SEIS DIAS NO MAR
(A MEU MARIDO)
O mar sereno, de um azul carregado,
espalhava-se em ondas pequenas e graciosas, que beijavam a cadeia de arrecifes
que protegem a mimosa capital de Pernambuco. Além, no Lamarão mesmo, não havia
ressaca. As águas volumosas mas quietas, vinham arrebentar brandamente em alvíssimos
lençóis de espuma que misturavam-se com as do lado oposto, cobertas de
embarcações ligeiras, e também de navios mercantes, vapores brasileiros, ingleses,
franceses, e do americano Advance, que,
com o fumo já a sair em altas espirais pela chaminé, conservava-se com tudo
ainda quieto posto que se notasse pela azafama da marinhagem essa sofreguidão
que vê-se no momento da partida, obedecendo contentes os marinheiros à voz do
comandante, que era um bonito rapaz, de longas barbas negras e maneiras mais apropriadas
de um cavalheiro de salão, do que as que se observa geralmente nos homens do
mar.
Sobre a murada de bordo, vi rostos
alvos e rosados envoltos em véus verdes ou cor de cinza, e alguns viajantes com
longas suíças louras e olhos azuis, notando-se no todo logo à primeira vista
esse quê que diferencia o estrangeiro dos nossos patrícios.
Desde que instalei-me na volante
morada, reparei que poucos comprovincianos meus tinha como companheiros, vendo-me
porém rodeada de americanos de Washington, da Filadélfia, de Massachusetts, de Brooklin,
de Nova York e não sei de quantos estados mais, pois que mais de seis ou sete
conheci de diversos lugares.
O vapor pôs-se em marcha, e eu, transida
de saudades, com o olhar turvo de lágrimas, de pé, sem ter mais noção do que
vira, fiquei indiferente ao que me rodeava, não escutando sequer a chamada para
a mesa.
Um movimento do navio fez-me, porém,
cambalear e voltar à realidade, sentando-me imediatamente, e vendo com pesar
desaparecer lentamente as últimas casas de Olinda e a Ermida do Monte que entre
o seu ninho de verdura ostenta-se alva e pequenina como um mimo sorrindo ao
viajante. Depois, o vapor com mais rápida carreira deixava que apenas se avistasse
uma ou outra nesga do areal da praia, e, infrene, ufano da sua marcha, seguindo
o seu rumo, viu-se sozinho, brincando com o vento que inchava-lhe as alvas
velas fazendo-o balouçar à vontade.
Havia deixado atrás tudo quanto me
prendia o coração. A família, os amigos, as ilusões, e essa bela província que
adotara como mãe, onde vi desabrocharem-se os meus dias, calmos, e serenos, e
onde imerecidamente achava-me cercada de consideração no meio criado por mim.
Já ao escurecer, dobram os o Cabo
de Santo Agostinho. Fitando a primeira estrela que apareceu no céu, cerrei os
olhos; passei em revista os acontecimentos do dia, e sentindo o coração sujeito
às agruras da saudade, imergi-me nessa modorra em que o espírito alheio a tudo,
parece viver por momentos para si...
Quando voltei a mim, tornava-se necessário recolher-me
ao camarote.
Estavam os em pleno mar.
***
No dia seguinte pela manhã, ao
chegar ao convés, saudei as minhas companheiras de bordo com um Good morning pronunciado o mais aproximadamente
possível do sotaque britânico, notando que ao corresponderem-me, elas olhavam-me
com certa surpresa e mesmo curiosidade. Ora, como estava disposta a travar
relações, dirigi-me a uma senhora que lia, e que de vez em quando tomava notas
em um livro volumoso.
Perguntei-lhe se vinha diretamente de
Nova York, e quantos dias levara de viagem.
Respondeu-me com polidez, inquirindo
igualmente de onde eu era. Satisfi-la; encaminhada assim a conversação, deu em
resultado essa camaradagem que se estabelece entre os passageiros, o que fez
com que não nos separássemos mais.
***
Mrs. Francis Fen acompanhava o marido,
com mandante de uma esquadra americana, que achava-se em Buenos Aires, trazendo
em sua companhia uma jovem prima, a Miss Yot, envolvida eternamente em uma mantilha
de rendas pretas que ia-lhe perfeitamente ao rosto oval e gracioso, com a
cabeça emoldurada em uma coroa de cabelos louros e crespos penteados à toa
sobre a nuca, e em ligeiros caracóis sobre a testa alta, inteligente. Apesar de
certo ar de gravidade que notava-se-lhe nos movimentos e mesmo na fisionomia, esta
tornava-se risonha todas as vezes que via a seu lado um dos oficiais superiores
do vapor, o qual, sempre que podia furtar alguns minutos ao serviço, tornava-se
o cavalheiro serviente da jovem Miss, que agradecia-lhe a deferência em mais de
um yes murmurado tão brando como um
suspiro.
Mrs. Fen era uma perfeita mulher do
mar. Garantiu-me, que, casada já há dez anos, rara era a vez que tinha tido ocasião
de estar em sua casa em Nova York, tendo acompanhado sempre o marido em todas
as suas viagens, mas que julgava dentro em dois anos descansar de vez, visto
faltar apenas esse prazo para ele reformar-se.
— Vê, disse-me abrindo o livro que
eu já conhecia, mostrando-me diversas folhas, espécimes da flora Amazonense; de
todas essas qualidades mandei mudas para a minha estufa, crendo a senhora, que
estou encantada com a América do Sul. Quem dera que no Norte pudéssemos ter
toda essa vegetação luxuriante e bela! Com o frio do inverno, as próprias rosas
e as violetas só podem ser cultivadas nas estufas: um ramo, embora pequeno, de
uma ou de outra flor, custa muita vez de dez a vinte dólares; tantos dei eu por
duas rosas para o peito, uma ocasião em que fui ouvir a Paiti cantar n um
concerto.
Falou-me sobre a Diva como
verdadeira conhecedora da música, cantarolando até alguns trechos que mais a
haviam emocionado.
***
Estava encantada com a minha nova
amiga; e, se bem que sentisse ainda viva a nostalgia ante os direitos da
natureza e do coração, todavia achava grande consolo naquelas horas passadas
assim junto a essa senhora despretensiosa, muito educada, mas simples, e
instruidíssima.
Sem poder conter a curiosidade por vê-la
escrever sempre, uma tarde perguntei-lhe a razão de assim o fazer.
— São notas para um futuro livro
onde descreverei as impressões das minhas viagens à roda do globo, logo que
saiba não ter mais obrigação de voltar ao mar.
Ao entregar-me o manuscrito li
algumas páginas escritas sem esforço e com muita naturalidade. Devolvendo-o, perguntei-lhe
ainda se conhecia o estado político e intelectual do meu Brasil.
Ela disse-me que não.
Fiz-lhe ver que a nossa política de
então, era a mesma de ontem, que sei ia mesmo a de amanhã, tendo como chefe a
um velho muito instruído sem duvida, mas que absorvido nos seus estudos
descuidava-se um pouco da nação, e que a nossa literatura, posto que muito nova,
era contudo fértil.
Citei-lhe com orgulho alguns poetas
e escritores de mais nomeada.
Diariamente pois, tinham os novo
motivo para essa palestra de que tantas saudades restam-me.
À noite, tocava-se, cantava-se, e
nessa espécie do concerto dado por ela, pela prima, pela esposa do imediato, e
por mim, passava-se o tempo.
Para ser-me agradável, narrava-me a
americana as suas excursões em diversos países; dizendo que ser-me-ia extremamente
sensível a visita à Gruta Azul, tão
bem descrita por Lamartine. Confirmei o que supunha, quando ao tirar ela o
lenço do bolso, vi que caíra do mesmo uma fotografia feminina.
Ao entregar-lha, notei que uma
nuvem de tristeza passara-lhe pelo semblante simpático, pondo a fotografia não
já na algibeira, mas sim dentro do livro, acompanhado isso de um profundo
suspiro.
Imaginei logo que uma dessas mágoas
de coração, um desses choques comuns da desventura, ligava-se no entretanto àquele
retrato; sem querer a ser indiscreta, esperei que me dissesse alguma coisa a propósito.
Emocionada, principiou a narrar
esses episódios comuns, mas desgraçadamente reais no longo tirocínio da vida
humana.
A irmã, divorciara-se a uns dois meses
de um homem a quem amara, que mal recompensara-a de tanto afeto, fazendo-a
suicidar-se moralmente. Ela, virtuosa e pura, quis meter-se à redentora, saindo
crucificada. Ele, no próprio lar desrespeitava-a, dando-se diariamente toda
essa serie de misérias que repugna e enoja, mas que as portas das residências
cerra às vistas dos indiferentes.
Eu ouvia-a em silêncio. Nada do que
me narrava era novo para mim. Tenho visto já tantos exemplos! Conheço tão a
fundo o coração humano!
— A felicidade, é uma palavra muito
rara, não é, Mrs. Maia? perguntou-me depois de afirmar que era muito feliz no
seu estado.
— Como tudo que traduz o bem
completo na vida, minha senhora, , respondi to mando sobre os joelhos a minha
menina procurando desviar por essa forma a conversação, cujo assunto era
preciso esquecer.
Depois deste dia achei que não
devia fazer nem de leve alusão alguma a aquele desastre de família, ficando bem
certa que quanto mais a gente procura descartar-se da desgraça mais ela nos
persegue.
***
Amanheceu finalmente o sexto dia, em
que esperávamos chegar ao termo da nossa viagem.
Ainda com escuro já ela batia-me à porta
do beliche afim de, em sua companhia, ver o lindo espetáculo da entrada da
formosa baía de Guanabara. Ergui-me, e acompanhei-a.
Nós estávamos deslumbradas, e assestávamos
o binóculo em todas as direções.
— Beautiful, beautiful!... exclamava a viajante a cada passo. Como
esta entrada só a do Bósforo! Ó!... se pudéssemos ambas depois disto, lá ir!
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O vapor entrava lentamente. As águas
tranquilas, como as de um lago, viam-se povoadas de gaivotas, que voavam, mergulhando
as brancas azas no límpido, vítreo, liquido azulado, como que desafiando as
mesmas a namorar-lhe a alvura das penas.
— Para que hotel vai? —
perguntei-lhe, admirando esses morros cheios de jardins, de chalés, olhando, ali
para a Tijuca, acolá, para o Corcovado, tudo amplamente coberto de vegetação
luxuriante, onde o verde-escuro predomina ao longe, descambando docemente para
cores mais claras, tudo harmônico, belo, poético e original.
Respondi, trocamos os cartões, e afastamo-nos.
Sem preocupar-me de mais nada, se
não do que via, e do prazer em que o espírito estava imerso, cumprimentei maquinalmente
uns amigos que vieram buscar-me e a minha família, quando senti uma mão pousar
sobre o meu ombro. Era a dela.
Abracei-a; beijei-a com efusão.
Quando as nossas lanchas passaram de par, os lenços agitaram-se vindo uma lágrima
voluntária pousou sobre o meu regaço.
Fui vê-la daí a dias.
Como eu, ela achara bonita a
capital do então império do Brasil, observava-lhe o que tem de útil e
apontava-lhe os defeitos.
Em um domingo, pelas onze horas, apresentaram-me
dois cartões de visita, onde li:
Mrs F. Fen.
Miss Agnes Iot.
Ao chegar à sala, achei-a a ler os
jornais do dia.
Sabe o português? perguntei surpresa,
depois dos primeiros comprimentos.
— E traduzo-o também.
— Para asseverar o que dizia, começou
a ler um tópico do jornal que tinha posto ao lado, vendo que, se a pronuncia
não era correta, contudo mostrava a viajante conhecer alguma coisa do idioma.
— Estudou o latim? continuei eu.
— Um pouco, assim como o grego, respondeu
ela. Cultivo com muito gosto as línguas, e sabe o que pretendi estudar?... O
hebraico.
Apesar de ter pessoas estranhas na
sala, pediram-me as duas senhoras para executar uma das valsas de Strauss que
eu havia tocado a bordo.
Satisfi-las, e as norte-americanas,
como se estivessem sós, sem se importarem com os mais, principiarão a dançar
alegremente.
Depois da Miss Yot cantar com voz
afinada uma canção sensaborona, masque, por polidez, tive de achá-la bonita, despediram-se.
***
Tendo de sair para fora da capital,
fui vê-la. Francis, mostrou-me toda satisfeita uns pobres versos meus que vertera
para o inglês, prometendo adicioná-los ao futuro livro que pretendia escrever.
Agradeci comocionada, e retirei-me.
Foi esta a última vez que abracei a
minha amiga de seis dias.
Provavelmente, porém, nunca mais a
verei.
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