7/07/2023

A filha do cego (Conto), de Inês Sabino



A FILHA DO CEGO
(AO DR. VALENTIM MAGALHÃES)

Dizia o Sr. Anacleto dos Prazeres, músico da orquestra do teatro Santa Isabel, e compositor de modinhas e novenas, no que era perito e conhecido, a seu amigo e compadre, o mestre Ambrósio marceneiro, estabelecido com uma oficina de sua arte, à Rua do Rosário n. 31.

— A sua Guidinha, meu amigo, é a melhor discípula que tenho. Ela com a voz que possui ganhará a vida no caso de lhe faltar o seu apoio.

Os olhos do marceneiro fixaram-se numa menina de uns treze anos que dormia com a cabeça encostada a uma máquina de costura, onde via-se preza uma manga de um paletó de brim pardo com alinhavos ainda por tirar.

Naquele olhar tranquilo enviado pelo pai à adormecida, ele, o artista honrado, mandava toda a sua alma, todo o afeto que a natureza concede ao arquiteto moral do lar domestico, toda a dedicação, toda a pureza enfim do transunto desta amizade chã, despretensiosa, sujeita a sacrifícios, que só se encontra na dedicação sublime do amor paterno.

A conversa dos dois homens durou alguns minutos, sendo apenas interrompida pela esposa do artista a senhora Catarina, Catita, como a chamava ele, mulher de tempera débil, mas muito trabalhadora e tanto, que para ter o seu pecúlio acumulado para o que desse e viesse, cozia roupas de encomenda, além demais algumas da loja de um conhecido seu antigo, o qual para protegê-la, pagava-lhe mais generosamente do que a qualquer.

Um tinir de pratos fez arregalar os olhos dos dois artistas, respirando eles o perfume de um bolo de milho trabalhado com pericia pelas mãos da mulher do marceneiro que neste instante entrava sobraçada com uma toalha, alguns talheres, um bule de café, e o apetitoso petisco que foi posto em triunfo sobre a mesa, dizendo a senhora Catita ter saído o mesmo naquele instante do forno, e por tanto desafiar o apetite.

— Acordem a Guidinha, disse a mulher do Anselmo acabando de por a mesa em ordem.

A rapariguinha ergueu a cabeça esfregando os olhos, bocejando, com esse abandono próprio de quem desperta e com um certo ar de espanto que fez rir a todos.

Depois de terem tomado os seus lugares à mesa, e da senhora Catita os haver servido sem cerimônia, começaram a comer com apetite, só se ouvindo o silvo dos lábios sobre as xícaras, e um ou outro dito picante da boa mulher, que ora dirigia-se ao marido pedindo para renovar o que via faltando no prato, ora dava-lhe mais café, e ora servia-se a si própria. Dentre os comensais, só a jovem parecia ter menos apetite.

— Ótimo!... maravilhoso!... repetia a cada passo o interprete das solfas com a boca cheia.

— Com efeito, respondeu o marceneiro, o petisco está saboroso.

— Só eu estou indisposta, disse por se turno também a mocinha intervindo na conversa.

— Queres mais uma fatia Ambrósio? perguntou ao artista a dona da casa.

— Decerto... porém olha que me tens servido à francesa, com uma ridicularia!.

— Pois vá lá uma grande tora.

— Ei!... olha que assim é demais.

— Já conheço-te as manhas, respondeu a senhora Catita; come, anda, faz este sacrifício por hoje.

— Que paladar!... exclamava o músico a cada instante, temperando já a quarta xícara de café. Coma, compadre, que eu por mim pareço ter fome de três dias.

— Cuida em ti e lembra-te que quando se come, não se fala, respondeu o artista.

— Pois comadre, tornou o Anastácio, eu quero a receita deste manjar, para ver se lá a minha dona faz um igual para o batizado do meu Janjão, que espero vocês concorreram com as suas presenças.

— Apre!... ponderou a mãe da Guidinha; você além do seu oficio de músico tem o de ser igualmente acalentador de crianças.

— É a riqueza do pobre, minha cara; a quem só chegam estes entezinhos que, a mim, só fazem elastecer o coração, como eu elástico, afinando, as cordas do meu violino.

— E quantos filhos tem? perguntou o marceneiro olhando curioso para o amigo.

— Dez, compadre, dez!...

— Credo!... murmurou a Catita, ajuntando a louça; eu sou bem feliz em ter só esta menina.

— Não vá falando muito não, retorquiu o músico, olhe que a Guidinha só tem treze anos, e com muitos mais, tem-se visto a casa ficar povoada.

— Hum!... que lembrança!... Voute Gentes!... que graça! Já estou farta de consumição, e para trabalho basta esta...

Os dois homens riram-se e, como se desse por terminada a refeição, o músico despediu-se prometendo vir no dia seguinte tomar a lição à discípula, recomendando à mãe desta que preparasse-lhe uma outra ceia idêntica.

E a família, na pobreza, vivia honrada, feliz e satisfeita, contando unicamente com o recurso do trabalho do dia seguinte, indo como de costume o Ambrósio para a oficina estabelecida a custa de muita canseira e de muito suor, ficando a mulher e a filha ocupadas nos arranjos domésticos alteradas tão somente pela voz da menina que nem sempre estudava a contento do professor, as lições do solfejo de Rodolfo.

***

 A população do bairro de Santo Antônio foi surpreendida uma noite pelas seis badaladas do sino grande da Matriz que dava o sinal de incêndio naquela freguesia.

Apesar de tarde, não obstante, das suas residências saiam pressurosas pessoas levadas pela curiosidade ou pelo interesse, correndo em diversas direções quando virão que duma porta baixa da rua do Rosário, saíam línguas de fogo misturadas com fumo negro, hediondo, asfixiante.

À ordem da autoridade competente arrombaram a porta... À força, um homem, como louco, tentou entrar, afrontando o terrível elemento. Sem chapéu, de chinelos, com o palito por atacar, empurrando quem encontrava na frente, o pai da Guidinha assombrado, quase louco, com a testa lavada em suor, deu uns passos em direção à oficina onde a madeira a estalar curvava-se à ação destruidora das chamas que em raiva bateram-lhe com uma labareda no rosto, chamuscando-lhe as barbas e os cabelos, afastando-o daí, à força.

O desgraçado deu um ai surdo e lúgubre que nada tinha de humano, e tonto, na vertigem da dor, da surpresa, e da raiva, com o olhar injetado de sangue, fitava petrificado e bestial a sua ruína, a herança única de sua filha, e daquele outro, que pequenino, como uma surpresa, viera há pouco aumentar a família fazendo entreabrir mais um riso aos lábios da Catita que tomara o Anacleto para compadre e que para ver-se mais aliviada do serviço, entregara o morgado a Guidinha que desejou também que o pequeno fosse seu afilhado.

Ela, na sua casinha, aflita e chorosa, acendeu imediatamente no pequeno oratório uma vela à Nossa Senhora do Monte, e ele ao vir para casa, pouco a pouco, foi-se queixando que a vista faltava-lhe, não lhe valendo a pericia de um médico oculista nem muito menos as promessas que fazia a esposa a quanto santo de sua devoção lhe vinha à mente.

O misero estava cego: a desgraça costumeira intrusa, foi pouco a pouco entrando-lhe em casa.

A dedicada esposa foi enorme: trabalhava a morrer, e a filha, já sem as lições de música, tomava parte no trabalho caseiro pondo, quando cansada, o inocente irmão sobre os joelhos do ex-marceneiro que com a mão calosa e os dedos chatos, com unhas curtas mas aparadas, passava-lha no rosto do menino brincando-lhe com o lábio inferior. E ele, ria, ria, à caricia paterna, em quanto muitas vezes uma lágrima, descendo lentamente dos olhos do cego, vinha orvalhar a mãozinha gorda e papuda da criancinha que na alegria infantil enxugava-a nas barbas do pai, puxando-lhas entretida a brincar, sem ter a menor noção do muito amargo que havia na retribuição daquelas carícias ao pensar o cego que talvez para cúmulo da desventura, um orfelinato fosse o teto comum ao pobrezinho, se lhe faltasse a mãe, aquela boa mulher honesta e resignada, que dividia com os dois e a Guidinha, o suor, o trabalho, e as dores morais igualmente.

Uma resolução inesperada foi tomada um dia, e no imediato, o cego com um violão, e a filha com a sua candura, sairão a cantar, aceitando o óbolo da caridade pública. 

***

O tipo do acadêmico foi, é, e será sempre discutido, conhecido, desculpando-se-lhe as malandrices, os estouvamentos, a irregularidade do modo de viver característico à classe, às inclinações, à educação e a forma por que se agrupam sobre tudo nas províncias onde não há pensões, onde cada qual procura à feição os companheiros que lhe quadram melhor; este, por seu turno, arranja mais um outro; aquele, mais um, que esteja no caso de ser também tido como amigo, e ei-los constituindo assim uma república, alugam em seguida um andar térreo ou assobradado de qualquer prédio barato. A mobília é por demais ligeira; assim, uma meia dúzia de cadeiras, uma mesinha para escrita, uma cama de lona, e uma rede que é colocada a um canto da sala ou dos quartos, e na de jantar uma mesa de pinho.

Quase sempre têm uma cozinheira que obriga-se a fazer-lhes igualmente as camas, varrer a casa e por a mesa.

Instalados, numa desordem sem nome, natural, mesmo com roupas penduradas aqui, ali e acolá, com lanternas e garrafas com a mesma serventia, com bilhas d’água onde o próprio gargalo serve muitas vezes de copo, quase sempre envolvidos em chambres, almoçam, jantam, fumam, estudam e namoram.

Nessas condições, vamos, leitor, encontrar quatro rapazes doidos, endiabrados, que à porfia queriam namorar a Guidinha, nossa conhecida, que dava corda a um deles, não obstante o meio compromisso que tinha com um primo compositor tipógrafo conhecido de um moço sério morador igualmente na casa dos nossos quatro adoudados, os quais, para fazer espírito, apelidaram-no de: “Catão”. Eles, pois, despreocupados, tomando cada qual posição mais conveniente, conversavam. Um deles porém, que de pena em punho assumia agora o papel de escrevente, era um bonito rapaz que, virando-se para os companheiros, leu algumas linhas que traçara antes rapidamente.

Lá vai obra, disse aos moços:

“Minha Querida Guidinha.
A tua doce voz mimosa e afinada, etérea, sonora, volátil, simbólica como o trino dos pássaros, e suave como o canto dos arcanjos, tem posto em comoção as sombrias cavernas de nossa alma.”

— Alto lá, replicou um deles, isto de plural em questão de amores temos conversado!

— Não, homem, deixa ir assim, disse um outro.

— Discordo, treplicou um terceiro: falando no plural é tentá-la a ser coquete, não conhecendo ao certo o namorado.

— Deixem isso por minha conta, concluiu o escrevente, pois que em falta de ortografia as respostas, terei eu, ou tu, ou vós, ou eles, muita guloseima boa, porém... por se falar nisso, confesso, rapaziada, que tenho forte apetite.

— E eu.

— E nós! disseram os mais em coro.

— Vou ordenar que ponham o nosso banquete à mesa; e largando a pena foi até o corredor, onde, fazendo das mãos buzina, chamou com toda força dos pulmões a cozinheira que, sem responder, foi chamada ainda da mesma forma.

— O que querem comigo? perguntou uma mulher com cabelos secos e despenteados, vestido já surrado e sujo e olhar atrevido.

— Queremos jantar.

— E o que temos para comer hoje? perguntou um dos rapazes.

— Carne seca e arroz, respondeu ela.

— E é isso o que você nos dá?

— Oh gentes?... e que dinheiro deram-me os senhores para a despesa?

— Três mil réis, respondeu o que dera o dinheiro do dia.

— Não chega para coisa alguma, respondeu ela com mau modo; comprei carne fresca para o almoço, e, agora se quiserem, comam o que há.

— Bem distribuído, chega para muito; você o que quer é enriquecer à nossa custa, não é? perguntou o acadêmico.

— Coitado!.. riqueza de estudante!... Ichi... ora vão vendo!... exclamou ela, dando um muxoxo.

— Tem credito na venda, disse intervindo um outro olhando-a comicamente.

— Não é comigo.

— Pois queremos jantar seja o que for e já, tornou o rapaz com império.

— A comida dividida não chega.

— Quem vier atrás que se arranje, respondeu ele.

— E o Dr. Catão, onde fica?

— Ah! você já está civilizada; já chama ao Luiz Braga, de Catão?

— Sim, senhor, porque ele disse que Catão era um homem bom como ele.

— Sim, Senhor!... Pchut!.. dobre a língua: Como se trata a um quinto anista? e o doutor onde fica? perguntou o estroina, apertando-lhe com força o braço.

— Ai... respondeu ela meio desconfiada... me deixe, Sr. doutor... quando não, demora mais o jantar.

— Bom, respondeu largando-a; queremos a comida já na mesa.

— Isto é o inferno! Vou-me embora... Aqui compra-se comida para cinco quando tem de se sustentar a nove, dando em resultado o ficar eu sempre na espinha, respondeu batendo com os pés ao dirigir-se para o corredor.

Uma gargalhada homérica ressoou na sala.

— Espinha! exclamou com ênfase o namorado da filha do cégo. Bem lembrado! e para castigo seu, doravante, ficará conhecida aqui na República pelo epíteto de senhora espinha!...

Que a espinha lhes atravesse a garganta e a espinhela também, respondeu raivosa.

A inda estavam a rir com gosto quando o quinto companheiro com o desembaraço com que se entra em casa própria, foi tirando o paletó que colocou sobre uma cadeira encaminhando-se para a mesa onde viu a carta que foi censurada dizendo conhecer a rapariga e estar ela para casar com um artista.

***

A Margarida mudara muito de hábitos. Depois que aceitava a corte do estudante, tornara-se vaidosa; o tempo que lhe sobrava era para folhear o Dicionário das flores; o dinheiro que o pai dava-lhe servia para comprar papel fino e simbólico para as respostas das cartas do apaixonado, que em troca lia aos amigos as missivas da mocinha sobrecarregadas de falta de ortografia, numa letra impossível e garatujada.

O pai, por esse instinto peculiar ao coração paterno adivinhara-lhe o comportamento. Como homem que preferia o sossego d’alma às mordidelas do sarcasmo, querendo antes sofrer uns dias de fome, a ver a filha fazendo parte do batalhão feminil expelido da vanguarda social, deixou de cantar pelas ruas.

O moço acadêmico desapontou, e caprichoso, convidou por uma carta a Guidinha para abandonar a família.

Ela vacilou... era a luta do amor com a dedicação filial. Apesar de muita nova, por uma espécie de instinto, por uma espécie de lucidez despertada pela moral, fez um esforço supremo, discordou energicamente. Amava o pai; via-o cego; depois, quem, quem trataria do Pedrinho, desse irmão traquinas em quem ela cuidava como mãe?...

Os pequeninos, embora fracos, têm quase sempre um domínio despótico no coração de quem os cria. Felizmente a corrupção dos costumes ainda encontrara nela um freio. O corcel da concupiscência não galopou na estrada lamacenta da desonra. Deu-se então no pensamento da filha do cego um fenômeno especial. A reflexão subjugou-a: a queda do futuro amedrontando-a, fê-la com energia repelir o moço, e esforçar-se por esquecê-lo.

Ativa como dantes, aceitou o casamento que o pai propusera novamente.

Ela via o exemplo de sua mãe que só tinha uma magoa suprema na vida: a cegueira do seu Anselmo.

A felicidade é sem dúvida muito efêmera, embora não muito avara.

Demais, é ainda relativa; é ainda convencional; e cada qual a seu gosto pode aceitá-la sobre este ou aquele ponto de vista. O egoísmo individual mostrar-se aos olhos alheios independente, dando à si o que muitas vezes não possui-se. Antes inspirar invejado que chamar sobre si a compaixão.

A filha do marceneiro tinha o exemplo materno; tinha a escola do lar que prepara a alma, a energia e o caráter, para os grandes trabalhos da vida.

***

A Guidinha casou.

O pai, sem querer que a filha deixasse-o, convidou o genro a morar com a família, O moço, meio contrariado, concordou; porém, como homem de brio, declarou que concorrência para a despesa comum. O pacto foi aceito.

Ela, a companheira querida do operário, em pleno desenvolvimento de juventude e coração, tornou-se trabalhadora, econômica, sendo bonito de ver-se o como cuidava das suas obrigações, o quanto interessava-se pela sorte do pai, e a forma atenciosa porque tratava-o, sobretudo à mesa, onde a comida sempre bem feita, fazia as delicias do velho, sendo mais gostosa, quando intercalada pelas pilhérias do Sr. Anacleto que não raras vezes vinha como d antes distrair-se da bulha que faziam-lhe em casa os filhos que já não respeitavam nem mesmo as cordas do seu violino.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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