A FAMÍLIA DO CONSELHEIRO
(A ALBERTINA PARAIZO)
Imagine-se um lar
desprovido de ventura, onde o desleixo anda as cegas, descuidado por uma
cabeça leviana.
Imagine-se mais, essa indiferença
cruel que dá em resultado uma frieza marmórea entre dois entes a quem os laços
do matrimônio deviam tornar amigos
indissolúveis, mas que descendo a temperatura no termômetro do bom senso, chega
a gelar o coração e embrutecer, empedernir os sentimentos os mais puros, atirando-os
à hediondez do tédio causado pela recíproca divergência de idades, de
pensamento, de ações e de educação igualmente.
O Conselheiro era um homem sem ação,
linfático, doentio.
Para ele na vida, só havia a Luisinha,
sua filha única, cuidada desde pequena por uma criada de confiança; depois, entregue
a uma professora sem energia que para ser agradável a D. Amélia de Carvalho, esposa
do velho chefe da família, deixava a pupila à vontade, no que era apoiada pela
mãe da menina, que constantemente entretida em mandar vir da Europa os atavios
e vestidos de que necessitava, levava os dias nos seus aposentos deixando a
casa à revelia, a despensa à discrição dos criados, e a despesa correndo por
conta de uma governante sagaz e ladina que apresentava-lhe diariamente a conta
de doze quando gastava somente dez, afinando a nota do crescendo quando havia em casa sarau ou jantares.
— Amélia, no seu dolce far niente, tocava, dava lições a
um pianista de fama, lia os romances mais em voga, fossem ou não lícitos, jogava
nas corridas, indo, é verdade, acompanhada da filha, mas raramente do marido, recebendo
comprimentos e distribuindo-os também.
O pobre velho fazia tristíssima
figura junto dela. Só de longe em longe a acompanhava a um baile ou a um sarau,
onde sua mulher exiba os vestidos bonitos que lhe vinham de Paris, ostentando
vaidosamente um colo moreno, onde pousavam alguns fios de pérolas de grande
valor, herdados da sua avó.
Quanto ao comportamento de D.
Amélia, esse tinha de quando em quando uma nuvem brusca, às vezes durável, outras
menos ligeiramente acentuada, coisa que só com muita reserva, chegava aos
ouvidos do conselheiro, que não lhe dava credito, e nem queria averiguar razões,
crendo-a inocente, embora leviana.
— É porque ela é bonita, no
entretanto não quero dar-lhe o desgosto de tocar-lhe em matéria tão desagradável,
disse ele a um indiscreto que, parecendo ser amigo, quis intrometer-se na seara
alheia.
A Luisinha já moça, revelou
aptidões para ser uma filha meiga, correspondendo ao amor paterno, reprovando
até certo ponto o gênio e a forma de viver da mãe, que no entretanto queria
muito à filha, a qual sem ter quem bem a encaminhasse, receosa de ser franca
com o pai, amou a um dos frequentadores de sua casa, , obedecendo tão somente
ao coração. O escolhido, o seu ídolo, foi um desses boêmios de sala, protegidos
dos olhares benévolos das damas e do bonacheirismo dos pais de família a quem, apresentado
como moço elegante e educado, era aceito como indispensável à verve das salas, ignorando porém muitos,
que haviam lhe tirado a farda das costas na Escola Militar como incapaz, que
tinha uma crônica pessoal pouco limpa, que era mau filho, e que sustentado pela
mãe, pregava calos ao alfaiate, ao
sapateiro, bazofiando dinheiro que não tinha, e que andava atrás de um
casamento rico.
Por conta própria, sem autorização
paterna ou mesmo da mãe, ao principio dava ao rapaz um ou outro longo suspiro, impregnado
de olhares de esperanças. Depois recebendo e respondendo cartas, autorizou-o a
pedi-la em casamento.
Amélia de Carvalho suspeitava mais
ou menos do namoro da filha, julgando-o porém um passatempo. No entanto o Baltazar
Gouvêa, para segurar-se na proteção da mãe da moça, começou a fazer a corte à esposa
do chefe de família, acompanhava-a ao piano os romances e árias que a mesma-
cantava, trazia-lhe novidades no gênero, cantava com ela duetos, almoçava, jantava,
e se bem que olhasse para o pai da namorada com certo ar de pouco caso, contudo
era por demais cortês para com o velho.
O pobre homem caiu doente. A filha
mostrou-se amante e discreta suprindo a boa vontade que faltava na mãe como
enfermeira.
O Baltazar foi devotado.
Como homem conhecedor do mundo e
das coisas, calculista, queria que a gratidão fosse o alvo que mais tarde
prendesse a si o doente, por isso tornou-se incansável.
A Família do Conselheiro A
convalescença veio lentamente robustecer aos poucos as forças do enfermo cuja
esposa, , logo que este pôde suportar ir à mesa sem constrangimento, ofereceu
aos amigos da casa um grande jantar, estreando um vestido caríssimo.
***
Luísa estava radiante. No seu papel
de enfermeira prendera o pai mais a si, adivinhava-lhe os pensamentos, preparava
por suas mãos algumas comidas preferidas por ele, lia-lhe a correspondência, respondia-lhe
as cartas, lia os jornais do dia, sistematizando-lhe a vida que via fugir, prolongava-lhe
pela higiene a saúde, vendo aos poucos voltar àquelas faces, pálidas, de um
amarelo doentio, uma leve cor de sangue como sinal de vida e de melhoras. A mãe,
delegou na filha o que lhe competia como esposa. Trocavam os papéis. Ele, sentido
com o pouco caso que ligava-lhe a D. Amélia, uma noite chorava ouvindo o som da
voz de sua mulher que estudava um novo romance.
Neste dia, contra as ordens da moça,
o Conselheiro recebera uma carta que ocultara da filha e que como um autômato
relia agora pela quarta vez. Ao ver aquelas faces cobertas de lágrimas, a jovem
que entrara sem ser vista, estacou quase perplexa.
A estupefatação foi enorme: ela
apressou-se a limpá-las, inquiriu a razão delas, e sem poder conter-se, com
amor beijou as brancas cãs daquela fronte honrada tremendo de comoção, e de dor,
na impressão de muitos sentimentos reunidos. Ele abraçou-a procurando ler-lhe
nos olhos o pensamento com essa insistência que importa quase uma palavra
verbal, uma resolução sem medidas.
— O que quer de mim? perguntou a
moça. Por única resposta ele ergueu-se e apresentou-lhe a carta que ela vira. O
Baltazar pedia-a em casamento.
— E tu o autorizaste?
— Sim, respondeu cabisbaixa. Ele
olhou-a surpreso, quase até mesmo raivoso; passado porém o primeiro ímpeto, tomando
entre as suas a mão da filha, fez-lhe ver a inconveniência de semelhante consórcio;
abriu-lhe o livro da razão revelando o segredo de sua alma; apresentou-lhe um
exemplo.
— E... para guiar-te... basta
desgraçadamente... Interrompendo-se contou-lhe com o coração nas mãos a
desventura que o acabrunhava; as torturas que sofria, a ver até que nem o seu
nome nem os seus cabelos brancos eram respeitados pelas más línguas que não
poupam nada.
Ela, confusa, atônita, horrorizada quase,
ouvia-o como uma sonâmbula.
Oh!... não era possível... sua mãe
era uma santa...ela adorava-a, e a seu modo, D. Amélia também queria a filha
como muitas vezes afiançara a mesma.
— Se não foras tu, já eu teria
abandonado essa casa onde não sou eu quem governa, porém, seja verdade ou não a
gente de fora murmura...e rumina. Não me abandones, peço-te eu, sim?!
A pobresita ao sair d ali, fechou-se
no quarto, e posto que sem experiência ainda, contudo não era tão ingênua que
não soubesse distinguir o bem do mal. Os romances que lia sem prévia revisão de
pessoa idônea tinham-lhe mostrado tantos fatos, e tantas verdades, destas
que ouvia agora dos lábios paternos por um singular e legítimo desafogo
necessário a alma daqueles em quem falta a precisa energia para os grandes
desastres que ocorrem no curso do trajeto da vida.
***
O amor pelo moço esfriou muito
depois do que passou-se entre o pai e a filha. A crise porém que sucedeu a isso
foi enorme; ela, irrefletida por uma espécie de sugestão, deixando uma carta ao
velho pai, num ato de verdadeira loucura, abandonou aquele teto onde talvez
morresse de angústia aquele que de ela fizera confidente... que de pai, tornara-se
amigo, no desinteresse de uma amizade verdadeira.
O Conselheiro a tremer abriu o
invólucro, passou a vista sobre o conteúdo, e a espumar, “caiu numa sincope que
só a muito custo pôde dela salvar-se.
Daquela data em diante recolheu-se
a um hotel, deixando a casa onde tivera tantos desgostos, cabendo a elas, mãe e
filha, o remorso de vê-lo quase no último quartel da vida, ir para outro país
que não lhe dera o berço sentindo entre os estranhos, longe da pátria, dos
costumes e do coração, o bem que na família lhe faltara.
Reunida ao Baltazar, D. Emília fez
o casamento da filha; continuando ambas a viver como dantes, tornando-se o
genro aos poucos despótico, malcriado, quase brutal até.
O Conselheiro resolveu logo que partiu
dar uma boa mesada a esposa para: — Não deixá-la sem ter com que sustentar-se.
— Devia abandoná-la disse: mas a
fortuna trouxe-a ela, que precisava aos quinze anos de um tutor, tomando eu a
mim esse compromisso.
Que homem singular!...
Longe pois de procurar empregar-se,
o genro do Conselheiro Carvalho achava o trabalho um desaire para quem como ele,
elegante e fútil, não tinha um só calo na mão que indicasse por isso a luta
pela vida, nem muito menos energia para viver da mesma.
A desinteligência pessoal foi pouco
a pouco autorizando de parte a parte já um dito picante, já uma indireta, já
uma represália.
A Luisinha chorava; a mãe, maldizia-se,
ameaçando deixá-los; ele subtraía a mesada da sogra; esta enraivecida, retirou
uma procuração que havia dado ao genro, e o inferno, o verdadeiro inferno de
imprecações, de verdadeiras misérias de linguagem e de atos, começou a
transtornar aquela efêmera vida desproveitosa para todos.
***
Depois da retirada da D. Amélia da
casa do genro, as necessidades começaram a precipitar-se no interior da casa do
Baltazar, que sem ligar importância à Luisinha, tratando-a mal de palavras, viu
em sua carreira um único recurso: o jogo.
E os dias passavam-se: a fome
principiou a sentir-se. Os dois filhinhos não mais comoviam o rapaz que aos
poucos conduzido pela sua má estrela foi-se lançando na roleta, nessa ambição do homem que se precipita de abjeção em
abjeção, vivendo fora das leis sociais e morais, tendo como bússola a
bilontragem; nessa sede inesgotável de quem precisa de pão, de vinho, de roupa,
de vícios, de tudo em fim, procurando depois na saciedade dos prazeres, esgotar
gole a gole a taça do vinho amargo da desventura, chafurdando-se na lama do
menosprezo, arredando-se da gente séria e boa.
A pobre filha do Conselheiro foi
desfazendo-se do que lhe fazia menos falta. O marido sem ela o saber, muitas
vezes vendia um movei, ou um objeto qualquer, estando já quase mis os consolos;
o sofá, sem espelho; desaparecendo os tapetes, as guarnições, o piano, as joias,
a louça fina, e por último a mobília, substituída por meia dúzia de cadeiras
reles.
***
No convívio da gente de baixa esfera,
ele, o elegante rapaz, que tanto apaixonara a esposa de agora, perdeu as boas
maneiras, a graça, o aplomb do porte,
as frases comedidas e de salão, restando apenas o rosto simpático, embora
rugoso, e um certo ar de cansaço que o fazia sentir-se bem entre aquela gente
faminta, bestial, grosseira, onde, com os olhos injetados pelo alcoolismo e os
lábios a proferir horrores, ele descia, descia, como um lacaio, às ordens da
desgraça que lhe apontava o crime como fim da sua vida.
Quando o homem desce e calca aos
pés esta dignidade nata originada do orgulho individual e justo que lhe prende
os passos, sente-se bem na segunda vida,
criada pelo mandato do vício. O sistema nervoso altera-se-lhe com o meio e o
álcool produz o delirium tremens, que
o corrompe de vez. Os desgostos depauperam as forças, tornam raquíticos os
sentimentos, paralisam as boas ações. Assim foi que azedando-se em consequência
de questões de jogo, furibundo, com os olhos a sair das órbitas e a boca a
espumar, cravou uma faca de ponta, naquele que lhe disputava o ganho.
A mísera esposa, ao saber do
ocorrido, desmaiou. A dor foi mortal; ela não contava receber golpe tão rude.
A D. Amélia adoecendo, morreu numa
casa de saúde, e a filha, dias depois era conduzida ao hospital, sendo as criancinhas
recolhidas ao colégio dos órfãos.
Lá na detenção, o preso por sua vez
morria aos poucos. A desventura havia bem aquinhoado essa família infeliz, enquanto
que o seu chefe, vendo considerados, por outrem os seus cabelos de neve, ao
saber do ocorrido, tomou passagem no primeiro vapor que vinha para o Brasil.
Em pleno mar, à noite, quando só no
convés o velho p assava em revista a vida pouco feliz que tivera no seio da família,
remontava a muitos anos atrás, onde via a sua Luisinha rosada, alegre, infantil,
a brincar, a rir, a beijá-lo... Sentia ainda o aroma daqueles labiozinhos
rubros a oferecer-lhe um osculo, ouvia o som daquela voz doce que o chamava pai...
Então, não tinha essa coroa de desilusões a arrefecer-lhe a fronte... São
passados já vinte anos!... Agora, fazendo o recenseamento do trajeto da vida, via
sua filha a reviver, pobre, miserável, no leito dado pela caridade pública...
Os olhos, meio amortecidos pela idade, empanaram-se de lágrimas que deixou
correr sem constrangimento, porque o homem também chora, também é susceptível
ao enternecimento. A psicologia é dom de ambos os sexos... e ali, ao ouvir o
barulho das ondas e o bater da hélice a cortar as águas, sem testemunha, podia
chorar sem constranger-se.
Depois, entre tantos companheiros, em
presença de estranhos, poria a mascara da indiferença no rosto. A sociedade tem
limites, marca-nos os mesmos, tornando-se preciso obedecer-lha. Demais, o que
importa a qualquer a mágoa de cada qual?
***
— O Conselheiro desembarcou; tomou
um hotel, e no fim de dois dias soube achar-se a Luisinha na Santa Casa de Misericórdia.
Ela dormia, quando o pai entrou.
Foi necessário ter muita energia para não cair ao ver aquela outra Luísa, pálida
e moribunda, tal era o tremor que agitava-lhe os membros, ao avistar aquele espectro.
— Há esperanças de vida? perguntou
ao médico.
— Sim; se se curar primeiro a
moral.
Daí a dois dias, passava a filha
para uma casa de saúde de primeira ordem, onde, quando restabelecida, desejando
conhecer o seu protetor incógnito, este apresentou-se, ela reconheceu n ele o
pai, que tomou-a nos braços, perdoando-lhe tudo que se houvera dado, por
obedecer enfim a essa lei que sagra o amor dos filhos, tornando-se dele
sacerdote — o sublime amor de pai.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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