DOIS
CATURRAS
— Como é belo aquele monte lá em cima! E é-o
por ser único!...
Leandro,
fingindo que não ouvira, monologava:
— Pena é não haver outro monte igual, do lado dacolá,
por causa da simetria!... Seria incomparavelmente mais belo!
Estas
palavras, já significavam uma trégua e uma reconciliação. Eram ironias mansas
ao fim de muitos anos de argumentos, em viva polemica, esmorraçando mesas,
quebrando cadeiras que atiravam às paredes juntas com apostrofes. Porém nunca
cederam, nem uma polegada, neste valioso ponto de estética que os separava.
Frei Antônio sempre partidário da unidade, da simplicidade
absoluta, e por extensão de princípio do pernão, detestava o par.
Tinha orgulho em ser padre, só por causa do celibato. No seu casaco sacerdotal
e na ampla batina usava um único bolso, para nele incluir todas as coisas
do seu uso — a caixa, as chaves, o lenço vermelho, um pequeno breviário...
E
justificava-se:
— Em quanto usei muitos, nunca encontrava o
que queria. Agora é só meter a mão e pronto. A caixa?... Aqui. (mostrava-a). O breviário?...
Ei-lo. As chaves? o lenço?... Tudo, num ai.
Exibia
os objetos com o semblante glorioso de um prestímano. Era agressivo e até
insolente para todos que lhe não aceitavam a invenção. Mostrava-se
propagandista, loquaz, capcioso, argumentado pelo seu lado.
***
O
Dr. Leandro deleitava-se com a opinião diametralmente oposta. Pela unidade e
por tudo quanto era impar tinha mais do que desdém, tinha desprezo. Dizia, como
frase de sentença, que a natureza nunca podia ser manca. Para irritar o seu
amigo, na presença de muita gente, extasiou-se diante da insignificante igreja
de São Francisco, só porque tinha duas torres iguais. Fingiu-se entusiasmado,
mostrando um pasmo acintoso e ofensivo, e exclamou com os braços abertos:
—
Que belo! Olhem como são perfeitamente iguais! Como é sublime a simetria!
Frei
Antônio sorriu amargamente, encolhendo os ombros, e respondeu com mal
desvanecido azedume:
— Deus, a suprema perfeição, é Um! Um
só!
E
espetando o dedo no ar demorou-se com ele, vingadoramente, diante do nariz do
doutor, que objetou:
— Mas Jesus Cristo, a encarnação do pai, tinha
duas naturezas, divina e humana.
O
sacerdote enchendo-se de cordura disse-lhe:
— Não gosto de meter nisto o divino; mas podia
responder que sendo três, — três! — sublinhou com ênfase — as pessoas da
Santíssima Trindade, essas mesmas se reduzem a uma.
— É tolo — ainda acrescentou o outro. — Não
sabe que pela conta do marinheiro, as pessoas da Santíssima Trindade são dez.
— Que diz você seu herege! — cresceu o
sacerdote indignado.
O
doutor explicou tranquilamente:
— Pois não sabe? Olhe. As pessoas da Santíssima
Trindade são três; Padre, Filho, Espírito santo — seis; três pessoas distintas
— nove; um só Deus verdadeiro — dez.
Os
circunstantes riram-se; o frade afastou-se trombudo; e, por agora, o advogado
ficou vitorioso, mostrando-o de um modo saliente.
Como
andavam sempre juntos, de momento a momento se levantavam novas birras. O Dr. Leandro,
que era magro, pertinaz e acintoso estava sempre a espicaçar o egresso. Nunca o
convidava para jantar, sem que o numero de convivas fosse par. Levava-os ao
jardim para verem as flores e notava-lhes, sempre com insistência, que as dispusera
pelo sistema de parelhas (de coices — acrescentava o frade). Se tinha de
abrir uma janela procurava logo estabelecer uma corrente dar, escancarando
outra, o que endiabrava o clérigo, que vivia no terror das constipações. Em
tudo se mostrava o rancor destes dois irreconciliáveis amigos. Indo no seu
habitual passeio, se encontravam alguém a cavalo, o sacerdote aproveitava logo
o momento para dizer:
— Bonita égua! Não haverá outra como ela, para
a emparelhar?
O
dono, se era vaidoso, respondia indubitavelmente:
— Nunca a encontrei. Pois tenho corrido um rol
de feiras!
O
sacerdote insuflava num sarcasmo mordente:
—
É porque não procurou bem. Aqui este senhor era capaz de lha arranjar.
— Pois não arranjaste! — duvidava o dono da égua.
***
O
doutor procurou imediatamente a sua desforra. Logo que viu O das
perdizes, na sua carruagem puxada pela ostentosa parelha de baios,
disse-lhe:
— Ó Pessanha! Se esses teus cavalos fossem diferentes
era muito melhor, diz aqui o frei Antônio.
— Pelo amor de Deus! não valiam dois patacos!
Uma parelha assim, é muito mais cara.
O
frade resmungou.
— Variatio deletact, meu fidalgo. Dessa
maneira até fazem mal à vista.
E
quando se distanciou a carruagem, disse o sacerdote avulsamente:
— O universo é um.
— Os mandamentos da lei de Deus são dez e
reduzem-se a dois.
— Já lhe fiz saber que não gosto de meter nisto
o divino, e lembro-lhe que a gente faz cada coisa por sua vez.
O
doutor apostrofou-o:
— Quantos olhos tem o senhor na sua cara?!...
— E não via as coisas muito melhor se tivesse
um só, na testa por exemplo, como os Ciclopes? Até não havia o perigo de se
entortarem.
Leandro
insistiu:
— Quantas pernas tem o senhor? quantos braços?
— E por quantas bocas come e diz asneiras o
meu amigo! Por quantas gargantas engole? — arremeteu o frade. O que o senhor
tem decerto, é dois juízos e nenhum deles vale tanto, como o casco de uma
cebola podre.
***
Estava-se
nas vindimas. O advogado ia todos os anos para a Feitosa e acompanhava-o ali
durante algum tempo frei Antônio. Era um costume já antigo. Leandro quis desta
vez apertar com argumentos materiais a paciência do sacerdote. “É
preciso provar ao latinista — pensou — que vale mais do que um simples casco de
cebola podre, o meu juízo.” Logo que frei Antônio chegou à Feitosa, onde o
doutor já o esperava, feriu-o uma novidade nos antigos e sustentados hábitos daquela
casa: — era a existência de duas mesas de jantar, uma para cada um. O doutor só
deu esta explicação:
— O senhor tem o seu sistema, eu cá tenho o
meu.
E
na mesa de Leandro havia dois talheres, dois pedaços de pão e duas canecas de
vinho. Em frente de um dos pratos estava uma cadeira, com um travesseiro a
fingir de pessoa e esse travesseiro tinha um chapéu na cabeça, um bigode de
sedas de cavalo e conservava-se empertigado, num sentido de troça.
O
sacerdote, teve um riso amarelo, fingiu que chasqueava e observou com grandeza
de animo:
— Também é a única companhia que merece.
E
foi-se sentar à sua mesa, que tinha tudo estritamente para um; mas em
quantidade muito resumida, tanto de vinho, como de pão. Depois de se ter sujeitado
heroicamente a esta prova durante alguns dias, tomou a resolução de assentar
junto de si dois bonecos de palha, pedindo que lhe servissem os seus
companheiros.
***
O
doutor, que se não quis mostrar vencido, levou ainda mais longe a premeditada
vingança, ordenando que no quarto onde sempre ambos dormiam, houvesse uma só
cama. Frei Antônio, um tanto perturbado, quando à noite viu isto, perguntou à velha
Joana:
— Quem diabo vem a ficar aqui?
— Os senhores ambos. Ora o demo da brincadeira
dos homes!
E
o advogado acrescentou:
— Em coisa de cama sou pela unidade. As últimas
chuvas tem arrefecido o tempo.
Ora,
se havia coisa no mundo à qual o sacerdote preferisse a morte, era a
dormir com outro. Homem gordo, de um suar fácil, impaciente no sonho, gostava
de roncar à vontade, de alargar as pernas e deitar os braços de forra, quando
lhe aprouvesse. Antes passar a noite no chão, numa manjedoura, ou sobre tojo!...
Desde que outro padre, numa estalagem de Trás-os-Montes, o atirara da cama ao
chão, estando ele a dormir e tendo por essa ocasião ferido a testa e o nariz
nos cacos de um objeto que se quebrou, nunca mais aceitou companheiro de
dormida.
Leandro
sabia que o atacava no ponto mais fraco. O frade disse simplesmente, em tom
resoluto:
— Para graçola é de mais! Bem sabe que não
durmo com outro. Então monto a cavalo e vou-me já, mesmo de noite,
embora.
— Pelo que vejo, a respeito de cama... para
dois... duas?! — disse com ironia o doutor, mostrando-lhe a outra que estava num
quarto próximo.
E
como não concluíra ainda a sua argumentação pelos materiais quando
no dia seguinte, frei Antônio procurava os butes, para ir dizer a missa
conventual, a que se comprometera, encontrou somente um. Sem ainda calcular a
significação do acontecimento, veio à porta em palmilhas de meias, e gritou
pela frincha que abriu:
— Ó Joana! O outro bute?
—
Pergunte por ele ao senhor doutor.
O
eclesiástico compreendeu e disse zangado:
— Mau! mau! mau que marrenego!
Então
Leandro, com ingenuidade fingida, respondeu-lhe do quarto:
— Passou aí ontem um pobre, descalço de um pé
e dei-lho. O amigo tem na realidade dois pés?
Frei
Antônio, com ar apoplético, em mangas de camisa e em palmilhas, o grosso tronco
batido pela luz da janela do corredor, retorquiu energicamente:
— Tenho sim senhor e você tem quatro. Ponha cá
o bute e deixemo-nos de chalaças. Já tocou há um pedaço. Se essa gente fica sem
missa por causa das suas brincadeiras... quero ver.
***
Isto
passava das marcas. O sacerdote procurou um meio de tirar a desforra. Havia de
ir ter-lhe ao bolso, que era aonde doía mais ao sovina do Leandro. No Bracarense da
véspera anunciava-se a próxima chegada, à cidade dos Arcebispos, da atriz Emília das Neves, tão celebre e tão gabada, que ali ia representar no teatro de
São Geraldo. O padre, encobrindo ruins intentos, convidou o doutor para irem a
Braga. O advogado chasqueou-o por esta manifestação de mundanidade, porém o eclesiástico
explicou-se com modo circunspeto:
— Não que ela só representa dramas sacros. Nem
o senhor Arcebispo, consentia outra coisa, na sua cidade.
Combinaram-se
numa aparente harmonia, aceitando ambos este período de trégua. O frei Antônio
fazia de bolsa. Como era expedito, sagaz e conhecia Braga, o seu amigo
facilmente lhe entregou a administração das finanças comuns. Porém, mal
conhecia o advogado o que podia dar o rancor de um frade, que é espicaçado
no que ele tem de mais precioso, o apetite. As humilhações, as zangas, a quase
fome dalguns dias na Feitosa, haviam dado ao rotundo eclesiástico um faro agudíssimo
de vingança. Logo na diligencia principiou por comprar três bilhetes,
entregando dois a Leandro que observou secamente:
— Na verdade eram bem precisos três lugares, atendendo
a que o senhor não é um homem, é uma pipa.
Em
Braga, no Transmontano, o doutor notou que o dono da hospedaria, um velho coxo
e rabugento, que estava sempre a praguejar diante do forno, se ria
descompostamente a tudo quanto lhe segredava o seu velho amigo frei Antônio e
que dissera depois de um desses colóquios:
— Então afinfa-lhe? Trinca-lhe bem e
entorna-lhe melhor? Vai válido.
E
também percebeu que o sacerdote acrescentara:
— Tudo à farta e contas separadas.
Porém
Leandro não se deu por achado. Alongou os beiços, sorriu com esforço e à mesa
onde estavam três talheres, mostrou uma aparência calma e de coragem.
Por
certo que idênticas advertências haviam sido feitas ao Miguel, um criado bêbedo
e feio, que jogava a batota com os hospedes, pois que esse Miguel, ao
segredo do frade retorquiu olhando de soslaio para Leandro:
— Está dito! Que pândegos!
E
apesar da resolução em que o doutor estava de se mostrar digno e conveniente
até ao fim, não pôde deixar de se sentir estrangulado pela indignação, quando
viu que o seu amigo lhe comprara dois bilhetes para o teatro. Isto não tinha jeito
nenhum, era atirar dinheiro pela janela sem necessidade! Na hospedaria, fechado
dentro do seu quarto, que estava preparado para duas pessoas, quando ele era só
um, exclamou voltado para o teto:
— Este padre é o demônio! Mau raio, se lhe não
espeto uma faca naquele bandulho!
Minutos
depois veio pelo corredor frei Antônio que disse, falando pelo buraco da
fechadura:
— Adeus Leandros, boas noites.
E
logo em seguida, o Miguel acrescentou com a sua voz avinhada:
— Com bem passem, senhores doutores.
O
advogado que já estava na cama e com a luz apagada, ressonou forte, para não
responder. No dia seguinte levantou-se cedo, com o fim de ir sozinho almoçar
debaixo da Arcada. Mas frei Antônio, que o espiava, seguiu-o de perto,
entrando logo depois dele e mandando vir para três. Leandro ao sair a porta do
botequim, pronunciou de si para si:
— Isto acaba hoje! Deixa estar que hoje acaba!
***
Tinha,
porém, urgente necessidade de mandar fazer uma roupa de pano preto — sobrecasaca,
calça direita, colete de cerimônia com uma só ordem de botões; fazenda boa que
lhe durasse o resto de vida, que servisse para visitas e festas. Frei Antônio
conhecia na rua do Souto um mercador de confiança; o doutor era menos pratico
na cidade e por isso não teve remédio senão entregar-se-lhe. Pareceu-lhe que neste
particular não podia haver novidade. Foram ambos, ao lado um do outro, silenciosos
e escandalizados.
Em
quanto um mestre de atrás da Sé tomava as medidas, falou-se de
política... em deputados... e o negociante, homem discreto, de barba em
serrilha opinou:
— Boa asneira! Esfalfa-se a gente para os
mandar para essa Lisboa e lá não fazem mais do que andar na pândega, com
moçoilas e em teatros. Tributos são de cada vez maiores! No tempo do
senhor D. Miguel...
O
alfaiate, absolutista sanguíneo, parou subitamente e disse numa arremetida,
olhando por cima dos óculos, com a medida suspensa da mão:
— E acreditam, que o rei legitimo, não há de
vir por forra do seu reino esta cambada?!
Todos
concordaram em que havia de vir, menos o doutor que já lhe tinha perdido as
esperanças e se fizera liberal.
Quando
voltaram à terra, Leandro teve uma viva polemica com frei Antônio, por causa daquelas
asneiras forra de casa. Não era por gastar mais ou menos uma moeda, porém
embirrava com tanta tolice diante de desconhecidos. O frade respondeu-lhe que
bom gado era porcos, levou-o de troça e continuaram nos seus passeios e nas
suas caturrices habituais.
***
Quinze
dias depois, o advogado recebeu pela diligencia de Braga duas encomendas. Abriu
a primeira e nela encontrou a roupa que mandara fazer. Vinha tudo nos termos e
a seu contento. Vestiu-a para ver se lhe estava bem e a velha Joana que ele
chamou para dar parecer, disse que estava mesmo um cravo, e recordou-lhe os
seus tempos de rapaz, quando ele vinha de Coimbra e era de todos o mais janota.
Fora nesse tempo que... Ela era criada da mãe de Leandro, uma boa senhora,
temente a Deus, confessando-se a miúdo e repreendendo sempre os atrevimentos e
brincadeiras do filho com as moças!... Havia 40 anos que Joana ali estava e
ainda na memória se lhe avivavam facilmente todos os quadros ridentes da
mocidade!...
— Mas a outra encomenda? — lembrou.
— É verdade — disse o doutor — isto não é para
mim. Há de haver engano.
Mas
pegou nela, remirou-a por todos os lados, apalpou-a, cheirou-a para adivinhar o
que seria... e nada! Pela terceira ou quarta vez releu o subscrito, que era do
mesmo talho de letra da do negociante que lhe remetia a sua roupa e com os
mesmos dizeres.
— Só se frei Antônio também encomendou alguma
coisa e que ma mandassem para eu lhe entregar — considerou com o embrulho
suspenso nas duas mãos.
Para
satisfazer a curiosidade de Joana, sempre foi desatando os barbantes, com
precauções e cautelas, na convicção de que era coisa que lhe não pertencia.
Encontrou outra roupa, perfeitamente igual à sua. Não podia presumir
brincadeira tão pesada do seu amigo, e, como ele morava perto, mandou-o chamar.
— Sabe para quem é esta coisa? — perguntou
serenamente.
— Eu! Como posso adivinhar?!
— Nada de brincadeiras — avisou. Será para si?
— Não gasto desses luxos. Nem eu cabia dentro deste
pé de meia — retorquiu ironicamente o frade, suspendendo as calças no ar.
— Mas com mil demônios! — interroga
colericamente o doutor. Sabe ou não sabe?! Responda.
O
frade respondeu com todo o sossego:
— É provável que seja para si. Em Braga, ninguém
ignora que o senhor é dois!
O
doutor adiantando-se, pôs-lhe diante dos olhos um punho cerrado.
— Sabe o que eu ignorava? — gritou. É que o
senhor fosse um pedaço de asno como é!... Que o arrebento, seu odre!
O
frade escandalizado, escachou as pernas e apresentando-lhe de frente o seu
valente tronco, opôs-se-lhe com veemência:
— Ameaçar-me! olhe que o leva um milhão de demônios,
seu cabrito esfolado!
E
saiu nobremente da sala. Durante boa meia dúzia danos, conservaram-se inimigos
e sem se falarem. Porém depois reconciliaram-se num jantar de boda, onde ambos
se emborracharam até à ternura das recordações, e dali ao fim da vida,
continuaram a sustentar as suas teorias e a dar os seus passeios habituais.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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