9/16/2023

Seleção de Poemas (Poesia), de Raul de Leoni

 


SELEÇÃO DE POEMAS

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POEMAS DIVERSOS
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ODE A UM POETA MORTO

À memória de Olavo BiIac

 

Semeador de harmonia e de beleza

Que num glorioso túmulo repousas,

Tua alma foi um cântico diverso,

Cheio da eterna música das cousas:

Uma voz superior da Natureza

E uma ideia sonora do Universo!

 

Onde passaste, ao longo das estradas,

Linhas de imagens rútilas e vivas,

Em filigrana,

Foram tecendo, como o olhar das fadas,

Nas mais nobres e belas perspectivas,

O panorama dos ideais da Terra

E a ondulante paisagem da alma humana.

 

Toda a emoção, que anda nas cousas, fala,

Nos seus diversos tons e reflexos e cores,

Pela tua palavra irisada de opala,

Feita de radiações e finas tessituras:

Desde a vida sutil da borboleta

À alma leve das águas e das flores

À exaltação do Sol e ao sonho das criaturas:

Toda a sensualidade esparsa do Planeta.

 

Freme em tua arte o sangue de Dionisos,

Diluído nas virtudes apolíneas;

E do seu seio voluptuoso chovem

Alvas formas pagãs, ardentes frisos,

Baixos-relevos, camafeus, sanguíneas,

Numa palpitação de carne jovem.

 

Desfolhando um esplêndido destino,

A tua mão teve, por sentimento,

A sutileza platônica e a doçura

De um florentino do Renascimento,

Que, atormentado de ímpetos românticos,

Trabalhasse em esmalte do Piemonte,

Contendo no cinzel lascivo e fino

O sonho capitoso de Anacreonte

E o lirismo sensual do Cântico dos Cânticos.

 

Vieste de longe para longe. A tua

Alma encarnou-se em outras entidades,

Em outros povos, tempos e países,

E, deslumbrante, continua,

Plástica, móvel, irisada e nua,

A longa emigração pelas idades,

Deixando atrás de si seus frutos e raízes.

 

Foste o Homem de sempre, no prestígio

De poeta sensualista, atravessando as eras,

Por toda parte encontro o teu vestígio:

Um dia, na Índia védica, sonhando

No limiar das eternas primaveras,

– As mãos cheias de rosas e ametistas –

Fazes oblatas líricas e votos

Aos poderosos gênios avatares

E escreves os teus poemas animistas

Na folha dos nelumbos e dos lótus,

Na flor sonâmbula dos nenúfares...

E os teus versos, nos quais um grande sonho abranges,

Vão descendo a cantar na corrente do Ganges.

 

Depois, pastor na Argólida ou no Epiro,

Vivendo entre os rebanhos, em retiro,

Ao luar, sobre as montanhas, passo a passo

Vais contando as estrelas pelo espaço,

E a sonata sutil da tua avena

Tem o sabor do favo das abelhas

E a melodia simples e serena

Da alma dócil e errante das ovelhas.

 

Mais tarde, na Tessália, entre as selvas e os rios,

Companheiro dos sátiros vadios,

Modulas o teu canto surpreendente,

E vais buscar o som das tuas rimas

No intermezzo das fontes, ao nascente,

Na canção das águas frescas,

Na orquestração nostálgica dos ventos,

No tropel dos centauros truculentos,

Nas gargalhadas faunescas,

Na púrpura radiante das vindimas.

 

Mal doura o sol a folha das videiras

E ouves o ruído das primeiras frautas,

Sais a espreitar, horas e horas,

Sobre a areia de prata das ribeiras,

As oréades trêfegas e incautas,

De braços entrelaçados,

Urdindo a teia de ouro das auroras,

Na fantasmagoria dos bailados.

 

Reapareces, depois de vidas tantas,

Com o mesmo coração sonoro e imenso,

Dentro das cortes bíblicas e cantas,

Na harpa esguia e ritual, entre espirais de incenso,

As vitórias dos reis e as searas benditas,

As lendas do Jordão e o olhar das moabitas.

 

Voltas ainda à Grécia, onde pertences

Ao povo e és o poeta da cidade.

Honras a velha raça dos rapsodos;

A tua voz tem a sublimidade

Do perfume dos parques atenienses;

E é uma expressão da pátria e o evangelho de todos.

Trazes mirtos e pâmpanos na fronte;

Entoas hinos a Febus

E bailas, com Anacreonte,

No arabesco da ronda dos éfebos.

 

Depois, em Mitilene, és o único homem

Nessa ilha extravagante das mulheres.

Lá os epitalâmios que proferes,

Entre ruídos de crótalos e taças,

Sobem no ar e se consomem;

Despertam nossos desejos,

E consegues possuir para os teus beijos

A própria Safo numa noite – e passas.

 

Vais a Roma, no vértice do Império,

Onde a predileção do César te conforta.

Dão-te em Tíbure estâncias e domínios;

Vais a Capri na corte de Tibério;

Instalas teu palácio no Aventino;

Tens eunucos etíopes à porta

E liteiras de estofo damasquino.

És a alma delirante dos triclínios;

Exortas os circenses sobre vícios;

Cantas no banho azul das cortesãs cesáreas;

És íntimo nos tálamos patrícios,

Onde os teus versos sacros e profanos

São guardados nas urnas legendárias

Em custosos papiros africanos.

 

Mais tarde, já na idade alexandrina,

De novo, a terra helênica conquistas,

E, poeta irônico e brando,

No tom fresco e loução dos idilistas,

Passas cantando

As canções que Teócrito te ensina.

 

Revejo-te, depois, indiferentemente,

Em Córdoba, em Bagdá, quase em segredo,

No teu destino ideal de citaredo:

Cantor do califado, entre os tesouros

Do Islamismo e os mistérios do Oriente.

Dormes no harém real e vais às guerras.

Continuando de seres, entre os mouros,

O mesmo de outro tempo em outras terras.

 

Na Germânia feudal encontras nas distâncias,

Um bando de harmonias que comunguem

Com o teu coração de poeta heleno.

Murmura-te no ouvido, em ressonâncias,

A legenda pagã dos “Niebelungen”.

És todo o amor das castelãs do Reno

E a tua voz de “minnesinger” se ergue

Ora veemente e funda, ora em trêmulos suaves:

Com “Tannhäuser” visita “Venusberg”

E canta nos castelos dos margraves.

 

Mais adiante,

Renasces na Florença azul da “Senhoria”.

Florença eleva na canção dos sinos

A sua alma de Vênus e Maria.

É um sonho de amor nos Apeninos.

A cidade das flores e dos poetas,

Das paixões elegantes e discretas,

Das fontes, dos jardins e das duquesas,

Das obras-primas e das sutilezas.

É todo um povo amável que se anima

E que a amar e a sorrir, da alvorada ao sol posto,

Faz da Vida uma obra-prima

De sensibilidade e de bom gosto...

 

Há guirlandas votivas,

De acantos e de louros pelas ruas!

O Grande Pã voltou! As formas vivas

Da Grécia, emergem, fúlgidas e nuas!

Nas casas senhoriais e nas vilas burguesas,

Toda a gente, animada de surpresas,

Aprende o homérico idioma,

Entretém-se de Erasmo e de Bocácio.

De humanistas e letrados,

E dos últimos mármores achados

Sob a poeira católica de Roma.

 

Nos belvederes do Arno andam as grandes damas:

Smeralda, Lucrezia, Simonetta,

Entre rosas, sorrisos e epigramas...

Botticelli olha o céu azul violeta;

Lê-se Platão nos templos: e eu te vejo,

Sereno e lindo,

Diante do “Ponte-Vecchio”, num cortejo,

Dizendo aos príncipes sonetos de ouro

E Lourenço de Médicis te ouvindo!

 

Compões ainda com teu gênio afoito,

Na forma antiga que se cristaliza,

Certos versos do século dezoito,

Quando Watteau pintava, em plena primavera,

O “Embarque” para Citera

E Rousseau escrevia a Nova Heloísa.

 

Poeta cosmopolita, alma moderna,

Com Leconte e Banville, em Paris de setenta,

Buscas nas viagens teus motivos de arte,

Fazes o inverno em Nice e o verão em Lucerna

E a tua sombra cíclica se ostenta

Nos salões de Matilde Bonaparte.

 

***

 

Na amplitude geral do teu abraço:

– Fora do Tempo e do Espaço,

Na Humanidade e no Mundo –

Vejo-te sempre presente

Onde há um homem que sente

Que a vida é um sentimento esplêndido e profundo!

As almas como a tua a quem n’as fite

Transmitem a emoção da vida soberana.

 

Seja onde for se pode compreendê-las,

Porque, sem fim, sem pátria e sem limite,

Têm no conceito eterno da alma humana

A universalidade das estrelas.

Se a Humanidade fosse feita delas,

Na dúvida em que não cabe

E em que se estreita,

Talvez não fosse mais feliz, quem sabe?

– Mas seria mais bela e mais perfeita...

 

Dignificaste a Espécie, na nobreza

Das grandes sensações de Harmonia e Beleza;

Disseste a Glória de viver, e, agora,

O teu eco a cantar pelos tempos em fora,

Dirá aos homens que o melhor destino,

Que o sentido da Vida e o seu arcano,

É a imensa aspiração de ser divino,

No supremo prazer de ser humano!

 

 

 

PÓRTICO

 

Alma de origem ática, pagã,

Nascida sob aquele firmamento

Que azulou as divinas epopeias,

Sou irmão de Epicuro e de Renan,

Tenho o prazer sutil do pensamento

E a serena elegância das ideias...

 

Há no meu ser crepúsculos e auroras,

Todas as seleções do gênio ariano,

E a minha sombra amável e macia

Passa na fuga universal das horas,

Colhendo as flores do destino humano

Nos jardins atenienses da Ironia...

 

Meu pensamento livre, que se achega

De ideologias claras e espontâneas,

É uma suavíssima cidade grega,

Cuja memória

É uma visão esplêndida na história

Das civilizações mediterrâneas.

 

Cidade da Ironia e da Beleza,

Fica na dobra azul de um golfo pensativo,

Entre cintas de praias cristalinas,

Rasgando iluminuras de colinas,

Com a graça ornamental de um cromo vivo:

Banham-na antigas águas delirantes,

Azuis, caleidoscópicas, amenas,

Onde se espelha, em refrações distantes,

O vulto panorâmico de Atenas...

 

Entre os deuses e Sócrates assoma

E envolve na amplitude do seu gênio

Toda a grandeza grega a que remonto;

Da Hélade dos heróis ao fim de Roma,

Das cidades ilustres do Tirreno

Ao mistério das ilhas do Helesponto...

 

Cidade de virtudes indulgentes,

Filha da Natureza e da Razão,

– Já eivada da luxúria oriental, –

Ela sorri ao Bem, não crê no Mal,

Confia na verdade da Ilusão

E vive na volúpia e na sabedoria,

Brincando com as ideias e com as formas...

 

No passado pensara muito e, até,

Tentara penetrar o mundo das essências,

Sofrera muito nessa luta inútil,

Mas, por fim, foi perdendo a íntima fé

No pensamento, e agora pensa ainda,

Numa serenidade indiferente,

Mas se conforta muito mais, talvez,

Na alegria das belas aparências,

Que na contemplação das ideias eternas.

 

Cidade amável em que a vida passa,

Desmanchando um colar de reticências:

Tem a alma irônica das decadências

E as cristalizações de um fim de raça...

 

Conserva na memória dos sentidos

A expressão das origens seculares,

E entre os seus habitantes há milhares

Descendentes dos deuses esquecidos;

Que os demais todos têm, inda bem vivo,

Na nobre geometria do seu crânio

O mais puro perfil dólico-louro...

 

Os deuses da cidade já morreram...

Mas, amando-os ainda, alegremente,

Ela os tem no desejo e na lembrança;

E foi a ela (é grande o seu destino!)

Que Julião, o Apóstata, expirando,

Mandou a sua última esperança.

Pela boca de Amniano Marcelino...

 

Cidade de harmonias deliciosas

Em que, sorrindo à ronda dos destinos,

Os homens são humanos e divinos

E as mulheres são frescas como as rosas...

 

Jardins de perspectivas encantadas

– Hermas de faunos nas encruzilhadas –

Abrem ao ouro do sol leques de esguias

Alamedas: efebos, poetas, sábios

Cruzam-nas, dialogando, suavemente,

Sobre a mais meiga das filosofias,

Fímbrias de taças lésbias entre os lábios

E emoções dionisíacas nos olhos...

 

Como são luminosos seus jardins

De alegres coloridos musicais!

No florido beiral dos tanques, debruados

De rosas e aloés e anêmonas e mirtos,

Bebem pombas branquíssimas e castas,

E finamente límpidas e trêmulas

Irisadas, joviais e transparentes,

As águas aromáticas, sorrindo,

Tombam da boca austera dos tritões,

Garganteando furtivos ritornelos...

 

Dentro a moldura em fogo das auroras,

Pelas praias de opala e de ouro, antigas,

Na maciez das areias, em coréias,

Bailam rondas sadias e sonoras

De adolescentes e de raparigas,

Copiando o friso das Panatenéias...

 

Na orla do mar, seguindo a curva ondeante

Do velho cais esguio e deslumbrante,

Quando o horizonte e o céu, em lusco-fusco

Somem na porcelana dos ocasos,

Silhuetas fugitivas

De lindas cortesãs de Agrigento e de Chipre,

Como a sonhar, olham, perdidamente,

A volta das trirremes e das naves,

Que lhes trazem o espírito do Oriente,

Em pedrarias, lendas e perfumes...

 

Então, ondulam no ar diáfano e fluente

Suavidades idílicas, acordes

De avenas, cornamusas e ocarinas

Que vêm de longe, da alma branca dos pastores,

Trazidas pelos ventos transmontanos

E espiritualizadas em surdinas...

 

Terra que ouviu Platão antigamente...

Seu povo espiritual, lírico e generoso,

Que sorri para o mundo e para os seus segredos,

Não ouve mais o oráculo de Elêusis,

Mas ama ainda, quase ingenuamente,

A saudade gloriosa dos seus deuses,

Nas canções ancestrais dos citaredos

E nos epitalâmios do nascente...

 

Seus filhos amam todas as ideias,

Na obra dos sábios e nas epopeias;

Nas formas límpidas e nas obscuras,

Procurando nas cousas entendê-las

– Fugas de sentimento e sutileza –

E as entendem na própria natureza,

Ouvindo Homero no rumor das ondas,

Lendo Platão no brilho das estrelas...

 

Seus poetas, homens fortes e serenos,

Fazem uma arte régia, aguda e fina

Com a doçura dos últimos helenos

Estilizada em ênfase latina...

 

E os velhos da cidade, suaves poentes

De radiantes retores e sofistas,

Passam, olhando as cousas e as criaturas,

Com piedosos sorrisos indulgentes,

Em que longas renúncias otimistas

Se vão abrindo, entre ironias puras,

Sobre todos os sonhos do Universo...

 

Revendo-se num século submerso,

Meu pensamento, sempre muito humano,

É uma cidade grega decadente,

Do tempo de Luciano,

Que, gloriosa e serena,

Sorrindo da palavra nazarena,

Foi desaparecendo lentamente,

No mais suave crepúsculo das cousas...

 

 

FLORENÇA

 

Manhã de outono...

Través a gaze fluida da neblina,

Teu panorama, trêmulo, hesitante,

Se vai furtivamente desenhando,

Na alva doçura de uma renda fina...

 

Do florido balcão de San Miniato,

Como num cosmorama imaginário,

Vejo aos poucos despir-se o teu cenário,

Dentro de um sereníssimo aparato...

Em tons de madrepérola cambiante,

Ao reflexo de um íris fugidio,

Sob o ar transparente e o céu macio,

Abre-se em luz a concha colorida

Do vale do Arno...

 

Longe onde a névoa azul se dilui sobre as linhas

Amáveis das colinas,

Em caprichosas curvas serpentinas

De oliveiras em flor, de olmeiros e de vinhas,

De pinheiros reais e amendoeiras tranquilas,

Fiésole, bucólica e galante

Mostra, numa expressão fresca de tintas,

O esmalte senhorial das suas vilas

E o cromo pastoril das suas quintas,

Dentro dos bosques do Decameron...

 

Surgem zimbórios em mosaico, perfis duros

De arrogantes palácios gibelinos,

Silhuetas de basílicas votivas,

Torres mortas e suaves perspectivas

E o coleio longínquo dos teus muros,

Recortando a moldura azul dos Apeninos...

 

Teus sinos cantam num prelúdio lento

A elegia das horas imortais;

É a canção do teu próprio sentimento

Na voz sonâmbula das catedrais...

 

E é, então, que transponho as tuas portas

E ouvindo as tuas ruínas pensativas

Sinto-me em corpo e espírito em Florença:

A mais humana das cidades vivas,

A mais divina das cidades mortas!...

 

Florença, ó meu retiro espiritual!

Suave vinheta do meu pensamento!

Sempre te amei com o mesmo afeto humano

Dês que tu eras a comuna guelfa

Idealista, rebelde e sanguinária,

Até o dia

Em que tua alma, flor litúrgica e sombria

Do espírito cristão,

Fugindo do “Jardim das Escrituras”,

Foi, para ver a luz de outras alturas,

Sentar-se no “Banquete de Platão”!

 

Nobre e amável Florença!

Doce filha de Cristo e de Epicuro!

Flor de Volúpia e de Sabedoria!

Na tua alma de Vênus e Maria

Há uma estranha harmonia ambígua, indescritível:

A castidade melancólica dos lírios

E a graça afrodisíaca das rosas;

A mansuetude ingênua de Fra Angélico!

E a alegria picante de Bocácio!

Amo-te assim, indefinida e vária!

Casta e viciosa – gótica e pagã,

Harmoniosa entre a Acrópole e o Calvário.

 

Ó Pátria sereníssima

Das formas puras, das ideias claras;

Das igrejas, das fontes, dos jardins;

Dos mosaicos, das rendas, dos brocados;

Dos coloristas límpidos e meigos;

Das almas furta-cor e da graça perversa;

Da discreta estesia dos requintes;

Dos vícios raros, das perversões elegantes;

Dos venenos sutis e dos punhais lascivos;

Deliciosa no crime e na virtude,

Onde a existência foi uma bela atitude

De sensibilidade e de bom gosto

E passou pela História, assim, na ronda viva

Meditativa e brilhante

De uma “Fête Galante”!...

 

***

 

Trago-te a minha gratidão latina

Porque foi no teu seio que se fez

Toda a ressurreição da Vida luminosa:

Ó Florença! Florença!

A mais humana das cidades vivas!

A mais divina das cidades mortas!...

 

 

MAQUIAVÉLICO

 

Há horas em que minha alma sente e pensa,

Num tempo nobre que não mais se avista,

Encarnada num príncipe humanista,

Sob o Lírio Vermelho de Florença.

 

Vejo-a, então, nessa histórica presença,

Harmoniosa e sutil, sensual e egoísta,

Filha do idealismo epicurista,

Formada na moral da Renascença.

 

Sinto-a, assim, flor amável do Helenismo,

Virtuose – restaurando os velhos mapas

Do gênio antigo, entre exegeta e artista.

 

E ao mesmo tempo, por diletantismo,

Intrigando a política dos papas,

Com a perfídia elegante de um sofista...

 

 

NOTURNO

 

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,

Sob a lenda encantada do luar...

 

Os pinheiros pensavam cousas longas,

Nas alturas dormentes e desertas...

O aroma nupcial dos jasmins delirantes,

Diluindo um cheiro acre de resinas,

Espiritualizava e adormecia

O ar meigo e silencioso...

A ronda dos espíritos noturnos,

Em medrosos rumores,

Gemia entre os ciprestes e os loureiros...

Na penumbra dos bosques, o luar

Entreabria clareiras encantadas,

Prateando o verde-malva das latadas

E as doces perspectivas do pomar...

 

As nascentes sonhavam, em surdina,

Numa tonalidade cristalina,

Monótonos murmurinhos,

Gorgolejos de águas frescas...

 

Sobre a areia de prata dos caminhos,

A sombra espiritual dos eucaliptos,

Bulindo ao sopro tímido da aragem,

Projetava ao luar desenhos indecisos

Ágeis bailados leves de arabescos,

Farândolas de sombras fugitivas...

 

E das perdidas curvas das estradas,

De paragens distantes

Como fantasmas de serenatas,

Ressonâncias sonâmbulas traziam

A longa, a pungentíssima saudade

De cavatinas e mandolinatas...

 

Lembro-me bem, quando em quando,

Entre as sebes escondidas,

Um insidioso grilo impertinente,

Roendo um som estridente,

Arranhava o silêncio...

 

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,

Sob a lenda encantada do luar...

Eu era bem criança e, já possuindo

A sensibilidade evocadora

De um poeta de símbolos profundos,

Solitário e comovido,

No minarete do solar paterno,

Com os pequeninos olhos deslumbrados,

Passei a noite inteira, o olhar perdido,

No azul sonoro, o azul profundo, o azul eterno

Dos eternos espaços constelados...

 

Era a primeira vez que eu contemplava o mundo,

Que eu via face a face o mistério profundo

Da fantasmagoria universal

No prodígio da noite silenciosa.

 

Era a primeira vez...

E foi aí, talvez,

Que começou a história atormentada

Da minha alma, curiosa dos abismos,

Inquieta da existência e doente do Além...

Filha da maldição do Arcanjo rebelado...

 

Sim, que foi nessa noite, não me engano,

– Noite que nunca mais esquecerei –

Que – a alma ainda em crisálida, – velando

No minarete do solar paterno,

Diante da noite azul – eu senti e pensei

O meu primeiro sofrimento humano

E o meu primeiro pensamento eterno...

 

Como fora do Tempo e além do Espaço,

Ser sem princípio, espírito sem fim,

Sofria toda a humanidade em mim,

Nessa contemplação imponderável!

 

Já nem ouvia o trêmulo compasso

Das horas que fugiam pela noite,

Que os olhos soltos pela imensidade,

Numa melancolia deslumbrada,

Imaginando cousas nunca ditas,

Todo eu me eterizava e me perdia

Na ideia das esferas infinitas,

Na lenda universal das distâncias eternas...

 

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,

Sob a lenda encantada do luar...

 

Foi nessa noite antiga

Que se desencantou para a vertigem

A suave virgindade do meu ser!

 

Já a lua transmontava as cordilheiras...

Cães ladravam ao longe, em sobressalto;

No pátio das mansões, na granja das herdades,

O cântico dos galos estalava,

Desoladoramente pelos ares,

Acordando as distâncias esquecidas...

 

E, então, num silencioso desencanto,

Eu fui adormecendo lentamente,

Enquanto

Pela fria fluidez azul do espaço eterno

Em reticências trêmulas, sorria

A ironia longínqua das estrelas...

 

 

HISTÓRIA DE UMA ALMA


I

ADOLESCÊNCIA

 

Eu era uma alma fácil e macia,

Claro e sereno espelho matinal

Que a paisagem das cousas refletia,

Com a lucidez cantante do cristal.

 

Tendo os instintos por filosofia,

Era um ser mansamente natural,

Em cuja meiga ingenuidade havia

Uma alegre intuição universal.

 

Entretinham-me as ricas tessituras

Das lendas de ouro, cheias de horizontes

E de imaginações maravilhosas.

 

E eu passava entre as cousas e as criaturas,

Simples como a água lírica das fontes

E puro como o espírito das rosas...

 

 

II

MEFISTO

 

Espírito flexível e elegante,

Ágil, lascivo, plástico, difuso,

Entre as cousas humanas me conduzo

Como um destro ginasta diletante.

 

Comigo mesmo, cínico e confuso,

Minha vida é um sofisma espiralante;

Teço lógicas trêfegas e abuso

Do equilíbrio da Dúvida flutuante.

 

Bailarino dos círculos viciosos,

Faço jogos sutis de ideias no ar

Entre saltos brilhantes e mortais,

 

Com a mesma petulância singular

Dos grandes acrobatas audaciosos

E dos malabaristas de punhais...

 

III

CONFUSÃO

 

Alma estranha esta que abrigo,

Esta que o Acaso me deu,

Tem tantas almas consigo,

Que eu nem sei bem quem sou eu.

 

Jamais na Vida consigo

Ter de mim o que é só meu;

Para supremo castigo,

Eu sou meu próprio Proteu.

 

De instante a instante, a me olhar,

Sinto, num pesar profundo,

A alma a mudar... a mudar...

 

Parece que estão, assim,

Todas as almas do Mundo,

Lutando dentro de mim...

 

IV

SERENIDADE

 

Feriram-te, alma simples e iludida.

Sobre os teus lábios dóceis a desgraça

Aos poucos esvaziou a sua taça

E sofreste sem trégua e sem guarida.

 

Entretanto, à surpresa de quem passa,

Ainda e sempre, conservas para a Vida,

A flor de um idealismo, a ingênua graça

De uma grande inocência distraída.

 

A concha azul envolta na cilada

Das algas más, ferida entre os rochedos,

Rolou nas convulsões do mar profundo;

 

Mas inda assim, poluída e atormentada,

Ocultando puríssimos segredos,

Guarda o sonho das pérolas no fundo.

 


FELICIDADE


I

Sombra do nosso Sonho ousado e vão!

De infinitas imagens irradias

E, na dança da tua projeção,

Quanto mais cresces, mais te distancias...

 

A alma te vê à luz da posição

Em que fica entre as cousas e entre os dias:

És sombra e, refletindo-te, varias,

Como todas as sombras, pelo chão...

 

O Homem não te atingiu na vida instável

Porque te embaraçou na filigrana

De um ideal metafísico e divino;

 

E te busca na selva impraticável,

Ó Bela Adormecida da alma humana!

Trevo de quatro folhas do Destino!...


II

Basta saberes que és feliz, e então

Já o serás na verdade muito menos:

Na árvore amarga da meditação,

A sombra é triste e os frutos têm venenos.

 

Se és feliz e o não sabes, tens na mão

O maior bem entre os mais bens terrenos

E chegaste à suprema aspiração,

Que deslumbra os filósofos serenos.

 

Felicidade... Sombra que só vejo,

Longe do Pensamento e do Desejo,

Surdinando harmonias e sorrindo,

 

Nessa tranquilidade distraída,

Que as almas simples sentem pela Vida,

Sem mesmo perceber que estão sentindo...

 

 

 

CREPUSCULAR

 

Poente no meu jardim... O olhar profundo

Alongo sobre as árvores vazias,

Essas em cujo espírito infecundo

Soluçam silenciosas agonias.

 

Assim estéreis, mansas e sombrias,

Sugerem à emoção com que as circundo

Todas as dolorosas utopias

De todos os filósofos do mundo.

 

Sugerem... Seus destinos são vizinhos:

Ambas, não dando frutos, abrem ninhos

Ao viandante exânime que as olhe.

 

Ninhos, onde vencidas de fadiga,

A alma ingênua dos pássaros se abriga

E a tristeza dos homens se recolhe...

 

 

HISTÓRIA ANTIGA

 

No meu grande otimismo de inocente,

Eu nunca soube por que foi... um dia,

Ela me olhou indiferentemente,

Perguntei-lhe por que era... Não sabia...

 

Desde então, transformou-se, de repente,

A nossa intimidade correntia

Em saudações de simples cortesia

E a vida foi andando para a frente...

 

Nunca mais nos falamos... vai distante...

Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante

Em que seu mudo olhar no meu repousa,

 

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,

Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,

Mas que é tarde demais para dizê-la... 

 

 

ARTISTA

 

Por um destino acima do teu Ser,

Tens que buscar nas cousas inconscientes

Um sentido harmonioso, o alto prazer

Que se esconde entre as formas aparentes.

 

Sempre o achas, mas ao tê-lo em teu poder

Nem n’o pões na tua alma, nem n’o sentes,

Ao sonho de outras almas diferentes...

 

Vives humilde e inda ao morrer ignoras

O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!)

Mas não faz mal, meu bômbix inocente:

 

Fia na primavera, entre as amoras,

A tua seda de ouro, que nem usas

Mas que faz tanto bem a tanta gente...

 

 

INGRATIDÃO

 

Nunca mais me esqueci!... Eu era criança

E em meu velho quintal, ao sol-nascente,

Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,

Uma linda amendoeira adolescente.

 

Era a mais rútila e íntima esperança...

Cresceu... cresceu... e, aos poucos, suavemente,

Pendeu os ramos sobre um muro em frente

E foi frutificar na vizinhança...

 

Daí por diante, pela vida inteira,

Todas as grandes árvores que em minhas

Terras, num sonho esplêndido semeio,

 

Como aquela magnífica amendoeira,

Eflorescem nas chácaras vizinhas

E vão dar frutos no pomar alheio...

 

 

 

 

 

TORRE MORTA DO OCASO

 

Esguia torre ascética, esquecida

Na bruma de um crepúsculo profundo!

És, no mais triste símbolo do mundo,

A renúncia tristíssima da Vida!

 

Tua existência é um pensamento fundo

Levantado na pedra adormecida:

Bem sentes quanto é inútil e infecundo

O esforço na vertigem da subida!...

 

Como és profética de longe... quando

Na moldura do poente de ouro e rosa,

Interpretando todos os destinos,

 

Vais por todos os ventos espalhando

Tua filosofia dolorosa,

Na balada sonâmbula dos sinos!...

 

 

MELANCOLIA

 

Poente!

Estas horas que estão passando, surdamente,

Nunca mais voltarão no tempo imaginário:

No jardim solitário,

Estão-se desfolhando, ingloriamente,

Tantas rosas divinas, a sonhar;

Rosas que poderiam debruar

Leitos de fadas, em guirlandas luminosas,

Emoldurar cabeças de poetas

E que jamais florescerão ante os meus olhos...

Por que, então,

Deixá-las, numa morte inútil e secreta

Esfolharem-se, assim anônimas e virgens,

Na sombra do jardim

Sobre a tarde serena?!...

Ah! se eu fosse colhê-las para mim!...

 

Não vale a pena!

 

***

 

Poente!

Estas horas que estão passando surdamente

Nunca mais voltarão no tempo imaginário!

Na sombra do meu ser profundo e solitário

Tantas ideias límpidas, bailando,

Estão dizendo cousas infinitas...

Ideias que seriam minha história,

Minha imortalidade, minha glória,

E que por certo eu nunca mais encontrarei...

Por que, então,

Vê-las morrer, assim, sem voz, sem serem ditas?!...

Ah! se eu as animasse em palavras eternas,

De uma vida magnífica e serena!...

 

Não vale a pena!

 

 

E O POETA FALOU...

 

Afinal, tudo que há de mais nobre e mais puro

Neste mundo de sombras e aparências

Fui eu quem revelou ou concebeu...

 

Fui a primeira luz neste planeta obscuro!

Fui a suprema voz de todas as consciências!

Fui o mais alto intérprete de Deus!

 

Dei alma à Natureza indiferente,

Inteligência às cousas, sentimentos

Às forças cegas e automáticas do Cosmos!...

 

Acompanhei e dirigi os povos

Na sua eterna migração para o Poente;

Levantei os primeiros monumentos

E os primeiros impérios milenários:

Teci as grandes lendas tutelares,

Despertei na memória das criaturas

A sua antiga tradição divina,

Criando as religiões, as fábulas, os mitos

Para iludir a dor universal;

Abri os horizontes infinitos;

Bebi o néctar das primeiras taças;

Plasmei os altos símbolos humanos;

Sutilizei o instinto e imaginei o amor;

Fui a força ideal das civilizações!

O gênio transfigurador da História!

O espírito anônimo dos séculos!

E, harmonioso, profético, profundo,

Passei humanizando as cousas pelo mundo,

Para divinizar os homens sobre a Terra!

 

 

SÁTIRA

 

Também nós, seres raros, de divinas

Intenções e humaníssimas virtudes,

Levando os nossos sonhos para a frente,

– Com a nossa íntima luz desconhecida –

Vamos fazendo cotidianamente,

Pelo mundo das almas pequeninas,

Nossas “Viagens de Gulliver” na Vida.

 

Lilliput... em farândolas grotescas

Os anõezinhos trêfegos, daninhos,

Diabólicos fantoches hilariantes,

Formigando nas estradas,

Bailando pelos caminhos,

Imaginam ridículas ciladas,

Insidiosas e inúteis emboscadas,

Ao passo distraído e imenso dos gigantes...

 

Eles passam... seu vulto enche os espaços,

E toda Lilliput alvoroçada,

– Simples despeitos de anão –

Erguendo em gestos maus todos os braços,

Deita impropérios, maldições, ameaças,

Mas eles vão e vêm e vêm e vão,

Num desprezo triunfal,

Com essa tolerância azul das grandes raças,

Tão ironicamente e mansamente,

Que os coitados pigmeus, não lhes tocando

Sequer o calcanhar, contentam-se, afinal,

Com pisar-lhes a sombra indiferente...

 

A calúnia do anão, pisar as sombras!...

 

“Por que será, então, que tudo é tão pequeno

Nessa cidadezinha universal?!

As paisagens, as almas, o ideal,

As figuras, a vida, os sentimentos?!”

 

E, assim pensando, com piedade e com doçura,

Os gigantes, de espírito sereno,

Vão passando, sorrindo, e repassando

Por essa humanidade em miniatura...

 

Sim, porque é mesmo assim e sempre foi assim:

Quem vai pelo mistério das estradas,

Rumo ao país dos deuses e das fadas,

Por mais que evite ou que lute,

Tem de sempre passar por Lilliput,

Nessas “Viagens de Gulliver” da Vida...

 

 

A HORA CINZENTA

 

Desce um longo poente de elegia

Sobre as mansas paisagens resignadas;

Uma humaníssima melancolia

Embalsama as distâncias desoladas...

 

Longe, num sino antigo, a Ave-Maria

Abençoa a alma ingênua das estradas;

Andam surdinas de anjos e de fadas,

Na penumbra nostálgica, macia...

 

Espiritualidades comoventes

Sobem da terra triste, em reticência,

Pela tarde sonâmbula, imprecisa...

 

Os sentidos se esfumam, a alma é essência

E entre fugas de sombras transcendentes,

O Pensamento se volatiliza...

 

 

PRUDÊNCIA

 

Não aprofundes nunca, nem pesquises

O segredo das almas que procuras:

Elas guardam surpresas infelizes

A quem lhes desce às convulsões obscuras.

 

Contenta-te com amá-las, se as bendizes,

Se te parecem límpidas e puras,

Pois se, às vezes, nos frutos há doçuras,

Há sempre um gosto amargo nas raízes...

 

Trata-as assim, como se fossem rosas,

Mas não despertes o sabor selvagem

Que lhes dorme nas pétalas tranquilas,

 

Lembra-te dessas flores venenosas!

As abelhas cortejam de passagem,

Mas não ousam prová-las nem feri-las...

 

 

AOS QUE SONHAM

 

Não se pode sonhar impunemente

Um grande sonho pelo mundo afora,

Porque o veneno humano não demora

Em corrompê-lo na íntima semente...

 

Olhando no alto a árvore excelente,

Que os frutos de ouro esplêndidos enflora,

O Sonhador não vê, e até ignora

A cilada rasteira da Serpente.

 

Queres sonhar? Defende-te em segredo,

E lembra, a cada instante e a cada dia,

O que sempre acontece e aconteceu:

Prometeu e o abutre no rochedo,

O Calvário do Filho de Maria

E a cicuta que Sócrates bebeu!

 

 

PUDOR

 

Quando fores sentindo que o fulgor

Do teu Ser se corrompe e a adolescência

Do teu gênio desmaia e perde a cor,

Entre penumbras em deliquescência,

 

Faze a tua sagrada penitência,

Fecha-te num silêncio superior,

Mas não mostres a tua decadência

Ao mundo que assistiu teu esplendor!

 

Foge de tudo para o teu nadir!

Poupa ao prazer dos homens o teu drama!

Que é mesmo triste para os olhos ver

 

E assistir, sobre o mesmo panorama,

A alegoria matinal subir

E a ronda dos crepúsculos descer...

 

 

UNIDADE

 

Deitando os olhos sobre a perspectiva

Das cousas, surpreendo em cada qual

Uma simples imagem fugitiva

Da infinita harmonia universal,

 

Uma revelação vaga e parcial

De tudo existe em cada cousa viva:

Na corrente do Bem ou na do Mal

Tudo tem uma vida evocativa.

 

Nada é inútil; dos homens aos insetos

Vão-se estendendo todos os aspectos

Que a ideia da existência pode ter;

 

E o que deslumbra o olhar é perceber

Em todos esses seres incompletos,

A completa noção de um mesmo ser...

 

 

LEGENDA DOS DIAS

 

O Homem desperta e sai cada alvorada

Para o acaso das cousas... e, à saída,

Leva uma crença vaga, indefinida,

De achar o Ideal n’alguma encruzilhada...

 

As horas morrem sobre as horas... Nada!

E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida

Volta, pensando: “Se o Ideal da Vida

Não veio hoje, virá na outra jornada...”

 

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,

Mais ele avança, mais distante é o fim,

Mais se afasta o horizonte pela esfera;

 

E a Vida passa... efêmera e vazia:

Um adiamento eterno que se espera,

Numa eterna esperança que se adia...

 

 

INSTINTO

 

Glória ao Instinto, a lógica fatal

Das cousas, lei eterna da criação,

Mais sábia que o ascetismo de Pascal,

Mais bela do que o sonho de Platão!

 

Pura sabedoria natural

Que move os seres pelo coração,

Dentro da formidável ilusão,

Da fantasmagoria universal!

 

És a minha verdade, e a ti entrego,

Ao teu sereno fatalismo cego

A minha linda e trágica inocência!

 

Ó soberano intérprete de tudo,

Invencível Édipo, eterno e mudo

De todas as esfinges da Existência!...

 

 

PLATÔNICO...

 

As ideias são seres superiores,

– Almas recônditas de sensitivas –

Cheias de intimidades fugitivas,

De escrúpulos, melindres e pudores.

 

Por onde andares e por onde fores,

Cuidado com essas flores pensativas,

Que têm pólen, perfume, órgãos e cores

E sofrem mais que as outras cousas vivas.

 

Colhe-as na solidão... são obras-primas,

Que vieram de outros tempos e outros climas

Para os jardins de tua alma que transponho,

 

Para com elas teceres, na subida,

A coroa votiva do teu Sonho

E a legenda imperial da tua Vida.

 

 

IMAGINAÇÃO

 

Scherazada do espírito, que rendas

Num fio ideal de verossimilhança

O Símbolo e a Ilusão, únicas prendas

Que nos vieram dos deuses como herança!

 

Transformando em alambras nossas tendas,

Na tua voz o nosso olhar alcança

As Mil e uma Noites da Esperança

E a esfera azul dos sonhos e das lendas!

 

Quando o despeito da Realidade

Nos fere, és quem de novo nos persuade,

Com teu consolo que nem sempre engana.

 

Porque, na tua esplêndida eloquência,

És o sexto sentido da Existência

E a memória divina da alma humana!

 

 

SINCERIDADE

 

Homem que pensas e que dizes o que pensas!

Se queres que entre os homens e entre as cousas

Tuas ideias vivam pelo mundo

Crê bem nelas primeiro, sofre-as bem,

Faze com que elas vivam na tua alma,

Na mais sincera intimidade do teu Ser!

 

Há ideias que na vida cultivamos,

Pela volúpia inútil de pensar,

Pela simples beleza, pela graça

Floral, pelo prazer que elas nos dão...

Por esse estado de ilusão chinesa

Em que nos adormecem a consciência:

Aquarelas efêmeras do espírito,

Paisagens meigas da imaginação,

Ideias lindas que não criam nada!

 

Elas passam, radiantes, coloridas,

Na flutuação superficial do Pensamento;

Sim, são plantas aquáticas, nelumbos

De ouro equatorial, ninféias encantadas

Pela prata dos luares sedativos,

Leves vegetações de tintas luminosas,

Sonhos das águas trêmulas que passam

– Raízes a boiar no espelho das correntes, –

Com músicas de cores pelas plumas,

Vaidades femininas pelas palmas,

Mas sem um grão de vida, sem um fruto,

Nessa esterilidade deslumbrante...

 

As ideias que criam, as ideias

Vivas que elevam religiões e impérios,

Gênios e heróis e mártires e santos;

As ideias orgânicas e eternas

Que dão nomes aos séculos, destinos

Às raças, glória aos homens, força à Vida,

Que nutrem almas e orientam povos,

Fecundam gerações e geram deuses

E que semeiam civilizações,

Essas terão que vir da nossa fonte humana,

Deitando profundíssimas raízes

No generoso espírito em que nasçam:

Terão que ser humanas, quer dizer,

Ser a nossa energia e a nossa fé,

Ser sementes recônditas, ser dores,

Sentimentos, paixões e quase instintos.

Ser vozes dos abismos transcendentes

Da consciência profunda... ser nós mesmos...

Porque as árvores mais fecundas são aquelas

Que mais fundas estão nas entranhas do solo

E mais fazem sofrer o coração da Terra...

 

 

ÁRVORE DE NATAL

 

Tarde! Estou muito triste, triste, assim

De uma tristeza imóvel e vazia...

E uma ronda de crianças esfuzia

Na aquarela chinesa do jardim...

 

Aos poucos a farândola leviana

Chega-se a mim, cerca-me ousadamente:

Inquietas larvazinhas de alma humana,

Misteriosos destinos em semente,

Vêm parar a meus pés depois – meigas violetas,

Sob a sombra de uma árvore doente.

 

Não tenho nada para dar-lhes, sou

Como um pinheiro contemplativo,

Cujos ramos dolentes não têm frutos

Que há muito um vento cruel os arrancou...

 

Mas elas pedem qualquer cousa e eu me comovo.

Eu tenho tanta pena das crianças!

Elas são todo o mundo a começar de novo

Para as mesmas incertas caminhadas,

Para o mistério das encruzilhadas;

São toda a Humanidade que renasce,

Ingênua, simples e maravilhada,

Como a primeira vez que apareceu.

 

E, então (isso é dos santos e dos sábios)

Penduro na tristeza dos meus lábios

Cousas alegres que não são minhas;

Fábulas mansas, contos de fadas,

Histórias de anjos e rainhas

E uma porção de cousas encantadas,

Que vou distribuindo pelo bando...

 

E à tarde que se vai lentamente apagando,

Na aquarela chinesa do jardim,

Semeando alegrias e esperanças –

Minha tristeza é assim uma piedosa e linda

Árvore de Natal entre as crianças...

 

 

FORÇA MALDITA

 

Eras fraco e feliz, sem meditar,

E na tua consciência vaga e obscura,

A vida, sob um luar de iluminura,

Era um conto de fadas para o olhar.

 

Um dia, um rude e pérfido avatar

Vestiu-te de uma força ingrata e impura

E sonhaste a ciclópica aventura

De o espírito das cousas penetrar.

 

Mas, ah! homem ingênuo, desde quando

Deste o primeiro passo da escalada,

Foste, como um tristíssimo Sansão,

 

Na fúria da tua obra desgraçada,

Estremecendo, aluindo, derrubando

As colunas do Templo da Ilusão!...

 

 

VIVENDO...

 

Nós, incautos e efêmeros passantes,

Vaidosas sombras desorientadas,

Sem mesmo olhar o rumo das passadas,

– Vamos andando para fins distantes...

 

Então, sutis, envolvem-nos ciladas

De pequenos acasos inconstantes,

Que vão desviando, a todos os instantes,

A linha leviana das estradas...

 

Um dia, todo o fim a que chegamos,

Vem de um nada fortuito, entretecido

Nas surpresas das horas em que vamos...

 

Para adiante! ó ingênuos peregrinos!

Foi sempre por um passo distraído

Que começaram todos os destinos...

 

 

CANÇÃO DE TODOS

 

Duas almas deves ter...

É um conselho dos mais sábios;

Uma, no fundo do Ser,

Outra, boiando nos lábios!

 

Uma, para os circunstantes,

Solta nas palavras nuas

Que inutilmente proferes,

Entre sorrisos e acenos:

A alma volúvel das ruas,

Que a gente mostra aos passantes,

Larga nas mãos das mulheres,

Agita nos torvelinhos,

Distribui pelos caminhos

E gasta, sem mais nem menos,

Nas estradas erradias,

Pelas horas, pelos dias...

 

Alma anônima e usual,

Longe do Bem e do Mal,

Que não é má nem é boa,

Mas, simplesmente, ilusória,

Ágil, sutil, diluída,

Moeda falsa da Vida,

Que vale só porque soa,

Que compra os homens e a glória

E a vaidade que reboa:

Alma que se enche e transborda,

Que não tem porquê nem quando,

Que não pensa e nem recorda,

Não ama, não crê, não sente,

Mas vai vivendo e passando

No turbilhão da torrente,

Través intricadas teias,

Sem prazeres e sem mágoas,

Fugitiva como as águas

Ingrata como as areias.

 

Alma que passa entre ápodos

Ou entre abraços, sorrindo;

Que vem e vai, vai e vem,

Que tu emprestas a todos,

Mas não pertence a ninguém.

 

Salamandra furta-cor,

Que muda ao menor rumor

Das folhas pelas devesas;

Alma que nunca se exprime,

Que é uma caixa de surpresas

Nas mãos dos homens prudentes;

Alma que é talvez um crime,

Mas que é uma grande defesa.

 

A outra alma, pérola rara,

Dentro da concha tranquila,

Profunda, eterna e tão cara

Que poucos podem possuí-la,

É alma que nas entranhas

Da tua Vida murmura

Quando paras e repousas.

A que assiste das Montanhas

As livres desenvolturas

Do panorama das cousas

Para melhor conhecê-las.

Essa que olha as criaturas,

Sem jamais comprometê-las,

Entre perdões e doçuras,

Num pudor silencioso,

Com o mesmo olhar generoso,

Com que contempla as estrelas

E assiste o sonho das flores...

 

Alma que é apenas tua,

Que não te trai nem te engana,

Que nunca se desvirtua,

Que é a voz do mundo em surdina,

Que é a semente divina

Da tua têmpera humana.

 

Alma que só se descobre

No mundo contemplativo,

Para uma lágrima nobre,

Para um heroísmo afetivo,

Nas íntimas confidências

De verdade e de beleza:

Milagre da natureza,

Transcorrendo em reticências

Num sonho límpido e honesto,

De idealidade suprema,

Ora, aflorando num gesto,

Ora, subindo num poema.

 

Fonte do Sonho, jazida

Que se esconde aos garimpeiros,

Guardando, em fundos esteiros,

O ouro da tua Vida.

 

Alma de santo e pastor,

De herói, de mártir e de homem;

A redenção interior

Das forças que te consomem,

A legenda e o pedestal

Da aspiração infinita

Que se aprofunda e se agita

No teu ser universal.

 

Alma profunda e sombria,

Que ao fechar-se cada dia,

Sob o silêncio fecundo

Das horas graves e calmas,

Te ensina a filosofia

Que descobriu pelo mundo,

Que aprendeu nas outras almas.

 

Duas almas tão diversas

Como o poente das auroras:

Uma, que passa nas horas;

Outra, que fica no tempo.

 

 

SUPERSTIÇÃO?

 

As almas, como as flores, no lugar

Em que viveram deixam, longamente,

Sua íntima essência errando no ar,

Numa vaga fluidez reminiscente...

 

Vede essas velhas casas que, a passar

Pelos olhos do tempo indiferente,

Foram o sereníssimo ambiente

De alguma longa história familiar!...

Há no seu gênio obscuro, misteriosas

Influências humanas, insensíveis

Contágios de alma que não percebemos,

Frias fatalidades traiçoeiras

Adormecidas no silêncio antigo...

 

Exalam do segredo das entranhas

Forças sutis e sugestões estranhas

Que nos descem ao fundo dos sentidos

E se vão infiltrando, lentamente,

Na alma dos visitantes distraídos...

Ao lhes transpormos as sombrias portas,

Nunca sabemos o que nos espera

Nesses tristes jardins de sombras mortas

– Fantasmas de uma antiga primavera...

 

Dentro tudo morreu... mas, presa a um fio

Intangível,

Uma vida fantástica, invisível,

Vive em essência no ar sonâmbulo e vazio...

 

As almas, como as flores, no lugar

Em que viveram deixam, longamente,

A sua exalação errando no ar,

Numa vaga fluidez reminiscente...

 

 

A ALMA DAS COUSAS SOMOS NÓS...

 

Dentro do eterno giro universal

Das cousas, tudo vai e volta à alma da gente,

Mas, se nesse vaivém tudo parece igual

Nada mais, na verdade,

Nunca mais se repete exatamente...

 

Sim, as cousas são sempre as mesmas na corrente

Que no-las leva e traz, num círculo fatal;

O que varia é o espírito que as sente

Que é imperceptivelmente desigual,

Que sempre as vive diferentemente,

E, assim, a vida é sempre inédita, afinal...

 

Estado de alma em fuga pelas horas,

Tons esquivos e trêmulos, nuanças

Suscetíveis, sutis, que fogem no Íris

Da sensibilidade furta-cor...

E a nossa alma é a expressão fugitiva das cousas

E a vida somos nós, que sempre somos outros!...

Homem inquieto e vão que não repousas!

Pára e escuta:

 

Se as cousas têm espírito, nós somos

Esse espírito efêmero das cousas,

Volúvel e diverso,

Variando, instante a instante, intimamente,

E eternamente,

Dentro da indiferença do Universo!...

 

 

PARA A VERTIGEM!

 

Alma, em teu delirante desalinho,

Crês que te moves espontaneamente,

Quando és na Vida um simples rodamoinho,

Formado dos encontros da torrente!

 

Moves-te porque ficas no caminho

Por onde as cousas passam, diariamente:

Não é o Moinho que anda, é a água corrente

Que faz, passando, circular o Moinho...

 

Por isso, deves sempre conservar-te

Nas confluências do Mundo errante e vário,

Entre forças que vêm de toda parte.

 

Do contrário, serás, no isolamento,

A espiral, cujo giro imaginário

É apenas a Ilusão do Movimento!...

 

 

DO MEU EVANGELHO

 

Para possuíres a filosofia

Das cousas, como um cético risonho,

Cheio de uma bondade comovida,

É preciso que tenhas algum dia

Escapado da Vida para o sonho

E voltado do sonho para a vida.

 

***

 

Procura o espaço livre e as macias alfombras

E vive sem pensar! Basta que o Sentimento

Te una à Vida e a renove, quando em quando...

As ideias enganam como as sombras,

São as sombras das cousas flutuando

No espelho móvel do teu pensamento!...

 

Pratica os teus sentidos nobremente

Na sensação das cousas belas e harmoniosas,

E, assim, educarás melhor uma alma linda,

Parecida com tudo que sentires!

 

***

 

Por que este desespero de que falas?

Se não crês bem nas cousas, nem descrês,

Ama-as embora, porque o teu prazer

Lhes dará a mais viva das verdades!

Não é preciso crer nas cousas, basta amá-las.

Sendo que amar é muito mais que crer...

 

***

 

Cada alma, sem sentir e sem querer,

Fia através dos dias, urde, tece

O seu destino – a inextricável teia!

Vive, faz e desfaz, passa e se esquece...

Mas os frutos que colhe em sua messe

São bem filhos dos germens que semeia...

 

***

 

A alma da gente muda tanto nesta vida,

Na sua história escrita sobre a areia,

Que um dia, ao recordar-se de si mesma,

Numa hora esquecida,

Já nem se reconhece mais e sente,

Estranhamente,

Que tudo aquilo que ela está lembrando,

São as recordações de uma alma alheia!...

 

***

 

Teu horóscopo está em ti, seja onde for

– Sem que o saibas e o pesquises –

Na sombra do teu ser mais íntimo e interior,

Como, presos ao solo áspero e bruto,

Estão bem dentro da alma das sementes,

Na natureza eterna das raízes,

O gosto original de cada fruto

E o perfume sutil de cada flor...


***

 

Escuta: Pelo bem que tu fizeres,

Espera todo o mal que não farias!

Essa é a mais triste das filosofias

Que aprendi entre os homens e as mulheres!

 

***

 

Queres saber minha história?

Não n’a tenho na memória...

Não tem fim, não teve fundo:

É a lenda da Humanidade,

É a própria história do Mundo!...

 

 

GAIA CIÊNCIA

 

Ator e espectador do drama humano,

– Homem, Filho do Bem, Filho do Mal –

Sei de tudo, desci ao fundo amargo

Das ideias, das cousas, das criaturas,

E, dentro da tragédia universal,

Fui anjo, fui réptil e vôo largo

Das águias suspendi pelas alturas

Eternas das ideias infinitas.

 

Sofri as leis humanas e divinas...

Pensei, senti, vivi profundamente

Todas as grandes realidades vivas

E encontrei as verdades cristalinas

Do universo visível e aparente

No coração das horas fugitivas...

 

Nada escapou à minha penetrante

Impressão da Existência. Vivi tudo!...

E tudo que eu vivi, do claro ao misterioso,

Foi destilado na palheta latejante

E passou pelo filtro íntimo e mudo

De um alto pensamento generoso.

 

Despindo as formas leves e vaidosas,

Rasgando as superfícies ilusórias,

A minha alma alongou suas raízes

Insinuantes, sutis, silenciosas

Pelas intimidades infelizes

De tudo quanto viu dentro da Vida.

 

E cresceu, floresceu, sorvendo gota a gota

Essa seiva de fel, ácida e ingrata

Que há no fundo sombrio das Verdades

E dentro dos seus frutos coloridos,

Que um meigo vento lírico desata,

Ainda há vivos venenos diluídos,

Que o puro azul dos céus serenos ameniza.

 

Sei de tudo! Conheço a vida a fundo!

Sei o que quer dizer uma existência humana!...

O meu sereno ser já não se engana

Com cousa alguma dentro deste mundo!

 

Entretanto, não sei... cada manhã que nasce,

Cheia de virgindade e adolescência,

Eu saio para a Vida,

Levando uma alma nova e um sorriso na face,

Sentindo, vagamente, que esse dia

É o meu primeiro dia de existência...

 

 

EXORTAÇÃO

 

Sê na Vida a expressão límpida e exata

Do teu temperamento, homem prudente;

Como a árvore espontânea que retrata

Todas as qualidades da semente!

 

O que te infelicita é sempre a ingrata

Aspiração de uma alma diferente,

É meditares tua forma inata,

Querendo transformá-la, de repente!

 

Deixa-te ser!... e vive distraído

Do enigma eterno sobre que repousas,

Sem nunca interpretar o seu sentido!

 

E terás, de harmonia com tua alma,

Essa felicidade ingênua e calma,

Que é a tendência recôndita das cousas!...

 

 

EGOCENTRISMO

 

Tudo que te disserem sobre a Vida,

Sobre o destino humano, que flutua,

Ouve e medita bem, mas continua

Com a mesma alma liberta e distraída!

 

Interpreta a existência com a medida

Do teu Ser! (a verdade é uma obra tua!)

Porque em cada alma o Mundo se insinua,

Numa nova Ilusão desconhecida.

 

Vai pelos próprios passos, num assomo

De quem procura por si próprio o fundo

Da eterna sensação que as cousas têm!

 

Existe, em suma, por ti mesmo, como

Se antes da tua sombra sobre o Mundo

Não houvera existido mais ninguém!...

 

 

SABEDORIA

 

Tu que vives e passas, sem saber

O que é a vida nem porque é, que ignoras

Todos os fins e que, pensando, choras

Sobre o mistério do teu próprio Ser,

Não sofras mais à espera das auroras

Da suprema verdade a aparecer:

A verdade das cousas é o prazer

Que elas nos possam dar à flor das horas...

 

Essa outra que desejas, se ela existe,

Deve ser muito fria e quase triste,

Sem a graça encantada da incerteza...

 

Vê que a Vida afinal, – sombras, vaidades, –

É bela, é louca e bela, e que a Beleza

É a mais generosa das verdades...

 

 

...ET OMNIA VANITAS...

 

... E vive assim... Como filosofia

O Prazer, como glórias e esperanças

Uma vida espontânea e correntia

E um gesto irônico ao que não alcanças!

 

Seja a vida um punhado de horas mansas,

Numa felicidade fugidia:

A piedosa ilusão de cada dia

E o bailado de sombras das lembranças.

 

Ama as cousas inúteis! Sonha! A Vida...

Viste que a Vida é uma aparência vaga

E todo o imenso sonho que semeias,

 

Uma legenda de ouro, distraída,

Que a ironia das águas lê e apaga,

Na memória volúvel das areias!...

 

 

IRONIA!

 

Ironia! Ironia!

Minha consolação! Minha filosofia!

Imponderável máscara discreta

Dessa infinita dúvida secreta,

Que é a tragédia recôndita do ser!

Muita gente não te há de compreender

E dirá que és renúncia e covardia!

Ironia! Ironia!

És a minha atitude comovida:

O amor-próprio do Espírito, sorrindo!

O pudor da Razão diante da Vida!

 

 

A ÚLTIMA CANÇÃO DO HOMEM...

 

Rei da Criação, por mim mesmo aclamado,

Quis, vencendo o Destino, ser o Rei

De todo esse Universo ilimitado

Das ideias que nunca alcançarei...

 

Inteligência... esse anjo rebelado

Tombou sem ter sabido a eterna lei:

Pensei demais e, agora, apenas sei

Que tudo que eu pensei estava errado...

 

De tudo, então, ficou somente em mim

O pavor tenebroso de pensar,

Porque as ideias nunca tinham fim...

 

Que mais resta da fúria malograda?

Um bailado de frases a cantar...

A vaidade das formas... e mais nada...

 

 

DIÁLOGO FINAL

 

– Como são lindos os teus grandes versos!

Que colorido humano! que profundo

Sentido e que harmonia generosa

Encerram, nos seus símbolos diversos!...

 

– Sim, mas para fazê-los fui ao fundo

Das cousas, nessa Via-Dolorosa

Do pensamento, que no fim é sempre triste.

Sofri muito entre os seres infelizes...

Tu não sabes de nada... tu não viste...

 

– Não, nunca imaginei o que me dizes...

Mas teus versos me fazem tanto bem,

São tão belos! de formas tão luxuosas!...

 

– É isso mesmo!... É a beleza irônica que vem

Da amargura invisível das raízes,

Para dar a vaidade efêmera das rosas...

 

 

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POEMAS INACABADOS
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CRISTIANISMO

 

Sonho um cristianismo singular

Cheio de amor divino e de prazer humano;

O Horto de Mágoas sob um céu virgiliano,

A beatitude com mais luz e com mais ar...

 

Um pequeno mosteiro em meio de um pomar,

Entre loureiros-rosa e vinhas de todo o ano,

Num misticismo lírico, a sonhar

Na orla florida e azul de um lago italiano...

 

Um cristianismo sem renúncia e sem martírios,

Sem a pureza melancólica dos lírios,

Temperado na graça natural...

 

Cristianismo de bom-humor, que não existe,

Onde a Tristeza fosse um pecado venial,

Onde a Virtude não precisasse ser triste...

 

 

DECADÊNCIA

 

Afinal, é o costume de viver

Que nos faz ir vivendo para a frente.

Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente

O hábito melancólico de ser...

 

Vai-se vivendo... é o vício de viver...

E se esse vício dá qualquer prazer à gente,

Como todo prazer vicioso é triste e doente,

Porque o Vício é a doença do Prazer...

 

Vai-se vivendo... vive-se demais,

E um dia chega em que tudo que somos

É apenas a saudade do que fomos...

 

Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos

Que somos sombras, que já não somos mais nada

Do que os sobreviventes de nós mesmos!...

 

 

ALMAS DESOLADORAMENTE FRIAS...”

 

Almas desoladoramente frias

De uma aridez tristíssima de areia,

Nelas não vingam essas suaves poesias

Que a alma das cousas, ao passar, semeia...

 

Desesperadamente estéreis e sombrias

Onde passam (triste aura que as rodeia!)

Deixam uma atmosfera amarga, cheia

De desencantos e melancolias...

 

Nessa árida rudeza de rochedo,

Mesmo fazendo o bem, sua mão é pesada,

Sua própria virtude mete medo...

 

Como são tristes essas vidas sem amor,

Essas sombras que nunca amaram nada,

Essas almas que nunca deram flor...

 

 

AO MENOS UMA VEZ EM TODA A VIDA

 

Ao menos uma vez em toda a vida

A Verdade passou pela alma de cada homem...

Passou muito alto, muito vaga, muito longe,

Como os fantasmas, que mal chegam, somem,

Passou em sombra, num reflexo fugidio,

Foi a sombra de um vôo refletida

No espelho da água trêmula de um rio...

Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade!

 

Passou uma só vez em toda a vida

E sempre dessa vez a alma dos homens

Estava distraída,

E não reconheceu na sombra desse vôo

A ave ideal que planava no alto azul...

Quando volveu os olhos para a altura

Ela já ia desaparecendo...

 

Dela nada ficou no olhar triste dos homens,

Nem a lembrança de seu vulto incerto...

Passou uma só vez em toda a vida!

Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade!

E esse vôo,

Que nunca mais voltou no mesmo céu deserto,

Nem ao menos deixou a sombra dentro d’água...

 

 

DE UM FANTASMA

 

Na minha vida fluida de fantasma

Sou tão leve que quase nem me sinto,

Nem há nada mais leve nem tão leve.

Sou mais leve do que a euforia de um anjo,

Mais leve do que a sombra de uma sombra

Refletida no espelho da Ilusão.

 

Nenhuma brutal lei do Universo sensível

Atua e pesa e nem de longe influi

Sobre o meu ser vago, difuso, esquivo

E no éter sereníssimo flutuo

Com a doce sutileza imponderável

De uma essência ideal que se volatiliza...

 

Passo através das cousas mais sensíveis

E as cousas que atravesso nem me sentem,

Porque na minha plástica sutil

Tenho a delicadeza transcendente

Da luz, que flui través os corpos transparentes,

Sou quase imaterial como uma ideia...

 

E da matéria cósmica que tem

Tantos e variadíssimos estados

Eu sou o estado-alma, quer dizer

O último estado rarefeito, o estado ideal:

Alma, o estado divino da matéria!...

 

 

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POEMAS INÉDITOS
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CIGANOS

 

Lá vêm os saltimbancos, às dezenas

Levantando a poeira das estradas,

Vêm gemendo bizarras cantilenas,

No tumulto das danças agitadas.

 

Vêm num rancho faminto e libertino,

Almas estranhas, seres erradios,

Que têm na Vida um único destino,

O Destino das aves e dos rios.

 

Ir mundo a mundo é o único programa,

A disciplina única do bando;

O cigano não crê, erra, não ama,

Se sofre, a sua dor chora cantando.

 

Nunca pararam desde que nasceram.

São da Espanha, da Pérsia ou da Tartária?

Eles mesmos não sabem; esqueceram

A sua antiga pátria originária...

 

Quando passam, aldeias, vilarinhos

Maldizem suas almas indefesas,

E a alegria que espalham nos caminhos

É talvez um excesso de tristezas...

 

Quando acampam de noite, é no relento

Que vão sonhar seu Sonho aventureiro;

Seu teto é o vácuo azul do Firmamento.

Lar? o lar do cigano é o mundo inteiro.

 

Às vezes, em vigílias ambulantes,

A noite em fora, entre canções dálmatas,

Vão seguindo ao Luar, vão delirantes,

Alados no langor das serenatas.

 

Gemem guslas e vibram castanholas,

E este rumor de errantes cavatinas

Lembra cousas das terras espanholas,

Nas saudades das terras levantinas.

 

E, então, seus vultos tredos envolvidos

Em vestes rotas, sórdidas, imundas,

Vão passando por ermos esquecidos,

Como um grupo de sombras vagabundas.

 

Lá vêm os saltimbancos, às dezenas,

Levantando a poeira das estradas,

Vêm gemendo bizarras cantilenas,

No tumulto das danças agitadas.

 

Povo sem Fé, sem Deus e sem Bandeira!

Todos o temem como horrível gente,

Mas ele na existência aventureira,

Ri-se do medo alheio, indiferente.

 

E, livres como o Vento e a Luz volante,

Sob a aparência de Infelicidade,

Realizam, na sua vida errante,

O poema da eterna Liberdade.

 

 

DESCONFIANDO

 

Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo,

Atento tu me escutas quando falo;

Bem antes que te exponha o meu desejo

Já pronto estás correndo a executá-lo.

 

Achas em tudo um venturoso ensejo

De servir-me de servo e de vassalo;

Perdoa-me a verdade num gracejo.

Serias, se eu quisesse, o meu cavalo...

 

Mas não penses que estólido eu te creia

Como um Pátroclo abnegado, não

De todos os excessos se receia...

 

O certo é que, em rancor, por dentro estalas;

Odeias-me que eu sei, mas, histrião,

Beijas-me as mãos por não poder cortá-las...

 

 

CALA A BOCA, MEMÓRIA!

 

Cala a boca, Memória! Basta, basta!

O que o Tempo te disse não me digas.

Que pareces até minha madrasta

Quando me vens cantar tuas cantigas.

 

Tua voz me faz mal e me vergasta,

E a chorar, muitas vezes, tu me obrigas.

Piedade, Memória leonoclasta,

Não despertes, assim, dores antigas.

 

Vai, recolhe-te à tua soledade,

E que o teu braço nunca mais me leve

À sepultura da Felicidade!

 

Segue um conselho meu, de ora em diante:

Junto a quem está de luto não se deve

Falar de quem morreu, a todo instante...

 

 

MAIO. SOL DE SAINT-LOUP

 

Maio. Sol de Saint-Loup. Declina o dia.

Eu e Silêncio – os dois – o olhar profundo,

Numa contemplação erma e sombria

Neste recanto inédito do mundo...

 

Lá embaixo, a fímbria azul dos montes quietos,

Pesa-me ao olhar, em trêmulos recortes.

Como nas sugestões das águas-fortes,

A beleza parada dos aspectos...

 

É bem a Suíça clássica que avisto,

Calma, brumal, profundamente calma,

Sem o menor espasmo do imprevisto

Na branca anestesia de sua alma...

 

Tudo na mesma estática atitude...

Montando as serranias, pelos flancos,

Em igual sucessão, sóbrios, marmóreos,

Destaco, ao longe, austeramente brancos

Os vultos varonis dos sanatórios...

 

SÍNTESE

 

Somos, na vida, a síntese apurada

De tudo o que viveu antes de nós;

Sou a compendiação cristalizada

 

Da história milenar dos meus avós.

Em mim, austeramente, continua

Uma raça de velho itinerário,

E eu conservo, no fundo da alma nua,

O cunho do destino hereditário.

 

Quem me vê!... E eu condenso mil essências,

– Sedimentos de idades e de idades –

Na verdade incisiva das tendências,

Nos meus impulsos e capacidades.

 

Restos de dias mortos e resíduos

De gerações e tempos indistintos

São a razão de ser dos indivíduos,

O segredo latente dos instintos.

 

Cada atitude, cada gesto dado

Que o nosso íntimo espírito acomete

É um momento da raça renovado,

É um minuto ancestral que se repete.

 

Nós, desde o homem que pensa à planta e à lesma,

Somos uma sequência enorme e vasta,

Uma força remota que se gasta

Na sucessão contínua de si mesma.

 

E é por isso que eu sinto e nós sentimos,

Em momentos recônditos extremos,

A saudade de cousas que não vimos

E o orgulho de tudo o que não temos.

 

Ser novo é um paradoxo inconsistente

Que só vive nos nossos pensamentos;

O que há de novo é o aspecto diferente

Lastreado dos mesmos fundamentos.

 

A Evolução!... E, com ela, melhoramos

Mas a Alma melhorando se enfraquece,

Tal como a gota d’água que desfiamos,

Que quanto mais se apura, mais decresce.

 

Sim! que o destino em seu maior conceito,

Na agitação dinâmica do Ser,

É ir lutando para ser perfeito

E ser perfeito e desaparecer...

 

 

SEI DE TUDO O QUE EXISTE PELO MUNDO

 

Sei de tudo o que existe pelo mundo,

A forma, o modo, o espírito e os destinos.

Sei da vida das almas e aprofundo

O mistério dos seres pequeninos.

 

Sei da ciência do Espaço, sei o fundo

Da terra e os grandes mundos submarinos,

Sei o Sol, sei o Som e o elo profundo

Que há entre os passos humanos e os divinos.

 

Sei de todas as cousas, a teoria

Do universo e as longínquas perspectivas

Que emergem da expressão das cousas vivas.

 

Sei de tudo e – oh! tristíssima ironia! –

Pelo caminho eterno por que vou,

Eu, que sei tudo, só não sei quem sou...

 

 

TRANSUBSTANCIAÇÃO

 

Esta carne em que existo há de tornar-se um dia,

Em húmus germinal, em seiva fecundante,

Decompondo-se em Pó, há de ser a energia

De vidas que sobre ela hão de viver adiante...

 

Será fonte, Princípio, a tábida apatia

De um movimento novo, intérmino e constante,

Sua ruína será a feraz embriogenia

De outros tipos de Vida, instante para instante.

 

Há de um horto florir por sobre o seu passado:

Borboletas iriais e anêmonas olentes,

Vidas da minha Morte, eu mesmo transformado...

 

E, assim, irei buscando a Perfeição perdida,

Vivendo na Emoção de seres diferentes,

Que a Morte é a transição da Vida para a Vida...

 

 

ARGILA

 

Nascemos um para o outro, dessa argila

De que são feitas as criaturas raras;

Tens legendas pagãs nas carnes claras

E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

 

Às belezas heróicas te comparas

E em mim a luz olímpica cintila,

Gritam em nós todas as nobres taras

Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

 

É tanta a glória que nos encaminha

Em nosso amor de seleção, profundo,

Que (ouço de longe o oráculo de Elêusis),

 

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,

O nosso amor conceberia um mundo,

E do teu ventre nasceriam deuses...

 

 

DUAS HISTÓRIAS

 

– Era um dia um pastor ingênuo...

– Sim, todos os pastores são ingênuos...

– Que numa noite azul quis contar as estrelas

– Quantas foram por fim as estrelas contadas?

– Não! Ele compreendeu a inocente loucura

Não continuou na conta...

Viu que em torno de cada estrela contada

Surgiam mais de mil que nunca tinha visto...

Foi quem primeiro soube neste mundo

Que a conta das estrelas não tem conta...

 

– Pois foi um dia um sábio muito triste...

– Todos os sábios são muito tristes...

Quis contar as verdades do Universo

Quantas são as verdades que contou?

– Não! Ele compreendeu a inocente loucura,

Foi quem primeiro soube neste mundo

Que quem ver e contar as verdades

Apenas faz buscar verdades – não faz mais

Do que multiplicar as dúvidas que tem.

---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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