8/23/2023

Notas de folhetim (Conto), de Antonio Jorge Halfeld


NOTAS DE FOLHETIM

Antiquado, contemporâneo e pós-moderno:
aí estão três locuções bem engraçadas.

“Às pressas conseguiu alcançá-lo; o último bonde partia. Nele, um fio de luz tremulava, desceu, seguindo pela longa rua de areia. Os acendedores de lampiões de poste e os andarilhos rapidamente desapareciam. Voltava do ofício, em traje formal, quando chegou à praia. Entreparou. Num relance, foi avistado por alguns que riam por detrás da vidraça de uma carruagem que rumava lépida, próxima ao areal. Bradaram: 'um amalucado, erradio…', pois que o noturno fitava enamorado uma antiga árvore. Ao se aproximar, depois de tutucá-la, à meia voz, murmurou: 'Temos a mesma natura! Nossa raiz – de areia e lembranças'. Reiniciou a andança, passou por montículos; quis talhar mensagens. Prosseguiu. À beira-mar, parou. A brisa estava ardente; a viração, rouquenha. Os seios petulantes das ondas, em ritmados carneirinhos. Pelo ermo areal lembrou-se da companhia da mãe, da alegre infância e da primeira princesa d'areia, risonha, espigada, semblante longilíneo, ao lhe sussurrar: 'ei, pequenito, ó, colibri, ai, bailarim do amanhã…'. Com os anos, naquele mesmo areal, ei-lo crescido com o apanhado bigode romano; às vezes, em bravatas consigo, desafiava: 'o amor é feito de sal e espuma!'. Permanecia no rochedo, até avistar aquele dileto chapéu de sol bem copado com laço sinuoso enastrado de conchinhas em toda aba. Certa feita, olvidou-se das guerrinhas de areia para segui-la com o olhar; ela que sempre sumia entre os rebordos, na direção, ali, sob o fascínio do sol cegante que pespegava a concavidade do rochedo e turbava-lhe a visão . Disperso, junto com os seus, brincava entre montículos, quando, casualmente, pela fisga de seus castelinhos, ressurgia. Ela passava garridamente; nisto, às carreirinhas, de olhos fechados foi ao encontro da mãe, porém esbararra nela. Assustadiço, estacou perante a tez de madrepérola. Entreolharam-se; ela perguntou: 'ah, sorte minha revê-lo, colibri; vamos apanhar conchas?'. Um largo sorriso dela perpassara do olhar como se espraiasse às mãos que a ele estendeu com brandura. Dessa vez, havia trocado o chapéu de sol pelo fichu, e, ainda a sorrir com os olhos de camafeu cujas íris, num silencioso fitar, possuía o lume de um topázio, num olho, noutro, matizes de esmeralda sob as pestanas bem franjadas. A catadora de conchas era ruiva e sardosa, vestes à flamboyant, às vezes, com o vestido ver-Deus. Nisto descobrira haver a única ruiva andante estrela da manhã! Eis que a anônima aparecia com busto lustroso, flancos rosados pelo entardecer; em murmúrio, entoava cantiguinhas, sorrindo para o mar, tamborilando com suas róseas unhas os gonzos ornados de conchas sonoras de muitos tamanhos e cores. Então, Martinho, entreviu que, à roda de si, a vida lhe flutuava como uma nau face ao mar absoluto. Num certo entardecer, ao contemplar o sol esmaltando o mar, imaginou que, na companhia da catadora de conchas, valsava sobre as ondas, a estreitá-la a cada rebento de espuma... Decidiu, à furtiva, acompanhá-la. O longínquo rochedo era o esconderijo, sumidouro da formosa. O praieiro quis melhor destino. Deparou-se, pois, com um inóspito edifício rochoso. Era já noitinha quando nele adentrou, mas o luar já irradiava as portentosas estalactites. Entre a penumbra e a luz, ele, ao se esgueirar por cubículos rochosos, cavidades e súbitas formações de água, não pôde regressar. O fragmento de alga trazido pelo rebento da pequena vaga cingia-lho à força de pequenos tentáculos! Chegou a uma estreitíssima fenda. Exausto, deitou-se no abrigo pontiagudo de pedra. Sonhou com a andarilha, com um ósculo recebido, que, de facto, existiu... Ela, arredia, primeiro aplicou-lhe nácar nas feridas; em seguida, tenteou suas pálpebras nos lábios dele, aconchegando-o numa ligadura de liquens. Lembrou do que lhe dissera um velho catador de siri: 'moço, deixe as fortunas, não procures os caminhos do mar... É preciso ser mais forte que a tristeza, moço!'. Porém, naquela noite, carpia muitas lembranças enquanto caminhava até chegar ao rochedo. Pensou ter ouvido os passos da andarilha. O sono causara-lhe essas impressões. Lamentoso, sentou-se à beira-mar, embora não mais percebesse os pensamentos de vagueza. Todo formal, ainda, mantinha o paletó e o panamá. Descaiu. Logo após, adormecera... Entre lágrimas e o clarão da lua! Entregue a um sono profundo passavam-se já algumas horas em que Martinho permanecia só naquele ermo areal todo penumbra. Nisto, um pouco da maré tocou-lhe a face, e a escumilha do sal aos lábios. Enquanto dormia próximo ao rebento das vagas, sonhou com o vulto da catadora de conchas; nele, ouvira a melodia épica das andantes cavalarias. Dormente, recitou: 'fostes até governador de ínsula, mas a formosura da andarilha praieira permaneceu-lhe qual lágrima clandestina, prezado Sancho. E a tua triste figura, Dom Alonso, teria o alento das risonhas sortes, já que Dulcineia, sob o murmúrio dos seixos, ao trilhar ribeirões e campinas, seria a maestrina de tuas sonatas como os guizos das conchas da andarilha para mim o foram. Então seguirias o horizonte, mesmo sem fitá-lo. Gaivotas agitariam espirais de partituras, donde valsarias, sim, sob o marulho infindo das vagas, às vezes, em meio a tormentas, mas sempre entre os punhadinhos dos grãos de areia escorregadiços sobre os rochedos, os quais te revelariam a canção dos redivivos e arcanos amores praieiros'. Amanhecera. A brisa marítima lhe restituíra algum sopro de vida. O panamá era levado pela discreta correnteza conquanto devolvido pela pequena onda seguinte. Despertava. Conseguiu soerguer-se enquanto os banhistas permaneciam a observá-lo. Recobrou consciência, embora algo dentro de si ou alguns dos seus pensamentos extinguiam-se. Abandonara o chapéu a brincar com as contínuas vagas, não descalçou os sapatos, batia retirada do areal. Ouviu a parelha que puxava o bonde, mas conseguiu alcançá-lo. Resfolegante, viajara em pé no estribo, fitava o areal e o rochedo à beira-mar, lembrou-se do vulto da andarilha catadora de conchas, todavia, esquecera-se de sua imagem. Ouvindo a ferradura dos cascos da parelha que puxava o bonde, murmurou: a ruiva estrela da manhã existiu?

Doravante, não soube, mais, livrar-se desse pensamento. 

Seus convivas desesperearam-se, enfim. Ao que, anos seguintes, ofereceram-lhe um novo logradouro para sua vivenda; sem qualquer desforço de Martinho, encaminharam para a longínqua extremidade onde terminava a quina do areal, aresta sem nome, pedregosa. Pelo que, o antiquíssimo leprosário convolado em sanatório possuía uma estreita testada, resto de tabuleta, poucos andarilhos aos seus arredores, embora durante várias horas, outros dali caminhassem do pavilhão ao sobrado, a se esgueirarem nos tapumes sobre os quais pontas de pregos ficavam viradas para cima, e que dividiam os pequenos cômodos. Leitos mal parafusados; neles ainda se amontoam esfarrapados roupões, chinelas desfeitas e longos vestígios da madeira corroída pelos salalés. O fartum é ainda mais triste que tudo. Ainda sim, essa Casa de Misericórdia conta com um inveterado guardador. Tão bons os préstimos que, ali, há lustros ele executa, que os trastes hospitalares e a escrivaninha oficial são-lhe vitalícios. Antes do oficialato, havia sido professor de liceu. Desde aquela época, sua aparente e fisionomia enfermiça granjeara intacto respeito, tanto que o alcaide e os comissários em vez de reformá-lo aumentavam-lhe o soldo, ofereciam-lhe comenda a cada lustro e mais divisas rubras em seu uniforme. Porém, poucas vezes adentrava ao pavilhão e ao sobrado separados pela imensa porta de ferro do amplo saguão que se transformara em seu particular gabinete. Em sua algibeira mantinha os prontuários de todas as épocas. Eis o inveterado guardador do hospício. Martinho foi recepcionado com um benévolo sorriso em sua presença e à frente dos que o conduziam. 'Obsequiosamente instamos que os delírios praieiros dele cessem de vez, que em suas andanças no areal não mais apareça em trajes formais para que não mais se embrenhe em rochedos…sobretudo para que não insista nessas coisas da qual ultimamente se alcunha: a teoria do romance'.

'Deixem-no aqui, senhores; sou daquele alvitre de que o repouso e a mansuetude inevitáveis deste local hão de reconvalescê-lo lepidamente. Talvez, passageiras alucinações. Embora raro,  há muito, passou aqui um negociador de prismas cuja alucinação fixara-se em certas refrações. Ainda que os desvarios possuam causas diversas, algo do tratamento poderá ser útil' acudia o alienista. Depois, a sós, Martinho notou o longo bigode deste, esmeradamente encerrado, com um soberano matiz ruivo cujo sorriso largo, em algum momento, lhe pareceu conhecido. Despojado do costumeiro feitio polido, o guardador recuou assim que o visitante quis cumprimentá-lo e logo se dirigiu à escrivaninha. Abriu a comprida algibeira inferior ao tempo em que sua fisionomia também luzira... Tirou um pequeno ficheiro, colocou-o sobre a mesa, interrogou brevemente seu novo hóspede. Em seu prontuário anotou: 'delírios praieiros; visões alucinantes, precipita-se em rochedos, escrevinhador; segundo afirmam seus acompanhantes, um volver ao mesmo chamamento — mostra-te ruiva estrela da manhã…'.

'Senhor Martinho, depois daquele portão de ferro há uma antecâmara. Por obséquio, troque-se imediatamente!'. Retornou tão macilento como os andrajos que o vestia, aspecto mortiço. Ainda mais dócil como dantes, o guardador apenas acenou para que adentrasse ao pátio. Antes de chegar à soleira, mantido o cativo sorrir no semblante de seu anfitrião, essa bondade d'alma — possivelmente testemunho dos bons ofícios que há muito praticava — tivera a magnanimidade em dar-lhe a bem-vinda coronhada d'uma carabina em sua pálida fonte. 'Eis sua primeira lição romanesca, seu parvo, adoidado'. Desfalecera. Recobrou-se num cubículo, o último cômodo do sobrado em desaprumo. Do pequeno postigo, cujos caixilhos eram carcomidos pela fuligem, sem qualquer reposteiro, ao longe, Martinho divisava o areal, o rochedo, às vezes, ouvia o longo apito do vapor, e, à noitinha, também, o vago som da andadura da parelha que puxavam os bondes. O rouxinol, único visitante, mui pontualmente aparecia sobre a cornija, porém, logo se despedia.

Entre as lembranças do enfermo que se lhe rareavam, cunhara-lhe na retentiva o vulto das andanças da ruiva catadora de conchas, aquele seu dócil e risonho olhar de camafeu...

Sob o ímpeto dessa lembrança, certa feita, arriscou a enveredar-se pelo pavilhão, transpôs a penumbra dali. Recordou-se do rochedo, há muito esquecido. Logo após, também, veio-lhe a imagem da andarilha nele sumindo. Possivelmente o lampejo da alucinação se interpunha. Chegara à porção pedregosa exterior; uma colina, à esquerda, um valado, à destra. Subia vagarosamente enquanto as bordas de seus imundos trajes esfarrapavam-se entre uma e outra lufada... Alhures, dantes, um peregrino praieiro; agora, um eremita de sanatório!

Pouco antes do poente, a garoa que cortinava o mar, em avanços desde o ancoradouro, chegava ao baixio. Ao se aproximar do hospício, o chuvisco mudara sua têmpera, donde se espalhou com ímpeto e despeito. Revoluteado em espirais nos pátios, em suas apodrecidas escadarias, inunda o pavilhão. Durante a borrasca, nenhuma ave marinha, tampouco as agourentas pousam naquele desterro. Ali, a tempestade, em riste, fustigava-lhe o rosto, os olhos e as pernas. Ai, peregrino, peregrinante,  não percebias que as tuas chinelas espedaçavam ao rés do outeiro pedregoso?

Ao que, aproximava-se do valado. A tempestade e a ventania amainavam naquele melancólico ermo desrelvado. Martinho, nos passos e semblante, reverbarava a desaventurosa coragem dos insanos; embrenhara-se, a desoras. Tropeça, fatigado; caíra sob uma rústica pedraria, lascada há muitos anos. Ali, perante a cova rosa, percebe que o frontispício da lápide ainda conservava a inscrição: 'um velho catador de siri'. Recordou-se da ladainha: 'moço, deixe as fortunas, não procures os caminhos do mar... É preciso ser mais forte que a tristeza, moço!'. Novamente caía. Recobrou-se como pôde. Esse regresso não mais lhe importava. A poucas braças dali, ressurgiam vestígios de relva, nela um clandestino canteiro, onde vicejavam uma petúnia e um crisântemo próximos a outro túmulo, nele ainda bem gravado: 'jovem formosa recolhedora de conchas'. Logo após, desfalecera, para sempre.

'Era um bacharel prestativo, havia sido coroinha, confiavam-lhe até a chave da sacristia'. O guardador do hospício apenas ouvia os comparecentes. Havia no leito de Martinho alguns papéis com os seguintes desenhos: um bonde sem letreiro nem condutor, longos rastros de conchas, um casal que valsava sob uma enorme vaga, que desaparecia com a espuma, mais uns manuscritos: ‘ruiva estrela da manhã, um dia, esse coração sonhava ser almirante das brisas, toda vez que eu a reencontrava na areia batida do pensamento; pois, quando desapareces, resta-me a sina de um triste corsário’. Noutro manuscrito, a seguinte expressão: 'Ei, pequenito, ó, colibri, ai, bailarim do amanhã…'.

Um solitário e habilidoso coveiro aprontou o jazigo próximo àquele onde Martinho expirou. O guardador recomendara-lhe o seguinte epitáfio: 'bailarim do amanhã…'. Via-se que o relógio de sol indicava, próximo ao pórtico, ser meio-dia na Casa de Misericórdia. Sentado à escrivaninha, o guardador cofiava o bigode, um ruivo bigode. Certas lembranças o demoveram de seu gabinete. Poucas horas depois, a sós, estava próximo a ambos os jazigos. Pranteava entre gemidos: 'minha filha!'.

Em certas manhãs, durante o fragmento do sol nascente, um estouvado par de beija-flores arremessava-se na mesma Lágrima-de-Cristo, sucedido pelo luar que resplandecia sobre o par de lápides. Esses espectros, em qualquer estação, não mais alumiavam qualquer outra porção do valado. Ao que, às vezes, pingos das chuvas tilintavam entre os bordos abaulados das lápides, mudando de um lado a outro, tocavam-se, embatiam-se no ar como num repentino ósculo enquanto no canteiro relvado banhavam a petúnia e o crisântemo, que se inclinavam vis-à-vis. Em seus ensaios sobre a teoria do romance, Martinho suspeitava que certas flores e botões, proximamente, amavam-se...

Não muito distante dali, numa daquelas manhãs em que o sol esbatia nas lápides bramia o rebento da grande onda sobre o rochedo donde ressoara longamente o som melífluo da concha marinha, furtiva e enorme. A viração suspendia ligeiramente o areal; eis que um par de nuvens movia-se de maneira mais grácil do que as outras colunas. No cubículo de um paupérrimo dispensário duas criaturas se confrangiam enquanto uma delas dava à luz! A parteira, em silêncio posto ofegante e a cada instante volvida entre as lágrimas de outras parturientes servindo-se apenas dos andrajos que dispunha, lépida e hábil durante a execução de seu ofício, à destra, acolhia a rosada recém-nascida em seu estrepitoso choro enquanto acorria para entregá-la à genitora; logo após, regressava, e, noutro braço, acalentava o outro pequenino cuja moleira meneava incessante e os olhos relutavam em abrirem-se... Já o rouxinol cantou três vezes ao beiral do aposento de Martinho, dali alçou um voo alto, altíssimo... Eis que numa capela longínqua, um velho padre recitava: 'Em verdade, em verdade, vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele fica só. Mas, se morre, produz muito fruto. Na casa do meu Pai há muitas moradas'.

Em alguma paragem, a centelha daquele amor capitulado haveria de renascer a partir do fim... Reencontro amorável, vivente, caminheiro, peregrinante”

E assim, a cada mergulho da pena ao nanquim, prosseguia o folhetinista em meio aos improvisos, lembranças e fugas que se lhe emaranhavam.

Eis que cerrara as pálpebras, tentou dormir; o dia, contudo, raiava. Ouviu uns ladridos, depois o uníssono dos pássaros vindos do jardim da praia. Percebeu a tênue claridade do dia. Abriu seu postigo para que o lume do sol nascente coasse o seu aposento. Embalava-lhe o ruído das ondas às pedras. Hoje o dia será esplêndido, acreditava! Um daqueles reluzentes de luz e de vida! Uma dúvida, porém, perpassara-lhe o espírito. Acreditaria, ou não, nos fragmentos de seus manuscritos? Nisto, a lembrança daquela andarilha praieira já se lhe impunha. Ainda acreditava que se reencontrariam n’algum ponto do areal onde, mesmo distantes, ambos sorririam, também, largamente com os cantos dos olhos, e, quando estivessem próximos, em absoluto silêncio dar-se-iam as mãos à luz do poente. Entre volteios e olhares como se valsassem, não mais se desprenderiam.

E, ao longe, ainda ouvia a cadência do tilintar das tipografias para a composição dos calhamaços destinados aos liceus, outros tantos para as defesas de teses dos catedráticos e lentes que se ocupavam em perscrutar conceitos e investigações fenomênicas sob os auspícios da vanguarda que as escolásticas sempre acenavam enquanto as belas-artes buscavam prefigurá-las.

Perene choque de gerações em que a caducidade das disputas é contrastada, com o sonho ou a invencível ilusão de um dia se eclipsar pelo chorrilho das perspectivas de um mundo novo, inteiramente modificado, futurista.

Essas circunstâncias perpassaram-lhe o pensamento enquanto escrevinhava seu romance de folhetim; porém, à medida que executava o solitário ofício de folhetinista, tais devaneios sobre os rumos das cousas, não mais lhe perturbavam como dantes, mesmo que os convivas desferissem que o seu modus vivendi estava perdido em costumes arcaicos, genuína quebra de uma ordem cronológica de seu existir.

Eis que, mesmo fatigado, ainda pensou: se aos provectos houvesse sido reconhecida a dádiva sapiencial, tal como sempre afirmam que para os augúrios da filosofia moderna, os problemas de outrora irremediavelmente seriam nulos, aliás, para a posteridade nem sequer inexistiriam, então porque a constelação de intelectos criadores dos conceitos contemporâneos e pós-modernos, baluartes da filosofia moderna, ainda se preocupariam em refutar conceitos clássicos da filosofia se as mesmas foram, há muito, vencidas sendo antiquadas?

Decerto porque tais questões nunca deixaram de existir, pois que a filosofia moderna não passaria de uma brincadeira louçã para com a vetusta filosofia.

Assim, seus pensamentos dissiparam-se.

Então, tomou alento, recobrou consciência posto antes em meio aos seus conflitos e devaneios se olvidasse quem ele mesmo seria.

Indagou-se: o amor é uma segunda vida? Ou é delírio? Ah! se aquela gentilíssima sorrisse, e enquanto seus ruivos lábios largamente fizessem um gracioso debuxo, um ósculo meu a tocaria…Um beijo em meio a um largo sorrir! Dentre esses devaneios, conquanto já fatigado, o folhetinista adormecia ou despertara. Já não sabia ao certo. 

No fecho, lia-se:

“Em vez da data, mês e ano, assim deve ser registrado: manuscrito em algum lugar, preteritamente; sim, é um fragmento perdido, ao modo de uma rasura, porém, não extinto, perene a quem houver de encontrá-lo”.

Grimaldo Avelar.

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