6/30/2023

Seis dias no mar (Conto), de Inês Sabino

SEIS DIAS NO MAR
(A MEU MARIDO)

O Advance arvorara a bandeira americana que ostentava-se vaidosa mostrando as suas mais belas cores, sob a pressão da branda aragem de uma bonita tarde de julho, no ancoradouro interno do porto do Recife.

O mar sereno, de um azul carregado, espalhava-se em ondas pequenas e graciosas, que beijavam a cadeia de arrecifes que protegem a mimosa capital de Pernambuco. Além, no Lamarão mesmo, não havia ressaca. As águas volumosas mas quietas, vinham arrebentar brandamente em alvíssimos lençóis de espuma que misturavam-se com as do lado oposto, cobertas de embarcações ligeiras, e também de navios mercantes, vapores brasileiros, ingleses, franceses, e do americano Advance, que, com o fumo já a sair em altas espirais pela chaminé, conservava-se com tudo ainda quieto posto que se notasse pela azafama da marinhagem essa sofreguidão que vê-se no momento da partida, obedecendo contentes os marinheiros à voz do comandante, que era um bonito rapaz, de longas barbas negras e maneiras mais apropriadas de um cavalheiro de salão, do que as que se observa geralmente nos homens do mar.

Sobre a murada de bordo, vi rostos alvos e rosados envoltos em véus verdes ou cor de cinza, e alguns viajantes com longas suíças louras e olhos azuis, notando-se no todo logo à primeira vista esse quê que diferencia o estrangeiro dos nossos patrícios.

Desde que instalei-me na volante morada, reparei que poucos comprovincianos meus tinha como companheiros, vendo-me porém rodeada de americanos de Washington, da Filadélfia, de Massachusetts, de Brooklin, de Nova York e não sei de quantos estados mais, pois que mais de seis ou sete conheci de diversos lugares.

O vapor pôs-se em marcha, e eu, transida de saudades, com o olhar turvo de lágrimas, de pé, sem ter mais noção do que vira, fiquei indiferente ao que me rodeava, não escutando sequer a chamada para a mesa.

Um movimento do navio fez-me, porém, cambalear e voltar à realidade, sentando-me imediatamente, e vendo com pesar desaparecer lentamente as últimas casas de Olinda e a Ermida do Monte que entre o seu ninho de verdura ostenta-se alva e pequenina como um mimo sorrindo ao viajante. Depois, o vapor com mais rápida carreira deixava que apenas se avistasse uma ou outra nesga do areal da praia, e, infrene, ufano da sua marcha, seguindo o seu rumo, viu-se sozinho, brincando com o vento que inchava-lhe as alvas velas fazendo-o balouçar à vontade.

Havia deixado atrás tudo quanto me prendia o coração. A família, os amigos, as ilusões, e essa bela província que adotara como mãe, onde vi desabrocharem-se os meus dias, calmos, e serenos, e onde imerecidamente achava-me cercada de consideração no meio criado por mim.

Já ao escurecer, dobram os o Cabo de Santo Agostinho. Fitando a primeira estrela que apareceu no céu, cerrei os olhos; passei em revista os acontecimentos do dia, e sentindo o coração sujeito às agruras da saudade, imergi-me nessa modorra em que o espírito alheio a tudo, parece viver por momentos para si...

 Quando voltei a mim, tornava-se necessário recolher-me ao camarote.

Estavam os em pleno mar.

*** 

No dia seguinte pela manhã, ao chegar ao convés, saudei as minhas companheiras de bordo com um Good morning pronunciado o mais aproximadamente possível do sotaque britânico, notando que ao corresponderem-me, elas olhavam-me com certa surpresa e mesmo curiosidade. Ora, como estava disposta a travar relações, dirigi-me a uma senhora que lia, e que de vez em quando tomava notas em um livro volumoso.

Perguntei-lhe se vinha diretamente de Nova York, e quantos dias levara de viagem.

Respondeu-me com polidez, inquirindo igualmente de onde eu era. Satisfi-la; encaminhada assim a conversação, deu em resultado essa camaradagem que se estabelece entre os passageiros, o que fez com que não nos separássemos mais.

***

Mrs. Francis Fen acompanhava o marido, com mandante de uma esquadra americana, que achava-se em Buenos Aires, trazendo em sua companhia uma jovem prima, a Miss Yot, envolvida eternamente em uma mantilha de rendas pretas que ia-lhe perfeitamente ao rosto oval e gracioso, com a cabeça emoldurada em uma coroa de cabelos louros e crespos penteados à toa sobre a nuca, e em ligeiros caracóis sobre a testa alta, inteligente. Apesar de certo ar de gravidade que notava-se-lhe nos movimentos e mesmo na fisionomia, esta tornava-se risonha todas as vezes que via a seu lado um dos oficiais superiores do vapor, o qual, sempre que podia furtar alguns minutos ao serviço, tornava-se o cavalheiro serviente da jovem Miss, que agradecia-lhe a deferência em mais de um yes murmurado tão brando como um suspiro.

Mrs. Fen era uma perfeita mulher do mar. Garantiu-me, que, casada já há dez anos, rara era a vez que tinha tido ocasião de estar em sua casa em Nova York, tendo acompanhado sempre o marido em todas as suas viagens, mas que julgava dentro em dois anos descansar de vez, visto faltar apenas esse prazo para ele reformar-se.

 

— Vê, disse-me abrindo o livro que eu já conhecia, mostrando-me diversas folhas, espécimes da flora Amazonense; de todas essas qualidades mandei mudas para a minha estufa, crendo a senhora, que estou encantada com a América do Sul. Quem dera que no Norte pudéssemos ter toda essa vegetação luxuriante e bela! Com o frio do inverno, as próprias rosas e as violetas só podem ser cultivadas nas estufas: um ramo, embora pequeno, de uma ou de outra flor, custa muita vez de dez a vinte dólares; tantos dei eu por duas rosas para o peito, uma ocasião em que fui ouvir a Paiti cantar n um concerto.

Falou-me sobre a Diva como verdadeira conhecedora da música, cantarolando até alguns trechos que mais a haviam emocionado.

***

Estava encantada com a minha nova amiga; e, se bem que sentisse ainda viva a nostalgia ante os direitos da natureza e do coração, todavia achava grande consolo naquelas horas passadas assim junto a essa senhora despretensiosa, muito educada, mas simples, e instruidíssima.

Sem poder conter a curiosidade por vê-la escrever sempre, uma tarde perguntei-lhe a razão de assim o fazer.

— São notas para um futuro livro onde descreverei as impressões das minhas viagens à roda do globo, logo que saiba não ter mais obrigação de voltar ao mar.

Ao entregar-me o manuscrito li algumas páginas escritas sem esforço e com muita naturalidade. Devolvendo-o, perguntei-lhe ainda se conhecia o estado político e intelectual do meu Brasil.

Ela disse-me que não.

Fiz-lhe ver que a nossa política de então, era a mesma de ontem, que sei ia mesmo a de amanhã, tendo como chefe a um velho muito instruído sem duvida, mas que absorvido nos seus estudos descuidava-se um pouco da nação, e que a nossa literatura, posto que muito nova, era contudo fértil.

Citei-lhe com orgulho alguns poetas e escritores de mais nomeada.

Diariamente pois, tinham os novo motivo para essa palestra de que tantas saudades restam-me.

À noite, tocava-se, cantava-se, e nessa espécie do concerto dado por ela, pela prima, pela esposa do imediato, e por mim, passava-se o tempo.

Para ser-me agradável, narrava-me a americana as suas excursões em diversos países; dizendo que ser-me-ia extremamente sensível a visita à Gruta Azul, tão bem descrita por Lamartine. Confirmei o que supunha, quando ao tirar ela o lenço do bolso, vi que caíra do mesmo uma fotografia feminina.

Ao entregar-lha, notei que uma nuvem de tristeza passara-lhe pelo semblante simpático, pondo a fotografia não já na algibeira, mas sim dentro do livro, acompanhado isso de um profundo suspiro.

Imaginei logo que uma dessas mágoas de coração, um desses choques comuns da desventura, ligava-se no entretanto àquele retrato; sem querer a ser indiscreta, esperei que me dissesse alguma coisa a propósito.

Emocionada, principiou a narrar esses episódios comuns, mas desgraçadamente reais no longo tirocínio da vida humana.

A irmã, divorciara-se a uns dois meses de um homem a quem amara, que mal recompensara-a de tanto afeto, fazendo-a suicidar-se moralmente. Ela, virtuosa e pura, quis meter-se à redentora, saindo crucificada. Ele, no próprio lar desrespeitava-a, dando-se diariamente toda essa serie de misérias que repugna e enoja, mas que as portas das residências cerra às vistas dos indiferentes.

Eu ouvia-a em silêncio. Nada do que me narrava era novo para mim. Tenho visto já tantos exemplos! Conheço tão a fundo o coração humano!

— A felicidade, é uma palavra muito rara, não é, Mrs. Maia? perguntou-me depois de afirmar que era muito feliz no seu estado.

— Como tudo que traduz o bem completo na vida, minha senhora, , respondi to­ mando sobre os joelhos a minha menina procurando desviar por essa forma a conversação, cujo assunto era preciso esquecer.

Depois deste dia achei que não devia fazer nem de leve alusão alguma a aquele desastre de família, ficando bem certa que quanto mais a gente procura descartar-se da desgraça mais ela nos persegue.

***

Amanheceu finalmente o sexto dia, em que esperávamos chegar ao termo da nossa viagem.

Ainda com escuro já ela batia-me à porta do beliche afim de, em sua companhia, ver o lindo espetáculo da entrada da formosa baía de Guanabara. Ergui-me, e acompanhei-a.

Nós estávamos deslumbradas, e assestávamos o binóculo em todas as direções.

Beautiful, beautiful!... exclamava a viajante a cada passo. Como esta entrada só a do Bósforo! Ó!... se pudéssemos ambas depois disto, lá ir!

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O vapor entrava lentamente. As águas tranquilas, como as de um lago, viam-se povoadas de gaivotas, que voavam, mergulhando as brancas azas no límpido, vítreo, liquido azulado, como que desafiando as mesmas a namorar-lhe a alvura das penas.

— Para que hotel vai? — perguntei-lhe, admirando esses morros cheios de jardins, de chalés, olhando, ali para a Tijuca, acolá, para o Corcovado, tudo amplamente coberto de vegetação luxuriante, onde o verde-escuro predomina ao longe, descambando docemente para cores mais claras, tudo harmônico, belo, poético e original.

Respondi, trocamos os cartões, e afastamo-nos.

Sem preocupar-me de mais nada, se não do que via, e do prazer em que o espírito estava imerso, cumprimentei maquinalmente uns amigos que vieram buscar-me e a minha família, quando senti uma mão pousar sobre o meu ombro. Era a dela.

Abracei-a; beijei-a com efusão. Quando as nossas lanchas passaram de par, os lenços agitaram-se vindo uma lágrima voluntária pousou sobre o meu regaço.

Fui vê-la daí a dias.

Como eu, ela achara bonita a capital do então império do Brasil, observava-lhe o que tem de útil e apontava-lhe os defeitos.

Em um domingo, pelas onze horas, apresentaram-me dois cartões de visita, onde li:

Mrs F. Fen.
Miss Agnes Iot.

Ao chegar à sala, achei-a a ler os jornais do dia.

Sabe o português? perguntei surpresa, depois dos primeiros comprimentos.

— E traduzo-o também.

— Para asseverar o que dizia, começou a ler um tópico do jornal que tinha posto ao lado, vendo que, se a pronuncia não era correta, contudo mostrava a viajante conhecer alguma coisa do idioma.

— Estudou o latim? continuei eu.

— Um pouco, assim como o grego, respondeu ela. Cultivo com muito gosto as línguas, e sabe o que pretendi estudar?... O hebraico.

Apesar de ter pessoas estranhas na sala, pediram-me as duas senhoras para executar uma das valsas de Strauss que eu havia tocado a bordo.

Satisfi-las, e as norte-americanas, como se estivessem sós, sem se importarem com os mais, principiarão a dançar alegremente.

Depois da Miss Yot cantar com voz afinada uma canção sensaborona, masque, por polidez, tive de achá-la bonita, despediram-se.

***

Tendo de sair para fora da capital, fui vê-la. Francis, mostrou-me toda satisfeita uns pobres versos meus que vertera para o inglês, prometendo adicioná-los ao futuro livro que pretendia escrever. Agradeci comocionada, e retirei-me.

Foi esta a última vez que abracei a minha amiga de seis dias.

Provavelmente, porém, nunca mais a verei.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

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