7/31/2023

A Enjeitada (Conto), de Inês Sabino


A ENJEITADA
(A ADÉLIA)

Salva-me, filha. De ti depende o Visconde não abrir-me a falência. Casando-te com ele levas intato o dote de tua mãe, uns cinquenta contos insuficientes ainda para pagar-lhe o que devo. Ele é rancoroso, mas diz que ama-te. Sei que as idades são desproporcionais; embora! porém ao menos, eu, no último quartel da minha vida não me verei forçado a trabalhar de novo, ou então a mendigar, porque o viver-se à custa dos outros, é ser-se também mendigo; é descer, descer, obrigar a altivez natural a relaxar-se; é assim uma espécie de abandono do sentimento. Amas? o que resulta daí? Apenas o sacrifício do teu coração em proveito do bem estar de teu pai. Choras? Comocionas-te? É natural, admissível, e isso não to proíbo; o que porém não quero, o que não consinto, é casares-te com um tipo que vive de fazer livros, de ganhar em cada linha uns magros sessenta ou oitenta reis... escritor de meia tigela, sujeito valdevinos que anda pelas redações, pelos cafés, pelos teatros,  assim com cara de palhaço de circo, magro como um espeto, a assestar a luneta às moças que passam, como assestava a ti... Que futuro tirarás daí? Namorou-te porque sabia que eras rica, e do que mais me arrependo é de tê-lo admitido às nossas reuniões, à nossa intimidade!

 

Assim falava à sua filha única o Sr. Guilherme Roxo, chefe de uma ótima casa de café, mas agora meio desfalcado pela situação financeira em que o havia colocado a quebra de alguns devedores seus, e a exigência de alguns credores pirrônicos com letras já reformadas prestes de novo a vencer, sendo um dos seus maiores perseguidores o Visconde de Vila Seca, velho solteirão, devasso, libidinoso, avarento, ostentando virtudes que não possuía, entre elas a caridade, que só sobressaía pro-fórmula, quando para interesse seu, pudesse ostentá-la a fim de angariar bom nome.

Conhecendo a fundo a situação precária do Sr. Roxo, ele que não queria perder um só vintém, propôs o casar-se com a Terezinha, moça que não herdando as péssimas qualidades de seu pai, e em nada ambiciosa, amou a um principiante de letras, sem mais interesse do que os juros sacados pelo coração, resultando dessa paixão um passo dado sem consciência, sem guia, irrefletido...

E o casamento forçado fez-se. Todos julgando o Visconde feliz por ter escolhido uma mulher nova, educada e bonita, porém ignorando que esse consórcio acarretava a vergonha, a ignomínia do sentimento materno que viu-se obrigado a bem das aparências, a sacrificar o ente sem culpa, às condições de um nome ralé: enjeitada!

Pobre inocente, que sem ter o batismo do reconhecimento social, achou felizmente numa porta, os umbrais de um teto que lhe seria dado pela benfazeja mão de uma mãe adotiva.

É que quando as mães rejeitam os filhos e não têm a coragem para sustentar seus atos, uma outra mãe — a Caridade — abre o regaço materno para acolher em seu seio a criancinha, que sorria sem ser recompensada pelo calor que a deveria aquecer, e que chorando achou quem, por intermédio do coração, lhe desse amor, pão e carinho.

***

D. Maria Benedita Borges da Cunha surpreendeu-se um dia, indo à missa pela manhã, ao ver à sua porta uma menina recém-nascida, com os lábios quase negros pelo frio, as mãozinhas cerradas e muito roxas, e a face pálida e marmórea pela ação do ar rijo de um nevoento dia de junho.

Tomar o anjinho e ir para o interior foi obra de um segundo.

A boa senhora perdeu nessa ocasião a sua missa diária, porém ganhou mais para com Deus pelo ato que praticara. Desde esse dia, a pequena Noêmia, de quem a velha protetora fora madrinha, encontrou nela uma verdadeira mãe, porque o coração havia perfilhado aquela criancinha, a quem todos que a conheciam festejavam, cobriam de presentinhos, de beijos, de carícias. Ao passo que a natureza repugnara de abraçá-la em seu regaço, a bondade de um coração de arcanjo a fez tornar querida, sendo para D. Maria Benedita o maior prazer, quando via a pequena afagar-lhe o rosto e vir nuns amuos procurar-lhe o colo, dizendo em linguagem ininteligível esse fraseado infantil, suave, mas engraçado, que em paga merece uma contribuição de beijos.

A respeitável matrona perfilhou a menina por uma escritura pública, pondo-a aos dez anos no colégio, onde ia vê-la mensalmente.

Oh!... com que prazer recebeu, como lembrança, o primeiro crochê, o primeiro, bordado o primeiro desenho, comovida até às lágrimas, mostrando tudo às amigas, guardando os objetos com avareza! Depois, com que enlevo não ouvia a menina tocar os estudos ainda incorretos, indo sentar-se muitas vezes ao lado do instrumento a ponto de adormecer!...

Aos dezesseis anos, educada, instruída e prendada, Noêmia ao sair do colégio ia com sua mãe, como a chamava ela, a espetáculos, a saraus, sempre elegantemente vestida, e já cercada de um certo grupo de admiradores.

Como morassem num pitoresco arrabalde, a moça, com diversas amigas, saía a passeio quando uma tarde bem defronte da casa onde residiam, virão de braço com um médico conhecido, o Dr. Ribeiro, a quem saudaram, uma senhora, que ainda bonita tinha estampado no olhar o quer que fosse de anormal.

E os encontros sucederam-se, dizendo-lhes o médico que a Viscondessa de Vila-Seca era uma infortunada a quem a razão abandonara há pouco, por desgostos íntimos.

O Dr. Ribeiro, especialista em tratamento de loucura, declarara a principio que, em vista dos grandes intervalos lúcidos que tinha a titular, seria até para presumir algum resultado satisfatório do tratamento a que submetera-se, não sendo para estranhar que, em vista de ter sido a moléstia produzida por um grande choque, outro igual lhe produziria a cura.

***

Os desgraçados que, em vez das luzes da inteligência, têm simplesmente na vida a noite do infortúnio produzido pelo descalabro das ideias, dispõem quase sempre de uma vontade indomável, que, ou se amolgam pela muita doçura, ou então pelo rigor ilimitado; e, nessa epopeia de dores, onde todos nós temos quinhão mais ou menos farto, a loucura, se bem que seja a morte moral do indivíduo, contudo é muitas vezes um grande beneficio por se tornarem indiferentes para nós as dores alheias e as nossas igualmente.

Creio que é preferível à sociedade e à moral a loucura, mas nunca o suicídio, embora seja este considerado por muitos um ato de estoicismo, de heroicidade para quem o comete.

Eu acho simplesmente absurda semelhante teoria, onde o egoísmo da conservação humana é desprezada da maneira a mais torpe, a mais irracional mesmo, tanto que, veja-se: a loucura faz logo descer aos corações que palpitam o olhar cheio de comiseração e piedade, ao passo que o suicídio ofende não só os direitos humanos como os divinos também. A vida, , quer seja pelo lado materialista, quer pelo que reza o Evangelho, é-nos emprestada, sendo a morte natural, pela lei das coisas, a única autorizada a nos levar ao túmulo.

O homem que mata-se, calmo e refletido, sem ter ao menos amor pela conservação da espécie, é o carrasco de si próprio, tornando-se no seu papel de carrasco antipático e repulsivo.

Na loucura dá-se, com raras exceções, o fenômeno da lucidez espontânea do cérebro.

Os médicos de hoje têm aproveitado para por à prova, a ciência estudada agora sob a forma de: Sugestão hipnótica, que pelo seu todo científico tem grande analogia com o magnetismo animal tornando-o mais aperfeiçoado talvez. Pelo que tenho lido por simples curiosidade, muito embora procurando esmiuçar a razão de semelhante fenômeno, creio que só mais tarde poder-se-á colher maiores vantagens.

Charcot, tem assombrado os seus discípulos com suas lições, e Júlio Claretie, membro da Academia francesa, já ensaiou com a robustez da sua pena, um belo livro: o João Mornas, que temos à vista. O hipnotismo, pois, não sendo uma ciência nova, com tudo agora é que se o está estudando com mais interesse, com mais atenção, sendo o principal móvel a completa obediência do sugestionado ao sugestionador.

Há pouco tempo, o Dr. Erico Coelho, bem conhecido médico nesta capital, fez algumas experiências que calaram no espírito dos profanos que achavam-se presentes, estando entre eles a minha humilde pessoa.

***

O médico alienista preso das graças de Noêmia, sem procurar indagar a origem daquela que julgava ser filha da rica viúva, pediu-a em casamento.

Produziu esse pedido na virtuosa senhora uma verdadeira serie de comoções diversas, porque... a sociedade é tão severa!... Sem querer, porém, ferira moça, declarou-lhe o que havia e o receio em que estava do insucesso da pretensão.

Ela empalideceu. Caíra-lhe aos pés todas as ilusões, todas as primícias do sentimento que a engolfara escrevendo no caderno do futuro o resultado da soma do seu amor com parcelas fartas, dobradas, angariando para si uma riqueza dada por si própria.

Ela uma enjeitada!... Uma agitação involuntária e nervosa, fê-la segurar-se a um movei, e o coração, esse órgão, oculto receptáculo de todas as dores, de todas as alegrias, pela primeira vez agitou-se tão fortemente, que roubou-lhe a voz e os sentidos.

O coração, é muito susceptível, muito melindroso, para receber assim o aguilhão que o fere, que o estraçalha, e que o mata. O coração humano é tão delicado, tão cheio de melindres, que haja a prova o longo catalogo de sofrimentos que ao mesmo afetam, em vão combatidos pela medicina que procura os meios para debelar o mal que o rói, que o dilacera, quando o mesmo não pode ser indiferente aos miasmas pestilentos das misérias sociais.

Poupemo-nos mutuamente o tocar no coração, que sendo um bem para a saúde e para a moral, significa igualmente um preceito Evangélico.

O Dr. Ribeiro quis saber da causa que retinha no leito de dor a sua amada, que o fez conhecedor do que havia.

Um sorriso de complacência passou pelos lábios do moço.

— Enjeitados, respondeu ele, são aqueles que se incorporam nos asilos, sem família, sem proteção, sem apoio.

A vossa excelência não sucede isto: quer ser a minha esposa adorada?

Agradecendo-lhe, ela tomou a mão do médico, apertou-a contra o peito no mudo reconhecimento de uma sincera gratidão, vendo ele, o noivo, o homem conhecedor da fisiologia, duas gotas d’água que puras e transparentes, vieram ornar os castos cílios, deixando-as lentamente cair sobre o rosto aveludado.

O coração, tão somente o coração, foi o mudo transmissor das pérolas cristalinas, que, como prova da sensibilidade recebida pelo cérebro e transmitida ao centro nervoso, veio provar ao médico que ela lhe agradecia, e que, livre do grande peso que lhe ocasionara a terrível revelação; o coração, o pobre órgão palpitante tornou-se assim aliviado das dores que o afligiam.

***

Chegou enfim o dia do noivado. D. Maria contente, abençoou o novo par.

A sociedade, em vista da posição do noivo, calou o que poderia murmurar, vendo-o não desprezar a moça, por se não conhecer dela, pelo menos, o pai, que muitas vezes a vira, a cumprimentara, sem ter ao menos a lembrança de que bem perto de se estivesse aquela que a ele devia a vida; e, mesmo quando o soubesse, mandava ainda a sociedade que ele não deixasse transparecer um único resquício de ternura, porque o murmúrio irracional e irreverente iria ferir sem compaixão os próprios direitos da natureza, que, em vista das circunstâncias, tinha de calcar aos pés o coração e o sentimento. 



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023

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