(Tradução de 1879)
Uma vez, à meia-noite lúgubre enquanto
eu, fraco e cansado, meditava sobre muitos elevados e curiosos volumes de ciência esquecida, enquanto
eu cabeceava, quase a dormitar, ouvia-se de repente um leve ruído, como de alguém
que docemente batia, que batia à porta do meu quarto. “É algum visitante,
murmurei, que bate docemente à porta do meu quarto; é só isto e nada mais.”
Ah! lembro-me distintamente que era
no regelado dezembro, e os tições sulcavam de fantasmas o chão nas vascas da
agonia. Ansiava com ardor a manhã; em vão julgava tirar de meus livros fim para
minha tristeza, a tristeza pela minha perdida Lenore, pela preciosa e radiante
donzela que os anjos chamam Lenore, e aqui se não chamará jamais.
E o assedado, triste, vago frêmito
das cortinas de púrpura enchia-me de terrores fantástico nunca dantes sentidos;
de modo que para deter o pulsar do coração, ergui-me repetindo. “É algum
visitante que pede para entrar à porta do meu quarto; é algum visitante
retardado que pede para entrar á porta do meu quarto; — é isto e nada mais.”
Então minh'alma se sentiu mais forte,
e, sem mais hesitar: “meu senhor, lhe disse, ou minha senhora, peço-vos em
verdade perdão, mas o caso é que eu dormitava, o viestes bater tão docemente,
tão ao de leve bater à porta do meu quarto, que eu nem certo estava de vos ter
ouvido.” — Abri então a porta inteira; — trevas e nada mais.
Perscrutando profundamente essas
trevas, longo tempo estive de pé, atônito, receoso, cheio de dúvida, sonhando
sonhos que nenhum mortal até ali ousara sonhar; mas nem se quebrara o silêncio,
nem deram sinal as trevas, e a única palavra proferida fora baixinho a palavra “Lenore”!
Murmurejara-a eu, e os ecos repetiram: “Lenore!” — Isto apenas, nada mais.
Voltando, entrei para o meu quarto
com a alma de todo abraseada, ouvi de novo bater um tanto mais forte que da
primeira vez. “Certamente, disse, certamente há alguma coisa nos gelosias da minha
janela. Vejamos pois o que é e exploremos este mistério, deixemos calmar o
coração e exploremos este mistério; — é e vento e nada mais.”
Impelida então a janela, cruzou-a
com esvoaçar estrepitoso um majestoso corvo dos veneráveis tempos da
antiguidade, Não fez a menor reverência; não parou, não hesitou um instante,
mas, com modos de lord ou de lady. empoleirou-se sobre a porta do meu
quarto, empoleirou-se sobre um busto de Palas, mesmo por sobre a porta de meu
quarto; empoleirou-se, instalou-se e nada mais.
Então como essa ave d'ébano
induzisse minha imaginação contristada a sorrir pela compostura solene e
austera. “Apesar de teu penacho, lhe disso, estar raso e tonsurado, tu de certo
não és um poltrão, lúgubre, sombrio o antigo corvo vindo das plagas da Noite.
Dize-me qual é teu nome senhoril lá nas plagas da Noite Plutoniana!” — O Corvo
disse: “Jamais.”
Maravilhei-me de que desse desgracioso
volátil ouvisse tão bem a palavra, conquanto sua resposta, de exígua significação,
pouco auxílio me desse; porque não podemos deixar de convir que ainda a nenhum
ser humano foi dado o ver sobre a porta do seu quarto uma ave, uma ave ou um
animal, em cima de um busto esculturado sobre à porta de seu quarto, com o nome
de “Jamais.”
Mas o Corvo, instalado solitariamente
sobre o plácido busto, proferia apenas essa única palavra, como se nessa única
palavra ele expandira a alma inteira. Nada mais disso, nem agitava uma pena,
até que eu murmurei baixinho: “outros amigos já se foram e pela manhã também
ele me deixará, como minhas antigas esperanças que se foram!” — Então ave disse: “Jamais.”
Estremecendo ao ouvir quebrado o
silêncio por uma resposta tão à propósito: “sem dúvida, disse, que o que ele
pronuncia é todo o seu cabedal, todo o seu tesouro, recebido de algum mestre
infeliz, que à inexorável desgraça perseguiu sempre, e perseguiu com ardor, até
que seus cantos tivessem esse estribilho, até que os responsórios de sua
esperança dessem no melancólico estribilho: “Jamais.”
Mas o Corvo como induzisse sempre
minha imaginação contristada a sorrir, rojei imediatamente uma cadeira
almofadada para defronte da ave e do busto e da porta; e então, enterrando-me
no veludo, dei-me a ligar as ideias com as ideias, cogitando no que aquela
agourenta ave da antiguidade, no que aquela sombria, desgraciosa, lúgubre, descarnada,
e agourenta ave da antiguidade queria dizer ao crocitar: “Jamais.”
Então pareceu-me que o ar se
condensava perfumado por invisível turíbulo, que sopesavam serafins, cujos
passos ao de leve roçaram pelo quarto atapetado. “Desgraçado! exclamei, teu
Deus prestou-te, mandou-te por estes anjos repouso, repouso e nepentes para a
tua saudade de Lenore! Traga, oh! traga esse bom nepentes, e olvida esta já
perdida Lenore” O Corvo disse: “Jamais!”
“Profeta! lhe tornei, ente de desgraça!
ave ou demônio, mas sempre profeta! Que te mandasse o tentador ou te
arremessasse a tormenta, desolado mas sempre intrépido, por esta terra deserta,
enfeitiçada, para esta estância habitada pelo terror, dize-me com verdade, eu
te peço, existe, existe porventura um bálsamo de Judeia. Dize-me! Dize-me! Eu
te imploro!” O Corvo disse: “Jamais.”
“Profeta! lhe tornei. Ente de desgraça,
ave ou demônio, mas sempre profeta! Pelo céu que se arqueia por sobre nós, pelo
Deus que ambos nós adoramos, dize a esta alma opressa pela tristeza, se lá no Éden
distante ela poderá apertar nos braços uma santa donzela a quem os anjos chamam
— “Lenore”, — apertar nos braços uma preciosa o radiante donzela a quem os
anjos chamam — “Lenore?” — O Corvo disse: “Jamais.”
“Que esta palavra seja o sinal de
nossa separação, exclamei erguendo-me. Volta porém à tormenta, torna-te às plagas
da Noite Plutoniana! Que me não fique nem uma pluma negra como testemunha da
mentira que tua alma proferiu! Deixa-me a solidão inquebrantada! Deixa o busto
de sobre à minha porta! Arranca teu bico de dentro da minh'alma, e arrasta tuas
formas para longo da minha porta! O Corvo disse: — “Jamais!”
E o Corvo, imperturbável, continua instalado,
instalado sobre o pálido busto de Palas, mesmo por sobre a porta de meu quarto;
e seus olhos tinham toda a semelhança com os de um demônio a sonhar, e a luz
que o banhou estirou-lhe a sombra pelo chão; e do âmago dessa sombra minh’alma evolar-se
não logrará — jamais!...
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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