AO POR DO SOL
(A ADELAIDE PINHO)
Sob a cúpula tristonha dos ciprestes
do cemitério num dia de finados, com o espírito recolhido ante a efígie da
morte, ouvindo o murmúrio da natureza e o ruído surdo da multidão que em grupo
dirigia-se às catacumbas, aos mausoléus e às covas rasas, sentindo a aragem
fresca impregnada do perfume dos jardins daquela triste morada, eu, tristemente
caminhava ao acaso, sem rumo, curiosa, ávida de emoções. Umas badaladas que
feriram-me o ouvido trazidas pelas ondas sonoras do ar, fizeram-me virar a
cabeça ao ver passar por mim um carro de quarta ordem, pobre, que dirigia-se a
um montículo de terra que se avistava a alguns passos mais longe. ,
Ouvi uma voz dizer:
— Vai para a valia.
— O carro seguiu o seu trajeto por
entre os túmulos, acompanhado por uma centena de curiosos que, apressados, dirigiam-se
ao lugar determinado.
Eu segui os demais e pude, entre a
multidão, tomar o meu lugar de espectadora junto a uma cova rasa e funda a cuja
borda quatro homens de camisa e pés no chão, ajustaram ao ataúde uns ganchos
presos em grossas correntes, medindo com a vista o lugar certo onde ficaria o
mesmo, que sem esforço suspenderam deixando-o resvalar docemente, com método e
arte, até o lugar de onde não sairia jamais.
Depois, foram espalhadas sobre a
tampa algumas colheres de cal, começando em seguida a lançarem pás de terra por
cima do mesmo, que com um tom seco, rijo, lúgubre, caíam compassadas, produzindo
um eco que tristemente impressionavam a alma e a imaginação.
Logo que aquele buraco que se
abrira nivelou-se ao resto do terreno, os coveiros fincaram um pequeno poste
com o número da sepultura, colocaram nela duas grinaldas roxas, puseram as
enxadas ao ombro, e retiraram-se como haviam vindo, sem comoção, frios, insensíveis,
como se voltassem de um trabalho natural, onde sem repugnância ganhassem o pão
de cada dia.
De repente, os curiosos retiraram-se,
e vi-me sozinha à beira daquele tumulo raso e humilde, sem uma lápide, sem uma
oração, sem outra lembrança além daquelas duas coroas singelas e quase pobres, piedosa
dádiva de alguém que traduzisse por esse modo o sentimento que lhe ia n’alma.
Finalmente, pois, aquele cadáver
dormia o sono eterno, livre já das falsidades da vida, e ali, frio, rígido, imóvel,
pura matéria, produzirá mais tarde com o calor do seu vírus a seiva que alimentará a trepadeira singela que orne
agradecida o número e a cruz olvidada pelo natural desleixo humano!....
***
Afastei-me lentamente, caminhando
sem rumo por entre as mortuárias guaridas, ora analisando uma escultura, ora um
mausoléu rico onde a arte tratou de impregnar os seus mais belos moldes do estilo,
acolá, apreciando uma lapide coberta por um caramanchão de verduras onde as
rosas imperam como soberanas, aqui, afastando uma trepadeira para ler uma inscrição.
Via ainda a turba indiferente, girar, confundir-se em diversas direções, sem
considerar o valor das riquezas atiradas à mercê das intempéries, nem poder
avaliar o pouco que somos sobre a terra, quando uma cova humilde prendeu-me
novamente a atenção. Aí, um punhado de flores enfeitavam a terra úmida, onde
duas crianças de joelhos pareciam alheias ao movimento que as rodeava. O mais
velhinho, de branco, com o cabelo empastado sobre a testa, aproximava de quando
em vez as mãos de uma das quatro velinhas que, acesas, alumiavam a jazida, fazendo
com que o vento não as açoitasse para não as consumir depressa.
A pequenina, de preto, numa posição
de abandono, com as mãos caídas negligentemente sobre o regaço, olhava chorando
para aquele lugar fúnebre que guardava sem dúvida os despojos de um ente querido.
— Quem dorme aqui?
perguntei eu.
— Nossa mãe.
— E quem têm vocês por si agora?
— Deus.
— E por que você, meu menino, está
pondo assim as mãos na vela?
— Para se não gastar ligeiro, porque
não temos outras.
— Quem lhes deu estas?
— Esmolas; mas como eram duas
grandes, cortamos para fazer quatro.
— Não têm lanternas?
— Não! fizemos uma de papel que
queimou-se.
— E por que não está também de luto?
— Porque não tive roupa.
Insensivelmente comocionei-me.
As lágrimas corriam-me espontâneas
ante tanta miséria e resignação.
Olhei para minha filha.
Os negros olhos da criança estavam cheios
de pranto. Sutilmente tirou da bolsinha o seu pequeno óbolo que deitou-o a
sorrir sobre o regaço da orfanzinha, a quem beijou dando-me novamente a mão.
***
As sombras da noite envolviam com
seu manto negro a verdura dos morros; uma brisa fria sacudiu-me um látego sobre
a face.
Já encaminhando-me para a saída, olhei
ainda em direção ao quadro que me ficara gravado n’alma, derramei um último
olhar sobre o vasto campo mortuário, e saí.
Dizem que a trombeta final dará o
toque de despertar lá no vale de Josafá quando tornar-se comum aos homens a ressurreição
da carne no dia do Juízo Final; se é verdade ou não, apenas sei que esse assunto
serviu para emocionar-me nos primeiros tempos da infância, crendo, porém, agora
que sem dúvida um desses planetas que brilham no espaço virá tomar parte ativa
na revolução do globo, seguindo a evolução da terra que, por fim, sob a pressão
ígnea do Cosmos, voltará a ser um vácuo, e... nada!
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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