9/24/2023

Na minha opinião: Os 10 melhores poetas do Brasil


OS 10 MELHORES POETAS BRASILEIROS

Castro Alves foi melhor porque levou a poesia a seu ponto máximo de perfeição. Sua importância, porém, não se restringe apenas à literatura. Foi melhor porque causticou a chaga moral deste país, tanto no verso quanto na tribuna. Nas palavras de Peregrino Júnior: "Castro Alves foi a voz mais eloquente e mais alta da nossa poesia de todos os tempos — e aquela que falou mais diretamente à sensibilidade do povo brasileiro — porque foi a grande voz generosa que cantou as três vocações históricas do Brasil: a vocação da Liberdade, a vocação da Justiça e a vocação da Democracia". POEMA PREFERIDO: “O Navio Negreiro”:



CASTRO ALVES

I
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai?  Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam, 
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz!  Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz!  Albatroz! dá-me estas asas. 

II
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ... 

III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! 

IV
Era um sonho dantesco... o tombadilho 
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite... 
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas 
Magras crianças, cujas bocas pretas 
Rega o sangue das mães: 
Outras moças, mas nuas e espantadas, 
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala, 
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia, 
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece, 
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! 
E ri-se Satanás!...  

V
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?   Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ... 

VI
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!




MANUEL BANDEIRA

Manuel Bandeira foi melhor porque, com seu lirismo bem pessoal, conseguiu externar magistralmente os grandes dilemas que marcam a existência humana. Nas palavras de Joel Silveira: "É o poeta que faz versos 'como quem chora', que faz versos 'como quem morre'". POEMA PREFERIDO: “Vou-me embora pra Pasárgada”:

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei 

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive 

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada 

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar 

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.



RAUL DE LEONI 

Raul de Leoni foi melhor porque como nenhum outro poeta conseguiu transformar versos em verdadeiros tratados de pura filosofia. Para Rodrigo Melo Franco de Andrade ele foi "o único poeta de emoção puramente filosófica"; para Múcio Leão, "Raul de Leoni é um espírito antigo numa sensibilidade contemporânea"; e, para Tristão de Ataíde, "Raul de Leoni foi assim talvez a voz mais autorizada de todo um estado de espírito coletivo, quando a nossa literatura parecia isolar-se inteiramente, tornar-se incomunicável à grande massa e a grande realidade brasileira." POEMA PREFERIDO: “Aos que sonham”: 

Não se pode sonhar impunemente
Um grande sonho pelo mundo afora,
Porque o veneno humano não demora
Em corrompê-lo na íntima semente... 

Olhando no alto a árvore excelente,
Que os frutos de ouro esplêndidos enflora,
O Sonhador não vê, e até ignora
A cilada rasteira da Serpente. 

Queres sonhar? Defende-te em segredo,
E lembra, a cada instante e a cada dia,
O que sempre acontece e aconteceu:

Prometeu e o abutre no rochedo,
O Calvário do Filho de Maria
E a cicuta que Sócrates bebeu!



VINÍCIUS DE MORAES 

Vinícius de Moraes foi melhor porque foi capaz de expressar com seus versos o que há de mais sensível no coração humano. Seus poemas refletem ao mesmo tempo a arte, a beleza, o amor, a felicidade, a tristeza e toda gama de sentimento de que se imbui o homem e a mulher. Nas palavras de Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes “tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as sutilezas barrocas), e, finalmente homem bem do seu tempo, a liberdade, a licença, o esplendido cinismo dos modernos”. POEMA PREFERIDO: “Soneto de Fidelidade”:

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento. 

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento. 

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama 

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.



AUGUSTO DOS ANJOS

Augusto dos Anjos foi melhor porque conseguiu externar livremente suas angústias mais íntimas, utilizando para isto de uma linguagem que lhe era bem peculiar,  mesclando o mórbido com o científico, e de tal modo que foi único no seu modo de poetar. Nas palavras de Hildon Rocha: "Augusto dos Anjos foi um poeta único, aparte em sua geração. Não pertenceu a nenhuma escola literária daquelas que estavam tão em moda no seu tempo. Poetava a seu modo, a seu gosto, com uma forma que ninguém tinha explorado ainda, com um ritmo seu, unicamente seu. Não mercadejou a sua poesia, e não perdia tempo com assuntos fúteis. Nunca pôs o seu dom divino e a sua divina arte a serviço de interesses materiais." POEMA PREFERIDO: “Versos íntimos”:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável! 

Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera. 

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja. 

Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Carlos Drummond de Andrade foi melhor porque conseguiu ser num só momento crítico, irônico, pessimista, sentimental, mesclando tudo isso num estilo próprio, fazendo uso da linguagem como verdadeiro objeto de arte. Nas palavras de Rodolfo Alonso: "Carlos Drummond de Andrade foi o primeiro a me fazer intuir que era possível ser ao mesmo tempo exigentemente moderno e honestamente nacional, sem demagogia nem retórica alguma, obscura e limpidamente sentimental e irônico, preciso e contagioso, tão apaixonado quanto distante, tão lúcido quanto devotadamente entregue ao essencial e à vivacidade de seu ambiente e de seu povo, não declamado mas embebido no próprio ser, ser tão legítimo que permite ser os outros sem deixar de ser o que se é, para ser o que se é. E, sobretudo, ser linguagem, ser linguagem encarnada e contagiosa, fraternal e exigente, estremecida e justíssima." POEMA PREFERIDO: "O caso do vestido":

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou.

Chorou no prato de carne,
bebeu, gritou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou,

dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só para lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Saí pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pai sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou para mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.



CECÍLIA MEIRELES

Cecília Meireles foi melhor porque conseguiu reunir a emoção com recursos expressivos, criando um estilo próprio capaz de despertar os sentimentos mais nobres do coração humano. Nas palavras de João Ameal: "A poesia de Cecília Meireles dá-nos ao mesmo tempo a graça dos pequenos motivos em que o verbo se faz harmonia – e a tragédia dos grandes tormentos intelectuais em que o pensamento se dilacera e revolve. POEMA PREFERITO: “Retrato”:

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo. 

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra. 

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?



FAGUNDES VARELA 

Fagundes Varela foi melhor porque soube condensar nos seus versos os próprios sofrimentos, chorando e sentindo o fel que a vida lhe deu a provar. Nas palavras de Ronald de Carvalho: “Há em sua obra inspirações de toda ordem da alma e da natureza, da vida rústica e civilizada, da fantasia e da realidade, do mundo fictício e presente." POEMA PREFERIDO: “Cântico do Calvário”: 

Eras na vida a pomba predileta
 Que sobre um mar de angústias conduzia
 O ramo da esperança. — Eras a estrela
 Que entre as névoas do inverno cintilava
 Apontando o caminho ao pegureiro.
 Eras a messe de um dourado estio.
 Eras o idílio de um amor sublime.
 Eras a glória, — a inspiração, — a pátria,
 O porvir de teu pai! — Ah! no entanto,
 Pomba, — varou-te a flecha do destino!
 Astro, — engoliu-te o temporal do norte!
 Teto, caíste! — Crença, já não vives! 

 Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
 Legado acerbo da ventura extinta,
 Dúbios archotes que a tremer clareiam
 A lousa fria de um sonhar que é morto!
 Correi! Um dia vos verei mais belas
 Que os diamantes de Ofir e de Golgonda
 Fulgurar na coroa de martírios
 Que me circunda a fronte cismadora!
 São mortos para mim da noite os fachos,
 Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
 E à vossa luz caminharei nos ermos!
 Estrelas do sofrer, — gotas de mágoa,
 Brando orvalho do céu! — Sede benditas!
 Oh! filho de minh’alma! Última rosa
 Que neste solo ingrato vicejava!
 Minha esperança amargamente doce!
 Quando as garças vierem do ocidente
 Buscando um novo clima onde pousarem,
 Não mais te embalarei sobre os joelhos,
 Nem de teus olhos no cerúleo brilho
 Acharei um consolo a meus tormentos!
 Não mais invocarei a musa errante
 Nesses retiros onde cada folha
 Era um polido espelho de esmeralda
 Que refletia os fugitivos quadros
 Dos suspirados tempos que se foram!
 Não mais perdido em vaporosas cismas
 Escutarei ao pôr do sol, nas serras,
 Vibrar a trompa sonorosa e leda
 Do caçador que aos lares se recolhe! 

 Não mais! A areia tem corrido, e o livro
 De minha infanda história está completo!
 Pouco tenho de ansiar! Um passo ainda
 E o fruto de meus dias, negro, podre,
 Do galho eivado rolará por terra!
 Ainda um treno, e o vendaval sem freio
 Ao soprar quebrará a última fibra
 Da lira infausta que nas mãos sustento!
 Tornei-me o eco das tristezas todas
 Que entre os homens achei! O lago escuro
 Onde ao clarão dos fogos da tormenta
 Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
 Por toda a parte em que arrastei meu manto
 Deixei um traço fundo de agonias!...

 Oh! quantas horas não gastei, sentado
 Sobre as costas bravias do Oceano,
 Esperando que a vida se esvaísse
 Como um floco de espuma, ou como o friso
 Que deixa n’água o lenho do barqueiro!
 Quantos momentos de loucura e febre
 Não consumi perdido nos desertos,
 Escutando os rumores das florestas,
 E procurando nessas vozes torvas
 Distinguir o meu cântico de morte!
 Quantas noites de angústias e delírios
 Não velei, entre as sombras espreitando
 A passagem veloz do gênio horrendo
 Que o mundo abate ao galopar infrene
 Do selvagem corcel? ... E tudo embalde!
 A vida parecia ardente e douda
 Agarrar-se a meu ser! ... E tu tão jovem,
 Tão puro ainda, ainda n’alvorada,
 Ave banhada em mares de esperança,
 Rosa em botão, crisálida entre luzes,
 Foste o escolhido na tremenda ceifa! 

 Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
 Senti bater teu hálito suave;
 Quando em meus braços te cerrei, ouvindo
 Pulsar-te o coração divino ainda;
 Quando fitei teus olhos sossegados,
 Abismos de inocência e de candura,
 E baixo e a medo murmurei: meu filho!
 Meu filho! frase imensa, inexplicável,
 Grata como o chorar de Madalena
 Aos pés do Redentor ... ah! pelas fibras
 Senti rugir o vento incendiado
 Desse amor infinito que eterniza
 O consórcio dos orbes que se enredam
 Dos mistérios do ser na teia augusta!
 Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!
 Que se expande em torrentes inefáveis
 Do seio imaculado de Maria!
 Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
 E de meu erro a punição cruenta
 Na mesma glória que elevou-me aos astros,
 Chorando aos pés da cruz, hoje padeço! 

 O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,
 A voz mentida de rafeiros bardos,
 Torpe alegria que circunda os berços
 Quando a opulência doura-lhes as bordas,
 Não te saudaram ao sorrir primeiro,
 Clícia mimosa rebentada à sombra!
 Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te,
 Tiveste mais que os príncipes da terra!
 Templos, altares de afeição sem termos!
 Mundos de sentimento e de magia!
 Cantos ditados pelo próprio Deus!
 Oh! quantos reis que a humanidade aviltam,
 E o gênio esmagam dos soberbos tronos,
 Trocariam a púrpura romana
 Por um verso, uma nota, um som apenas
 Dos fecundos poemas que inspiraste! 

 Que belos sonhos! Que ilusões benditas!
 Do cantor infeliz lançaste à vida,
 Arco-íris de amor! Luz da aliança,
 Calma e fulgente em meio da tormenta!
 Do exílio escuro a cítara chorosa
 Surgiu de novo e às virações errantes
 Lançou dilúvios de harmonias! — O gozo
 Ao pranto sucedeu. As férreas horas
 Em desejos alados se mudaram.
 Noites fugiam, madrugadas vinham,
 Mas sepultado num prazer profundo
 Não te deixava o berço descuidoso,
 Nem de teu rosto meu olhar tirava,
 Nem de outros sonhos que dos teus vivia! 

 Como eras lindo! Nas rosadas faces
Tinhas ainda o tépido vestígio
 Dos beijos divinais, — nos olhos langues
 Brilhava o brando raio que acendera
 A bênção do Senhor quando o deixaste!
 Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos,
 Filhos do éter e da luz, voavam,
 Riam-se alegres, das caçoilas níveas
 Celeste aroma te vertendo ao corpo!
 E eu dizia comigo: — teu destino
 Será mais belo que o cantar das fadas
 Que dançam no arrebol, — mais triunfante
 Que o sol nascente derribando ao nada
 Muralhas de negrume!... Irás tão alto
 Como o pássaro-rei do Novo Mundo! 

 Ai! doudo sonho! ... Uma estação passou-se,
 E tantas glórias, tão risonhos planos
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro
 Abrasou com seu facho ensanguentado
 Meus soberbos castelos. A desgraça
 Sentou-se em meu solar, e a soberana
 Dos sinistros impérios de além-mundo
 Com seu dedo real selou-te a fronte!
 Inda te vejo pelas noites minhas,
 Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
 Creio-te vivo, e morto te pranteio!... 

 Ouço o tanger monótono dos sinos,
 E cada vibração contar parece
 As ilusões que murcham-se contigo!
 Escuto em meio de confusas vozes,
 Cheias de frases pueris, estultas,
 O linho mortuário que retalham
 Para envolver teu corpo! Vejo esparsas
 Saudades e perpétuas, — sinto o aroma
 Do incenso das igrejas, — ouço os cantos
 Dos ministros de Deus que me repetem
 Que não és mais da terra!... E choro embalde. 

 Mas não! Tu dormes no infinito seio
 Do Criador dos seres! Tu me falas
 Na voz dos ventos, no chorar das aves,
 Talvez das ondas no respiro flébil!
 Tu me contemplas lá do céu, quem sabe,
 No vulto solitário de uma estrela,
 E são teus raios que meu estro aquecem!
 Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
 Brilha e fulgura no azulado manto,
 Mas não te arrojes, lágrima da noite,
 Nas ondas nebulosas do ocidente!
 Brilha e fulgura! Quando a morte fria
 Sobre mim sacudir o pó das asas,
 Escada de Jacó serão teus raios
 Por onde asinha subirá minh’alma.



ÁLVARES DE AZEVEDO

Álvares de Azevedo foi melhor porque conseguiu expressar, mesmo no seu ultrarromantismo exacerbado, as grandes angústias que norteiam a vida humana. Nas palavras de Marlene de Castro Correia: "Muito da originalidade e vitalidade de Álvares de Azevedo deriva da valorização poética do cotidiano, da tematização do homem enquanto consciência dramatizada por dicotomias, da concepção e prática do discurso como lugar de embate entre registros emotivo-estéticos dissonantes, do uso de matizado e refinado humor." POEMA PREFERIDO: “Lembranças de morrer”: 

Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente. 

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento. 

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro –
Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro; 

Como um desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade – é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia. 

Só levo uma saudade – é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas! 

De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos – bem poucos – e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam. 

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda! 

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores. 

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha Virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo! 

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
– Foi poeta – sonhou – e amou na vida. 

–Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto! 

Mas quando preludia ave d’aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua prantear-me a lousa!

10º

GONÇALVES DIAS

Gonçalves Dias foi melhor, inimitável mesmo, porque em sua vasta produção, abrangeu a todos, sendo a primeira reação poética brasileira, vigorosa e brilhante. Nas palavras de Teófilo Dias: "Tem um estilo sóbrio e preciso; é um colorista primoroso. Os seus versos primam pela inspiração e pelo fino gosto, que revelam. Não há em língua portuguesa páginas tão ricas de boa linguagem como as dos Cantos, e principalmente dos Timbiras...” POEMA PREFERIDO: “Seus olhos”: 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir; 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta
De noite cantando, — mais doce que a frauta
Quebrando a solidão. 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir. 

São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; — causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil. 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranquilos,
Às vezes vulcão!

Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Me fazem chorar. 

Assim lindo infante, que dorme tranquilo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Não pensa — a pensar.

Nas almas tão puras da virgem, do infante,
Às vezes do céu
Cai doce harmonia duma Harpa celeste,
Um vago desejo; e a mente se veste
De pranto co’um véu. 

Quer sejam saudades, quer sejam desejos
Da pátria melhor;
Eu amo seus olhos que choram sem causa
Um pranto sem dor. 

Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,
De vivo fulgor;
Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
Que falam de amores com tanta poesia.
Com tanto pudor. 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Eu amo esses olhos que falam de amores
Com tanta paixão.


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Por Iba Mendes, São Paulo, setembro de 2023.

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