A
ENJEITADA
(A ADÉLIA)
Assim falava à sua filha única o Sr.
Guilherme Roxo, chefe de uma ótima casa de café, mas agora meio desfalcado pela
situação financeira em que o havia colocado a quebra de alguns devedores seus,
e a exigência de alguns credores pirrônicos com letras já reformadas prestes de
novo a vencer, sendo um dos seus maiores perseguidores o Visconde de Vila Seca,
velho solteirão, devasso, libidinoso, avarento, ostentando virtudes que não
possuía, entre elas a caridade, que só sobressaía pro-fórmula,
quando para interesse seu, pudesse ostentá-la a fim de angariar bom nome.
Conhecendo a fundo a situação precária
do Sr. Roxo, ele que não queria perder um só vintém, propôs o casar-se com a
Terezinha, moça que não herdando as péssimas qualidades de seu pai, e
em nada ambiciosa, amou a um principiante de letras, sem mais interesse
do que os juros sacados pelo coração, resultando dessa paixão um
passo dado sem consciência, sem guia, irrefletido...
E o casamento forçado fez-se. Todos
julgando o Visconde feliz por ter escolhido uma mulher nova, educada e bonita,
porém ignorando que esse consórcio acarretava a vergonha, a ignomínia do
sentimento materno que viu-se obrigado a bem das aparências, a sacrificar o
ente sem culpa, às condições de um nome ralé: enjeitada!
Pobre inocente, que sem ter o batismo
do reconhecimento social, achou felizmente numa porta, os umbrais de um teto
que lhe seria dado pela benfazeja mão de uma mãe adotiva.
É que quando as mães rejeitam os filhos
e não têm a coragem para sustentar seus atos, uma outra mãe — a Caridade — abre
o regaço materno para acolher em seu seio a criancinha, que sorria sem ser
recompensada pelo calor que a deveria aquecer, e que chorando achou quem, por
intermédio do coração, lhe desse amor, pão e carinho.
***
D. Maria Benedita Borges da Cunha
surpreendeu-se um dia, indo à missa pela manhã, ao ver à sua porta uma menina
recém-nascida, com os lábios quase negros pelo frio, as mãozinhas cerradas e
muito roxas, e a face pálida e marmórea pela ação do ar rijo de um nevoento dia
de junho.
Tomar o anjinho e ir para o interior
foi obra de um segundo.
A boa senhora perdeu nessa ocasião a
sua missa diária, porém ganhou mais para com Deus pelo ato que praticara. Desde
esse dia, a pequena Noêmia, de quem a velha protetora fora madrinha, encontrou
nela uma verdadeira mãe, porque o coração havia perfilhado aquela criancinha, a
quem todos que a conheciam festejavam, cobriam de presentinhos, de beijos, de
carícias. Ao passo que a natureza repugnara de abraçá-la em seu regaço, a
bondade de um coração de arcanjo a fez tornar querida, sendo para D. Maria
Benedita o maior prazer, quando via a pequena afagar-lhe o rosto e vir nuns
amuos procurar-lhe o colo, dizendo em linguagem ininteligível esse fraseado
infantil, suave, mas engraçado, que em paga merece uma contribuição de beijos.
A respeitável matrona perfilhou a
menina por uma escritura pública, pondo-a aos dez anos no colégio, onde ia
vê-la mensalmente.
Oh!... com que prazer recebeu, como
lembrança, o primeiro crochê, o primeiro, bordado o primeiro desenho, comovida
até às lágrimas, mostrando tudo às amigas, guardando os objetos com avareza!
Depois, com que enlevo não ouvia a menina tocar os estudos ainda incorretos,
indo sentar-se muitas vezes ao lado do instrumento a ponto de adormecer!...
Aos dezesseis anos, educada, instruída
e prendada, Noêmia ao sair do colégio ia com sua mãe, como a chamava ela, a
espetáculos, a saraus, sempre elegantemente vestida, e já cercada de um certo
grupo de admiradores.
Como morassem num pitoresco arrabalde,
a moça, com diversas amigas, saía a passeio quando uma tarde bem defronte da
casa onde residiam, virão de braço com um médico conhecido, o Dr. Ribeiro, a
quem saudaram, uma senhora, que ainda bonita tinha estampado no olhar o quer
que fosse de anormal.
E os encontros sucederam-se,
dizendo-lhes o médico que a Viscondessa de Vila-Seca era uma infortunada a quem
a razão abandonara há pouco, por desgostos íntimos.
O Dr. Ribeiro, especialista em
tratamento de loucura, declarara a principio que, em vista dos grandes
intervalos lúcidos que tinha a titular, seria até para presumir algum resultado
satisfatório do tratamento a que submetera-se, não sendo para estranhar que, em
vista de ter sido a moléstia produzida por um grande choque, outro igual lhe
produziria a cura.
***
Os desgraçados que, em vez das luzes da
inteligência, têm simplesmente na vida a noite do infortúnio produzido pelo
descalabro das ideias, dispõem quase sempre de uma vontade indomável, que, ou
se amolgam pela muita doçura, ou então pelo rigor ilimitado; e, nessa epopeia
de dores, onde todos nós temos quinhão mais ou menos farto, a loucura, se bem
que seja a morte moral do indivíduo, contudo é muitas vezes um grande beneficio
por se tornarem indiferentes para nós as dores alheias e as nossas igualmente.
Creio que é preferível à sociedade e à
moral a loucura, mas nunca o suicídio, embora seja este considerado por muitos
um ato de estoicismo, de heroicidade para quem o comete.
Eu acho simplesmente absurda semelhante
teoria, onde o egoísmo da conservação humana é desprezada da maneira a mais
torpe, a mais irracional mesmo, tanto que, veja-se: a loucura faz logo descer
aos corações que palpitam o olhar cheio de comiseração e piedade, ao passo que
o suicídio ofende não só os direitos humanos como os divinos também. A vida, ,
quer seja pelo lado materialista, quer pelo que reza o Evangelho, é-nos
emprestada, sendo a morte natural, pela lei das coisas, a única autorizada a
nos levar ao túmulo.
O homem que mata-se, calmo e refletido,
sem ter ao menos amor pela conservação da espécie, é o carrasco de si próprio,
tornando-se no seu papel de carrasco antipático e repulsivo.
Na loucura dá-se, com raras exceções, o
fenômeno da lucidez espontânea do cérebro.
Os médicos de hoje têm aproveitado para
por à prova, a ciência estudada agora sob a forma de: Sugestão
hipnótica, que pelo seu todo científico tem grande analogia com o
magnetismo animal tornando-o mais aperfeiçoado talvez. Pelo que tenho lido por
simples curiosidade, muito embora procurando esmiuçar a razão de semelhante
fenômeno, creio que só mais tarde poder-se-á colher maiores vantagens.
Charcot, tem assombrado os seus
discípulos com suas lições, e Júlio Claretie, membro da Academia francesa, já
ensaiou com a robustez da sua pena, um belo livro: o João Mornas,
que temos à vista. O hipnotismo, pois, não sendo uma ciência nova, com tudo
agora é que se o está estudando com mais interesse, com mais atenção, sendo o
principal móvel a completa obediência do sugestionado ao sugestionador.
Há pouco tempo, o Dr. Erico Coelho, bem
conhecido médico nesta capital, fez algumas experiências que calaram no
espírito dos profanos que achavam-se presentes, estando entre eles a minha
humilde pessoa.
***
O médico alienista preso das graças de
Noêmia, sem procurar indagar a origem daquela que julgava ser filha da rica
viúva, pediu-a em casamento.
Produziu esse pedido na virtuosa
senhora uma verdadeira serie de comoções diversas, porque... a sociedade é tão
severa!... Sem querer, porém, ferira moça, declarou-lhe o que havia e o receio
em que estava do insucesso da pretensão.
Ela empalideceu. Caíra-lhe aos pés
todas as ilusões, todas as primícias do sentimento que a engolfara escrevendo
no caderno do futuro o resultado da soma do seu amor com parcelas fartas,
dobradas, angariando para si uma riqueza dada por si própria.
Ela uma enjeitada!... Uma agitação
involuntária e nervosa, fê-la segurar-se a um movei, e o coração, esse órgão,
oculto receptáculo de todas as dores, de todas as alegrias, pela primeira vez
agitou-se tão fortemente, que roubou-lhe a voz e os sentidos.
O coração, é muito susceptível, muito
melindroso, para receber assim o aguilhão que o fere, que o estraçalha, e que o
mata. O coração humano é tão delicado, tão cheio de melindres, que haja a prova
o longo catalogo de sofrimentos que ao mesmo afetam, em vão combatidos pela
medicina que procura os meios para debelar o mal que o rói, que o dilacera,
quando o mesmo não pode ser indiferente aos miasmas pestilentos das misérias
sociais.
Poupemo-nos mutuamente o tocar no
coração, que sendo um bem para a saúde e para a moral, significa igualmente um
preceito Evangélico.
O Dr. Ribeiro quis saber da causa que
retinha no leito de dor a sua amada, que o fez conhecedor do que havia.
Um sorriso de complacência passou pelos
lábios do moço.
— Enjeitados, respondeu ele, são
aqueles que se incorporam nos asilos, sem família, sem proteção, sem apoio.
A vossa excelência não sucede isto:
quer ser a minha esposa adorada?
Agradecendo-lhe, ela tomou a mão do
médico, apertou-a contra o peito no mudo reconhecimento de uma sincera
gratidão, vendo ele, o noivo, o homem conhecedor da fisiologia, duas gotas
d’água que puras e transparentes, vieram ornar os castos cílios, deixando-as
lentamente cair sobre o rosto aveludado.
O coração, tão somente o coração, foi o
mudo transmissor das pérolas cristalinas, que, como prova da sensibilidade
recebida pelo cérebro e transmitida ao centro nervoso, veio provar ao médico
que ela lhe agradecia, e que, livre do grande peso que lhe ocasionara a
terrível revelação; o coração, o pobre órgão palpitante tornou-se assim
aliviado das dores que o afligiam.
***
Chegou enfim o dia do noivado. D. Maria
contente, abençoou o novo par.
A sociedade, em vista da posição do
noivo, calou o que poderia murmurar, vendo-o não desprezar a moça, por se não
conhecer dela, pelo menos, o pai, que muitas vezes a vira, a cumprimentara, sem
ter ao menos a lembrança de que bem perto de se estivesse aquela que a ele
devia a vida; e, mesmo quando o soubesse, mandava ainda a sociedade que ele não
deixasse transparecer um único resquício de ternura, porque o murmúrio
irracional e irreverente iria ferir sem compaixão os próprios direitos da
natureza, que, em vista das circunstâncias, tinha de calcar aos pés o coração e
o sentimento.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023
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