FRAGMENTO DE UM ROMANCE INÉDITO
(AO DR. SÍLVIO ROMERO)
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A atualidade quer robustez. A
geração presente é uma geração de fortes. O chique, o ideal das moças já não é
o ar doentio e débil, mas sim o da saúde, o da vida, o do bem-estai da alma, educando-se
para viver sem sucumbir, tendo no rosto duas rosas estampadas; não de carmim
artificial, mas sim do sangue bom, transmissor da saúde, da força e da vida.
É possível que a leitora que
folhear estas páginas conheça algumas noções da psicologia positiva que se
esforça a não perder de vista a combinação da física com a moral, do agente e
da ação, considerando o tecido nervoso, o tecido por excelência. Para
conhecer-se o temperamento de qualquer individuo, a sua energia elástica e
vital, e até mesmo para julgar do seu valor individual, bastará medir exatamente
por ele o sistema nervoso nos diversos modos de ação e reação combinados com a
noção do volume do centro dos mesmos.
Pessoas há que possuem uma
impressionabilidade de imaginação muito fraca, não podendo por isso guardar por
muito tempo uma impressão moral.
Para esses, os atos que dependem do
cérebro são lentos; não se lhe podendo exigir esforço violento ou enérgico. Os
seus afetos são calmos; encontrão facilidade na vida, porque a estes não se
lhes liga muita importância em atenção ao caráter.
Há outros, porém, que são da cabeça
aos pés muito impressionáveis; tudo os agita; tudo os faz gozar; ou mesmo até
sofrer. Nestes, a ação nervosa é rápida, enérgica, e, posto que esta impressão jamais
repouse, o seu caráter tem uma mobilidade excessiva.
As faculdades intelectuais, mesmo
quando sejam bem pronunciadas, não podem ser fixas por não conservarem por muito
tempo uma impressão, buscando em seguida outra; sendo por essa forma
interrompidas as emoções que privam a inteligência de agir com certa presteza, muito
embora reúna ela facilmente o colorido da imaginação que obedece, sem o acoite
das paixões, dando preferência ao que emana da razão.
Nas criaturas, ainda há um outro predicado adicionado
aos de cima, descritos palidamente por mim. É ainda a sensibilidade elevada ao
mais alto grau.
A imaginação neles é mais ardente e
vigorosa, posto que inconstante. Alegres, corajosos e ativos, são-lhes comuns
os atos da vida; nada estranham, tudo percebem e atuam sem restrições. A fisiologia,
minha cara leitora, designa o primeiro como linfático; o segundo, como nervoso,
e o terceiro, como sanguíneo.
E é da formação do caráter que o
indivíduo atrai sobre si as atenções pessoais de outrem, criando muitas vezes afetuosos
nos que julgava indiferentes; e amigos quase sempre sinceros, nestes que cria
apenas gozar de mera simpatia.
A viscondessa vira o nome daquele a
quem amara no número dos passageiros chegados.
Era justo que viesse; o amor esfria
com o tempo; ela casara-se embora forçada com um velho titular a quem não amava
mas que a moral obrigava a respeitá-lo, não caindo sobre a sua coroa de nobreza
um único salpico do pó das más línguas Havia dois anos que Corbela vivia como
uma verdadeira fidalga, embora muito nova, aos vinte anos, apenas, considerava
que os desperdícios do visconde não podiam, nem deviam ir além. Ele não media despesa:
gastava em casa, gastava na rua, gastava no jogo. E a última companhia lírica
quantos contos de réis lhe havia devorado; e com a atual, quanto não
esperdiçava com essa cantora, de quem publicamente fizera-se amante?!...
Olhou em roda: o boudoir era caprichosamente adornado; o
palacete, mobiliado cem luxo; as carruagens, ótimas; a criadagem, escolhida; boa
capa, boa adega. Nada mais faltava-lhe a não ser o amor, a confiança que ele
não lhe despertava, e que ela não lha pedia, por não lhe ser isso facultado.
Ao ficar viúva, o que restar-lhe-ia?
Com as mãos cruzadas á toa sobre o
regaço, a moça volveu um olhar pelo livro do passado e virou-lhe a primeira
folha. Era a da infância; volveu a segunda, era a da adolescência; virou ainda
a imediata. Era a da juventude cheia de risos e de mimos daquele velho avô, que
a criara na mediania, mas pela ambição que tinha de vê-la feliz, sacrificara-lhe
o futuro inteiro. Se ao menos tivesse um filho?
O pródigo do marido sem dúvida não
teria ainda feito testamento, porque no tresloucamento em que vivia não julgava
que a vida se assemelha a luz vacilante da vela que a crepitar, apaga-se de
vez.
Nestas cismas, procurando riscar da
memória a imagem que buscara apagar do coração desde que ligou-se ao titular, lembrou-se
que ainda conservava dele uma
relíquia. Eram sonhos do passado, provação para o presente, mas baixeza para o
futuro. Resolutamente abriu uma das gavetas da secretaria de charão, de onde
tirou um saquinho de veludo, dentro do qual ao pegar numa fotografia, a mão
trem e o; depois, retirou umas cartas, e depois flores secas.
Sem dúvida que uma recordação agradável
perpassou-lhe na mente. Desanuviou o semblante; o sulco frontal indicando
resolução e energia, tornou-se menos profundo; ela sorriu, e inconsciente, beijou
tudo como quem beija uma relíquia, ou a lembrança legada por pessoa que morreu.
Depois, num ímpeto, estraçalhou o retrato, a carta, e as flores; findo o que, acendendo
um fósforo chegou-o aos destroços, não querendo ver porém, a pequena chama que
produzia o incêndio dos objetos queimados.
Seriam cinco horas da tarde. Nessa
noite havia espetáculo, e ao jantar esperava visitas. O ruído que fez alguém
entrando no aposento obrigou-a a voltar a cabeça. Era o marido que dela aproximava-se
dando-lhe as pontas dos dedos os quais ela
apertou na aristocrática e bem feita mão.
— Aí na sala está o ministro francês;
convidei-o a jantar, são cinco e meia, e é bom não fazê-lo demorar. Temos hoje
a nossa recita de assinatura, como sabes.
— Sim, respondeu encaminhando-se
para o botão elétrico da porta. Pede-lhe desculpa se por acaso me demorar um
pouco; preciso fazer uns reparos neste cabelo. Até já; e estendeu-lhe a mão que
foi apertada por ele glacialmente, como se assim demonstrasse ser de mais aquela
atenção, saiu o visconde sem dirigir a sua mulher mais que um olhar de indiferença.
Como fora frio o contato daquelas
duas mãos, a que tão sem calor correspondeu ele, não visando esse bem que sentimos quando apertamos a mão
da pessoa a quem estimamos, e que lhe fora dada por ela com certo interesse, e quase
cordialidade!...
É exato que, embora denote polidez,
um aperto de mão entre nós brasileiros, ele quase que não traduz
emocionabilidade ou efusão, fazendo-nos inversos dos ingleses que tornam característico,
tradicional e com certo viso de originalidade o seu shake-hands sacudido, meio rude, mas franco, leal e generoso.
Entre nós, o aperto de mão é sem
vida, sem expressão, limitando-nos muitas vezes a tocarmos, não as mãos, mas
apenas as pontas dos dedos apresentadas.
Por mim, tenho analisado. Educada à
inglesa, habituei-me a sentir-me bem, quando aperto como essa boa gente a mão
de uma pessoa amiga. num bom aperto de mão, sincero, amistoso, cordial, humorístico,
conhece-se o caráter de quem o dá, ou o transmite, mostrando espírito, importância
pela pessoa estimada, repartindo assim o fluido magnético estabelecido pelo
contato da simpatia mútua.
Corbella dirigiu-se ao salão, e daí
pelo braço do diplomata passou à sala de jantar. Felizmente estavam todos de
bom humor, conversavam sem etiqueta, familiarmente, comendo-se sem
constrangimento, adubando a refeição algum dito picante ou alguma anedota
contada pelo ricaço. As iguarias eram abundantes, a mesa bem servida, os vinhos
finos, a sobremesa variada, e a louça de preço.
Depois do café todos retiraram-se, dirigindo-se
os donos da casa aos seus aposentos que eram separados por um corredor
raramente por eles frequentado.
A titular começava a mudar de
vestuário; sem querer, quando, olhando para o chão, viu as cinzas que ficaram
do incêndio, as quais o sopro da aragem que entrava pela janela embalando os
cortinados, espalharam-se sem deixar mais do que leves vestígios. Do passado só
lhe restavam as cinzas do coração e as cinzas das provas materiais que agora
uma lufada de vento incumbia-se de as levar de vez.
O moreno-claro de Corbella sobressaía
em um vestido vieux rose, decotado, coberto
de rendas presas ao lado, por um grupo de rosas e jasmins. Sobre o colo nu colocou
um simples fio de grossas pérolas que pousavam garbosas fazendo mais sobressair
e realçar os contornos de um pescoço bem torneado, como o dela. Nos cabelos, prendeu
um pente de tartaruga e brilhantes. Apenas dois simples braceletes viam-se
sobre as luvas cor de carne. Tomando o leque de gaze, na sua simplicidade
moderna estava elegantíssima.
Como último reparo forçado, colocou
sobre a cabeça um véu de rendas finas, mandando por na cadeira por um gesto a
capa de casimira que a criada lhe oferecera.
Às oito e meia, já impaciente, entrou
com o marido na carruagem que a trote largo partiu de São Clemente, puxada por
uma parelha de cavalos de raça e guiada por um cocheiro e um growm
com farda de luxo.
O teatro refulgia de luzes; o que havia de
mais fashionable na sociedade
fluminense lá estava.
Principiou o primeiro ato ouvido
religiosamente, findo o qual, no camarote dos nossos conhecidos entraram dois
cavalheiros, .apresentando aos barões de Santa Helena, o mais idoso dos dois, o
mais novo, um moço de uns vinte e cinco anos pelo menos.
A jovem estendeu a mão a Mr. de Varennes,
secretario da legação francesa no Brasil, e que chegara há pouco, não sabendo
no entretanto disfarçar um certo quê
de desprazer ao receber os comprimentos do diplomata, com quem logo antipatizou.
Desagradava-lhe o todo do apresentado, conservando-se muda quase durante todo o
tempo que durou a visita. Se fosse um pouco mais experiente notaria que o
sorriso daquele homem era maligno, que o olhar ao fitar-lhe o colo provocante, moreno
e arredondado, tornara-se impudico, que uma faísca de sensualidade passara
ligeira como o raio ao mostrar-se para si, de um a esquisita amabilidade e
delicadeza, na correta expressão de homem habituado a viver no grande mundo.
Enquanto prestava atenção ao
diplomata, pareceu-lhe ver alguém bem conhecido seu. A emoção fora breve; um
engano talvez... porém, aquele que estava em frente era tão parecido com o
Carlos, a quem amara... Pobre mulher!... E estava ali, ao lado de seu marido, ostentando
a posição que tinha, com o coração cheio de fel, mas com os lábios em sorrisos,
para mostrar ao público a felicidade que não gozava, mas que era preciso aparentar.
O mundo é cruel; está sempre ao
lado da fraude, do perjúrio, do irracionalismo; crê sempre a maior das vezes na
mulher, a única culpada dos naufrágios conjugais. Existem, é certo, senhoras
sem critério, sem discernimento, de
fazer pecar o Cristo, se ele viesse de novo à terra, mas na maior parte das
vezes os maridos (perdoem-me eles e até o meu) são os únicos autores das
infelicidades e mesmo das divergências conjugais da parte das esposas. Nem
todas têm a condescendência precisa, nem todas pensão retamente com tino, e
sobretudo rara é a que tem a filosofia necessária para perdoar fraquezas e
fracassos do companheiro dado pelo coração e pelo casamento.
Diz Lamenais que o matrimônio só
tem uma fase: “a moral, que deveria ser imposta com preceitos iguais para ambos
os cônjuges.” É lógico isso, razoável, mas impraticável pelas leis
estabelecidas pelo Código Penal e Social. Daí, veja-se: o homem que tem a seu
favor a liberdade, a ação, faz o que lhe parece, se trai a esposa deixando-a na
penúria, infamemente, a sociedade está sempre pronta a desculpá-lo e a
apontar-lhe a regeneração no futuro, que o tornará então um homem de bem. Se
porém vê-se iludido, a lei faculta-lhe ainda o direito de matar aquela que o traiu,
porque sujou-lhe o nome, emporcalhou-lhe a honra. Indo preso, ou entregando-se
à prisão que é de melhor efeito, sob o
manto da mesma lei, sai absolvido, vitorioso, dizendo a sociedade que ele é um
homem de bem, que cumpriu com o seu dever.
À mulher tudo a fere, sei. A bem da
sua dignidade é que deve manter-se sempre no seu papel de senhora, para não
cingir-se ao de escrava, porque, a matar ela o marido num caso fortuito, levada
pelo desespero do ciúme seria simplesmente reputada uma assassina infame, concordando
eu que, sendo a mesma fraca, nunca ao seu todo gracioso e gentil estaria bem o alfanje
de uma Judite, estampada numa mulher da atualidade.
O sábio que veio ao mundo resgatar
a mulher tirando-a da torpeza em que vivia como coisa, plantou-lhe a igualdade de par com o seu másculo
companheiro. Igualdade, por confraternização e caridade, foi essa a doutrina de
Jesus.
A mulher oferece atualmente um
ponto de estudo filosófico muito sério.
Uns querem a sua completa
emancipação; outros o seu aniquilamento, plantando sempre esses dois modos de
pensar — a discórdia na uniam que deveria haver no lar doméstico. A educação é
o principal fim, porque os filhos mais tarde são outros tantos cidadãos que, sendo
depois também pais de família, seguiram o exemplo que tiveram, educando por seu
turno, as suas vergônteas sob a influência moral em que foram criados.
O homem casado que se compenetra
dos seus deveres, não só dá direito à esposa que faça dele o seu conselheiro, o
seu melhor amigo, como, tornando-se ela esposa e amante, sob o influxo da luz
que adormece e desperta na felicidade, fará do lar um paraíso, e do amor a cadeia
eterna que liga o coração à terra, e o prende, por meio da virtude e das boas ações,
a Deus.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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