7/31/2023

Fragmento de um romance inédito (Conto), de Inês Sabino

 

FRAGMENTO DE UM ROMANCE INÉDITO
(AO DR. SÍLVIO ROMERO)

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Não era surpresa aquilo. Tudo na vida é natural pela forma das circunstâncias. Além Disso, o tempo do romance piegas já passou. Com a idade medieval foram-se as castelãs; com a época do romantismo tombaram os poetas de palidez marmórea, acabaram-se os tísicos e aqueles que faziam da vida uma serie de conjunto tão poeticamente contornada, a ponto de hoje parecerem ridículos, irrisórios, mesmo até incompreensíveis.

A atualidade quer robustez. A geração presente é uma geração de fortes. O chique, o ideal das moças já não é o ar doentio e débil, mas sim o da saúde, o da vida, o do bem-estai da alma, educando-se para viver sem sucumbir, tendo no rosto duas rosas estampadas; não de carmim artificial, mas sim do sangue bom, transmissor da saúde, da força e da vida.

É possível que a leitora que folhear estas páginas conheça algumas noções da psicologia positiva que se esforça a não perder de vista a combinação da física com a moral, do agente e da ação, considerando o tecido nervoso, o tecido por excelência. Para conhecer-se o temperamento de qualquer individuo, a sua energia elástica e vital, e até mesmo para julgar do seu valor individual, bastará medir exatamente por ele o sistema nervoso nos diversos modos de ação e reação combinados com a noção do volume do centro dos mesmos.

Pessoas há que possuem uma impressionabilidade de imaginação muito fraca, não podendo por isso guardar por muito tempo uma impressão moral.

Para esses, os atos que dependem do cérebro são lentos; não se lhe podendo exigir esforço violento ou enérgico. Os seus afetos são calmos; encontrão facilidade na vida, porque a estes não se lhes liga muita importância em atenção ao caráter.

Há outros, porém, que são da cabeça aos pés muito impressionáveis; tudo os agita; tudo os faz gozar; ou mesmo até sofrer. Nestes, a ação nervosa é rápida, enérgica, e, posto que esta impressão jamais repouse, o seu caráter tem uma mobilidade excessiva.

As faculdades intelectuais, mesmo quando sejam bem pronunciadas, não podem ser fixas por não conservarem por muito tempo uma impressão, buscando em seguida outra; sendo por essa forma interrompidas as emoções que privam a inteligência de agir com certa presteza, muito embora reúna ela facilmente o colorido da imaginação que obedece, sem o acoite das paixões, dando preferência ao que emana da razão.

 Nas criaturas, ainda há um outro predicado adicionado aos de cima, descritos palidamente por mim. É ainda a sensibilidade elevada ao mais alto grau.

A imaginação neles é mais ardente e vigorosa, posto que inconstante. Alegres, corajosos e ativos, são-lhes comuns os atos da vida; nada estranham, tudo percebem e atuam sem restrições. A fisiologia, minha cara leitora, designa o primeiro como linfático; o segundo, como nervoso, e o terceiro, como sanguíneo.

E é da formação do caráter que o indivíduo atrai sobre si as atenções pessoais de outrem, criando muitas vezes afetuosos nos que julgava indiferentes; e amigos quase sempre sinceros, nestes que cria apenas gozar de mera simpatia.

A viscondessa vira o nome daquele a quem amara no número dos passageiros chegados.

Era justo que viesse; o amor esfria com o tempo; ela casara-se embora forçada com um velho titular a quem não amava mas que a moral obrigava a respeitá-lo, não caindo sobre a sua coroa de nobreza um único salpico do pó das más línguas Havia dois anos que Corbela vivia como uma verdadeira fidalga, embora muito nova, aos vinte anos, apenas, considerava que os desperdícios do visconde não podiam, nem deviam ir além. Ele não media despesa: gastava em casa, gastava na rua, gastava no jogo. E a última companhia lírica quantos contos de réis lhe havia devorado; e com a atual, quanto não esperdiçava com essa cantora, de quem publicamente fizera-se amante?!...

Olhou em roda: o boudoir era caprichosamente adornado; o palacete, mobiliado cem luxo; as carruagens, ótimas; a criadagem, escolhida; boa capa, boa adega. Nada mais faltava-lhe a não ser o amor, a confiança que ele não lhe despertava, e que ela não lha pedia, por não lhe ser isso facultado.

Ao ficar viúva, o que restar-lhe-ia?  

Com as mãos cruzadas á toa sobre o regaço, a moça volveu um olhar pelo livro do passado e virou-lhe a primeira folha. Era a da infância; volveu a segunda, era a da adolescência; virou ainda a imediata. Era a da juventude cheia de risos e de mimos daquele velho avô, que a criara na mediania, mas pela ambição que tinha de vê-la feliz, sacrificara-lhe o futuro inteiro. Se ao menos tivesse um filho?

O pródigo do marido sem dúvida não teria ainda feito testamento, porque no tresloucamento em que vivia não julgava que a vida se assemelha a luz vacilante da vela que a crepitar, apaga-se de vez.

Nestas cismas, procurando riscar da memória a imagem que buscara apagar do coração desde que ligou-se ao titular, lembrou-se que ainda conservava dele uma relíquia. Eram sonhos do passado, provação para o presente, mas baixeza para o futuro. Resolutamente abriu uma das gavetas da secretaria de charão, de onde tirou um saquinho de veludo, dentro do qual ao pegar numa fotografia, a mão trem e o; depois, retirou umas cartas, e depois flores secas.

Sem dúvida que uma recordação agradável perpassou-lhe na mente. Desanuviou o semblante; o sulco frontal indicando resolução e energia, tornou-se menos profundo; ela sorriu, e inconsciente, beijou tudo como quem beija uma relíquia, ou a lembrança legada por pessoa que morreu. Depois, num ímpeto, estraçalhou o retrato, a carta, e as flores; findo o que, acendendo um fósforo chegou-o aos destroços, não querendo ver porém, a pequena chama que produzia o incêndio dos objetos queimados.

Seriam cinco horas da tarde. Nessa noite havia espetáculo, e ao jantar esperava visitas. O ruído que fez alguém entrando no aposento obrigou-a a voltar a cabeça. Era o marido que dela aproximava-se dando-lhe as pontas dos  dedos os quais ela apertou na aristocrática e bem feita mão.

— Aí na sala está o ministro francês; convidei-o a jantar, são cinco e meia, e é bom não fazê-lo demorar. Temos hoje a nossa recita de assinatura, como sabes.

— Sim, respondeu encaminhando-se para o botão elétrico da porta. Pede-lhe desculpa se por acaso me demorar um pouco; preciso fazer uns reparos neste cabelo. Até já; e estendeu-lhe a mão que foi apertada por ele glacialmente, como se assim demonstrasse ser de mais aquela atenção, saiu o visconde sem dirigir a sua mulher mais que um olhar de indiferença.

Como fora frio o contato daquelas duas mãos, a que tão sem calor correspondeu ele, não visando esse bem que sentimos quando apertamos a mão da pessoa a quem estimamos, e que lhe fora dada por ela com certo interesse, e quase cordialidade!...

É exato que, embora denote polidez, um aperto de mão entre nós brasileiros, ele quase que não traduz emocionabilidade ou efusão, fazendo-nos inversos dos ingleses que tornam característico, tradicional e com certo viso de originalidade o seu shake-hands sacudido, meio rude, mas franco, leal e generoso.

Entre nós, o aperto de mão é sem vida, sem expressão, limitando-nos muitas vezes a tocarmos, não as mãos, mas apenas as pontas dos dedos apresentadas.

Por mim, tenho analisado. Educada à inglesa, habituei-me a sentir-me bem, quando aperto como essa boa gente a mão de uma pessoa amiga. num bom aperto de mão, sincero, amistoso, cordial, humorístico, conhece-se o caráter de quem o dá, ou o transmite, mostrando espírito, importância pela pessoa estimada, repartindo assim o fluido magnético estabelecido pelo contato da simpatia mútua.

Corbella dirigiu-se ao salão, e daí pelo braço do diplomata passou à sala de jantar. Felizmente estavam todos de bom humor, conversavam sem etiqueta, familiarmente, comendo-se sem constrangimento, adubando a refeição algum dito picante ou alguma anedota contada pelo ricaço. As iguarias eram abundantes, a mesa bem servida, os vinhos finos, a sobremesa variada, e a louça de preço.

Depois do café todos retiraram-se, dirigindo-se os donos da casa aos seus aposentos que eram separados por um corredor raramente por eles frequentado.

A titular começava a mudar de vestuário; sem querer, quando, olhando para o chão, viu as cinzas que ficaram do incêndio, as quais o sopro da aragem que entrava pela janela embalando os cortinados, espalharam-se sem deixar mais do que leves vestígios. Do passado só lhe restavam as cinzas do coração e as cinzas das provas materiais que agora uma lufada de vento incumbia-se de as levar de vez.

O moreno-claro de Corbella sobressaía em um vestido vieux rose, decotado, coberto de rendas presas ao lado, por um grupo de rosas e jasmins. Sobre o colo nu colocou um simples fio de grossas pérolas que pousavam garbosas fazendo mais sobressair e realçar os contornos de um pescoço bem torneado, como o dela. Nos cabelos, prendeu um pente de tartaruga e brilhantes. Apenas dois simples braceletes viam-se sobre as luvas cor de carne. Tomando o leque de gaze, na sua simplicidade moderna estava elegantíssima.

Como último reparo forçado, colocou sobre a cabeça um véu de rendas finas, mandando por na cadeira por um gesto a capa de casimira que a criada lhe oferecera.

Às oito e meia, já impaciente, entrou com o marido na carruagem que a trote largo partiu de São Clemente, puxada por uma parelha de cavalos de raça e guiada por um cocheiro e um growm  com farda de luxo.

 O teatro refulgia de luzes; o que havia de mais fashionable na sociedade fluminense lá estava.

Principiou o primeiro ato ouvido religiosamente, findo o qual, no camarote dos nossos conhecidos entraram dois cavalheiros, .apresentando aos barões de Santa Helena, o mais idoso dos dois, o mais novo, um moço de uns vinte e cinco anos pelo menos.

A jovem estendeu a mão a Mr. de Varennes, secretario da legação francesa no Brasil, e que chegara há pouco, não sabendo no entretanto disfarçar um certo quê de desprazer ao receber os comprimentos do diplomata, com quem logo antipatizou. Desagradava-lhe o todo do apresentado, conservando-se muda quase durante todo o tempo que durou a visita. Se fosse um pouco mais experiente notaria que o sorriso daquele homem era maligno, que o olhar ao fitar-lhe o colo provocante, moreno e arredondado, tornara-se impudico, que uma faísca de sensualidade passara ligeira como o raio ao mostrar-se para si, de um a esquisita amabilidade e delicadeza, na correta expressão de homem habituado a viver no grande mundo.

Enquanto prestava atenção ao diplomata, pareceu-lhe ver alguém bem conhecido seu. A emoção fora breve; um engano talvez... porém, aquele que estava em frente era tão parecido com o Carlos, a quem amara... Pobre mulher!... E estava ali, ao lado de seu marido, ostentando a posição que tinha, com o coração cheio de fel, mas com os lábios em sorrisos, para mostrar ao público a felicidade que não gozava, mas que era preciso aparentar.

O mundo é cruel; está sempre ao lado da fraude, do perjúrio, do irracionalismo; crê sempre a maior das vezes na mulher, a única culpada dos naufrágios conjugais. Existem, é certo, senhoras sem critério, sem discernimento,  de fazer pecar o Cristo, se ele viesse de novo à terra, mas na maior parte das vezes os maridos (perdoem-me eles e até o meu) são os únicos autores das infelicidades e mesmo das divergências conjugais da parte das esposas. Nem todas têm a condescendência precisa, nem todas pensão retamente com tino, e sobretudo rara é a que tem a filosofia necessária para perdoar fraquezas e fracassos do companheiro dado pelo coração e pelo casamento.

Diz Lamenais que o matrimônio só tem uma fase: “a moral, que deveria ser imposta com preceitos iguais para ambos os cônjuges.” É lógico isso, razoável, mas impraticável pelas leis estabelecidas pelo Código Penal e Social. Daí, veja-se: o homem que tem a seu favor a liberdade, a ação, faz o que lhe parece, se trai a esposa deixando-a na penúria, infamemente, a sociedade está sempre pronta a desculpá-lo e a apontar-lhe a regeneração no futuro, que o tornará então um homem de bem. Se porém vê-se iludido, a lei faculta-lhe ainda o direito de matar aquela que o traiu, porque sujou-lhe o nome, emporcalhou-lhe a honra. Indo preso, ou entregando-se à prisão que é de melhor efeito,  sob o manto da mesma lei, sai absolvido, vitorioso, dizendo a sociedade que ele é um homem de bem, que cumpriu com o seu dever.

À mulher tudo a fere, sei. A bem da sua dignidade é que deve manter-se sempre no seu papel de senhora, para não cingir-se ao de escrava, porque, a matar ela o marido num caso fortuito, levada pelo desespero do ciúme seria simplesmente reputada uma assassina infame, concordando eu que, sendo a mesma fraca, nunca ao seu todo gracioso e gentil estaria bem o alfanje de uma Judite, estampada numa mulher da atualidade.

O sábio que veio ao mundo resgatar a mulher tirando-a da torpeza em que vivia como coisa, plantou-lhe a igualdade de par com o seu másculo companheiro. Igualdade, por confraternização e caridade, foi essa a doutrina de Jesus.

A mulher oferece atualmente um ponto de estudo filosófico muito sério.

Uns querem a sua completa emancipação; outros o seu aniquilamento, plantando sempre esses dois modos de pensar — a discórdia na uniam que deveria haver no lar doméstico. A educação é o principal fim, porque os filhos mais tarde são outros tantos cidadãos que, sendo depois também pais de família, seguiram o exemplo que tiveram, educando por seu turno, as suas vergônteas sob a influência moral em que foram criados.

O homem casado que se compenetra dos seus deveres, não só dá direito à esposa que faça dele o seu conselheiro, o seu melhor amigo, como, tornando-se ela esposa e amante, sob o influxo da luz que adormece e desperta na felicidade, fará do lar um paraíso, e do amor a cadeia eterna que liga o coração à terra, e o prende, por meio da virtude e das boas ações, a Deus.

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

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