7/03/2023

A Casa Deserta (Conto), de Inês Sabino


A CASA DESERTA
( À JOSEFINA DE AZEVEDO)

A uns seis quilômetros de distância da cidade, lá perto do rio, havia, e há ainda em uma pequena elevação de terreno uma casinha à semelhança das “Cotages” inglesas, muito cercada de verdura, muito escondida entre as palmeiras, com um extenso jardim bem tratado, feito mesmo com certo gosto destoando dos outros que são comuns, sem arte, com os canteiros divididos por longas filas de botijas vazias de cerveja, sem originalidade sequer.

Bem em frente, uma cascata artificial casava os veios d’água em jorros transparentes, que aos primeiros raios amarelados do dia formava cambiantes deliciosos, aformoseando o horizonte por essa rubra cor do sol nascente, tudo puro como a brisa que embalava o leque das palmeiras, tudo risonho como o oásis de verdura que vestia a luxuriante seiva da natureza e da arte.

Por entre os arbustos surgiu um homem de chapéu branco e blusa azul; era o jardineiro, que de tesoura na mão, podava aqui, aparava acolá, com a fisionomia alegre e sã, e ar bondoso.

Uma criança de uns doze anos chegou-se ao rústico, falou-lhe, apontando para um canteiro, alegre, nessa idade em que tudo são manhãs, colheu uma madressilva que conservou na mão desfolhando-a depois maquinalmente.

— Que belíssimas flores, menina Gilda, preparo eu para o dia dois do mês vindouro, disse o homem. Ó!... hão de matar de inveja a dez defuntos de ricos enfeites nos túmulos, e a oito de meia tigela. Garanto à patroinha que no cemitério não se hão de apresentar flores tão bonitas como as minhas, que são raras e fora de tudo quanto é comum. Os que lá dormem, quando virem então as perpetuas que tenho, hão de dar um quarto ao diabo... e...

— Não fales assim dos mortos, Manoel; respeita-os que é o teu dever.

— Olé!... respeitá-los? Isso faço eu. Olhe: eu vou contar à menina, continuou ele encostando-se e pondo a tesoura em um galho. Quando vejo um enterro, descubro-me; se é conhecido, rezo-lhe por alma; porém mando os defuntos ao diabo se em sonhos me aparecem. E... veja só a menina: quando alguém deixa viúva e esta é rapariga, com filhos, respingo logo; portanto, como vê, os trato bem, e, sendo assim, o que querem mais esses patifes?

— Querem mais caridade, Manoel, respondeu uma moça que viera pelo lado oposto chegando junto à menina e o jardineiro sem ser vista.

— Oh! perdão, senhora! disse o rústico descobrindo-se.

— Estás perdoado; porém, advirto-te que é dever respeitar a memória dos que já não vivem.

— Pois, sim, senhora!...

A recém-vinda em pleno vigor da idade com belos olhos pardos e ar bondoso deu algumas voltas mais pelo jardim, vindo parar junto ao Manoel a quem deu algumas ordens e entregou uma cédula.

— Tens de ir ao mercado, disse-lhe, hoje aqui há varias pessoas para jantar e tomar chá conosco.

— Cá estarei, às onze, se me for possível.

— É verdade? tua mulher poderá vir ajudar a cozinheira?

— Não sei, senhora: quando se tem filhos pequenos e adoentados, a gente não pode contar nem mesmo com a boa vontade.

— Como passa a Mariquinhas?

— Esteve doente, senhora; porém como ao pobre tudo vai bem, já está melhor, sim, senhora... e... se me permite a senhora... lá em nome dos pequenos, eu... queria ter uma afoiteza... e enleado passava a mão pelo chapéu.

— Acaba, Manoel; queres dinheiro?

— Não, senhora!... porém...

— Querias o quê?

— Pedir licença à senhora para dar a si um presentinho lá em nome dos pequenos... por ser hoje o dia dos anos da senhora...

— Não precisa incomodo, meu rapaz; guarda o teu dinheiro para melhor fim...

— Ah! senhora!... agora já a despesa está feita.

A moça esperou.

O ilhéu voltou trazendo um bonito vaso de porcelana com um pé de amores-perfeitos, todo coberto de flores, que entregou radiante.

— Obrigada, Manoel, respondeu, entrando com o presente na sala, cuja porta estava agora aberta.

Ele acompanhou-a com a vista. Ao voltar deu-lhe mais algumas ordens, encaminhou-se com a menina para o portão, acompanhado pelo feitor; parando então, voltou-se para o homem, dizendo ainda:

— Não esqueças coisa alguma.

— Demora-se muita a senhora?

— Não. No meu passeio vou ver somente tua filhinha, que talvez precise de médico.

— Não se incomode... não... ora qual!... isto assim de doenças de importância, são pieguices dela, a mãe, que depois de quatro borreguinhos teve agora esta ovelhita, como lá diz o oitro estando a cachopinha mesmo esperta, que é um louvar a Deus, sim, senhora.

— A qual de teus filhos queres tu mais?

— A Mariquinhas, sim, senhora... Ah! Sra. D. Marta, se soubesse?... escute, senhora!... Quando vejo a pequenita lá na rede sentadinha já quase a me chamar de pai e a estender-me os bracinhos, como se fosse eu a mãe dela, eu sinto cá por dentro umas aquelas, que nem mesmo sei dizer à senhora.

A moça sorriu ao ver a expansão do pobre pai, e com a menina encaminhou-se para o portão que fecharam após si.

***

O coronel Antônio Rodrigues Carneiro era um homem de tempera severa, oriundo da excedente família dos Morgados do Cabo, educado sob o regime de preceitos antigos, acarretando uma boa dose de fatuidade nobiliária que herdara de seus antepassados; casou-se quando moço com uma prima de sua iguala, somente para não marear a estirpe.

Deste consórcio teve dois filhos; o Rafael, que formado em direito, seguira a diplomacia, e Marta Carneiro, a dona do oásis que descrevemos, a qual, chã e despida de prejuízos, achava fatigante assinar reunidos aos seus dois nomes mais cinco ou seis indicando por eles três ou quatro gerações passadas.

O coronel era, além de tudo, um perfeito cavalheiro; sabia granjear amigos, sabia gastar bem as suas rendas; passeava pela Europa, vinha ao Rio, era esmoler e muito generoso; porém, no que toca aos foros de fidalguia, tornava-se incivil, brutal quase; por isso rejeitava partidos para a filha, que, menos ambiciosa, achando que no amor, o coração é o único agente em transações matrimoniais, apaixonou-se com toda a expansão de sua alma por um alemão, seu professor de piano, que, em vista do murmúrio surdo da buzina social, como homem de bem, escreveu, pedindo a discípula em casamento.

D. Castorina Carneiro, mãe da pretendida, teve um dia inteiro de enxaqueca e nove ou dez faniquitos seguidos, acompanhados de flatos, ao ler a carta em que o artista pedia a sua adorada Marta para esposa, ela, que havia olhado com desdém para um primo rico, mais três outros bons partidos inclusive um bacharel!

Que horror!... Um pianista!... um homem que ganhava salário por cada lição; que viera não se sabia donde!... qual!... era com certeza fantasia daquela cabecinha de dezessete anos; era uma teteia de imaginação... não seria possível...

O coronel clamou também aos quatro ventos da terra sobre o desaforo do begorrilhas com cabelos de espiga de milho e andar amacacado, cujo maior desejo era pilhar seus cobres.

— Ele!... ele meu genro?... exclamou o misero, ao saber que a filha apoiara o pedido, e que o tinha autorizado mesmo impossível!... ela... bem educada, formosa, rica... e até fidalga... amara um boêmio, que intitulava-se artista?

Consultou a um amigo, fulo de raiva, ante essa desigualdade social... Pois, ele devia dar sua filha a um troca-tintas, ele, que era condecorado pelo Brasil e Portugal, estando prestes a sorrir-lhe no horizonte um titulozinho de barão, talvez depois mesmo até com grandeza...

A mocinha, toda entregue aos devaneios de um amor sincero, ajoelhou-se, rogou, pediu, instou, como se tivesse amado a um ente desprezível...

— Pois, tu, tu, a nobre descendente de gente fina, queres descer a casar com... com um pianista?

— É um homem de bem, meu pai.

— Nunca!... Quem, quem apresenta por ele família, dignidade e sangue puro?

Em continente disse à filha que as portas daquela casa estavam fechadas para o artista, e que agora, já que ela não tinha cabeça para escolher um marido, lhe escolheria ele mesmo um a seu gosto.

O pianista, ao saber da bulha que produzira a sua pretensão, retirou-se, tendo porém a certeza de que a moça o não esquecia, prometeu voltar quando a gloria aureolasse-lhe a fronte como um talento de alto coturno.

Passaram-se os anos. Marta, fiel à sua palavra e aos dizeres do coração, rejeitou pretendentes pondo toda a dedicação na filha do diplomata que, enviuvando, trouxe a criança para o Brasil, voltando depois.

Logo que a orfandade abriu-lhe os braços perdendo os autores de sua existência, bem educado, cercado de consideração e respeito, foi morar na casinha que vimos, a qual, por ficar distanciada das demais habitações, ficou conhecida pela “Casa deserta”.

***

Ela, e Gilda, silenciosas, dirigiram-se para um atalho que já conheciam.

A paisagem, era realmente encantadora. O sol brilhava agora afoito espargindo os raios ardentes sobre os campos verdes, com moitas de arbustos variados, alguns já meio secos, refletindo-se a ardentia do astro rei no alto capinzal que ali e acolá surgia em nuanças claras escuras, ou crestadas, desse amarelo avermelhado, tudo ligado a umas nesgas d’água tranquilas, impuras, estagnadas, cobertas de grandes pastas das folhas verdes de lírios aquáticos com os pendões roxo-claros, a mirarem-se no espelho do elemento. Algumas árvores agrestes, onde o cajueiro, em plena florescência com as flores róseas, derramando um odor acre, margeavam o caminho agora estreito, por onde as duas matutinas passeantes, resguardadas por pequenas sombrinhas, andavam a passo, ouvindo o ruído surdo dos insetos e o canto dos pássaros que saltavam de ramo em ramo procurando pouso.

As borboletas esvoejavam satisfeitas aos bandos nessa profusão decores gentis das azas abertas, diáfanas e multicores. Nem uma folha se movia; tudo era calmo e morno, agradável, habitual, sereno.

Ao chegarem a um descampado, onde ao fundo aparecia o rio, lugar em que pastavam alegres, animais domésticos, pararam em frente a uma casa de humilde aparência.

Gilda bateu, vindo abri-la dois meninos de nove a dez anos, fazendo grande exclamação de contentamento.

— Onde está sua mãe? perguntou a mais velha das duas visitas, encaminhando-se para uma mesinha onde viu em cursivo e bastardinho, escritas, feitas por mãos infantis.

— Está lá dentro, respondeu o menino que abrira a porta, indo para o corredor.

— De quem é esta escrita, Antônio?

— É de Francisco, D. Marta.

— Ele está adiantado?

— Eu estou, respondeu afirmando por si.

— E eu também, ajuntou o que voltava.

— É mentira, senhora, disse o Antônio. Eu sei mais tabuada do que ele.

— É peta dele, replicou o Francisco olhando de esguelha para o irmão; mentiroso... Experimente, senhora!... e verá quem fala a verdade, si sou eu ou não.

— Gilda, é quem vai pôr-me isto em pratos limpos, disse Marta.

— Pronto!... respondeu a menina, vamos a ver quem tem razão.

A turma infantil foi para o interior, e Marta dirigiu-se para uma mulher vestida simplesmente, que convidou-a a sentar-se.

A conversa foi curta; a jovem madrinha inquiriu sobre a saúde da afilhada; queria vê-la; penetrando apressada com a mulher do feitor e jardineiro em um quartinho reles, onde em uma pequena rede aberta nos bordos da cabeceira por uma varinha, estava sentada uma pequenina de um ano a esfregar os olhinhos e a articular algumas frases em voz de choro.

— Não receia vê-la cair, minha comadre?

— Qual senhora, respondeu a mãe sorrindo. Os filhos dos pobres criam-se assim; si chorão, embala-se-lhes a rede e adormecem de novo.

Marta beijou a criancinha, metendo-lhe na mão uma moeda de ouro.

— É para comprar o enxoval do batizado. Enquanto, porém, na alcova da pecurrucha a madrinha fazia festas ao anjinho que ria-se sacudindo os braços, meneando a inocente cabecinha toda rodeada de cabelos crespos, Gilda alvorada em professora, examinava os meninos.

— Quatro vezes oito? perguntou.

— Trinta e dois, respondeu Antônio.

— E cinco? Sr. Francisco?

— Trinta e sete.

— Menos quinze, Sr. Antônio?

— São... são... assim a gente se engana, D. Gilda... disse o menino coçando a orelha.

— Fogo nele, senhora mestra, exclamou o Francisco a estalar os dedos. Disso é que eu gosto... fogo no sabichão.

— Espere aí que eu já digo... são... são... murmurou o rapazito atrapalhado, a olhar para o teto e a mover os lábios.

— Adiante, replicou a mestra.

— Não, D. Gilda, eu sei, exclamou aflito o pobrezinho, que pelos dedos começou a fazer agora a dedução.

— Acaba, ó meu marmanjo, meu bobo, repetiu o Francisco vitorioso: responde já meu sacatrapos, quando não...

— Você me deixe, vociferou o outro. Seu atrevido! seu... seu... e avançou para o Francisco de mãos fechadas.

— Bem, por hoje basta, meus discípulos, respondeu a menina, erguendo-se para acudir ao chamado da tia.

Com efeito, depois de voltarem, elas acharão a casinha artisticamente arranjada com arbustos e flores.

***

À noite, como ao jantar, acudiu grande número de pessoas que foram cumprimentar a dona da casa, passando-se algumas horas no mais íntimo convívio de uma fina sociedade.

Soube-se então que o casamento, há tantos anos tratado, realizar-se-ia em breve.

— É um bonito rapaz, disse o vigário da freguesia, que além de tudo, tem agora uma grande nomeada como artista.

— Não gosto desta gente, acudiu um velho desembargador trajando roupa preta e alto colarinho que ia admiravelmente à sua gravidade de magistrado. A ser pai, fazia como fez o meu velho amigo. Seria pois possível, concordar em semelhante disparate!... Um pianista a querer casar com sua filha!

— E não será ele um homem de honra? tornou-lhe o reverendo.

— Eu sei... estes artistas quase sempre não provam bem, e de mais...

— Demais, atalhou o padre sorvendo uma pitada, Washman é um homem bom, educado, fala diversas línguas e apresenta-se como pessoa de certo merecimento.

— Mas é artista, meu caro, e desta gente eu formo o pior juízo.

— Preconceitos! preconceitos! respondeu o sacerdote sacudindo o pó da batina.

***

— Um dia, surpresa, quase a morrer de alegria, recebeu Marta uma carta do noivo dizendo vir pedir-lhe em breve o compromisso de sua palavra.

Ela, feliz, preparou-lhe com a coroa de laranjeiras uma festa intima, onde os seus amigos pressurosos manifestariam com suas presenças o apoio do ato. A felicidade pois não é remissa aos seus escolhidos.

Ele, Washman, com um nome feito, condecorado por merecimento, chegou, e fez-se a cerimônia no meio de geral contento.

— O que diz-me daquele novo par, Sr. desembargador? perguntou o velho vigário celebrante do consórcio.

— Que deponho armas. Um nome na arte, e o merecimento intelectual de cada indivíduo, vale muito mais do que estes títulos... assim... comprados, ou então um pergaminho sem jus, à custa de empenhos...Ela teve razão. Tomara que sejam felizes. A arte, o talento, e o caráter valem tudo... sim... confesso-o sem rebuço.

— Ora, graças a Deus!...respondeu o velho satisfeito. Até que a final vossa excelência concorda que: — o talento é o bem único de que se deve orgulhar qualquer.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

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