A
VISTA DO SALGUEIRO
(CONTO PARA CREANÇAS)
Na
tarde serena de um dia de agosto, Ambrósio, foi visto na margem, sentado numa
pedra, o queixo pousado nos joelhos, a olhar fixamente e pasmado para uma árvore
do outro lado. O céu era dum azul pálido; as águas passavam silenciosamente,
até entrarem na goela de azenha, onde produziam um sussurro; a roda movia-se de
vagar; porque a força do rio era pouca... O pensamento de Ambrósio voava, num
mundo de independência e maldade, planeando vinganças contra o moleiro seu
inimigo. Era um ódio velho, nascido de conflitos diários, agravado por muitos
nadas de que, o do moinho, nem tinha consciência. No corpo de Ambrósio, magro
como de feiticeira, passava-se no momento em que o viram a olhar para o triste
salgueiro, uma luta violenta e feroz.
Nesse
dia, aparecera-lhe em casa, um bácoro de perna quebrada. Sem mais refletir atribuiu
logo o malefício ao danado vizinho e foi para ali ruminar uma vingança, que o
deixasse consolado. Tinha um coração de pedra este demônio de velho! Se não
fora assim, como poderia gozar, inventando martírios, numa tarde serena de
verão, toda silêncio e bondade!
Mas
não se desprendia do terrível desejo de matar o moleiro, com os maiores sofrimentos
e castigos, que no mundo tivesse havido! Seria capaz de se vender ao diabo, só
para conseguir o seu fim.
***
Veio-lhe
esta ideia audaciosa e encarou-a resolutamente. Tão firme foi o seu pensar, que
logo o diabo em pessoa ali lhe apareceu diante dos olhos, oferecendo-se-lhe
para tudo, em troca da alma se ele realmente lha queria vender. Era figura bem
conhecida, a que estava diante de Ambrósio: — meio homem, meio cabra; um
comprido pelo cobrindo-lhe o corpo; um rabo a dar para um lado e para o outro,
como o de um lobo; os cornos arrebitados na cabeça; e os olhos a coriscarem
como dois carvões acesos. O velho não se atemorizou, e como desejava vingar-se
do moleiro, sentiu o peito cheio de gozo, quando o diabo lhe disse:
— Ouvi a tua voz. Aqui me tens. Aceito o teu
contrato. Pede o que quiseres.
— Então tu é que és o diabo? — perguntou.
— Eu mesmo. Sou o que tudo posso depois lá
do Outro (apontou desdenhosamente para o céu). No meu reino
posso mesmo mais do que Ele.
— Fazes-me tudo quanto eu quiser para matar o
moleiro?
— Tudo, com tanto que me entregues a tua alma.
— E para que queres tu a minha alma?
— Para a guardar junta com outras.
Ambrósio
observou escarnecendo:
— Não acredito que faças bom negocio. Pelo que
dizem os padres, a minha alma não presta. Dou-ta, mas hás de trazer-me aqui o
moleiro pelo cachaço, e depois de bem amarrado e preso, deixares-me fazer
o que eu quiser. Mas quero-o bem amarrado e preso, porque tenho medo, entendes?
— Se entendo!... E só queres isso?
— Se perguntas é porque estás em maré de fraqueza.
Então vá lá: Quero ser rei; ter muito dinheiro, muitos palácios, muitas
cidades, muitos cavalos, coisas ricas para comer.
— Só isso?
— Com a breca! Muito boa deve ser a minha alma
para ti. Olha, já que ofereces, quero uma sanfona, para tocar aos ouvidos de
minha mulher, quando ela estiver a resmungar... Tu sabes; às vezes leva noites
inteiras ... ron-ron-ron... ron-ron-ron...
— E por quanto tempo desejas tudo isso?
— Essa agora é que nem parece sua, seu diabo!
Isso por muito tempo.
— Não posso dar-te tudo por mais de cinco
minutos.
— Cá me parece sovinice. Cinco minutos não é
nada.
— É tempo bastante de gozares todas as coisas
que pedes e de te aborreceres de todas elas.
Ambrósio
deu uma estrondosa gargalhada, que encheu todo o vale, repercutindo-se nos recôncavos vizinhos. O diabo acrescentou:
— É como te digo. Nesse ponto te mostrarei o
meu grande poder. Um minuto basta para eu fazer passar na tua vida, todas
as grandezas da terra. Outro minuto para percorreres todas as grandes cidades
do mundo. O terceiro minuto para tocares sanfona a tua mulher e ela morrerá de
desespero. O quarto para matares com toda a pachorra o moleiro.
— E o quinto? — perguntou Ambrósio.
— Esse é para te aborreceres.
— Como tu és grande, diabo! — disse o velho entusiasmado.
Aceito.
— Deixa tirar uma gota de sangue das tuas veias.
Com esta pena de mocho, molhada no teu sangue, hás de por o teu nome neste
livro.
O
inimigo do moleiro sentiu uma picada no sangradouro e logo o seu nome apareceu
brilhante como o fogo, na pagina onde o escrevera, obrigado por uma força irresistível.
***
Depois
um vento infernal levou-o pelo espaço. Tudo quanto via e gozava eram
deslumbramentos e delicias. Corria-lhe o corpo um calor de mocidade. Ricos manjares
eram servidos em pratos de ouro; as festas mais divertidas e luxuosas,
passavam-se em palácios de marfim e cristal. Camas formadas de fofas nuvens, apareciam
dispostas para um momento de cansaço. Levado milagrosamente, passou sobre os
mares onde ruem tempestades, viu a seus pés cidades cheias de bulício e riqueza,
os reis da terra ofereciam-lhe homenagem! Os montes de perolas, ouro e
diamantes já eram para Ambrósio coisas sem valor. Por causa de um mosquito que
lhe passou no nariz, teve uma rajada de cólera, que fez tremer toda a terra!
Logo
em seguida viu humilde e suplicante o moleiro, que já estava preparado para o sacrifício.
— Quero matá-lo cá à minha moda — disse para o
diabo. Há de ser num banco, escochinado, como um porco.
No
momento seguinte estava junto de sua mulher tocando-lhe sanfona aos ouvidos. A
pobre velha, entrevada na cama, havia muitos anos, suplicava com olhares, que
lhe não atormentassem as últimas horas de vida. Porém o marido, homem de
coração duro, foi implacável até ao fim e viu-a morrer no meio de sofrimentos horríveis.
Depois é que deu começo à tarefa mais importante, que era dar morte aflitiva ao
moleiro.
***
Espatifá-lo
como um porco fora sempre a sua ideia fixa. Ia realizá-la. A cena passa-se no
quintalito junto do rio. A vítima, com a sua grande estatura sai do moinho. Vem
manietado e humilde, ao pé do algoz, apresentar-se para o sacrifício. Ainda que
não ousava levantar os olhos, o seu porte era digno.
— Ah! — disse Ambrósio com grande satisfação.
Vamos lá a isto?
O
próprio carrasco, é que foi buscar um banco. Apontando para ele, mostrou-o à vítima,
com riso de mau:
— Há de ser aqui.
O
pobre moleiro conservava-se calado e triste. Não ousava ter olhares coléricos,
talvez, para o suplicio lhe ser menos bárbaro. Não pedia; pois era um
homem valente, digno, bondoso e reconhecia a crueldade do inimigo.
Ambrósio
continuou:
— Só para chegar a isto dei a minha alma ao
diabo. Se mil almas tivera, todas daria, só para te cravar mil vezes uma faca
no coração e tirar-te mil vidas que tu possuísses. Quem foi que me quebrou a
perna do bácoro? quem me fez secar a laranjeira? quem me roubou a panela velha,
com que eu tirava água do rio? quem me estragou o manjericão?
E
como a vítima dos seus ódios, continuava a olhar para a terra, sem responder,
escarneceu:
— Ah! não foi ninguém!... Estas coisas
fazem-se por si. Alem de seres o grande ladrão, que me roubou os feijões, és
mentiroso. Pois vais pagá-las todas juntas, meu rico amiguinho. Ora deite-se nesta
cama.
E
com uma força que não era a do seu braço enfezado e velho, pegou no moleiro que
era um gigante, e estendeu-o como uma arveola sobre o banco, atando-o
fortemente com cordas.
— Agora espere que vou aqui buscar uma coisa.
Logo
apareceu com um alguidar e uma comprida faca de matador. Mostrando estes objetos,
acrescentou:
—
Isto é um alguidar para receber o teu sangue vermelho e quente. Isto, uma coisa
a que se chama faca para te fazer cócegas no coração. Talvez ainda tenha tempo
para arranjar um serrabulho desse sangue e coração. Vamos à obra que se faz
tarde.
Com
placidez, gozando à vontade o martírio do paciente, principiou a arregaçar os
punhos da camisa de estopa. Mostrou a faca reluzente à vítima que estava
deitada. E voltando-se para o diabo disse:
— Você muito pode, seu amigo. Como eu tenho
aqui este fanfarrão, sem se mexer? Tenho pena que meu pai me não tivesse feito
duas almas, para lhe dar a você!
O
demônio austero e grave não respondeu à lisonja. Ambrósio entrou de novo no seu
pardieiro e trouxe um púcaro d’água quente. Tinha de molhar a pele da vítima,
para a ponta da faca entrar mais firmemente. E chapinhando na garganta com a
mão molhada, tinha uma respiração de homem feroz.
Apontou
a faca ao lugar apropriado, principiou a enterrá-la lentamente, para a dor ser mais
prolongada, o sangue já saía em borbotões do peito arquejante do moleiro.
— Não berra como os porcos, este maldito! — considerou
Ambrósio.
Ia-lhe
remexendo cruelmente com o ferro nas entranhas! Gozava a sua vitória, fazendo
sofrer a vítima.
Foi
prolongando este gozo até aos últimos momentos do moleiro. E quando reconheceu
que ali estava definitivamente um morto respirou:
— Ahhh!... Isto valia bem uma dúzia de almas!
Quanto falta senhor diabo?
— Vai acabar o tempo. Já lá te esperam. Olha!
Apontou
para a boca de um enorme forno, onde entre as labaredas infernais estavam
homens e mulheres dando gritos. Todas as velhas ideias de Ambrósio sobre penas
eternas, se condensaram naquela realidade. Afrontou heroicamente um tal espetáculo,
diante do qual o seu coração desumano, ainda teve coragem para beber do sangue
do inimigo! Porém o mundo infernal das chamas e gritos, crescia rápida e
formidavelmente. O diabo sereno e majestoso estendia-lhe a mão para o agarrar,
com as suas unhas de macaco! O aspecto do demônio era tão medonho e terrível,
que o velho Ambrósio teve subitamente um grande medo, todo o seu corpo
estremeceu como se oscilasse o mundo, amedrontado e covarde ia a dar um passo
para fugir...
Nesse
instante escorregou e caiu ao rio. Começou a berrar por socorro como um
possesso. O seu choro era mais infeliz do que o de uma criança sem mãe.
A
água escaldava-o e sentia-se atrasado como no meio de labaredas infernais! Quem
lhe havia de acudir naquele instante de aflição? Foi o vizinho, o moleiro, a
sua vítima que saindo forra do seu moinho o viu debater-se covardemente, como
se estivesse assoberbado, por ondas de um mar tormentoso!
— Eh!... diabo de gato! — disse o colosso metendo-se
ao rio e agarrando-o pela gola da vestia. Como diabo te aconteceu isto?
Levou-o
para sua própria casa, meteu-o na cama agasalhado, deu-lhe um caldo quente para
o revigorar. O velho Ambrósio, olhando-o receoso, batia o queixo de medo e
dizia com a cabeça debaixo da roupa:
— Nada, não quero; ele pode deitar ressalgar
no caldo!
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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