A FILHA DO TABELIÃO
(AO DR. LUIZ DELFINO)
Segunda; Terça; Quarta; e
Quinta-feira!...
E os dias corriam ligeiros, sem
uma nuvem, sequer, no ambiente da filha do Tabelião Jônatas Guedes, a travessa
Ignezilla, a enfant cherie da família, ela, que com os seus
quinze anos corria, cantava, brincava, sem outro fim mais do que ver passarem
rápidas as horas nessa primeira idade, sem igual na terra, onde a primavera
desabrocha os rebentos colhidos no verão da vida, guardando as flores já meio
crestadas pelas decepções para o seu outono, e as completamente amarelecidas
pelos dissabores para o inverno, quando a saudade, a suave companheira de todas
as épocas, vier, como a emissora do passado, derramar em nossos corações seu
perfume compadecido e caridoso, como balsamo às agrestes dores!...
.................................................................................................
E as quintas-feiras eram esperadas com
ânsia, por serem esses os dias de recepção na casa do Sr. Jônatas, onde a filha
punha tudo em um cortado, já tendo um dito espirituoso para este, uma frase
amável para aquele, um olhar repleto de promessas para aquele outro; já
pregando hipóteses a um namorado; já cansando na valsa a outro; já fazendo aos
mesmos mil promessas, tudo isto à custo de risadinhas francas e frescas, como
fresco era o belo semblante de um moreno claro, e francos os olhos pardos,
rasgados e faiscantes.
Depois, fatigada, porque a mocidade
fatiga-se também, ela, no leito virgem, por entre as cortinas de cassa, sonhava
com o torneio de amabilidades que ouvia reunido às muitas declarações amorosas
que murmuravam-lhe suplicantes meia dúzia de pretendentes, petits
erevés, que animados pelo ambiente das salas acham fazer espírito, pondo em
joguete o coração. A jovem com a imaginação sempre em atividade,
procurando um novo motivo para divertimento, viu entre umas flores na sacada o
semblante sereno de um rapaz que não tomava parte na alegria geral... mas...
por quê?...
Fitou-o com insistência.. Ah!... na
verdade!... que imbecil julgou-se e tão!... Quem e r a?... Com efeito... e
tê-lo deixado assim à margem, quando dele tiraria proveito para uma troça
imensa!... Ele, o Agenor Menezes, aquele que diziam haver sido um enjeitado,
mas que, sendo o escrevente do cartório de seu pai, cursava à custa de mil
sacrifícios o primeiro ano de engenharia... porém... que jarreta... que
pobretão... tão falto de elegância... quase um mono!.. Mesmo a sonhar riu-se...
já era tempo enfim... porque o sol afoito, espiando por entre as persianas,
beija-lhe a fronte serena fazendo-a despertar ao contato do ardente beijo.
***
Não esquecendo, no entretanto, o sonho
que tivera, já em meio da noite, na quinta-feira seguinte, vendo com efeito o
rapaz modestamente vestido, por entre as flores que adornavam a
sacada, dirigiu-se ao mesmo com certo ar resoluto e sobranceiro:
— Não dança, Sr. Menezes?
— Não, excelentíssima.
— Mas porquê?
— Porque receio ser rejeitado.
— Ora?... quem não arrisca não perde,
nem ganha.
— Quem sou eu, D. Ignezilla?!
— Pois quero que dance; como dona da
casa, exijo-o até.
— Não tive apresentação, minha senhora,
e com a falta de pratica que tenho é possível que...
— Dance esta quadrilha comigo.
— Perdão... danço tão mal...
— Constituo-me sua professora; serei
agora sua dama; ande, ofereça-me o braço, assim!... erga o porte; dê elegância
ao corpo; olhe altivo; não baixe a cabeça; incline-a para o meu lado; mostre-se
polido, de maneiras retas, com a mão que tem livre puxe os bigodes; sorria...
Bem! faça um esforço para não esquecer a lição que lhe estou dando. Vou
apresentá-lo à sociedade. Seja verboso, amável, e deixe esse ar de
poeta infeliz para outra ocasião.
— Minha Senhora! murmurou o rapaz
atrapalhado, veja que figura triste estou fazendo!...
— Que me importa?... Sabe! Jurei às
minhas amigas o fazê-lo hoje dançar, estando bem certa que o senhor não quererá
desfeitear-me largando-me o braço, com o que muito magoaria o papá.
— Vamos, excelência; seja feita enfim a
sua vontade.
Como um condenado levado ao suplício,
lá se foi o misero subjugado pela vontade indomável da Ignezilla que
apresentou-o a um certo grupo de amigas que acharam-no feio, desazado,
descortês, um sensaborão, um sujeito que nem sabia dançar.
Ela às gargalhadas ensinava-lhe as
partes como se todo as não soubesse ele... que não obstante estar contrafeito
dançava mostrando não ignorar as figuras. Pudera!... a leviana vencera.. e o
moço como um títere, obedecia passivo, inconsciente.
As amigas da jovem à boca pequena
censuram-na por ter escolhido como par, embora por chacota, a um homem que era
o subalterno, um quase lacaio mesmo, do velho tabelião.
E as reuniões sucediam-se sem
interrupção e, já para o fim dos saraus era o escrevente o par-constante da
travessa mocinha que não o via agora lá com muitos maus olhos.
***
Entre os amigos sinceros que
frequentavam a residência do Sr. Jônatas Guedes, via-se o capitalista Soares de
Azevedo, homem de bem, honrado, com belas maneiras, boas relações, comendador sócio
de quanta corporação comercial e agrícola havia, muito estimado e tanto pelo
pai da Ignezilla, que não lhe guardava segredos, tendo em casa do mesmo um
certo poder sobre tudo e todos, a ponto de admoestar até a filha do seu amigo.
Se bem que perdoando-lhe as faltas atenuasse-lhe as ações, achava que em vista
de não ter mãe a jovem, devia esta tomar estado.
— Não tenho pressa em casar minha
filha, respondia-lhe o amigo quando ele lembrava-lhe um bom partido. Deixo-a
divertir ainda até findar os seus vinte anos quando deverá estar no caso de
tornar-se senhora séria. Não apresso-me em ver esbanjado o dote que juntei com
tanto trabalho.
Passados mais dois meses foi a
Ignezilla pedida em casamento, que não aceitou, não obstante as vantagens e conselhos
que eram ouvidos indiferentemente, dando motivo a que os dois amigos
desconfiassem do caso.
— Esta menina, senhor Soares, disse o
Tabelião ao amigo, tem namoro; a mim, com os meus sessenta, não me enganam
mulheres, muito embora esta tenha o meu sangue. Sem darem pelo namoro da
mocinha com o Agenor, os dois, nessa necessidade intima d’alma que cria
simpatias e delas originam amores, no doce gozo de um bem estar infindo,
inconscientes, por isso que não tinham pratica da vida, ao aproximarem-se,
sentiam as mãos resfriadas, o coração convulso, a bater como se o invólucro do
peito fosse fraco para suster-lhe o movimento, sentiam a voz emudecer-lhes,
transformando-se-lhes as frases em monossílabos entrecortados de suspiros, de
rubores, de um certo mal estar físico, que não se comenta, mas que embora
sensibilize, aumenta o êxtase d’alma quando os estos do sentimento ordenam, e a
necessidade fisiológica aceita sem comentários.
O velho Soares, com os seus sessenta e
um anos, presidindo as reuniões do amigo, procurando a causa que dera motivo à
repulsa da Ignezilla ao projetado consórcio, descobriu incontinente o fito que
obrigara a filha do amigo a rejeitar o pretendente.
Resolvido a afastá-la de um amor sem
resultado, delicadamente tocou-lhe no assunto; mas, confessado o delito, ele,
como um pai, mostrou-lhe a inconveniência de um casamento que nunca se
realizaria, terminando por preveni-la que o amigo desconfiava do sucedido,
dando em conclusão a retirada do rapaz, que, mais senhor de si, devia, a bem de
seu amor próprio, desligar-se de semelhante ideia.
Não o atendeu de todo a menina que ao
ser admoestada pelo pai, confessou que amava o moço, dando lugar a imediata
expulsão do mesmo, do cartório isso com grande espanto dos que o conheciam.
***
À vista do que houvera, já não tinha o
mesmo encanto as seguintes quintas-feiras, onde a filha do dono da casa
absorvida na primeira decepção que tivera, sem a idade precisa para afrontar
essas reações d’alma, sem a experiência refletida que dá os anos, deixava
transparecer uns resquícios de mau humor que destoavam das antigas maneiras com
que recebia as suas visitas.
Distanciados os dois, ele ainda por um
vislumbre de amor e dignidade, escreveu dizendo à sua amada que restituía a sua
palavra, mas que guardaria a dele.
Essa carta foi dada a ler ao velho
confidente que julgou não dever ser respondida.
***
Um dia, os jornais anunciaram que o
banqueiro B., a quem o tabelião confiava a juros os cinquenta contos do dote da
filha, suicidara-se deixando os negócios muito comprometidos.
A dor foi sem nome. O tabelião perdera
tudo.
Como um mentecapto, sem poder
resignar-se às circunstâncias, ele, no tremendo marasmo da dor moral, viu um a
um, todo aquele monte de ouro desaparecer da noite para o dia, esse fruto do
seu trabalho honrado desde o começo da mocidade, não se lhe deixando agora
sequer ao menos parte do capital, junto com tanto sacrifício, com tantas gotas
de suor, com tantas noites de insônias!...
Daquela data em diante, ele, o homem
infatigável, trabalhava por trabalhar, por esse costume em que estava, de
ganhar o dinheiro com o suor de todo o dia.
Os amigos estranhavam-no, pois que a
chorar, com o olhar desvairado, fitava o cofre onde tinha acumulado o produto
da sua atividade; maldizia-se, desesperava-se por já não ter o dote de sua
filha única, a sua Ignezilla que o consolava, osculava-o, reanimava-o com o
vocabulário de um afeto sincero tornando-se o exemplo de uma boa filha.
O físico, ressentiu-se do que sofrera o
moral, o tabelião adoentado nem já quase alimento tomava.
Sim! depois do que lhe sucedera, o
apetite afastou-se; ele, o apreciador de um prato bem feito, daqueles como lhe
fazia sua falecida metade, só aceitava um ou outro alimento a instâncias da
filha, e isto mesmo a mastigar lentamente, sem vontade e sem ação, por isso que
emagrecia a olhos vistos, definhava, debilitado do corpo, da razão, ambicioso,
contando e recontando algum pecúlio que salvara-se mas que era tão mesquinho,
tão pequenino! Se pudesse trabalhar sem sentir ainda fadiga?!...
Cada dia que passava, cada hora que
corria, eram muitos anos de menos que tinha para alimentar aquela lâmpada
prestes a apagar-se.
Sem forças, definhando aos poucos, teve
de guardar o leito. A inanição apoderou-se do pobre homem, que cedendo ao
cansaço, veio a falecer, deixando a filha pobre, a qual, sem a generosidade do
velho Soares, teria de escolher um meio de vida qualquer para manter-se.
***
A sociedade que abraça e despreza,
abate e eleva, afasta e retrai, tornando-se por si juiz competente em coisas
que lhe não dizem respeito, ferindo não importa a quem, e espezinhando não
escolhendo onde, viu com olhos de hiena a devida proteção do Sr. Soares para
com a filha do seu velho amigo, sendo tal o falatório dos desocupados, que de
protetor, de quase pai, tornou-se o idoso cavalheiro esposo da inocente, que
aceitou o enlace por necessidade, para não reunir às privações, o labéu
infalível do descrédito.
Fisiologicamente falando parecia inconcebível,
disparatada, irracional, até, a realização do ato em vista das desproporções
entre as idades, ideias, gostos e prazeres, devendo sensibilizar-se mesmo o
amor próprio do esposo por saber dos passados amores de sua mulher com o
escrevente do cartório de seu falecido sogro.
A vida, tem, como é sabido, imposições
intransigentes. Na grande esfera da mesma gira um sem número de sacrifícios,
onde a abnegação é a chave que cerra aos olhos do w, público todos os segredos
d’alma sujeitos às vicissitudes secretas de necessidades imprevistas.
Ela, casando, não se arrependeu, porque
o Soares, não lhe dava tempo a aborrecimentos. Levava-a a teatros, a reuniões,
às corridas, comprava-lhe joias, vestidos, e, como conhecedor pratico da vida,
ao mais leve bocejo de desagrado, adivinhava-lhe os pensamentos, dando-lhe uma
certa liberdade, da qual longe de abusar, a jovem senhora com uma circunspeção
imprópria da idade e do temperamento, aceitou a sua nova posição.
O comendador Soares, depois de esgotar
os divertimentos da terra natal de Ignezilla tomou com ela passagem num vapor
do Pacifico afim de continuar a distraí-la, aceitando ainda para segurança de
sua vida intima o titulo devisconde.com que foi agraciado pelo governo de seu
país, alegando como jus, serviços prestados pelo novo titular ao Brasil, para
onde viera desde criança.
A viscondessa sempre ao lado do marido
solicita, atenciosa, dirigida como uma pupila ao sair do colégio, tinha as
maneiras lhanas e a frase comedida. Satisfeito o titular, sentindo todavia não
ser pai, como última prova de amor, entregou-lhe o testamento que ela guardou
religiosamente, dando-o depois a um amigo comum, por saber que do ataque de
apoplexia que tivera na véspera o fidalgo, havia toda a probabilidade de ficar
sem aquele marido bom, generoso, despretensioso e útil.
A morte do antigo amigo do tabelião
prostrou a esposa que voltou meses depois à patria, atormentada pela nostalgia
do torrão querido.
***
Nessa segunda fase da vida, a jovem
viúva teve uma aluvião de pretendentes que disputavam-lhe a mão, a mocidade e o
dinheiro.
Rejeitando-os, senhora de suas ações,
frequentava a sociedade, recebia e fazia visitas isenta de qualquer laivo
desairoso, quando um dia, pela grande influência de que dispunha recebeu o
cartão de um cavalheiro que pedia-lhe a honra de sua presença.
Ao chegar à sala viu um moço
decentemente vestido se bem que invalido. Sem saber porque, sentiu
uma forte impressão. O visitante era um aleijado, usava de muletas. Ao
erguer-se, caiu-lhe do lado direito onde a perna natural era substituída por
outra artificial, que foi apanhada pela jovem que lha entregou. Ele disse-lhe a
que vinha. Reconhecendo no engenheiro civil que solicitou de si um favor o
antigo namorado, o único homem a quem havia amado, quis dar-se a conhecer.
Um só olhar bastou.
— Recebo às quintas-feiras, Sr. doutor,
por isso terei prazer em vê-lo aqui entre os meus habituais amigos.
— A mim também, excelentíssima?
interpelou comovido.
— Sim; venha quando quiser, retorquiu
meio enleada.
***
O Agenor de Menezes voltou a agradecer
o favor recebido, mas passados uns dois meses de frequência, ao ouvir a viúva
o tique-taque da perna de madeira sobre a madeira das escadas,
sentia a respiração ofegante, um tremor ligeiro apoderava-se das mãos finas e
aristocráticas, já era a própria a desembaraçar a visita das muletas, e, ao
saber que ele ia partir, separando-se dela pelo simples fato de um aleijão
involuntário produzido por um choque imprevisto de um desastre de trens,
inconsciente, pediu-lhe para ficar para sempre.
Uma nuvem de sonhos desdobrou-se então
no ambiente de ambos, e um mês depois estavam casados.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...