ANGELITA
(A DAMASCENO VIEIRA)
Caráter sisudo, homem que não era
de meias medidas, desses que vão direito ao caso sem palavras fofas, nem
reticências, era tido na roda em que vivia como um casca grossa, embora dotado
de excelente coração.
A economia do negociante já tocava
às raias da sovinaria, no que era de vez em quando censurado por algum íntimo a
quem respondia
— O diabo as tece; e se por
infelicidade gastar estes contecos
que tanto suor me fizeram perder, aqueles que hoje me bajulam deixar-me-ão com
desdém. Além disso tenho a pequena que já está com os seus onze anos, que é
preciso educar no estrangeiro, embora eu não saiba lá bem o que seja educação, instrução
e todas essas coisas precisas a uma senhora para fazer bom casamento.
— Guarde o seu dinheiro para melhor
fim, respondeu um amigo. Aqui no Rio já se educa muito bem e gasta-se menos.
— Eu cá me entendo, continuou. Sou português,
homem já pratico, portanto, a menina há de ir para Lisboa aprender o que eu não
sei.
***
Daí a um mês partia para a Europa a
Angelita que de feições expressivas e olhos negros, era muito gentil, embora
magrinha e pálida, porém cheia de vida.
Passados tempos, o correspondente
começou a mandar os boletins, por onde via o bom do homem que sua filha era de
uma inteligência rara, e, mais raro ainda, muito estudiosa, o que é incompatível
quase com o primeiro predicado.
Depois lá veio a primeira carta escrita com
essa letra-desigual, trêmula, incerta, que nota-se nas crianças quando principiam
a ensaiar o bastardinho.
Em seguida, de mês em mês já
acompanhava o boletim que estava mais aumentado pelo crescente adiantamento da
brasileira, a esperada missiva que era mostrada pelo pai aos amigos, analisando
com prazer a diferença da primeira.
A papelada não lhe cabia mais na
carteira, quando ele com receio de perdê-la guardou-a na sua casa de comercio, conservando
com tudo sempre a última carta que recebia.
Os anos voavam. Os cinco, marcados
pela vontade paterna já estavam findos. O Ventura vivia satisfeito, alegríssimo.
A Angelita mandara-lhe a fotografia que reproduzia a sua imagem de mocinha, agora
robusta, e senhoril, e com muitos desejos de voltar à pátria.
O negociante ficou deveras comocionado.
Ele que não era homem lá de grandes expansões, abraçou o retrato, chorou
beijando-o e dizendo aos amigos que a pequena saíra à mãe, possuindo a mesma fisionomia
franca, a mesma expressão de olhar, o mesmo talhe de corpo, e que talvez Até...
o mesmo modo de andar.
— E de você, então o que herdou ela?
— perguntou um malicioso.
— Nada, nada!... respondeu
sacudindo a cabeça e pondo a fotografia mais ao longe para vê-la melhor. Já não
é pouco o parecer-se ela com a mãe que era mesmo uma rapariga de truz e
trabalhadora. Nunca paguei fora engomado; também nesse tempo era preciso uma
certa economia, era...
Nessas e em outras considerações
tornava-se às vezes maçante o pobre pai que resolveu ir buscar a mocinha, escrevendo
nesse sentido à diretora.
Logo que viu-se a bordo, com a
carteira repleta de ordens francas para casas comerciais e cheques para
diversos Bancos, ele cismava na filha; remontava à idade em que a vira
pequenita trepar-lhe nos joelhos, a puxar-lhe a meia barba não muito aparada
então; e a sujar-lhe as calças com aquelas mãozinhas emporcalhadas de doce e
pó... Depois, via a sua defunta Joaninha junto a si aos domingos, lá no cômodo
que tinha no fundo da mercearia a conversar sobre as novidades da semana e
pedindo para ler-lhe no Jornal do Comércio
as novidades que o caixeirito ouvia contar à freguesia.
A sós, sentado na preguiçosa escutando o rumorejar das águas,
recordava-se do navio em que tinha vindo para o Brasil há trinta anos passados,
com os pés descalços, uma roupa ordinária a cobrir-lhe os membros rijos, gordos,
fortes e rosados, indo para casa de um patrão que era ruim como um condenado...
A felicidade, porém, bafejara-lhe a vida; em vez de pobre e mi como viera, voltava
à terra, rico, com a comenda da Conceição de Vila Viçosa ao peito, considerado
e feliz. — Que diferença de posições?... Como era bom ter-se dinheiro?!...
Depois da estada no Lazareto, lá
foi ao colégio, sendo tal alegria que teve ao ver a filha, que suspendeu ao ar
a menina num amplexo quase sufocante.
***
— Angelita com o pai foi “correr
mundo” como dizia ele.
Chegando em Paris achou o Sr. Ventura
que a ex-colegial devia ter bons vestidos, bons chapéus, boas joias, abrindo-lhe
a bolsa prodigamente, e aproveitando-a ela ainda com mais prodigalidade
instigada por uma condiscípula que em sua companhia e na do Sr. Ventura, vinha
também para o Brasil.
Depois de uns seis meses de
excursão por diversos países, voltarão ao Rio onde ele preparou-lhe uma casa
dando como dama de companhia à filha, uma senhora de sua inteira confiança.
Bonita, instruída, prendada, viva e
meiga, frequentando a sociedade, viu-se o português atarefado querendo que a
Angelita brilhasse, que sobressaísse, que usasse um adereço antigo de grandes
brilhantes que pertencera à mãe, mostrando pelas joias ter bastante dinheiro.
—Tomara já casar a pequena, disse
um dia confidencialmente ao sócio. — Esta vida assim de bailes e concertos, obrigando-me
a sair fora dos meus cômodos, já não é comigo que estou velho.
No entretanto, os pretendentes
choviam, sendo o escolhido um médico novo, rapaz bonito e de esperanças.
A filha do negociante deu-lhe corda,
resultando um namoro travado às direitas querendo casar. O pretendente
tornou-se a sombra dela que, toda enamorada chocou-se ao ver que o pai rejeitava
o médico, apresentando-lhe o sócio que a pedira igualmente e que ela recusara.
— Deus me livre!.. exclamara o português
iracundo dirigindo-se à moça. Eu consentir que te cases com um boneco de
pastinhas, e lunetas, perfumado, com flor ao peito, um pelintra, um médico sem
clinica, que não tem futuro!... Ah! ah! ah! tinha bem que ver!... Que esperança!
— Além disso eu não sei tratar com
essa gente; não nasci para baboseiras, nem excelências, nem senhorias. Eu sou
homem do trabalho, e hás de casar com quem eu quiser... com um meu igual a quem
tenho de vista há muito tempo como o sabes.
Depois da cólera, passai a o português
à brandura invocando a falecida esposa, e os seus cabelos brancos, até que
afinal convenceu-a.
O Bernardino Fiúza apaixonado pela
filha do sócio capitalista ficou louco de satisfação ao saber que era o
preferido, prometendo à pobre criatura muitas regalias e prazeres.
Sem educação, quase impolido, rusguento,
se bem que sempre um pouco mais limado do que o futuro sogro, não discorreu que
a mulher educada há de necessariamente pensar de forma diferente daquela que o
não é. Ele, que a conhecera desde pequena, achou que o Ventura não tinha razão
em ser tão exigente com o coração da filha. Pensando moderadamente sobre o caso,
não obstante amar a Angelita, viu que o partido antigo não era de todo mau, mas
que a si, cabia a sorte de possuí-la como desejava.
Ela então aceitou o casamento, que
realizou-se em dois meses.
***
Depois de casada viu que a situação
em que estava era em tudo falsa.
Respeitando o marido, no meio do
luxo, ela delicada por natureza não censurava-lhe a frase mais dura, para não
provocar discussões. Vivia numa doubadoura cuidando da sua casa, dos seus
criados, da economia domestica, das suas compras, das suas visitas.
O marido não ligava-lhe a
importância que ela merecia, aceitando contudo convites para saraus e concertos,
assinando companhias líricas, mandando buscar da Europa atavios, mas tudo isto
sem mostrar interesse, como por obrigação.
Tempos depois, começou ele a
tornar-se sovina. Suspendeu os cem mil réis que mensalmente dava à esposa para
seus alfinetes, dizendo que os gastos eram supérfluos, que os negócios iam maus,
que o Sr. Ventura perdera grandes somas com a quebra de uma companhia.
Proibiu-lhe amizades, visitas, recepções,
pois que estava morto coma canseira de divertimentos que até ali tivera.
A pobre senhora ficou perplexa. Já
não era somente a indiferença e as grosserias que magoavam-na. Ele, taciturno, respondia-lhe
às perguntas ou por monossílabos, ou virando-lhe as costas.
Como de costume, os
convites sucediam-se sendo recebidos com desabrimentos, rolando depois 'os
impressos pelas étagères e
porta-cartões.
— A mulher fez-se para dona de casa,
disse-lhe uma vez que recebera um cartão para o Cassino. Quando solteira, lá
havia sua razão de querer divertir-se e gozar, porém, agora o caso muda de
figura, já é mãe, precisa cuidar mais de sua filha, a qual afianço-lhe que não
será educada a sua moda, mas sim, sob a minha administração, sem os seus
preconceitos nem hábitos.
Inquirida a causa do homem proceder
assim, soube-se que prevaricava por uma forma medonha, tomando para norma a um
amigo que empobrecera à custa do capricho de una mundana de alto coturno.
A vida da moça mudou completamente.
A menor palavra era recebida com um arremesso, a mais simples observação com
ameaças.
O Sr. Ventura no estrangeiro ignorava o que se
passava com a jovem, quando ao voltar para o Brasil, em um naufrágio, faleceu, perdendo
com isso a filha uma boa parte da fortuna, trazida em poder paterno.
Longe, pois, de consolar a
desgraçada que não recalcitrava, o sócio do falecido passou de más palavras a
ameaças para com a esposa, e daí... (que horror!...) à execução física, ferindo-a
uma ocasião.
Era demais!... tornava-se preciso
reagir, e ela fê-lo abandonando aquela casa onde julgara terminar seus dias, e
para onde entrara crendo ser o Éden que amenizasse-lhe a chaga do coração, pelo
corretivo do seu proceder de senhora educada.
***
Em casos tais, por um advogado, mandou
propor ao marido ação de divorcio, que este não aceitou, estipulando-lhe, porém,
uma mesada que mal a colocava ao abrigo das necessidades mais urgentes.
Depois, respondeu que a menina que
considerava sua filha pertencer-lhe-ia desde a data, em que completasse três anos,
idade essa marcada pela lei para serem conservados os filhos no poder materno.
É para lastimar-se realmente em
casos tais, que no Brasil não haja como na França, a lei de divorcio instituída
por Quinet.
O nosso divórcio legal ressente-se
de antigas praxes e preconceitos, dando margem a que o cônjuge desgraçado, conserve-se
sempre desgraçado pela indissolubilidade do ato que só garante e reconhece
estabelecendo como principio a separação de corpos e bens, extinguindo-se isso
com a morte de qualquer um dos cônjuges.
Nas condições anormais de Angelita,
ela tinha a seu favor três clausulas bem destacadas e sensíveis: adultério, sevícia
e injúria grave.
Quanto ao adultério, na França a
lei do divorcio é justamente severa para com o adultero, seja qual for o sexo, proibindo-o
de casar.
Eu creio que a lei do divorcio aqui,
seria um bem por estabelecer no seio de algumas famílias a moral, o amor, e
toda essa alegria compatível e precisa ao espírito, à sociedade e sobretudo ao
coração.
Angelita afastou-se das antigas
relações, conservando apenas as mais intimas, que a não abandonaram.
No doloroso Gólgota em que plantara
a cruz do sacrifício do seu futuro, fazia-se mais terna para com a pequenina
que sem compreender a tempestade que rugia na vida de sua mãe, tornara-se para
a mesma uma necessidade suprema. O coração materno é um cofre de afetos
recônditos, traduzidos pela manifestação de sacrifícios e abnegações
inimitáveis.
Quantas vezes, ao fitar a filhinha,
os grandes olhos da mártir empanavam-se de pranto, por não poder remediara
falta desse louco asilado na própria ignomínia de suas ações, que a sociedade
no tremendo tribunal da indiferença julgava-o inocente, sendo culpado, sem
refletir que a maior parte das vezes, o homem casado é o responsável único dessas
reações vergonhosas que dão-se sob os tetos domésticos, atirando-se depois
chufas desprezíveis à mulher que muitas vezes, inocente, veste contudo a
estamenha da culpada.
Três anos... pensava ela!... Pois
só três anos compensariam acaso o trabalho que dera-lhe a menina? E depois?...
o que fica para os juros da natureza? E a paciência? e o amor?... É terrível, sei.
O suicídio moral do pensamento não corrompe, no entretanto, o caráter da mulher
sensata nem autoriza juízos mal fundados, porém... a luta é monstruosa, a razão
nunca lhe é dada, por isso Angelita, desejava morrer.
As circunstâncias em que via-se, adoentavam-na;
uma tristeza profunda absorvia-a. Ela comia mal, e ainda assim não digeria os
alimentos; estava dispéptica, anêmica, doentia... Além Disso, tantos choques sucessivos
tornaram-na impaciente, nervosa, histérica, mostrando-se mulher.
E os dias e meses atropelavam-se.
A ampulheta do tempo estava prestes
a marcar os três anos para a separação.
A pobre mãe definhava; contava
minuto por minuto, hora por hora, segundo por segundo...
Se ele cedesse!... a menina era tão
fraquinha!... Por vezes, o excesso do amor materno quis suplantar o dever e a
dignidade nesse vacilamento da razão e do direito.
As ofensas então erguiam-se para
suster a moral e o caráter, dando lugar ao ódio que lembrava-lhe como
revindita o desprezo e o asco que aquele insensato merecia.
Felizmente a justiça eterna lavrou
por fim a sentença de liberdade da jovem, por meio de um insulto apoplético que
fulminou o Fiúza.
A mãe, pôde então, como viúva, ter
sobre a filha o privilegio concedido pela lei.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...