,
Entre perdões e doçuras,
Num pudor silencioso,
Com o mesmo olhar generoso,
Com que contempla as estrelas
E assiste o sonho das
flores...
Alma que é apenas tua,
Que não te trai nem te engana,
Que nunca se desvirtua,
Que é a voz do mundo em
surdina,
Que é a semente divina
Da tua têmpera humana.
Alma que só se descobre
No mundo contemplativo,
Para uma lágrima nobre,
Para um heroísmo afetivo,
Nas íntimas confidências
De verdade e de beleza:
Milagre da natureza,
Transcorrendo em reticências
Num sonho límpido e honesto,
De idealidade suprema,
Ora, aflorando num gesto,
Ora, subindo num poema.
Fonte do Sonho, jazida
Que se esconde aos
garimpeiros,
Guardando, em fundos esteiros,
O ouro da tua Vida.
Alma de santo e pastor,
De herói, de mártir e de
homem;
A redenção interior
Das forças que te consomem,
A legenda e o pedestal
Da aspiração infinita
Que se aprofunda e se agita
No teu ser universal.
Alma profunda e sombria,
Que ao fechar-se cada dia,
Sob o silêncio fecundo
Das horas graves e calmas,
Te ensina a filosofia
Que descobriu pelo mundo,
Que aprendeu nas outras almas.
Duas almas tão diversas
Como o poente das auroras:
Uma, que passa nas horas;
Outra, que fica no tempo.
As almas, como as flores, no
lugar
Em que viveram deixam,
longamente,
Sua íntima essência errando no
ar,
Numa vaga fluidez
reminiscente...
Vede essas velhas casas que, a
passar
Pelos olhos do tempo
indiferente,
Foram o sereníssimo ambiente
De alguma longa história
familiar!...
Há no seu gênio obscuro,
misteriosas
Influências humanas,
insensíveis
Contágios de alma que não
percebemos,
Frias fatalidades traiçoeiras
Adormecidas no silêncio
antigo...
Exalam do segredo das entranhas
Forças sutis e sugestões
estranhas
Que nos descem ao fundo dos
sentidos
E se vão infiltrando,
lentamente,
Na alma dos visitantes
distraídos...
Ao lhes transpormos as
sombrias portas,
Nunca sabemos o que nos espera
Nesses tristes jardins de
sombras mortas
– Fantasmas de uma antiga
primavera...
Dentro tudo morreu... mas,
presa a um fio
Intangível,
Uma vida fantástica,
invisível,
Vive em essência no ar
sonâmbulo e vazio...
As almas, como as flores, no
lugar
Em que viveram deixam,
longamente,
A sua exalação errando no ar,
Numa vaga fluidez
reminiscente...
A ALMA DAS COUSAS SOMOS NÓS...
Dentro do eterno giro
universal
Das cousas, tudo vai e volta à
alma da gente,
Mas, se nesse vaivém tudo
parece igual
Nada mais, na verdade,
Nunca mais se repete exatamente...
Sim, as cousas são sempre as
mesmas na corrente
Que no-las leva e traz, num
círculo fatal;
O que varia é o espírito que
as sente
Que é imperceptivelmente
desigual,
Que sempre as vive
diferentemente,
E, assim, a vida é sempre
inédita, afinal...
Estado de alma em fuga pelas
horas,
Tons esquivos e trêmulos,
nuanças
Suscetíveis, sutis, que fogem
no Íris
Da sensibilidade furta-cor...
E a nossa alma é a expressão
fugitiva das cousas
E a vida somos nós, que sempre
somos outros!...
Homem inquieto e vão que não
repousas!
Pára e escuta:
Se as cousas têm espírito, nós
somos
Esse espírito efêmero das
cousas,
Volúvel e diverso,
Variando, instante a instante,
intimamente,
E eternamente,
Dentro da indiferença do
Universo!...
Alma, em teu delirante
desalinho,
Crês que te moves
espontaneamente,
Quando és na Vida um simples
rodamoinho,
Formado dos encontros da
torrente!
Moves-te porque ficas no
caminho
Por onde as cousas passam,
diariamente:
Não é o Moinho que anda, é a
água corrente
Que faz, passando, circular o
Moinho...
Por isso, deves sempre
conservar-te
Nas confluências do Mundo
errante e vário,
Entre forças que vêm de toda
parte.
Do contrário, serás, no
isolamento,
A espiral, cujo giro
imaginário
É
apenas a Ilusão do Movimento!...
Para possuíres a filosofia
Das cousas, como um cético
risonho,
Cheio de uma bondade comovida,
É preciso que tenhas algum dia
Escapado da Vida para o sonho
E voltado do sonho para a
vida.
***
Procura o espaço livre e as
macias alfombras
E vive sem pensar! Basta que o
Sentimento
Te una à Vida e a renove,
quando em quando...
As ideias enganam como as
sombras,
São as sombras das cousas
flutuando
No espelho móvel do teu
pensamento!...
Pratica os teus sentidos
nobremente
Na sensação das cousas belas e
harmoniosas,
E, assim, educarás melhor uma
alma linda,
Parecida com tudo que
sentires!
***
Por que este
desespero de que falas?
Se
não crês bem nas cousas, nem descrês,
Ama-as
embora, porque o teu prazer
Lhes
dará a mais viva das verdades!
Não
é preciso crer nas cousas, basta amá-las.
Sendo
que amar é muito mais que crer...
***
Cada
alma, sem sentir e sem querer,
Fia
através dos dias, urde, tece
O seu destino – a inextricável
teia!
Vive, faz e desfaz, passa e se
esquece...
Mas os frutos que colhe em sua
messe
São bem filhos dos germens que
semeia...
***
A alma da gente muda tanto
nesta vida,
Na sua história escrita sobre
a areia,
Que um dia, ao recordar-se de
si mesma,
Numa hora esquecida,
Já nem se reconhece mais e
sente,
Estranhamente,
Que tudo aquilo que ela está
lembrando,
São as recordações de uma alma
alheia!...
***
Teu horóscopo está em ti, seja
onde for
– Sem que o saibas e o
pesquises –
Na sombra do teu ser mais
íntimo e interior,
Como, presos ao solo áspero e
bruto,
Estão bem dentro da alma das
sementes,
Na natureza eterna das raízes,
O gosto original de cada fruto
E o perfume sutil de cada
flor...
***
Escuta: Pelo bem que tu
fizeres,
Espera todo o mal que não
farias!
Essa é a mais triste das
filosofias
Que aprendi entre os homens e
as mulheres!
***
Queres saber minha história?
Não n’a tenho na memória...
Não tem fim, não teve fundo:
É a lenda da Humanidade,
É
a própria história do Mundo!...
Ator
e espectador do drama humano,
– Homem, Filho do Bem, Filho
do Mal –
Sei de tudo, desci ao fundo
amargo
Das ideias, das cousas, das
criaturas,
E, dentro da tragédia
universal,
Fui anjo, fui réptil e vôo
largo
Das águias suspendi pelas
alturas
Eternas das ideias infinitas.
Sofri as leis humanas e
divinas...
Pensei, senti, vivi
profundamente
Todas as grandes realidades
vivas
E encontrei as verdades
cristalinas
Do universo visível e aparente
No coração das horas
fugitivas...
Nada escapou à minha
penetrante
Impressão da Existência. Vivi
tudo!...
E tudo que eu vivi, do claro
ao misterioso,
Foi destilado na palheta
latejante
E passou pelo filtro íntimo e
mudo
De um alto pensamento
generoso.
Despindo as formas leves e
vaidosas,
Rasgando as superfícies
ilusórias,
A minha alma alongou suas
raízes
Insinuantes, sutis,
silenciosas
Pelas intimidades infelizes
De tudo quanto viu dentro da
Vida.
E cresceu, floresceu, sorvendo
gota a gota
Essa seiva de fel, ácida e
ingrata
Que há no fundo sombrio das
Verdades
E dentro dos seus frutos
coloridos,
Que um meigo vento lírico
desata,
Ainda há vivos venenos
diluídos,
Que o puro azul dos céus
serenos ameniza.
Sei de tudo! Conheço a vida a
fundo!
Sei o que quer dizer uma
existência humana!...
O meu sereno ser já não se
engana
Com cousa alguma dentro deste
mundo!
Entretanto, não sei... cada
manhã que nasce,
Cheia de virgindade e
adolescência,
Eu saio para a Vida,
Levando uma alma nova e um
sorriso na face,
Sentindo, vagamente, que esse
dia
É o meu primeiro dia de
existência...
Sê na Vida a expressão límpida
e exata
Do teu temperamento, homem
prudente;
Como a árvore espontânea que
retrata
Todas as qualidades da
semente!
O que te infelicita é sempre a
ingrata
Aspiração de uma alma
diferente,
É meditares tua forma inata,
Querendo transformá-la, de
repente!
Deixa-te ser!... e vive
distraído
Do enigma eterno sobre que
repousas,
Sem nunca interpretar o seu
sentido!
E terás, de harmonia com tua
alma,
Essa felicidade ingênua e
calma,
Que
é a tendência recôndita das cousas!...
Tudo que te disserem sobre a
Vida,
Sobre o destino humano, que
flutua,
Ouve e medita bem, mas
continua
Com a mesma alma liberta e
distraída!
Interpreta a existência com a
medida
Do teu Ser! (a verdade é uma
obra tua!)
Porque em cada alma o Mundo se
insinua,
Numa nova Ilusão desconhecida.
Vai pelos próprios passos, num
assomo
De quem procura por si próprio
o fundo
Da eterna sensação que as
cousas têm!
Existe, em suma, por ti mesmo,
como
Se antes da tua sombra sobre o
Mundo
Não houvera existido mais
ninguém!...
Tu que vives e passas, sem
saber
O que é a vida nem porque é,
que ignoras
Todos os fins e que, pensando,
choras
Sobre o mistério do teu
próprio Ser,
Não sofras mais à espera das
auroras
Da suprema verdade a aparecer:
A verdade das cousas é o
prazer
Que elas nos possam dar à flor
das horas...
Essa outra que desejas, se ela
existe,
Deve ser muito fria e quase
triste,
Sem a graça encantada da
incerteza...
Vê que a Vida afinal, –
sombras, vaidades, –
É bela, é louca e bela, e que
a Beleza
É a mais generosa das
verdades...
... E vive assim... Como
filosofia
O Prazer, como glórias e
esperanças
Uma vida espontânea e
correntia
E um gesto irônico ao que não
alcanças!
Seja a vida um punhado de
horas mansas,
Numa felicidade fugidia:
A piedosa ilusão de cada dia
E o bailado de sombras das
lembranças.
Ama as cousas inúteis! Sonha!
A Vida...
Viste que a Vida é uma
aparência vaga
E todo o imenso sonho que
semeias,
Uma legenda de ouro,
distraída,
Que a ironia das águas lê e
apaga,
Na
memória volúvel das areias!...
Ironia!
Ironia!
Minha consolação! Minha
filosofia!
Imponderável máscara discreta
Dessa infinita dúvida secreta,
Que é a tragédia recôndita do
ser!
Muita gente não te há de
compreender
E dirá que és renúncia e
covardia!
Ironia! Ironia!
És a minha atitude comovida:
O amor-próprio do Espírito,
sorrindo!
O
pudor da Razão diante da Vida!
Rei da Criação, por mim mesmo
aclamado,
Quis, vencendo o Destino, ser
o Rei
De todo esse Universo
ilimitado
Das ideias que nunca
alcançarei...
Inteligência... esse anjo
rebelado
Tombou sem ter sabido a eterna
lei:
Pensei demais e, agora, apenas
sei
Que tudo que eu pensei estava
errado...
De tudo, então, ficou somente
em mim
O pavor tenebroso de pensar,
Porque as ideias nunca tinham
fim...
Que mais resta da fúria
malograda?
Um bailado de frases a
cantar...
A
vaidade das formas... e mais nada...
–
Como são lindos os teus grandes versos!
Que colorido humano! que
profundo
Sentido e que harmonia
generosa
Encerram, nos seus símbolos
diversos!...
– Sim, mas para fazê-los fui
ao fundo
Das cousas, nessa Via-Dolorosa
Do pensamento, que no fim é
sempre triste.
Sofri muito entre os seres
infelizes...
Tu não sabes de nada... tu não
viste...
– Não, nunca imaginei o que me
dizes...
Mas teus versos me fazem tanto
bem,
São tão belos! de formas tão
luxuosas!...
– É isso mesmo!... É a beleza
irônica que vem
Da amargura invisível das
raízes,
Para dar a vaidade efêmera das
rosas...
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POEMAS INACABADOS
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Sonho um cristianismo singular
Cheio de amor divino e de
prazer humano;
O Horto de Mágoas sob um céu
virgiliano,
A beatitude com mais luz e com
mais ar...
Um pequeno mosteiro em meio de
um pomar,
Entre loureiros-rosa e vinhas
de todo o ano,
Num
misticismo lírico, a sonhar
Na orla florida e azul de um
lago italiano...
Um cristianismo sem renúncia e
sem martírios,
Sem a pureza melancólica dos
lírios,
Temperado na graça natural...
Cristianismo de bom-humor, que
não existe,
Onde a Tristeza fosse um
pecado venial,
Onde a Virtude não precisasse
ser triste...
Afinal, é o costume de viver
Que nos faz ir vivendo para a
frente.
Nenhuma outra intenção, mas,
simplesmente
O hábito melancólico de ser...
Vai-se vivendo... é o vício de
viver...
E se esse vício dá qualquer
prazer à gente,
Como todo prazer vicioso é
triste e doente,
Porque o Vício é a doença do
Prazer...
Vai-se vivendo... vive-se
demais,
E um dia chega em que tudo que
somos
É apenas a saudade do que
fomos...
Vai-se vivendo... e muitas
vezes nem sentimos
Que somos sombras, que já não
somos mais nada
Do que os sobreviventes de nós
mesmos!...
“ALMAS DESOLADORAMENTE FRIAS...”
Almas desoladoramente frias
De uma aridez tristíssima de
areia,
Nelas não vingam essas suaves
poesias
Que a alma das cousas, ao
passar, semeia...
Desesperadamente estéreis e
sombrias
Onde passam (triste aura que
as rodeia!)
Deixam uma atmosfera amarga,
cheia
De desencantos e
melancolias...
Nessa árida rudeza de rochedo,
Mesmo fazendo o bem, sua mão é
pesada,
Sua própria virtude mete
medo...
Como são tristes essas vidas
sem amor,
Essas sombras que nunca amaram
nada,
Essas almas que nunca deram
flor...
AO MENOS UMA VEZ EM TODA A VIDA
Ao menos uma vez em toda a
vida
A Verdade passou pela alma de
cada homem...
Passou muito alto, muito vaga,
muito longe,
Como os fantasmas, que mal
chegam, somem,
Passou em sombra, num reflexo
fugidio,
Foi a sombra de um vôo
refletida
No espelho da água trêmula de
um rio...
Sombra de um vôo na água
trêmula: Verdade!
Passou uma só vez em toda a
vida
E sempre dessa vez a alma dos
homens
Estava distraída,
E não reconheceu na sombra
desse vôo
A ave ideal que planava no
alto azul...
Quando volveu os olhos para a
altura
Ela já ia desaparecendo...
Dela nada ficou no olhar
triste dos homens,
Nem a lembrança de seu vulto
incerto...
Passou uma só vez em toda a
vida!
Sombra de um vôo na água
trêmula: Verdade!
E esse vôo,
Que nunca mais voltou no mesmo
céu deserto,
Nem
ao menos deixou a sombra dentro d’água...
Na minha vida fluida de
fantasma
Sou tão leve que quase nem me
sinto,
Nem há nada mais leve nem tão
leve.
Sou mais leve do que a euforia
de um anjo,
Mais leve do que a sombra de
uma sombra
Refletida no espelho da
Ilusão.
Nenhuma brutal lei do Universo
sensível
Atua e pesa e nem de longe
influi
Sobre o meu ser vago, difuso,
esquivo
E no éter sereníssimo flutuo
Com a doce sutileza
imponderável
De uma essência ideal que se
volatiliza...
Passo através das cousas mais
sensíveis
E as cousas que atravesso nem
me sentem,
Porque na minha plástica sutil
Tenho a delicadeza
transcendente
Da luz, que flui través os
corpos transparentes,
Sou quase imaterial como uma ideia...
E da matéria cósmica que tem
Tantos e variadíssimos estados
Eu sou o estado-alma, quer
dizer
O último estado rarefeito, o
estado ideal:
Alma, o estado divino da
matéria!...
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POEMAS
INÉDITOS
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Lá vêm os saltimbancos, às
dezenas
Levantando a poeira das
estradas,
Vêm gemendo bizarras
cantilenas,
No tumulto das danças
agitadas.
Vêm num rancho faminto e
libertino,
Almas estranhas, seres erradios,
Que têm na Vida um único
destino,
O Destino das aves e dos rios.
Ir mundo a mundo é o único
programa,
A disciplina única do bando;
O cigano não crê, erra, não
ama,
Se sofre, a sua dor chora
cantando.
Nunca pararam desde que
nasceram.
São da Espanha, da Pérsia ou
da Tartária?
Eles mesmos não sabem;
esqueceram
A sua antiga pátria
originária...
Quando passam, aldeias,
vilarinhos
Maldizem suas almas indefesas,
E a alegria que espalham nos
caminhos
É talvez um excesso de
tristezas...
Quando acampam de noite, é no
relento
Que vão sonhar seu Sonho
aventureiro;
Seu teto é o vácuo azul do
Firmamento.
Lar? o lar do cigano é o mundo
inteiro.
Às vezes, em vigílias
ambulantes,
A noite em fora, entre canções
dálmatas,
Vão seguindo ao Luar, vão
delirantes,
Alados no langor das
serenatas.
Gemem guslas e vibram
castanholas,
E este rumor de errantes
cavatinas
Lembra cousas das terras
espanholas,
Nas saudades das terras
levantinas.
E, então, seus vultos tredos
envolvidos
Em vestes rotas, sórdidas,
imundas,
Vão passando por ermos
esquecidos,
Como um grupo de sombras
vagabundas.
Lá vêm os saltimbancos, às
dezenas,
Levantando a poeira das
estradas,
Vêm gemendo bizarras
cantilenas,
No tumulto das danças
agitadas.
Povo sem Fé, sem Deus e sem
Bandeira!
Todos o temem como horrível
gente,
Mas ele na existência
aventureira,
Ri-se do medo alheio,
indiferente.
E, livres como o Vento e a Luz
volante,
Sob a aparência de
Infelicidade,
Realizam, na sua vida errante,
O poema da eterna Liberdade.
Tu pensas como eu penso, vês
se eu vejo,
Atento tu me escutas quando
falo;
Bem antes que te exponha o meu
desejo
Já pronto estás correndo a
executá-lo.
Achas em tudo um venturoso
ensejo
De servir-me de servo e de
vassalo;
Perdoa-me a verdade num
gracejo.
Serias, se eu quisesse, o meu
cavalo...
Mas não penses que estólido eu
te creia
Como um Pátroclo abnegado, não
De todos os excessos se
receia...
O certo é que, em rancor, por
dentro estalas;
Odeias-me que eu sei, mas,
histrião,
Beijas-me as mãos por não
poder cortá-las...
CALA A BOCA, MEMÓRIA!
Cala a boca, Memória! Basta,
basta!
O que o Tempo te disse não me
digas.
Que pareces até minha madrasta
Quando me vens cantar tuas
cantigas.
Tua voz me faz mal e me
vergasta,
E a chorar, muitas vezes, tu
me obrigas.
Piedade, Memória leonoclasta,
Não despertes, assim, dores
antigas.
Vai, recolhe-te à tua
soledade,
E que o teu braço nunca mais
me leve
À sepultura da Felicidade!
Segue um conselho meu, de ora
em diante:
Junto a quem está de luto não
se deve
Falar de quem morreu, a todo
instante...
Maio. Sol de Saint-Loup.
Declina o dia.
Eu e Silêncio – os dois – o
olhar profundo,
Numa
contemplação erma e sombria
Neste recanto inédito do
mundo...
Lá embaixo, a fímbria azul dos
montes quietos,
Pesa-me ao olhar, em trêmulos
recortes.
Como nas sugestões das
águas-fortes,
A beleza parada dos
aspectos...
É bem a Suíça clássica que
avisto,
Calma, brumal, profundamente
calma,
Sem o menor espasmo do
imprevisto
Na branca anestesia de sua
alma...
Tudo na mesma estática
atitude...
Montando as serranias, pelos
flancos,
Em igual sucessão, sóbrios,
marmóreos,
Destaco, ao longe,
austeramente brancos
Os vultos varonis dos
sanatórios...
Somos, na vida, a síntese
apurada
De tudo o que viveu antes de
nós;
Sou a compendiação
cristalizada
Da história milenar dos meus
avós.
Em mim, austeramente, continua
Uma raça de velho itinerário,
E eu conservo, no fundo da
alma nua,
O cunho do destino
hereditário.
Quem me vê!... E eu condenso
mil essências,
– Sedimentos de idades e de
idades –
Na verdade incisiva das
tendências,
Nos meus impulsos e
capacidades.
Restos de dias mortos e
resíduos
De gerações e tempos
indistintos
São a razão de ser dos
indivíduos,
O segredo latente dos
instintos.
Cada atitude, cada gesto dado
Que o nosso íntimo espírito
acomete
É um momento da raça renovado,
É um minuto ancestral que se
repete.
Nós, desde o homem que pensa à
planta e à lesma,
Somos uma sequência enorme e
vasta,
Uma força remota que se gasta
Na sucessão contínua de si
mesma.
E é por isso que eu sinto e
nós sentimos,
Em momentos recônditos
extremos,
A saudade de cousas que não
vimos
E o orgulho de tudo o que não
temos.
Ser novo é um paradoxo
inconsistente
Que só vive nos nossos
pensamentos;
O que há de novo é o aspecto
diferente
Lastreado dos mesmos
fundamentos.
A Evolução!... E, com ela,
melhoramos
Mas a Alma melhorando se
enfraquece,
Tal como a gota d’água que
desfiamos,
Que quanto mais se apura, mais
decresce.
Sim! que o destino em seu
maior conceito,
Na agitação dinâmica do Ser,
É ir lutando para ser perfeito
E ser perfeito e
desaparecer...
SEI DE TUDO O QUE EXISTE PELO MUNDO
Sei de tudo o que existe pelo
mundo,
A forma, o modo, o espírito e
os destinos.
Sei da vida das almas e
aprofundo
O mistério dos seres
pequeninos.
Sei da ciência do Espaço, sei
o fundo
Da terra e os grandes mundos
submarinos,
Sei o Sol, sei o Som e o elo
profundo
Que há entre os passos humanos
e os divinos.
Sei de todas as cousas, a
teoria
Do universo e as longínquas
perspectivas
Que emergem da expressão das
cousas vivas.
Sei de tudo e – oh!
tristíssima ironia! –
Pelo caminho eterno por que
vou,
Eu, que sei tudo, só não sei
quem sou...
Esta carne em que existo há de
tornar-se um dia,
Em húmus germinal, em seiva
fecundante,
Decompondo-se em Pó, há de ser
a energia
De vidas que sobre ela hão de
viver adiante...
Será fonte, Princípio, a
tábida apatia
De um movimento novo,
intérmino e constante,
Sua ruína será a feraz
embriogenia
De outros tipos de Vida,
instante para instante.
Há de um horto florir por
sobre o seu passado:
Borboletas iriais e anêmonas
olentes,
Vidas da minha Morte, eu mesmo
transformado...
E, assim, irei buscando a
Perfeição perdida,
Vivendo na Emoção de seres
diferentes,
Que a Morte é a transição da
Vida para a Vida...
Nascemos um para o outro,
dessa argila
De que são feitas as criaturas
raras;
Tens legendas pagãs nas carnes
claras
E eu tenho a alma dos faunos
na pupila...
Às belezas heróicas te
comparas
E em mim a luz olímpica
cintila,
Gritam em nós todas as nobres
taras
Daquela Grécia esplêndida e
tranquila...
É tanta a glória que nos
encaminha
Em nosso amor de seleção,
profundo,
Que (ouço de longe o oráculo
de Elêusis),
Se um dia eu fosse teu e
fosses minha,
O nosso amor conceberia um
mundo,
E do teu ventre nasceriam
deuses...
– Era um dia um pastor
ingênuo...
– Sim, todos os pastores são
ingênuos...
– Que numa noite azul quis
contar as estrelas
– Quantas foram por fim as
estrelas contadas?
– Não! Ele compreendeu a
inocente loucura
Não continuou na conta...
Viu que em torno de cada
estrela contada
Surgiam mais de mil que nunca
tinha visto...
Foi quem primeiro soube neste
mundo
Que a conta das estrelas não
tem conta...
– Pois foi um dia um sábio
muito triste...
– Todos os sábios são muito tristes...
Quis contar as verdades do
Universo
Quantas são as verdades que
contou?
– Não! Ele compreendeu a
inocente loucura,
Foi quem primeiro soube neste
mundo
Que quem ver e contar as
verdades
Apenas faz buscar verdades –
não faz mais
Do que multiplicar as dúvidas
que tem.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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