8/06/2023

A velhice de um rei (Conto), de Teixeira de Queiroz

 

A VELHICE DE UM REI 

Sentado na larga poltrona de seda azul, o monarca conversava em voz pausada e lenta. Uma graciosa imagem da Virgem, talhada em marfim, por desconhecido artista da Renascença, dava-lhe ensejo de explicar a velhos amigos, como conjeturava, que teriam trabalhado aqueles talentos singulares, criadores de tantas maravilhas. Tenuíssima nuvem de paz, de conforto, de luxo estudado, pairava sobre este ambiente, tornando-o em região intermédia à riqueza mundana e à severidade do gabinete de um sábio obscuro. No rosto sereno do rei, havia o orgulho do nascimento e a tristeza própria dos anos. A sua longa barba branca, objeto de veneração em todo o país, era até comentada entre a gente rude dos campos. Quase a tinham como símbolo de orgulho nacional, pois com jactância afirmavam não haver outro rei com barba tão longa, tão linda e tão branca.

A vaidade das coisas realengas — orgulho natural nos paços doirados, sentimento peculiar dos que soltam os primeiros vagidos sentados num trono — diziam que a não tinha. A abnegação e o desprendimento de todas essas pompas eram-lhe atribuídos com meiga simpatia entre as classes populares, que são as que melhor compreendem as inclinações democráticas. Ele abdicara em seu herdeiro o poder de que dispusera durante muitos anos e havia praticado esse belo ato sem ostentação e logo que o príncipe chegara à maioridade. Adquiriu a liberdade de homem, entregando-se às suas coleções artísticas, aos prazeres da caça e à conversação inteligente. Perdia-se dias inteiros na espessura das matas reais sempre poeta, contemplando a luz e vivendo intimamente na absoluta natureza silenciosa. Para ser um bom rei, querido e estimado, até muitos o diziam generoso e esmoler.

Porém, nem todas as pessoas tinham esta opinião benevolente. Alguns revelavam que fazia sentir as suas dádivas, falando delas. Censurava os gastos de muitos que os não podiam fazer, tinha a opinião de que a sua bolsa não era inexaurível. Egoísta e reparador — chamavam-lhe. Desfazia com palavras, alguma generosidade que praticava. Apontavam como imprópria, a ponta de avareza que esburacava o manto real. Um soberano amesquinha-se falando de coisas tão vulgares. Era o que faltava que procedesse de outra forma. Não fazia o povo muito mais pelo rei, do que o rei pelo povo? Qual era o azeite e o vinho que produziam as extensas coutadas que a nação lhe dispensava para os seus divertimentos?!...

***

Depois a velhice tornara-o rabugento. Os camaristas para lhe entreterem as insônias, tinham de colher ou inventar episódios escandalosos. Era fatigante a sua exigência nos detalhes e torturava-os com repetições. A surdez obrigava-os a servirem-se da corneta acústica para lhe falarem. Havia perguntas e respostas disparatadas, situações grotescas que depois se desfaziam em motejos nas antecâmaras. A consciência destes fatos entristecera-o e só a muito custo lhe tiravam um sorriso, um ar de aprovação. A sensibilidade embotara-se-lhe com a velhice e só historias picantes, difíceis de inventar, conseguiam distraí-lo.

A rainha,(tratavam-na assim por deferência, só dentro do palácio) esposa morganática do rei, senhora ainda forte, saudável, com vida para gastar, abandonara-o neste período de doença, sob pretexto de que ele estava mais satisfeito entre os seus amigos. A falta de um contato feminino, que lhe enternecesse a organização, fizera variar aquela sensibilidade que fora delicada e exigente. Só episódios burlescos, onde aparecessem mulheres adulteras, maridos comicamente traídos, criadas servindo intrigas amorosas, homens escapando-se de gatas por telhados... é que lhe enchiam o vazio das longas insônias. Alguns dos seus camaristas eram rapazes de sangue ardente, criados numa vida ociosa e delicada. Passavam um aborrecimento naquele palácio de grossas muralhas. O que lhes valia era a conversação das companheiras da rainha, senhoras formosas, muitas gentis, todas de uma educação esmerada. Desanuviavam-se reciprocamente daquela vida pautada e monótona, fazendo má língua, falando da sociedade com a liberdade de parentes e camaradas. Um ou outro de apetites mais grosseiros, preferia abraçar nos corredores sombrios as simples criadas, mulheres de carnes saudáveis, sangue plebeu e revolto, que enchem a existência de alegrias. As provas de tão insignificantes delitos estavam nos beijos a cantar na escuridade, nos vultos a fugir cautelosos, nas palavras de carinho apanhadas avulsamente num perpassar rápido.

***

Um dia, o médico de serviço aproximou-se do rei para lhe tomar o pulso. A um contrair facial de suspeita do facultativo acrescentou o monarca:

 — Não passei muito bem a noite, não.

Tivera sufocações, maus sonhos, um dormir inquieto. O doutor aplicou-lhe demoradamente o ouvido à região cardíaca, concentrou-se num raciocínio e quietou o doente com o sorriso profissional. Nervoso, talvez a maldita dispepsia — esclareceu.

Porém logo se dirigiu aos aposentos da rainha a informá-la da gravidade e adiantado da moléstia. Poucos minutos levou, para o mais humilde serventuário do palácio saber que o soberano padecia de uma lesão. Era coisa já antiga e somente os últimos gelos a tinham agravado. Congestões abdominais e no fígado haviam obrigado aquele velho coração a empregar, nos últimos tempos, um grande esforço para impelir o sangue até aos confins do corpo. Um coração delicado de rei, batendo sempre moderamente debaixo de lendários arminhos, logo que sentiu resistência ao seu poder, entristeceu; principiou a condescender, a sobrecarregar-se; dilatou-se; adelgaçou... e a terrível aneurisma estava próxima a romper-se.

 — É como se o monarca, sentisse contra o seu poder providencial a revolta dos seus vassalos — comparou o médico, com delicadeza de frase.

Tal acontecimento impressionou diversamente. Não havia unanimidade de sentir, nem de crença. Todos viam que o rei continuava a conversar na sua voz pausada e fidalga. O doutor era homem sábio e respeitado, mas podia enganar-se.

 — A ciência humana — disse um velho de sorriso cético — é falível. “A mais aguda, segundo o poeta, é ignorância cega ante a divina”. O aspecto de sua majestade não é para sobressaltos.

 — E a idade? — argumentou outro.

 — Sim, a idade é condição desfavorável — rematou o primeiro.

Alguém notara, que nos últimos tempos, o rei, outrora tão expansivo, se calava frequentemente, levando a mão ao peito quando desejava respirar mais fundo. Porém acreditavam ser o cansaço de estar sentado, o aborrecimento de viver no quarto e a tristeza da maldita surdez, que parecia não ter cura. Que se levantasse algumas vezes, que fosse até à larga varanda admirar a primavera que principiava a romper nos campos e veriam, como logo adquiriria vigor, como os olhos se lhe alegrariam.

***

Os do pessoal menor do palácio, que tanto como outros viviam da munificência regia, preocupavam-se, para o caso da morte, com o teor do testamento. Alguns esperavam dali uma espécie de liquidação vantajosa da própria fortuna; outros, mais reservados e céticos, temiam não ser contemplados e perderem aquele bom agasalho e santa ociosidade.

 — Não nos fiemos em sapatos de defunto. Poderemos obter desta forma o equivalente do que gozamos? — resumiam.

 — Ah! não pode deixar de ser! Até seria uma vergonha se o não fizesse!...

Esse rico papel escrito pelo próprio punho do rei, diziam estar dentro de um cofre de malaquite, guardado num armário de ferro. Ninguém o tinha lido, a não ser talvez o primogênito e a rainha; mas para todos era um motivo de palavras humildes e risos cativantes, em face do doente. Este homem, fabulosamente rico, podia deixar a independência social aos que eram pobres e acrescentamento de fortuna aos opulentos. E tinha de o fazer, se queria engrandecida e celebrada a sua memória. Isto de reis são orgulhosos, mesmo quando o não parecem; têm a vaidade de que os lamentem depois da morte, para se conservar a velha ideia bíblica de que o monarca é o pai, é o senhor, é o ungido de Deus!

 — Nesse caso que o pague — concluíam.

***

Poucos dias depois do último alvoroço acerca da saúde do rei, houve um acontecimento que impressionou. O doente não tivera, durante a noite, uma hora de sono tranquilo. Sonhara uma vida agitada de batalhas, sentira o sangue tumultuar-lhe nas artérias.

 — Vejam lá, nestes tempos modernos, eu a imaginar torneios e golpes de lança! — criticou ele mesmo.

O doutor foi de opinião, que lhe devia ter feito mal a visita de um antiquário estrangeiro. A surdez obrigava o monarca a grandes esforços na conversa. Durante perto de uma hora os dois tinham discreteado acerca de tempos passados, da beleza e encanto da vida de outrora, artística e batalhadora, despreocupada e cheia de aventuras — bons tempos em que houve homens que foram simultaneamente guerreiros, poetas e artistas, como Cellini.

 — Evite-me vossa majestade essas comoções. Ponha-me esses sábios na rua — recomendou o médico.

A mulher do rei foi claramente informada da extrema[60] gravidade da moléstia de seu marido. Senhora de ascendentes fidalgos, muito temente a Deus, conseguira enfileirar na família do rei, por um abuso da força poderosa da sua beleza e da sua carne, sobre a organização já caduca do soberano. Também se falava de influencias clericais que miravam a obter para certo instituto, parte da fortuna particular do monarca. Todos entendiam que ela se prestara a aquecer os membros frios de um velho, por simples vaidade de ser chamada rainha.

Amava a riqueza, a consideração pública, o fausto da corte e a supremacia entre as mulheres. A importância da doença do marido, cuja morte para ela significava a perda de todas estas garantias e vantagens, assustou-a. O seu rosto de vivo que era, tornou-se tão composto e triste, que abrandou, no começo, a malevolência de muitos que na corte lhe eram hostis. Ela que tanto amava os teatros, os bailes, as corridas, os passeios de carruagem ao ar livre, em face das belas paisagens iluminadas pelo sol, deixou de sair logo que o mal tomou o caráter assinaladamente grave, e instalou-se ao lado da poltrona onde o marido dormitava, ouvia os seus amigos, e arfava os cansaços da moléstia.

Ela, às vezes sob pretextos fúteis pedia que a deixassem só com o rei. Condescendiam os camaristas, formando conjeturas, que nem sempre eram benévolas. Diziam que depois dessas intimidades lhe notavam no rosto uma agitação febril, mal dissimulada. Acrescentavam que no semblante do rei, apesar da compostura calculada, apesar da respeitável barba branca que lhe diminuía a expressão, apesar de reclinado na poltrona com as pálpebras docemente caídas... descobriam restos de fadiga e o aspecto de um homem contrariado. Parece que se percebera num dia barulho de altercação, parece que se ouvira depois um soluçar de mulher. A criadagem afirmava ter sentido beijos de esposos, palavras de cólera, expressões de reconhecimento. Tudo isto não podia deixar de ser obra de testamento — entendiam. Os velhos amigos do soberano, sempre lhe tinham tratado respeitosamente a mulher, indicando, ainda assim, na frieza e polidez dos cumprimentos, que a não estimavam. Na ausência chamavam-lhe intrusa, ambiciosa, desnaturada, pois abreviava os dias do doente com mortificações, e até a sua notória religiosidade, tomavam como impostura.

***

A moléstia progredia a olhos vistos, e já a ninguém era licito desconhecer o próximo termo daquela vida de opulência. O próprio doente disso estava convencido e quando lhe diziam palavras de esperança sorria com amargura. As ânsias, as sufocações, agora mais frequentes e incomodas eram um desmentido claro. A opressão no peito dava-lhe um sentimento de homem repleto. Os beiços engrossavam todos os dias, as olheiras eram fundas como a sombra da noite, as pálpebras pesadas e adormecia facilmente como um bêbedo. Este homem nascido em berço de ouro, esta imaginação educada e aberta sempre numa atmosfera de delicadezas, repugnando-lhe as misérias asquerosas de uma doença prolongada, começou a ter pelo corpo de que fora tão vaidoso, um desprezo invencível. As suas pernas estavam grossas como rudes troncos de carvalho, o ventre volumoso chocalhava como um barril mal cheio, e, segundo lhe segredava a memória, devia conter um liquido viscoso, semelhante a baba de animais. Preferia ter uma doença de cruciantes dores. Devia haver moléstias para reis, moléstias limpas, que fossem o lógico terminar da vida das grandezas. A cabeça recostada no espaldar alto da cadeira, o roupão de seda a arfar-lhe sobre o peito, fechava voluntariamente os olhos para fugir à vil realidade e entrar num mundo ideal de lembranças dignas. E parecia consegui-lo, pois havia momentos em que o seu rosto era de uma paz e duma tranquilidade de estoico.

***

Viveria em imaginação no seu passado?

Fora criança e logo na idade em que o cérebro começa a perceber viu-se rodeado da consideração, que pode gerar o orgulho — velhos fidalgos iam-lhe submissamente confiar as suas barbas, para que o príncipe as tomasse como brinquedo. Tinha sido entregue depois a professores, que sobre ele exerciam uma autoridade parecida antes com a obediência. Quando cavaleiro, gentil e vaidoso, o fanatismo de todas as mulheres, gozara amores defesos, que tanto o divertiam pela posição do homem enganado. Subiu ao trono, e viu curvadas diante de si, as ilustrações do sangue e da ciência, homens de renome que só dele, do seu tradicional poder, deviam receber a consagração. Aborrecido do mando, com o egoísmo próprio da velhice, abdicou, criara novos prazeres recolhidos, encontrara ainda uma formosura que o amara, sentira-se remoçado e contente durante certo período...

Porém noutros momentos vinham-lhe súbitas crispações faciais significativas de desgosto. É que sentia o desabar de todo esse mundo, como desabam as montanhas num rancoroso terremoto. Tinha, às vezes, a sensação de que um largo alçapão se abria na terra e o engolia para uma escuridade absoluta e eterna! Era homem como os outros. Diante da miséria da carne estava nivelado com a plebe mais ínfima. A coroa, o cetro, a autoridade real, os gozos da inteligência, nada faziam para que tivesse um fim grandioso.

Felizes só os reis antigos, mortos heroicamente nas batalhas medievais atravessando inimigos com lanças reluzentes e acabando entre maldições e hinos de glória! A sua imaginação dolorida apresentava-lho ainda mais repelente do que estava, o rosto espapaçado — pálpebras intumescidas e cianóticas, beiços grossos e olhar sem brilho. Vira-se uma vez ao espelho e ficara horrorizado de si mesmo. Desprezava-se com nojo.

***

Sobre todas as ironias da carne, vinha ainda a perversidade dos vivos cobiçando-lhe os haveres. A mulher queria um testamento que lhe fosse absolutamente favorável. Era o legitimo preço da sua beleza e da sua fresca mocidade, que ele estragara com beijos senis. Ao calor emprestado pelo sangue da donzela, devia o rei o prolongamento de uma vida arruinada. Os filhos questionavam os seus direitos, com razões de casta, ligando-as a interesses de estado. Falavam das tradições de família; da abundante riqueza que era preciso ostentar, para se imporem pelo fausto, como já se impunham pelo nascimento. Porém ele tinha amigos fieis, companheiros dos entusiasmos juvenis; criados cujos aturados serviços mereciam uma recompensa, uma lembrança no supremo instante da despedida. A exigente consorte queria tudo para si. Cá regularia todos esses deveres como entendesse. Só assim poderia sustentar o respeito e consideração pública, continuando na sua mão as dependências que até ali tinham sido do rei. Exorava-o com beijos, com palavras acrimoniosas, com ameaças sobre a sua memória.

Como meio de sair de tais amarguras, o monarca lembrou-se do suicídio. A razão aconselhava-lhe a findar o mais depressa uma existência assim desprezível. Seria um ato cobarde?!... Entre o sofrimento e o gozo passa-se toda a vida humana. Quem não pode lutar desaparece de arena — pensou resolutamente. Ia furtar-se a muito desgosto, a sentir o definitivo escorrer do seu corpo, que já era massa inerte, alastrando-se pelo chão. Ia poupar-se a aflições, não queria suportar o peso daquelas pernas inchadas, não queria ouvir por mais tempo o chocalhar dos líquido no ventre, o que lhe dava a ideia de que ele era um desprezível odre, caminhando no dorso de um macho.

***

Que bela noite, serena e calma! Uma lâmpada de Sèvres, espalhava no amplo quarto uma bruxuleante claridade. A rainha recolhera-se aos seus aposentos. Alguns camaristas, médico e serventuários, vigiavam os restos daquela vida. Quando a aparência de um sono tranquilo se espalhou no rosto do doente, todos se retiraram para as salas próximas. O rei sentiu-se bem, só. Calculou que todos estariam despreocupados da sua pessoa. Convencido disto, teve um sorriso de triunfo! Logo tentou erguer-se, fincando as mãos nos braços da cadeira. Mal se pôde mover! Estava entorpecido, o corpo pesado, a sensibilidade ausente. Terrível e severo desgosto foi o seu, quando se viu nas condições de semelhança com um sapo hidrópico! Reagiu corajosamente contra a inércia dos músculos e, neste esforço de dignidade suprema, conseguiu levantar-se. Mas logo se sentou, para não cair. A cólera do seu espírito tomou proporções formidáveis, como o vento que arrasa florestas. Concentrou no combalido coração[68] o antigo vigor da juventude, toda a coragem da mocidade. Queria suplantar este fantasma da impotência, que se levantava diante dos seus olhos. Passando da cadeira a apoiar-se no rebordo de uma mesa, depois na ombreira da janela, apanhou a bengala de castão de ouro e pedras preciosas, que lhe mandara de presente um papa, e conseguiu firmar-se em pé. Deu alguns passos cambaleantes; mas parecendo-lhe ouvir um rumor, parou de súbito. Não era ninguém. A sombra do seu corpo projetada pela tênue luz estendia-se no pavimento, tremula de susto.

Oh! fraqueza, oh! implacável miséria humana! Este senhor poderoso, esse fantasma movendo-se trôpego e cauto no silêncio da noite, é o próprio Luiz XI aterrado diante das visões do seu cérebro! Foi-se abeirando, tímido e com passo incerto, de uma pequena estante entre duas janelas. Lançou mão de um objeto que meteu no bolso do robe-de-chambre, furtivamente, como homem que andasse a roubar. Nesse momento a estante oscilou, o barulho atraiu um criado.

 — Não preciso... não chamei...

Tremia de medo, como criança encontrada numa travessura. Veio o médico e o camarista. Aproximaram-se, ampararam-no até à cadeira, e repreenderam-no amoravelmente.

Desculpou-se com palavras de humildade e sujeição.

Tentara esta experiência para ver se podia andar, sem o auxilio de ninguém. Querendo inferir, por si mesmo, da força e vigor de que dispunha, era necessário mexer-se no quarto só, sem que o vigiassem. Ainda estava vigoroso e forte — afirmou. Sentia-se com vida para muito tempo.

Fortificaram-no nesta ideia; porém retorquiam que fora temeridade o que acabava de fazer. Podia ter caído, dar com a fronte na esquina de uma cadeira e isto ser-lhe fatal, no estado de fraqueza em que ainda estava. Assim se interromperia uma boa convalescença, assim adquiriria novos padecimentos que podiam ser mais graves, muito mais graves do que os atuais.

Concordava em tudo, sorrindo. Porém, a tentativa, visto não ter dado mal nenhum, estava contente por tê-la feito. Atravessara o quarto sem auxilio, e era isso que até ali supunha impossível. Talvez no dia seguinte fosse ao gabinete contiguo, depois à varanda e finalmente ao jardim.

 — Poderei experimentar doutor?

 — Com precauções, meu senhor, com precauções.

Discorreu ainda, com serenidade, alguns minutos. Estava evidentemente melhor, mais desafogado. Aquela experiência tornara-o comunicativo e alegre. Conseguira ter vontade de dormir. Parecia-lhe que ia gozar um sono regalado e sereno. Os olhos estavam com tendência para se fecharem. Que o deixassem só é que desejava.

 — Mas vossa majestade...

 — Não me levanto mais — atalhou. Palavra de rei.

***

Saíram. Tudo ficou em paz e tranquilidade. O rei conservou-se largo período imóvel, os olhos fitos numa armadura que estava de sentinela a uma porta. Concentrou toda a força dos sentidos, para reconhecer que o não vigiavam. A manhã surgia do infinito dos tempos. Os pássaros começaram a chilrear nas acácias do parque. Ouviu-se o cantar lento e monótono do velho jardineiro, que por entre as flores regougava melopeias do seu país. Levantava-se, subindo e alargando-se como um nevoeiro que emerge de um rio, o sussurro que forma o dia — mistura de muitos sons. A criação universal ia engrandecer-se com um novo impulso do sol, neste formoso dia de primavera.

O rei tinha uma expressão firme de tenebrosa coragem. Tateava com perspicácia, para encontrar no braço esquerdo o sinal de uma sangria, que em moço lhe haviam feito, pela queda de um cavalo. Na mão brilhava-lhe uma pequena lamina de Toledo, obra de esmerado artista, com multiplicadas linhas de ouro incrustados em ferro. Abandonava riqueza e fausto, sentia-se podridão e lama! Com a indômita coragem dos altivos e dos desventurados abriu a cicatriz quase apagada. E enquanto esse sangue de rei escorria, gotejando no chão, o moribundo encostou a cabeça no espaldar alto da poltrona e com um sorriso de amargura, disse suspirando:

 — Acabou-se.

Penderam-lhe os braços, a cabeça rolou para um lado, todo o seu corpo foi entregue ao supremo desleixo da morte!

O segredo deste acontecimento conservou-se nos íntimos do palácio. O médico, ao contemplar o cadáver inerme, com a ideia nos sofrimentos que ainda estavam reservados ao monarca se continuasse a padecer, concluiu:

 — Foi melhor assim!


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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