A MINHA MORTE
Mas
depois fui melhorando. A volta das sensações ordinárias fazia-se uma a uma, como
pombos escorraçados de um pombal. Era um renascimento gradual, e noto que apareceram
primeiro as sensações mais elementares, aquelas em que o homem tem menos império.
Todos os dias a febre decrescia, reconquistava um pouco do viver antigo, como
se eu tivesse feito uma viagem ao quimérico país das sombras, e de lá voltasse
por um comprido corredor de muitas léguas, aproximando-me instante a instante
da benéfica luz do sol, que se visse brilhar ao fundo, cá neste mundo vulgar
que todos habitamos. Entrei por fim em convalescença. O facultativo
consentiu que me levantasse todos os dias um nadita. Já podia ir fazendo
tentativas de chupar a minha asa de frango. O enjoo da comida ainda era grande,
por isso o meu desgosto era enorme. Reconhecendo-me melhorado não estava nas
condições das outras pessoas...
No
entanto a minha alegria e satisfação voltaram com o franco apetite. Tudo era
pouco para mim, não havia coisa que me satisfizesse e era preciso que me
ralhassem para não ser tão guloso, que me podia fazer mal. Até não queria que
os outros comessem ao pé de mim; porque isso me dava inveja, e até raiva,
ficando a reparar com olhos avaros e insaciáveis. O médico argumentava que o
meu estomago devia estar fraco, que não suportaria sem dano grandes
quantidades; mas eu sentia-me como uma grande planta, que lançasse por toda a
parte as suas ambiciosas raízes, para se sustentar à custa da seiva que
pertencia às outras e roubar-lha com o poder absorvente de uma enorme bomba. A
comida de predileção nessa minha convalescença eram as boas sardinhas de Vigo,
cabeçudas e grandes, que os galegos iam vender à minha terra. Á distancia de 26
anos, ainda hoje sinto no paladar o sabor dessa incomparável comida.
A
chuva desse áspero mês de dezembro era frigidíssima, o vento assobiava pelas
frinchas das portas. Como já podia andar por toda a casa ia de vez em quando ao
mirante, olhar para os montes que estão ao norte, e contemplava-os todos
cobertos de neve, como se fossem pirâmides colossais formadas de açúcar.
Mas
a chuva e o vento que soprava daquele lado obrigavam-me a descer; pois que a
janela não era guarnecida de vidraça. Numa dessas ocasiões até, a saraiva me
veio bater na cara e eu, com medo de recair, fui-me logo sentar ao lume, que
estava vivo, imponente, abrangendo grandiosamente em labaredas, os potes de
ferro que estavam ao redor.
A
nossa cozinha era comprida, térrea e de telha vã. A lareira, grande, coberta
pelo enorme e fantástico chapéu da chaminé, muito farta de lenha — podia
aquecer uma dúzia de pessoas à vontade. Na véspera do sarrabulho ou na noite da
consoada, essa cozinha tomava o aspecto glorioso de um templo em festa. Havia
maior numero de potes; as labaredas melhor sustentadas enroscavam-se umas nas
outras sempre na mesma altura, como parafusos sem fim. Era manifesta e patente
a alegria, a satisfação, o contentamento que este bom fogo produzia em todos,
principalmente quando as castanhas estouravam debaixo das brasas e sabendo-se
que estava perto a enfusar de vinho.
Mas
quando desci apressadamente do mirante, batido no rosto pela saraiva e com o tétrico
medo de recair, a cozinha estava solitária e lúgubre. Era dia ordinário, o lume
bem aceso, o pote da ceia gorgolhava com a fervura, os gatos e os cães,
fraternalmente misturados, enroscavam-se do lado do forno. Fui-me sentar ao meu
canto, contando estar ali até à reza. Lá forra das portas era quase escuro, a
chuva e o vento passavam ruidosamente sobre o telhado, produzindo ressonância
dentro da chaminé. Todo este barulho exterior e material tornava mais sensível
a minha solidão. Sabia que minha avó, estava à janela na dupla ocupação de
rezar as suas contas e de vigiar se os vizinhos traziam sardinhas da praça, que
era para também as mandar comprar. Porém o rom-rom dos gatos, o arfar do lume,
o ralho da fervura e o sussurro do vento formavam um ambiente característico de
solidão ao qual se veio juntar a nota sentimental e lúgubre do toque das
trindades. A torre da igreja era sobranceira à cozinha e as nove badaladas caíram-me
espaçadamente no cérebro imprimindo uma sensação gemebunda e prolongada. Apesar
da viva chama do lume ser própria para desfazer tristezas, sentia sobre mim o lendário
peso da noite, com todo o seu imprevisto de sombras. E a enorme chaminé, negra
de ferrugem, abria sobre mim um espaço indefinido, de uma amplitude
amedrontadora. Diante dos meus olhos, em correnteza, estavam pendurados os
salpicões e eu contava-os maquinalmente até à minha chouricinha e à de meu
irmão, que estavam juntas, à esquerda. Fui pouco a pouco caindo num longo
esquecimento, fui perdendo a consciência, a ponto de quase se extinguir o meu
ser.
***
Provavelmente
o calor benéfico do lume concorria para o entorpecimento. Já quando o sino
acabou de tocar as “ave marias” eu voejava numa atmosfera de sensações vagas,
como suspenso no meio do espaço. A cadencia das badaladas deu-me o impulso ondulatório
que me atirou por desconhecidas regiões, forra de toda a contingência. Um pingo
d’água caía a compasso da torneira da cozinha e o som tristonho parecido com o
gemer de ave, feria-me levemente o ouvido como se fora o desfalecer de uma dessas
músicas ideais que só existem na região do azul. O estrepito do vento também se
distanciara de mim, ouvia-o dilatado e longínquo, com a doçura e encanto do som
de um pinheiral. Estava envolvido, tapetado de uma substancia isoladora que me
fazia perceber atenuadas todas as sensações. O meu pensar vago e indeciso,
traduzia esta espécie de aniquilamento das minhas forças físicas e a perda das
minhas ideias pessoais. Reconhecia-me consubstanciado neste mundo novo e abstrato,
balouçando-me numa amplitude infinita como a da morte. Cá na minha, eu já
não pertencia ao numero dos vivos apesar da memória me reproduzir claramente
toda a realidade material que eu gozara e sofrera, durante os anos da convivência
terrestre. Confesso que tive saudades do que fora. Gostava da vida, mesmo
simples e humilde como sempre a passara. Viver por viver e para viver, é que me
entusiasmava e não as altas posições da fortuna e da glória. Todo o homem tem
dentro em si tantos meios de ser feliz, que não saber aproveitá-los é sinal de desequilíbrio
e doença. Por isso, a ideia de ser um morto não me alegrava e, bem pelo
contrario, principiei a apavorar-me à maneira que percebia que isto era sério.
Deixar assim de repente, sem uma despedida, a vida terrena, na qual eu ia
sonhadoramente gozando a minha obscuridade, lá me parecia duro. E sem enterro,
sem choro de parentes, sem nenhuma pompa fúnebre... como é que eu tinha
morrido? Depois, independente da questão do céu e do inferno, aquilo lá pelo
outro mundo não é satisfatório. Antes de entrar nas regiões da perpetua ventura
ou do infinito castigo eu não via senão caras tremendas, que nada tinham de comum
com as expressões minhas conhecidas. Os que riam era com esgares terrificantes,
bocas arrepanhadas e olhos de fogo que me faziam medo; os que choravam
abriam tais goelas, e figuravam-se-me tão pavorosas as suas cabeleiras formadas
de florestas, que me senti gelado, não podendo sequer encará-los.
Não
me faziam mal, não se aproximavam de mim; mas eram desagradáveis companheiros
na sua impavidez sinistra. Também, lá por esses espaços, que levianamente se
chamam siderais eu não encontrava senão precipícios, abismos sem fim, montanhas
cujos píncaros a minha vista não podia alcançar. Por cima da cabeça tudo eram
nuvens encasteladas e carrancudas, que deviam conter fogo e tempestades para miríades
de séculos. Um raio de sol palpitante rompeu num momento esta espessura; mas
isso, maiores saudades me fez, por me lembrar com entranhado amor tudo quanto
tinha perdido de carinhoso e bom. Nunca senti como nesse instante o preço da
vida. A epopeia grandiosa da eternidade, atraia-me muito pouco, não seduzia,
com as suas magnificências, a imaginação simples da criança. Por isso a minha ansiedade,
a minha tortura cresceu progressivamente. Nunca mais voltaria a gozar a tranquila
convivência do rio, dos montes, das campinas e dos penhascos?!... O canto dos pássaros,
as paisagens floridas, o melancólico luar do outono, a exuberância da
primavera, os gozos familiares, as festas, as vindimas, as amizades...
tudo teria acabado para mim?!
Que
tristeza, que amargura, que saudades me torturavam! As lágrimas caíam-me em
fio, sentia-me soluçar, a minha admiração pelos sublimes coros celestiais diminuía
de um modo considerável. E tamanha era esta saudade e esta dor que nem o aspecto
patente do fogo da querida lareira, dos potes a ferver, dos salpicões
pendurados diante dos meus olhos, me dava a precisa tranquilidade e resignação.
Não me lembro mesmo se cheguei a considerar estas visões enganosas, como
pérfidos meios de transação, para eu me habituar à outra vida. O meu desespero
só fazia aumentar, sentia pungentíssimamente quanto perdi. A minha chouricinha,
que estava ali em frente de mim, já eu não a poderia saborear, em quanto que
meu irmão, que era um vivo, havia de comer as duas e talvez muito regalado.
Principiava
a reconhecer-me fatigado, exausto de forças e ambicionava um momento de
repouso. Visto estar morto, a tormentosa viagem através dos espaços infinitos
havia de acabar. Decerto era este o pavoroso caminho da eternidade, que teria
no fim o céu ou o inferno. Bem sei que logo para começo podia ser o purgatório,
como lugar de purificação; mas declaro francamente que esta transigência nos sofrimentos
não me foi muito consoladora. Talvez pelo receio de ter a vida cheia de pecados,
julguei mais provável não vir a ser um dos eternos habitantes do paraíso!...
Estaria mais satisfeito, se o meu destino estivesse no céu — atmosfera ideal, mais pura que o diamante,
de cor mais serena que a perola, lugar onde não há noite, nem sombra, onde os
cantos são perpétuos, como é perpetua e renovada de instante a instante a
floração daquela primavera sem fim. No entretanto, se me fora licito ter uma
opinião, haveria declarado preferir a todas as sublimidades ideais o continuar
na terra contingente, com todos os seus males, desgostos e contratempos. Porém
já que me achava no outro mundo desejava antes o paraíso do que o inferno, ou
mesmo o purgatório. Infelizmente este horrendo caminho que seguia, com a
velocidade de um ciclone, não me dava esperanças de me levar à pátria
eternamente luminosa e bela. O último precipício em que estava era de um
horrendo incomparável. Por todos os lados a treva sem limites, e para o fundo
um inconcebível funil por onde ia resvalando!
Como
no terrível naufrágio do conto de Poe, no qual todos os destroços eram engolidos
pelo redemoinho infernal do Maelstrom, assim o meu corpo, o meu cérebro, o meu
pensamento sofriam as torturas de um movimento concêntrico. Sentia que de
instante a instante me apertavam mais e mais as paredes desta nova prisão.
Descendo sempre estava cruelmente atormentado e os meus olhos cheios de pavor
não percebiam a menor réstia de luz. A minha existência conhecia-a somente pela
dor de uma perna onde cravara com desespero as próprias unhas. A superfície
interna do funil era lisa a ponto de lhe não perceber o contato.
Os
círculos que eu descrevia eram cada vez menores, a ponto de para o fim
redemoinhar em volta de mim mesmo, como se houvera um eixo material, servindo
de ponto fixo. Evidentemente estava a chegar ao meu pavoroso e tétrico fim! Uma
sensação de frio penetrava-me até à medula dos ossos, apesar de que, por uma
inexplicável contradição, conservava no meu corpo viva reminiscência do meu
calor natural e procurava concentrar-me, aconchegar-me, meter-me por assim
dizer, para dentro de mim mesmo.
Veio
uma onda de calor que me lambeu a cara... Talvez o desmoronamento da pilha dachas
que formavam a fogueira. Esta sensação, de certo agradável em outras circunstâncias,
pôs-me em grande terror; pois que mais me confirmou na ideia da proximidade do
inferno. Lá ia eu cair nesse fogo perpétuo, que tão horrendo antevira nas
descrições dos missionários! E apesar do pavor, irritava-me esta evidente
injustiça de um poder sobrenatural. Que pecados teriam cometido os meus
doze anos, para merecerem tão severa punição? Já não tinha lágrimas, sentia-me
aniquilado e sem força para me opor. O meu incomparável infortúnio, não se
limitava a perder o gozo da vida terrena, que tanto amava. E transigia
covardemente: Se, ao menos, fosse trocar o mundo, a família, os brinquedos, a
caça aos pardais a pesca aos barbos, a minha chouricinha... pelo reino do céu,
vá lá. Não teria ganho, mas vá lá. Porém abandonar todas estas coisas simpáticas
e ter para todo o sempre de gritar entre chamas, com o diabo a espicaçar-me e
monstros horrendos a deitarem-me perpetuamente pelas goelas chumbo derretido,
breu e azeite a ferver!... era o que eu não podia levar à paciência. A grande aflição
em que me vi deu-me ainda um momento de revolta, que resultou de uma onda de
sangue novo que se me espalhou no cérebro. Por mais que esquadrinhasse na consciência,
por mais que pusesse aberto e claro o meu passado insignificante, não me sentia
merecedor de tão formidável pena! Resolvi interpor recurso. Deus é
infinitamente misericordioso e de certo me ouvirá — pensei. Além de que eu
tinha sobejos motivos para assim proceder, atendendo ao modo excessivamente
escuro como correra o meu processo. Não me lembrava de ter aparecido na
sua divina presença; não vira aquelas venerandas e compridas barbas, brancas
como espuma do mar; não me recordava dos coros dos anjos e das virgens, nem das
incomparáveis belezas da celestial habitação... Quem sabe se eu ia para o inferno
por engano! Quem me dizia não ser eu vítima de manobras dalgum verdadeiro condenado
que tivesse tido artes de se trocar por mim?! A minha perturbada inteligência compreendia
esta possibilidade. Por tanto — resolvi — levantemos um clamor bem alto, uma suplica
formidável, que alargando-se por este funil em que me acho, suba aos ouvidos
justiceiros do bom Deus, grande e onipotente. A convicção da minha inocência,
dava-me força para tamanha ousadia. E tomei enorme fôlego, enchi o peito dar,
concentrei em mim todas as energias da terra. Da minha garganta saiu um
estridente brado que se dilatou pelos espaços! Ao mesmo tempo fugi pela cozinha
forra e fui-me agarrar a minha avó, que rezava as suas contas encostada à janela.
Contei-lhe toda a minha aflição e os tormentos mentais em que me vira. Ela
reconheceu logo, bem como depois o confirmou um sacerdote nosso amigo, que este
fato devia ser tomado como um aviso do céu. Apesar da minha pouca idade, este
toque divino, mostrava claramente que eu andava em pecado mortal. Uma
confissão geral de todo o meu negro passado era urgente. Os esconjuros
deviam completar esta obra de limpeza espiritual. Procedeu-se por esta forma e
os exorcismos foram rezados por um padre galego, que era homem eminente em
escorraçar demônios.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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