O
CEGO DE GUARDIÃO
— Que queres, não posso. Tenho aqui um peso de
seiscentas arrobas — rematou arrepanhando o coração.
Mas
como algumas raparigas, com o fim caridoso de o tirarem daquele malucar, lhe
pediram insistentemente, José Domingues tocou umas músicas tristes, muito
populares e queridas daquela gente. Foi nesta ocasião, que o Miguel, sentindo o
cérebro iluminado por uma ideia, disse com entusiasmo:
— Ouve lá. E se nós fossemos por aí abaixo
ambos! Não se ganharia alguma coisa?
Todas
as pessoas presentes acreditaram que sim e aplaudiram com estrepito a
lembrança. Só o rabequista não tinha grande fé, pois disse:
— O que, a tocar? Uh!...
— Há de haver muito quem vos queira ouvir.
Tentar fortuna é sempre bom profetizou enfaticamente Zé Máximo, o barbeiro.
Resolveram-no
logo ali. Os dois mais interessados planearam a coisa detalhadamente, mencionando
as terras que percorreriam e as músicas que haviam de escolher. Uma manhã
de primavera, partiram com o sol rubro no horizonte. Andaram por forra alguns meses
e quando voltaram vinham satisfeitos, porque traziam um bom par de moedas na
algibeira. Foi uma alegria para aquela gente, mormente para José Domingues, que
ao entregar o dinheiro à irmã pulava de contente, com os sobrinhos todos em
volta a agarrarem-se-lhe às pernas. No forte das suas expansões, o cego,
planeava uma vida de abundância: queria que se comprasse um porco para matar nesse
ano e mais um bácoro, para o seguinte.
— Nesta casa! — com seiscentos diabos! — há de
tornar a haver salgadeira e fumeiro, como antigamente — afirmou.
Foi
este o começo da vida de tocador de rabeca, que tão popular fez o cego de Guardiã,
em toda a província do Minho.
***
O
seu nome chegou mesmo à cidade do Porto. Quem falasse no ceguinho designava
logo José Domingues. A expressão persuasiva e bondosa do seu rosto tornava-o atraente
e querido. Ou tocando a chorosa rabeca, ou a cantar modas alegres, ou a
gracejar com as raparigas, era sempre comedido e delicado; por forma a ser cobiçada
a sua presença. De todos os cegos pedintes e trovadores, só ele gozava de
verdadeira simpatia. Chamavam-no a muitas casas para o ouvir e, além da paga, ofereciam-lhe
vinho e marmelada. Também ele não se parecia com nenhum desses tocadores de
sanfona, lamurientos e porcos. Sempre limpinho: — vestido de briche; camisa
lavada; botas de cano, toscas e fortes; a mão apoiada no ombro do companheiro;
o extinto olhar voltado para o sol; assim percorria a província. Tinha o seu
orgulho de artista e de pequeno proprietário — nunca exaltou ou fingiu misérias
e necessidades para provocar compaixão. Aceitava o que lhe dessem, fosse muito
fosse pouco, agradecendo tudo com um sorriso. O que ambicionava
principalmente era que o escutassem com religião e amor. Se havia pelas janelas
senhoras formosas, em quem presumisse melhor compreensão da música, o Miguel
advertia-o; pois que nessas circunstâncias, o arco de José Domingues, tinha
movimentos expressivos, alma entusiasta, e coração de poeta.
***
Que
ideia faria ele da formosura!...
Fora
tão cedo, logo no começo da infância, que perdera a vista!... As suas
recordações não podiam deixar de ser pedaços de mundo dispersos, mal definidos,
impressões fugitivas, como as da luz no por do sol. Contudo na viva e larga
imaginação, era certo que lhe esvoaçavam encantadoras imagens. A meiguice do
sorriso, a bravura da expressão em certos momentos, fazem-no presumir. Quando
acreditava que a sua alma, a sua rabeca, estava fazendo palpitar algum coração
de mulher, o rosto bexigoso e feio, animava-se-lhe triunfantemente, como uma
aurora. Parecia que tinha um resplendor, que respirava num círculo de luz própria.
É
porque ele instintivamente calculava que àquela expansão de sensibilidade que
lhe vibrava nos próprios nervos, corresponderiam outros eflúvios em nervos mais
delicados. E a potente voz da arte embravecia-lhe a natureza cheia de candura,
transformando o humilde cego, num ente dominador e altivo. A proximidade da
mulher, a sua inflexão meiga e dolente, amansava de um modo absoluto, qualquer
aspereza deste homem, que nunca lhe pudera calcular a pureza das linhas. Talvez
isto fosse por conhecer a dolorosa historia de seu tio frade, que morto aos setenta
anos, conservara até à última, o amor de uma imagem extinta, evocando-a aos
sons da mesma rabeca, que José Domingues tocava!
Esse
tio egresso fora o seu educador e o seu amigo. Homem de viver em si, conhecendo
a música e as letras, ensinara-o a tocar, e transmitira-lhe a alma que possuía.
A doce afabilidade de convivência com esse bom velho, introduzira-lhe no
coração sentimentos preciosos de humildade. Desprezar os bens terrenos, para se
confortar nos gozos interiores, fora o que esse obscuro evangelista sempre lhe
aconselhara, como meio de se opor à desgraça e sofrer com valor as agruras do
mundo. Por isso, ele aceitou em toda a conformidade, esta vida de tocador
ambulante, por mais que ela fosse contraria, ao seu quietismo aldeão.
Ainda assim tinha a impeli-lo neste vagabundear de terra em terra, o seu caráter
impressionável de artista. O fanatismo com que todos o ouviam em Guardiã, em
Refuinho e noutros lugares, por vezes lhe levantara as ambições e sonhara com público
mais numeroso e seleto. Porém nunca pensara em sair da sua aldeia, e do adro da
igreja, onde nos domingos, depois da missa conventual, até o abade parava a ouvi-lo. A
donzela abandonada, o Marinheiro e o Cão fiel eram
algumas das poucas cantigas que nesse tempo conhecia. Exprimia-as com tal
sentimento e candura, que era frequente perceber-se o choro dalgum coração de
rapariga enamorada e sensível, que encontrava nas palavras da canção qualquer
lembrança pungente. Então o José Domingues, que era galhofeiro dizia:
— Quem diabo está aí a fungar, a rir-se da
minha rabeca? Anda cá menina que eles não te entendem!...
E
beijava-a repetidas vezes, balouçando-a contra o seio, acariciando-a como terna
mãe acaricia um filho. Isto dava sempre bom efeito, alegrava os ouvintes,
tornava-os comunicativos e contentes. Para que todos bailassem, o cego,
tocava-lhes a Caninha verde, a Maria Cachucha, o Afasta
janota, arreda, e os rapazes acercavam-se das raparigas, formando logo a
roda.
Se
o Carvalhosa presenciava, nunca deixou de dizer com sorriso de consentimento e
um dedo no ar:
— Moços! juízo, ouviram? Muito juizinho.
***
Agora
que andava de terra em terra, a força de simpatia e atração do José Domingues
dilatou-se por muita gente. A sua pequena estatura, a magreza do corpo, a
expressão terna, o olhar fixo e indefinido sempre voltado para a luz, a
delicadeza natural e a suavidade das suas falas, a inspiração muitas vezes
caudalosa e atormentada da sua rabeca... tudo se fixou na imaginação coletiva,
com traços vigorosos e duradouros. Ele é que levava pelo mundo a sua fama.
Todas as terras o estimavam e queriam a ponto de se falar com antecedência da
vinda do cego de Guardiã, que tinha épocas determinadas e fixas, para os
diversos pontos da província. Se tardava uma semana, isso era logo motivo de
reparo. Preocupavam-se com a ideia de que estivesse doente e nem queriam supor
que tivesse morrido. O seu aparecimento era considerado como o das aves
cantoras na primavera, que preanunciam os bons dias e as flores. Por isso era
recebido com verdadeira satisfação este portador de novas canções e,
principalmente as raparigas do povo, saudavam-no com alegria espontânea e
sincera. Parava a conversar com pessoas de diversas categorias, e sempre lhes
narrava coisas novas em que os interessava pela simplicidade da sua palavra.
Estas
jornadas, pelos ensombrados caminhos da província, começava-as no princípio de abril,
quando os pâmpanos rebentam e parecem olhos de sátiros a rir de todo o mundo. O
inverno passava-o em casa, junto do lar crepitante, no meio dos sobrinhos, que
lhe enchiam a alma de gozos paternais. Havia magustos com estouros de castanhas
e o bom rascante, colhido nas videiras que lhe legara o tio frade. Havia a
matança do porco e a consoada, que eram festas salutares e bulhentas. A neve
embranquecia os montes sobranceiros, a ríspida nortada esfuziava, às lufadas,
pelo vale. Era preciso cada qual acercar-se da fogueira para assim ludibriar a fúria
dos elementos, que zombeteavam cá fora. José Domingues com a sua modéstia bem
provida do necessário, dizia aos sobrinhos, quando tinham medo do trovão:
— Deixa lá, é a música do pai do céu.
— Gosto mais da rabeca do tio Zé. A música do pai
do céu, não presta — observou um de oito anos.
—
É zabumba — considerou filosoficamente outro de menos idade.
***
A
primavera fazia-o sair de Guardiã acompanhado do Miguel. Tinham um jumento para
levar o vestuário e o presigo dos primeiros dias. Durante as chuvas, como os pintassilgos,
tinha a voz amortecida. Só a fragrância do ar tépido e balsâmico o fazia
cantor. Sentia, como os que tem bons olhos, que a natureza se sutilizava para a
festa grande da criação. No fermentar estrondoso das sementes que rebentam,
estava a sua paisagem florida. As canções desta época, o Regadinho,
o Pintalhão eram vivas, travessas e maliciosas. As do outono
eram melancólicas, arrastadas e dolentes, sentindo-se no arco da sua rabeca
certa preguiça, e o sentimento das vozes ternas, que vem de longe pelas corgas
dos montes. Havia nesses cantos, notas flutuantes que pareciam folhas amarelentas
vagueando no ar, impelidas pelo rígido nordeste. Se na volta de um caminho
percebia alguma cantiga saída de pinheiral rumoroso, parava escutando e, às vezes,
rebentavam-lhe lágrimas. Aproximava-se o tempo de recolher a casa, às consolações
da família. Lá voltava a Guardiã com a imaginação cheia de lembranças
alegres. No lugar era festivamente celebrada a sua volta e, rindo e chorando,
José Domingues abraçava com efusão e verdadeiro prazer todos que se lhe aproximavam.
Dançava, pulava, atirava o chapéu ao ar, como uma criança!
É
que se sentia entre corações de amigos.
***
Num
desses períodos de inverno, que passara junto dos seus, ouviu ler na gazeta que
o padre Carvalhosa emprestava ao mestre-escola de Guardiã, que estava em Lisboa
e talvez viesse ao Porto e a Braga um rabequista celebre a quem chamavam
pomposamente o “primeiro violinista do mundo”.
— Olhem que não tocará melhor que o nosso José
Domingues — afirmou entusiasta e patrioticamente o professor.
— Ora, senhor José Fortunato, nem diga isso.
Eu, um pobre estúpido, posso lá!... — respondeu com modo agradecido.
— Deixa-te de tolices, homem. Olha que eu com
os sessenta e cinco que já conto, nunca ouvi como Frei Gonçalo. E já fui uma
vez a Lisboa, com o fidalgo de Refuinho, quando ele era vivo.
— Lá isso, maior que meu tio, não acredito que
haja. Devo-lhe a alma que tenho — confessou comovido.
José
Fortunato ainda acrescentou:
— Olha que lá as meninas (as de Refuinho)
estiveram no Porto com o tio general. Presenciaram por lá grandes coisas e
disseram-me que antes queriam ouvir o José Domingues.
— Isso são umas santinhas. Eu sou um pobre
cego, não sei nada, senhor José Fortunato.
— Não sabes nada? Sabes tudo, tens disto — rematou
o mestre-escola, batendo uma punhada sobre o coração.
O
mais velho dos sobrinhos do cego, compreendendo tudo pelo instinto, atirou a
carapuça ao telhado, gritando:
— Viva o tio Zé Domingues e a sua rabeca!
— Viva! viva! — acompanharam os outros.
Mas
o rabequista, ficou a cismar no que seria, essa maravilha tão apregoada pela
gazeta. Que poder, que atração teria no seu arco, esse homem que era superior a
todos os que havia no mundo! Na sua mente ingênua, apresentou-se logo uma
figura aureolada de sol, dominando a multidão dos admiradores que o aplaudiam.
Um público de fidalgos e mulheres ricas é bem diferente do seu, que era rude e
casual. Haveria fragor de entusiasmo, compreensão vasta nesse teatro em que as
luzes faziam sobressair a opulência. A apoteose alargava-se até aos confins
da terra e o artista vitoriado levantava-se até às nuvens... A alma calorosa do
cego de Guardiã, sentia-se inebriada com esse imaginado triunfo, a comoção
manifestava-se nas lágrimas que lhe apontavam. E batendo uma palmada no joelho
disse com resolução:
— Pois ainda não hei de morrer sem ouvir uma
coisa destas!
Nesse
momento chegou o Miguel Tinta a quem perguntou:
— Queres tu ir comigo a Braga ouvir o tal
home?! Talvez se lhe possa tirar alguma coisa.
***
Sempre
fora este o seu processo de aprender e progredir. Musica que ouvisse logo lhe
ficava. Tinha no Porto e em Braga, quem lhe arranjasse versos apropriados. Ás
vezes mesmo, lhe ministravam música e letra, o que valia ouro sobre azul.
Entrava em todas as igrejas onde ouvisse tocar o órgão e era assíduo perto das
bandas militares, quando soubesse que tocavam em público. Se qualquer música
lhe calhava, ele e o Miguel tratavam logo de lhe aplicar versos dos que sabiam
e assim chegaram a popularizar canções, como aconteceu àquela que principiava:
Veja lá menina
Se levanta a saia
.................
a
qual toda a província decorou. Algumas vezes aconteceu aristocratizarem-se as
suas modas até chegarem às salas de província, e então José Domingues
ouvindo-as celebradas em piano dizia com orgulho:
— Vê lá Miguel. Aquela trouxemo-la nós.
A
noticia que ouvira ler na gazeta do padre Carvalhosa, sobressaltou-lhe o
coração, cheio de entusiasmo pela música. Era rigoroso dezembro; o frio
enregelava as carnes; as neves cobriam os montes; o céu, estucado de nuvens cor
de lama, tinha uma imobilidade sombria. Os caminhos estavam intransitáveis,
muita gente lhe aconselhou a não fazer a jornada; mas ele, logo que soube que o
afamado rabequista chegara a Braga, resolveu o Miguel e partiram. Era como uma
peregrinação religiosa. De tempos a tempos, José Domingues soltava seus ais
admirativos e dizia para o companheiro:
— Mas como será este home, que é o primeiro
rabequista do mundo?
Miguel
observou ceticamente:
— Quem sabe lá! Isto de gazetas, consentem o
que lhe põem.
— Não, não. Deve ser coisa de respeito! — considerou
absorvido na sua ideia.
Logo
à entrada da cidade, perto da igreja de São Vicente, procuraram um estudante de
Guardiã, com o fim de lhe pedirem esclarecimentos. Souberam que tudo quanto se
dizia era verdade, que o senhor arcebispo, tendo escrúpulos de ir ao teatro,
convidara o famoso artista para tocar nessa noite no Paço. O estrangeiro acedera,
para conquistar as simpatias do prelado e do público.
— Ó senhor Joãozinho — suplicou José Domingues
— eu queria ouvi-lo. Não me poderá arranjar um buraco no palácio do senhor
arcebispo? Eu arrumo-me em qualquer parte. Um buraco que seja, menino.
***
Não
foi difícil obter esta ínfima posição. O estudante era amigo de um fâmulo de
sua excelência, o qual pôde esconder o cego num vão de escada, próximo do lugar
onde se realizaria o concerto. José Domingues levou consigo a rabeca, pois
desejava apertá-la sobre o peito para melhor compreender a música. Tiveram de o
introduzir de dia, num momento conveniente para não ser pressentido. Durante
umas seis horas, esperou que chegasse o instante. Encolhido, quieto, respirando
brandamente para não dar rumor de si, ali se conservou. Perto da noite, acometeu-o
uma sede furiosa, que suportou heroicamente, sem o menor arrependimento.
O
fâmulo que ali o introduzira, veio numa furtadela perguntar-lhe se estava bem e
o cego respondeu agradecido:
— Ricamente, meu senhor. Só tenho uma sede!...
Satisfeita
esta necessidade ficou num paraíso. Momentos depois entrava tudo quanto havia
de seleto na sociedade bracarense. A alta clerezia apresentou as suas famílias respeitáveis.
O general, o governador civil, o comandante do 8, o juiz de direito,
administrador do conselho, delegado, professores do liceu, trouxeram suas
esposas e filhas. Ondulava um murmúrio de vozes e de sedas, e José Domingues
ouvia pronunciar nomes consagrados, que toda a vida respeitara humildemente.
Isto aumentou no seu espírito o valor daquela festa, tornando-a imponente. Era
um deslumbramento e um céu aberto o que principiava a despontar na
sua imaginação. Agarrado a sua rabeca, apertando-a contra o seio,
estremecendo-a como se fora um ente animado, estava comovido. Ia-se verificar a
apoteose de um seu irmão, e ele identificava-se com a glória do artista que não
conhecia. Entrou o prelado. O cego deu conta desse fato pelo recuar de cadeiras
e pelos comprimentos. Pouco depois chega o rabequista e a curiosidade da parte
dos assistentes produziu um sussurro maior, que imediatamente se acalmou,
seguindo-se um silêncio de mar que se esbate sobre a areia.
***
Logo
que os primeiros sons da rabeca encheram a sala, a alma de José Domingues
sentiu-se arrebatada para um horizonte largo. Dos seus olhos sem vista,
irradiaram fulgurações de uma beleza sideral. Erguendo-se no amplo espaço com a
pujança de um crente, a sua imaginação livre, vagueou na largueza sem fim, num
redemoinho de harmonias, que o impeliam como ligeiro farrapo de nuvem. Toda a miséria
terrena desaparecera para ele. Não estava num buraco, como cão desprezível, sócio
e companheiro de ratos: aos seus olhos aparecia um amplo salão, ornamentado de
riquezas e de mulheres formosas. Esquecera-lhe o rouco uivar do vento sobre a
telha vã da sua pobre casa, os caminhos enlameados e cheios de poças, os
encontros por vezes desagradáveis da sua vida de tocador.
Quando
a rabeca tinha momentos alegres, extravagantes, buliçosos, José Domingues ia
indo naquela toada e vinham-lhe à mente coisas loucas e pueris: dançava em
volta de uma fogueira, abraçava as raparigas que lhe fugiam aos
gritos, ouvia repiques de sinos, e ao longe, a multidão festival passava para a
romaria. Se era a dolência das músicas espanholas, entranhadas de sentimento árabe,
espraiando-se brandamente, como as mansas águas do Mediterrâneo, os seus nervos
sentiam uma paz infinita, quase um torpor. A visão paradisíaca de uma primavera
só formada de cantos de pássaros e de perfumes de ervas e de flores, como ele a
contemplava nesses momentos, era mais intensamente bela do que a paisagem das
amendoeiras e dos campos cheios de trevo e de malmequeres brancos.
Mas
o seu pendor, a tendência da sua alma, era para todos os trechos lacrimosos, de
uma plangência terna que se abrissem largamente em espaços constelados. Não
valiam tanto os rouxinóis e os melros no meio silencioso das matas, e o rio
murmuroso ladeado de choupos. Corriam-lhe em fio as lágrimas e apesar dos aplausos
dos ouvintes, José Domingues sentia que eles não compreendiam bem aquela música.
Se ele pudesse, entraria de joelhos na sala, para beijar os pés do grande
artista mostrando-lhe a sua admiração, num choro copioso e entusiasta! Rastejar
pela terra como humilde verme, era o modo que a sua rudeza achava bastante
expressivo, para glorificar aquele seu irmão. Porque não procediam assim esses
homens que o ouviam? Vinham-lhe sufocações de cólera contra os que se não
levantavam em êxtases de um entusiasmo viril e ardente como o seu. É que não
tinham alma para sentir. Ele humilde, obscuro, rude, apertado entre as paredes daquele
buraco, era-lhes superior, compreendia o que eles não podiam compreender, tinha
em si um tesouro, que nem todos os tesouros da terra podiam igualar.
Vibravam-lhe no cérebro os ecos daquela música, a sua comoção era grande, os
soluços que não podia evitar apanhava-os nas mãos para não serem percebidos,
com medo de perturbar aquela música celestial!
***
Todos
estes sentimentos aumentaram de intensidade, e no coração repercutiram-lhe os frêmitos
majestosos de uma epopeia, quando os primeiros acordes da “Ave Maria” de Gounod
se fizeram ouvir. Na sua imperfeita compreensão, não se destrinçavam claramente
as belezas acumuladas no famoso trecho. Vinha-lhe tudo em globo,
tumultuariamente, como se a lendária figura da morte o arrebatasse num
instante, levando-o por ermos desconhecidos, onde a sensibilidade fosse outra. Naquela
ondulação luminosa de harmonias, sentia-se crescer, vencia espaços incomensuráveis,
passava gloriosamente sobre altos montes, ia em rápido voo sobre o mar
tormentoso, para no fim parar em regiões serenas formadas de luz e melodia.
Arrepanhava as carnes procurando a realidade na manifestação da dor; mordia os
punhos a ponto de fazer sangue; queria gritar e não podia; agarrava-se
energicamente à sua querida rabeca, numa efusão de ternura e o seu coração não
se apaziguava nunca! O canto angélico e suave crescia em profundeza, aumentava
em área — era como uma palpitação infinita. O cérebro de José Domingues enchia-se
de carinho, o entusiasmo sufocava-o, aniquilava-lhe as forças. E lá era levado
de novo, subindo até ficar sobranceiro às nuvens, conhecendo instantes de paz e
de tortura, chorando, sorrindo, estorcendo-se no chão como uma cobra ferida.
***
Os
bravos e as palmas desta vez foram mais estrondosos. Prolongaram-se porque era
o agradecimento final. Porém, todo esse ruído não pôde dominar um doloroso
grito, forte como se saísse do peito de Otelo num arranque de ciúme, meigo
como se fora o último queixume da rola Ofélia.
Ficaram
rapidamente silenciosos e perplexos os espectadores. Um soluçar ansioso
continuou e para o lugar de onde ele vinha se dirigiram as pessoas interessadas
em tamanha dor. Naquele buraco escuro, de bruços sobre a rabeca que esmigalhara,
estava o cego de Guardiã, que não puderam mais chamar à vida!
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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