A FILHA DO CEGO
(AO DR. VALENTIM MAGALHÃES)
Dizia o Sr. Anacleto dos Prazeres, músico
da orquestra do teatro Santa Isabel, e compositor de modinhas e novenas, no que
era perito e conhecido, a seu amigo e compadre, o mestre Ambrósio marceneiro, estabelecido
com uma oficina de sua arte, à Rua do Rosário n. 31.
— A sua Guidinha, meu amigo, é a
melhor discípula que tenho. Ela com a voz que possui ganhará a vida no caso de
lhe faltar o seu apoio.
Os olhos do marceneiro fixaram-se numa menina de uns treze anos que dormia com a cabeça encostada a uma máquina de costura, onde via-se preza uma manga de um paletó de brim pardo com alinhavos ainda por tirar.
Naquele olhar tranquilo enviado
pelo pai à adormecida, ele, o artista honrado, mandava toda a sua alma, todo o
afeto que a natureza concede ao arquiteto moral do lar domestico, toda a
dedicação, toda a pureza enfim do transunto desta amizade chã, despretensiosa, sujeita
a sacrifícios, que só se encontra na dedicação sublime do amor paterno.
A conversa dos dois homens durou
alguns minutos, sendo apenas interrompida pela esposa do artista a senhora Catarina,
Catita, como a chamava ele, mulher de tempera débil, mas muito trabalhadora e
tanto, que para ter o seu pecúlio acumulado para o que desse e viesse, cozia
roupas de encomenda, além demais algumas da loja de um conhecido seu antigo, o
qual para protegê-la, pagava-lhe mais generosamente do que a qualquer.
Um tinir de pratos fez arregalar os
olhos dos dois artistas, respirando eles o perfume de um bolo de milho
trabalhado com pericia pelas mãos da mulher do marceneiro que neste instante
entrava sobraçada com uma toalha, alguns talheres, um bule de café, e o apetitoso
petisco que foi posto em triunfo sobre a mesa, dizendo a senhora Catita ter saído
o mesmo naquele instante do forno, e por tanto desafiar o apetite.
— Acordem a Guidinha, disse a
mulher do Anselmo acabando de por a mesa em ordem.
A rapariguinha ergueu a cabeça
esfregando os olhos, bocejando, com esse abandono próprio de quem desperta e
com um certo ar de espanto que fez rir a todos.
Depois de terem tomado os seus lugares
à mesa, e da senhora Catita os haver servido sem cerimônia, começaram a comer
com apetite, só se ouvindo o silvo dos lábios sobre as xícaras, e um ou outro
dito picante da boa mulher, que ora dirigia-se ao marido pedindo para renovar o
que via faltando no prato, ora dava-lhe mais café, e ora servia-se a si
própria. Dentre os comensais, só a jovem parecia ter menos apetite.
— Ótimo!... maravilhoso!... repetia
a cada passo o interprete das solfas com a boca cheia.
— Com efeito, respondeu o
marceneiro, o petisco está saboroso.
— Só eu estou indisposta, disse por
se turno também a mocinha intervindo na conversa.
— Queres mais uma fatia Ambrósio?
perguntou ao artista a dona da casa.
— Decerto... porém olha que me tens
servido à francesa, com uma ridicularia!.
— Pois vá lá uma grande tora.
— Ei!... olha que assim é demais.
— Já conheço-te as manhas, respondeu
a senhora Catita; come, anda, faz este sacrifício por hoje.
— Que paladar!... exclamava o músico
a cada instante, temperando já a quarta xícara de café. Coma, compadre, que eu
por mim pareço ter fome de três dias.
— Cuida em ti e lembra-te que
quando se come, não se fala, respondeu o artista.
— Pois comadre, tornou o Anastácio,
eu quero a receita deste manjar, para ver se lá a minha dona faz um igual para
o batizado do meu Janjão, que espero vocês concorreram com as suas presenças.
— Apre!... ponderou a mãe da
Guidinha; você além do seu oficio de músico tem o de ser igualmente acalentador
de crianças.
— É a riqueza do pobre, minha cara;
a quem só chegam estes entezinhos que, a mim, só fazem elastecer o coração, como
eu elástico, afinando, as cordas do meu violino.
— E quantos filhos tem? perguntou o
marceneiro olhando curioso para o amigo.
— Dez, compadre, dez!...
— Credo!... murmurou a Catita, ajuntando
a louça; eu sou bem feliz em ter só esta menina.
— Não vá falando muito não, retorquiu
o músico, olhe que a Guidinha só tem treze anos, e com muitos mais, tem-se
visto a casa ficar povoada.
— Hum!... que lembrança!... Voute Gentes!... que graça! Já estou
farta de consumição, e para trabalho basta esta...
Os dois homens riram-se e, como se
desse por terminada a refeição, o músico despediu-se prometendo vir no dia
seguinte tomar a lição à discípula, recomendando à mãe desta que preparasse-lhe
uma outra ceia idêntica.
E a família, na pobreza, vivia
honrada, feliz e satisfeita, contando unicamente com o recurso do trabalho do
dia seguinte, indo como de costume o Ambrósio para a oficina estabelecida a
custa de muita canseira e de muito suor, ficando a mulher e a filha ocupadas
nos arranjos domésticos alteradas tão somente pela voz da menina que nem sempre
estudava a contento do professor, as lições do solfejo de Rodolfo.
***
A população do bairro de Santo Antônio foi surpreendida
uma noite pelas seis badaladas do sino grande da Matriz que dava o sinal de
incêndio naquela freguesia.
Apesar de tarde, não obstante, das
suas residências saiam pressurosas pessoas levadas pela curiosidade ou pelo
interesse, correndo em diversas direções quando virão que duma porta baixa da
rua do Rosário, saíam línguas de fogo misturadas com fumo negro, hediondo, asfixiante.
À ordem da autoridade competente arrombaram
a porta... À força, um homem, como louco, tentou entrar, afrontando o terrível
elemento. Sem chapéu, de chinelos, com o palito por atacar, empurrando quem
encontrava na frente, o pai da Guidinha assombrado, quase louco, com a testa
lavada em suor, deu uns passos em direção à oficina onde a madeira a estalar
curvava-se à ação destruidora das chamas que em raiva bateram-lhe com uma
labareda no rosto, chamuscando-lhe as barbas e os cabelos, afastando-o daí, à força.
O desgraçado deu um ai surdo e lúgubre
que nada tinha de humano, e tonto, na vertigem da dor, da surpresa, e da raiva,
com o olhar injetado de sangue, fitava petrificado e bestial a sua ruína, a
herança única de sua filha, e daquele outro, que pequenino, como uma surpresa, viera
há pouco aumentar a família fazendo entreabrir mais um riso aos lábios da
Catita que tomara o Anacleto para compadre e que para ver-se mais aliviada do
serviço, entregara o morgado a Guidinha que desejou também que o pequeno fosse
seu afilhado.
Ela, na sua casinha, aflita e
chorosa, acendeu imediatamente no pequeno oratório uma vela à Nossa Senhora do
Monte, e ele ao vir para casa, pouco a pouco, foi-se queixando que a vista
faltava-lhe, não lhe valendo a pericia de um médico oculista nem muito menos as
promessas que fazia a esposa a quanto santo de sua devoção lhe vinha à mente.
O misero estava cego: a desgraça
costumeira intrusa, foi pouco a pouco entrando-lhe em casa.
A dedicada esposa foi enorme:
trabalhava a morrer, e a filha, já sem as lições de música, tomava parte no
trabalho caseiro pondo, quando cansada, o inocente irmão sobre os joelhos do
ex-marceneiro que com a mão calosa e os dedos chatos, com unhas curtas mas
aparadas, passava-lha no rosto do menino brincando-lhe com o lábio inferior. E
ele, ria, ria, à caricia paterna, em quanto muitas vezes uma lágrima, descendo
lentamente dos olhos do cego, vinha orvalhar a mãozinha gorda e papuda da
criancinha que na alegria infantil enxugava-a nas barbas do pai, puxando-lhas
entretida a brincar, sem ter a menor noção do muito amargo que havia na
retribuição daquelas carícias ao pensar o cego que talvez para cúmulo da
desventura, um orfelinato fosse o teto comum ao pobrezinho, se lhe faltasse a mãe,
aquela boa mulher honesta e resignada, que dividia com os dois e a Guidinha, o
suor, o trabalho, e as dores morais igualmente.
Uma resolução inesperada foi tomada um dia, e no imediato, o cego com um violão, e a filha com a sua candura, sairão a cantar, aceitando o óbolo da caridade pública.
***
O tipo do acadêmico foi, é, e será
sempre discutido, conhecido, desculpando-se-lhe as malandrices, os
estouvamentos, a irregularidade do modo de viver característico à classe, às inclinações,
à educação e a forma por que se agrupam sobre tudo nas províncias onde não há pensões,
onde cada qual procura à feição os companheiros que lhe quadram melhor; este, por
seu turno, arranja mais um outro; aquele, mais um, que esteja no caso de ser
também tido como amigo, e ei-los constituindo assim uma república, alugam em
seguida um andar térreo ou assobradado de qualquer prédio barato. A mobília é
por demais ligeira; assim, uma meia dúzia de cadeiras, uma mesinha para escrita,
uma cama de lona, e uma rede que é colocada a um canto da sala ou dos quartos, e
na de jantar uma mesa de pinho.
Quase sempre têm uma cozinheira que
obriga-se a fazer-lhes igualmente as camas, varrer a casa e por a mesa.
Instalados, numa desordem sem nome,
natural, mesmo com roupas penduradas aqui, ali e acolá, com lanternas e
garrafas com a mesma serventia, com bilhas d’água onde o próprio gargalo serve
muitas vezes de copo, quase sempre envolvidos em chambres, almoçam, jantam, fumam,
estudam e namoram.
Nessas condições, vamos, leitor, encontrar
quatro rapazes doidos, endiabrados, que à porfia queriam namorar a Guidinha, nossa
conhecida, que dava corda a um deles, não obstante o meio compromisso que tinha
com um primo compositor tipógrafo conhecido de um moço sério morador igualmente
na casa dos nossos quatro adoudados, os quais, para fazer espírito, apelidaram-no
de: “Catão”. Eles, pois, despreocupados, tomando cada qual posição mais
conveniente, conversavam. Um deles porém, que de pena em punho assumia agora o
papel de escrevente, era um bonito rapaz que, virando-se para os companheiros, leu
algumas linhas que traçara antes rapidamente.
Lá vai obra, disse aos moços:
“Minha Querida Guidinha.
A tua doce voz mimosa e afinada, etérea, sonora, volátil, simbólica como o
trino dos pássaros, e suave como o canto dos arcanjos, tem posto em comoção as
sombrias cavernas de nossa alma.”
— Alto lá, replicou um deles, isto
de plural em questão de amores temos conversado!
— Não, homem, deixa ir assim, disse
um outro.
— Discordo, treplicou um terceiro:
falando no plural é tentá-la a ser coquete, não conhecendo ao certo o namorado.
— Deixem isso por minha conta, concluiu
o escrevente, pois que em falta de ortografia as respostas, terei eu, ou tu, ou
vós, ou eles, muita guloseima boa, porém... por se falar nisso, confesso, rapaziada,
que tenho forte apetite.
— E eu.
— E nós! disseram os mais em coro.
— Vou ordenar que ponham o nosso
banquete à mesa; e largando a pena foi até o corredor, onde, fazendo das mãos
buzina, chamou com toda força dos pulmões a cozinheira que, sem responder, foi
chamada ainda da mesma forma.
— O que querem comigo? perguntou
uma mulher com cabelos secos e despenteados, vestido já surrado e sujo e olhar
atrevido.
— Queremos jantar.
— E o que temos para comer hoje?
perguntou um dos rapazes.
— Carne seca e arroz, respondeu ela.
— E é isso o que você nos dá?
— Oh gentes?... e que dinheiro deram-me
os senhores para a despesa?
— Três mil réis, respondeu o que
dera o dinheiro do dia.
— Não chega para coisa alguma, respondeu
ela com mau modo; comprei carne fresca para o almoço, e, agora se quiserem, comam
o que há.
— Bem distribuído, chega para muito;
você o que quer é enriquecer à nossa custa, não é? perguntou o acadêmico.
— Coitado!.. riqueza de
estudante!... Ichi... ora vão vendo!...
exclamou ela, dando um muxoxo.
— Tem credito na venda, disse
intervindo um outro olhando-a comicamente.
— Não é comigo.
— Pois queremos jantar seja o que for
e já, tornou o rapaz com império.
— A comida dividida não chega.
— Quem vier atrás que se arranje, respondeu
ele.
— E o Dr. Catão, onde fica?
— Ah! você já está civilizada; já
chama ao Luiz Braga, de Catão?
— Sim, senhor, porque ele disse que
Catão era um homem bom como ele.
— Sim, Senhor!... Pchut!.. dobre a língua: Como se trata a um quinto anista?
e o doutor onde fica? perguntou o estroina,
apertando-lhe com força o braço.
— Ai... respondeu ela meio
desconfiada... me deixe, Sr.
doutor... quando não, demora mais o jantar.
— Bom, respondeu largando-a;
queremos a comida já na mesa.
— Isto é o inferno! Vou-me embora...
Aqui compra-se comida para cinco quando tem de se sustentar a nove, dando em
resultado o ficar eu sempre na espinha, respondeu batendo com os pés ao
dirigir-se para o corredor.
Uma gargalhada homérica ressoou na
sala.
— Espinha! exclamou com ênfase o
namorado da filha do cégo. Bem lembrado! e para castigo seu, doravante, ficará
conhecida aqui na República pelo epíteto de senhora espinha!...
Que a espinha lhes atravesse a
garganta e a espinhela também, respondeu raivosa.
A inda estavam a rir com gosto
quando o quinto companheiro com o desembaraço com que se entra em casa própria,
foi tirando o paletó que colocou sobre uma cadeira encaminhando-se para a mesa
onde viu a carta que foi censurada dizendo conhecer a rapariga e estar ela para
casar com um artista.
***
A Margarida mudara muito de
hábitos. Depois que aceitava a corte do estudante, tornara-se vaidosa; o tempo
que lhe sobrava era para folhear o Dicionário
das flores; o dinheiro que o pai dava-lhe servia para comprar papel fino e simbólico
para as respostas das cartas do apaixonado, que em troca lia aos amigos as
missivas da mocinha sobrecarregadas de falta de ortografia, numa letra impossível
e garatujada.
O pai, por esse instinto peculiar
ao coração paterno adivinhara-lhe o comportamento. Como homem que preferia o sossego
d’alma às mordidelas do sarcasmo, querendo antes sofrer uns dias de fome, a ver
a filha fazendo parte do batalhão feminil expelido da vanguarda social, deixou
de cantar pelas ruas.
O moço acadêmico desapontou, e
caprichoso, convidou por uma carta a Guidinha para abandonar a família.
Ela vacilou... era a luta do amor
com a dedicação filial. Apesar de muita nova, por uma espécie de instinto, por
uma espécie de lucidez despertada pela moral, fez um esforço supremo, discordou
energicamente. Amava o pai; via-o cego; depois, quem, quem trataria do Pedrinho,
desse irmão traquinas em quem ela cuidava como mãe?...
Os pequeninos, embora fracos, têm quase
sempre um domínio despótico no coração de quem os cria. Felizmente a corrupção
dos costumes ainda encontrara nela um freio. O corcel da concupiscência não galopou
na estrada lamacenta da desonra. Deu-se então no pensamento da filha do cego um
fenômeno especial. A reflexão subjugou-a: a queda do futuro amedrontando-a, fê-la
com energia repelir o moço, e esforçar-se por esquecê-lo.
Ativa como dantes, aceitou o
casamento que o pai propusera novamente.
Ela via o exemplo de sua mãe que só
tinha uma magoa suprema na vida: a cegueira do seu Anselmo.
A felicidade é sem dúvida muito efêmera,
embora não muito avara.
Demais, é ainda relativa; é ainda
convencional; e cada qual a seu gosto pode aceitá-la sobre este ou aquele ponto
de vista. O egoísmo individual mostrar-se aos olhos alheios independente, dando
à si o que muitas vezes não possui-se. Antes inspirar invejado que chamar sobre
si a compaixão.
A filha do marceneiro tinha o
exemplo materno; tinha a escola do lar que prepara a alma, a energia e o caráter,
para os grandes trabalhos da vida.
***
A Guidinha casou.
O pai, sem querer que a filha
deixasse-o, convidou o genro a morar com a família, O moço, meio contrariado, concordou;
porém, como homem de brio, declarou que concorrência para a despesa comum. O pacto
foi aceito.
Ela, a companheira querida do
operário, em pleno desenvolvimento de juventude e coração, tornou-se
trabalhadora, econômica, sendo bonito de ver-se o como cuidava das suas
obrigações, o quanto interessava-se pela sorte do pai, e a forma atenciosa
porque tratava-o, sobretudo à mesa, onde a comida sempre bem feita, fazia as
delicias do velho, sendo mais gostosa, quando intercalada pelas pilhérias do
Sr. Anacleto que não raras vezes vinha como d antes distrair-se da bulha que
faziam-lhe em casa os filhos que já não respeitavam nem mesmo as cordas do seu
violino.
---
Iba Mendes Editor
Digital. São Paulo, 2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...