NOSSO
SENHOR JESUS CRISTO
Vinha
só e sentia-me triste sem motivo. O continuado e monótono barulho da carruagem,
o assobio dolente e vago do cocheiro, a amortecedora luz do crepúsculo
infiltrando-se por entre as penedias das encostas, os renques de árvores do vale
tinham-me lançado num estado de inconsciente melancolia. Já cansado da jornada,
ainda me faltavam muitas horas para chegar ao Arco, lugar onde ficaria essa
noite. Num estado intermédio ao sono e à vigília, as ideias perpassavam-me no cérebro,
umas vezes, como nuvens transparentes e macias recordando momentos degradável convivência;
outras vezes, encasteladas e escuras, como são as ideias próprias daqueles que
vão perdendo o contente palpitar da mocidade!... Oh! minha encantadora e
modesta infância, eu que sou um dos homens que mais tem rido, dize-me tu se já
algum dia fui alegre, despreocupadamente alegre!...
***
À
ponta da noite, no momento em que à luz indecisa, os objetos tem adquirido um
esfumado que os avoluma, a carruagem parou à porta de uma taberna para se desaguarem
os cavalos. Os meus nervos foram chamados à realidade com energia. Num
banco de pedra, desses toscos e muito usuais que se encontram junto das
habitações dos camponeses minhotos, estava sentado um velhinho magro, tendo ao
lado um saquito enfiado num pau e uma pequena almotolia de azeite presa à cintura
por uma correia. O seu rosto sumido era gracioso e terno como o de uma criança;
o sorriso natural, que lhe ressaltava da expressão, parecia sair de um berço.
Havia
o quer que fosse de inconsciente e etéreo, de amorável e bondoso, no rosto desse
pobrezinho. Ali ninguém o conhecia; mas ele olhava para todos com uma atenção familiar
e íntima. Um porco atrevido roçava-se-lhe pelas calças, roncava-lhe junto à cara
e ele afastava-o com humildade e carinho, dizendo-lhe até palavras de conselho.
De certo os seus nervos delicados se incomodaram com aquele grunhir insolente;
mas nem por isso se mostrava menos atencioso, para com o bruto. Falava a todos
tão suave e brandamente que a sua voz semelhava um murmúrio e uma consolação à cabeceira
de um enfermo. O seu olhar, de uma tranquilidade de justo, prolongava-se pelo
espaço infinito, quando olhava para o céu. Os cabelos brancos, enquadrando-lhe
o rosto pacifico, eram limpos, finos e flutuantes como flocos de neve, tinham
a transparência do nimbo dos santos. Tocou-me aquela bondade, aquele ar
compadecido e altivo. Pareceu-me um pedinte e olhei-o com atenção antes de o
interrogar. Ele sorria-se para mim, com a expressão de uma pessoa que conversa
junto de uma lareira aldeã, quando a fogueira crepita e o vento uiva vitoriosamente
sobre o telhado. Sentia-me atraído para ele e então perguntei-lhe mesmo de
dentro da carruagem:
— Vocemecê vem de longe?
Parecera-me
que sim. Os pés tinha-os doridos, talvez de uma longa caminhada. Estava ali a descansar.
A dona da taberna disse que o não conhecia e que não era das redondezas. O
velhito, como eu lhe falei, levantou-se sorrindo e aproximou-se. E num tom de mistério,
para que mais ninguém o ouvisse, segredou-me:
— Se venho de longe? De muito longe. Nem eu
mesmo o sei.
Tomei
estas palavras como de sofrimento resignado e tive piedade.
Não
sabia de onde vinha, estava alquebrado pelo cansaço e não encarecia as suas
dores para me pedir esmola! Conheci-lhe pela expressão dolorida do semblante,
quando pôs os pés no chão para me vir falar, que andara muitas léguas a pé.
Talvez para ir ver uma filha enferma! talvez para exprimir outro grande afeto
que lhe restasse no coração! Tantas terras percorrera, que até a sua memória
enfraquecida pela idade não retivera os nomes! Ter-se-ia perdido no caminho?...
Insisti
com modos de incrédulo:
— Essa é boa! Então não sabe de onde vem?
Olhou-me
com ar sereno e firme como de quem tinha dito uma coisa perfeitamente exata.
— Não senhor. Ninguém sabe!... — segredou-me
com extrema reserva.
E
acrescentou sorrindo inteligentemente:
— A mim ninguém me conhece; mas eu conheço
todo o mundo. Bem sei quem o senhor é... É o senhor conde. Ah! cuidava que não
sabia?...
No
rosto do pobresito apareceu uma aurora de triunfo. Para lha sustentar perguntei
muito baixo:
— Mas como adivinhou? Quem foi que lho disse?
A
enormidade do seu poder reconheci-a no desdém superior com que me olhou.
Continha lá dentro infinitos tesouros de sabedoria e perspicácia, à qual não
resistiam os insondáveis mistérios do amplo céu. Quem era eu, um misero conde,
diante daquela onipotência que considerava o globo terráqueo como uma
insignificante bolinha de pão?! Na minha tristeza e confusão devia-se
reconhecer que o compreendi; pois que o velhinho, para me consolar acrescentou:
—
Eu sei tudo, adivinho tudo. Se não digo de onde venho é porque ando por todo o
mundo. Agora aí vou eu para Espanha ver se componho aquilo e
se acabo com todas essas questões que por lá vejo. Levo aqui — designou o saquito
— os papeis e livros necessários para dar luz e felicidade a todos
— sublinhou.
***
Entristeceu-me
ver tamanho valor e convicção reunidos num corpo assim frágil. Pedi-lhe com
interesse e bons modos que me deixasse examinar os seus tesouros. Acedeu da melhor
vontade abrindo primeiro o saco de estopa, dentro do qual estava um de pano
preto, contendo ainda outro de chita de ramagens. O cocheiro e a dona da
taberna aproximaram-se ironicamente para desfrutarem o pobre; mas ele, com um
verdadeiro olhar altivo e nobre, afastou-os significando, que tais segredos não
eram para espíritos grosseiros e motejadores. A meu pedido os indiscretos
retiraram-se e por fim o pobresito mostrou-me envolvidos em farrapos e bem
ligados com fitas de cores e cordéis, três velhos alfarrábios em língua espanhola
e algumas folhas manuscritas, de uma letra amarela e ininteligível. Pelo meio
havia folhas secas de castanheiro, algumas flores mirradas e pequeninos ramos de
alecrim. Examinei com escrupulosa atenção estas preciosidades, dando-lhes
grande valor! Ele seguiu todos os meus gestos e movimentos faciais com
olho sagaz e aspecto orgulhoso. Quando lhe entreguei as suas preciosas relíquias,
encarecendo-lhas ele concluiu:
— Já o senhor conde vê que não é ninguém ao pé
de mim.
— Oh! de certo!...
E
depois que já tinha guardado os seus livros e papeis inestimáveis
perguntei-lhe:
— Mas como vem de muito longe deve trazer
fome. Quer que lhe dê alguma coisa?
Sem
altivez respondeu:
— É da lei aceitar sempre a esmola. Fome não
tenho. Ando por aqui há um rol de séculos e nunca senti fome.
E
com um sorriso delicioso, como quem faz uma revelação:
— Isso é para vocês que são deste mundo. Para
mim não, que não sou de cá.
— Ah! vocemecê não é de cá?
— Eu sim!...
E
sorriu-se da minha estupidez, da minha falta de compreensão, abrangendo num
infinito olhar toda a amplitude da terra ao céu! Habitava essas regiões ideais e
intermináveis do azul, suspenso na serena ondulação do ar, e bafejado da poeira
brilhante da luz. A expressão humilde e conformada do seu rosto, a
grandeza e compaixão que lhe ressaltava da voz fraca e singela, o seu triunfante
sorriso de tranquilidade... convenceram-me de que este velhinho resumia em si
uma entidade poderosa. Quem julgará ele representar neste mundo? — perguntei a
mim mesmo. Talvez algum santo milagroso, algum lobisomem das lendas, algum
bruxo afamado entre o povo!... A convicção da sua imaterialidade e do seu imenso
poder reconhecia-se que a tinha, pelo tom desdenhoso e superior com que se
referia a tudo que o cercava. Dele só veriam sair proteção e bondade: — os benefícios
que um ato rudimentar do seu querer podia espalhar sobre a terra eram incalculáveis.
Um simples desígnio da sua vontade tornaria os homens eternamente felizes ou
desgraçados. Não comia, não se cansava, não havia ponto na terra de onde
tivesse partido ou que devesse ocupar... — o mundo, o céu, os espaços inconcebíveis
eram a sede da sua ubiquidade. Nem a dor, nem o falível o tocava. A misera fraqueza
humana não a sentia, a contingência do globo merecia-lhe um pensamento
compadecido. Sereno e grande vivia no seu reino especial!...
Qual
seria pois, o personagem imaginário que este velho magro, de rosto sumido,
alegre, bondoso, expressão de soberba e de compadecido, julgava
representar? Perguntei-lho com a premeditada cautela que ele empregava nas suas
palavras:
— Então quem é vocemecê?
— Pois ainda não adivinhou?! Olha bem para mim
criatura!... Nosso Senhor Jesus Cristo!
E
fixando-me com tremenda piedade concluiu:
— Ando aqui para os salvar a todos.
Dei-lhe
uma esmola. O pobresito retirou-se serenamente, depois de me recomendar:
— Agora caluda, por causa desta gente. São
hereges, não acreditam.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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