6/29/2023

O primeiro benefício (Conto), de Inês Sabino


O PRIMEIRO BENEFÍCIO
( A MEUS IRMÃOS)

Estava eu nessa crise de sentimentos em que a alma procura investigar a realidade do que nos cerca, ao passo que as sombras dos primeiros anos envolvendo-nos nas suas dobras, mostra-nos ainda a vida, serena, como a vítrea face de um lago, sem preocupações, sem desgostos, sem mesmo pensarmos no dia de amanhã, pois que apenas tivemos o de ontem, e sem sabermos o que quer dizer futuro, por ignorarmos se podemos bem contar com o dia de amanhã.

Era-me comum por uma espécie de contágio, todas as alegrias, todas as afeições, todos os entusiasmos, todas as ilusões, todas as dores!

Vivia em uma atmosfera de virtude e de bem estar, sentindo no entretanto que alguma coisa me faltava para ser completamente feliz.

Eu fui sempre muito emocionável, e, embora levasse a vida alegre e discuidosa, a lágrima agradecida do pedinte, ou a bênção daquele que sofresse, à semelhança do que via praticar-se com minha mãe, seria a maior recompensa para o meu espírito ainda não contaminado pelos ressaibos da vida, nem muito menos purificado pelo contágio da experiência própria.

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Figure-se uma povoação à beira-mar, habitada na maior parte por pescadores que moram em choças tecidas de folhas de coqueiros a que dão impropriamente o nome de: “Mocambos”, tendo, além de uma ou outra habitação isolada, uma carreira de casinhas defronte da igreja que é conhecida sob o orago de Nossa Senhora da Boa Viagem, cujo recinto abandonado durante o ano, só vê-se repleto de fiéis, quando as pessoas abastadas, fugindo ao calor dom mês de setembro a janeiro, vão do Recife, para aí fartarem-se de banhos do mar, e de brisas marinhas.

Nesse lugar, tinha minha família uma aprazível casa de campo com todo o conforto que é dado a pessoas de certa posição social e pecuniária.

Minha mãe, era muito querida pela pobreza daí, porque, naturalmente caridosa, saía quase sempre a visitar aqueles a quem protegia distribuindo esmolas e remédios, ocupando meu pai o lugar de médico da pobreza, quando por um ou dois dias vinha entre a família, descansar das lidas da clínica.

Notava que aqueles rústicos sentiam prazer em vê-lo; muitos, deviam-lhe a vida; por isso descobriam-se à sua passagem, idolatravam-no; sendo que à minha mãe, davam-lhe também provas singelas, mas tocantes do muito que a queriam, estendendo-se igualmente à minha pessoa alguns obséquios dos rudes mais sinceros homens do mar.

Uma das maiores distinções que se nos fazia, era a de tomarem-nos para comadres, parentesco que a pobre gente levava muito a sério.

Eu ficava muito ancha quando me apresentavam um pequerrucho como afilhado; e, por dar a mão a beijar a um já meio taludo, provando por tanto valer alguma coisa, era o que mais me deleitava, desfazendo-me toda em sorrisos.

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Entre as famílias conhecidas, havia uma, composta de pai, mãe, e filha: — a Rosinha, que aos domingos ia à missa trajando com faceirice vestido de graúdas ramagens, tendo ao pescoço três voltas de cordão de ouro, onde via-se um coração de filigrana; na cabeça, preza com certa graça, uma rosa de Alexandria unida a um raminho de rezedá; na mão, um lenço dobrado em três pontas, sustentado com denodo à altura do estômago, e rescendendo a Patchouli.

O tio Pedro mais a senhora Joana, iam na retaguarda, com toda a gravidade possível, pairando-lhes de vez em quando um sorriso nos lábios, quando dirigia-lhes qualquer conhecido um ou outro comprimento à cerca do fruto dos seus amores.

Passado algum tempo, um dia eu estudava, quando interrompeu o meu tem a uma mulher nova em quem reconheci a filha do velho pescador, que acercou-se de mim, tendo nos braços uma criancinha de meses, pedindo-me que desejava fosse eu a intermediária das pazes que queria fazer com o pai que estava à morte.

Dessas idas à igreja, entabulou a rapariga um namoro com o filho de um pescador lá das Candeias, que depois de um não, dado pelo pai dela a si, a quem de há muito já não via com bons olhos, uma noite, rapta a Rosinha do lar paterno com grande escândalo de todos que a conheciam.

 caso foi tido e havido no lugar como um fato de horror, e minha mãe aproveitando o ocorrido, apontou-me esta lição como um salvo conduto para a moral, ouvindo eu religiosamente o que ela me dizia, mas pairando me no espírito a convicção que, do rico, ao pobre, e deste, ao remediado, todos têm o seu quinhão de dor, no retalho do manto da vida.

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Passado algum tempo, um dia eu estudava, quando interrompeu o meu tem a uma mulher nova em quem reconheci a filha do velho pescador, que acercou-se de mim, tendo nos braços uma criancinha de meses, pedindo-me que desejava fosse eu a intermediária das pazes que queria fazer com o pai que estava à morte

Pus a pena ao lado e perguntei-lhe:

— Por que não procura a minha mãe?

— Queria mesmo a Senhora... — Quem aconselhou-a valer-se de mim?

— Meu marido!

— E... você casou?...

Narrou-me que o pai havia cedido afinal, mas com a condição de não querer vê-la mais.

Consultei a minha mãe, que animou-me a ir. Acompanhada de uma amiga de minha família, fui ao lugar onde tinha a sua casinha de palha, o bom do homem que tanto já divertira-me a contar a luta que tivera com o oceano quando moço e marinheiro; depois, os episódios da pesca; tendo os pés sobre uma frágil jangada, onde à mercê das ondas, envelhecera, adoentara, e crestara as mãos e o rosto, nessa faina comum própria das necessidades humanas.

Ao entrar na m orada indicada, o coração bateu-me apressadamente, a respiração, parecia opressa! Olhei em roda; a pobreza, quase que disputava a palma à miséria.

O leito tosco, estava sobre uma esteira a fim de preservar o doente da um idade do chão; junto à cabeceira; havia um quadro com uma estampa sacra, sobre uma pequena mesa de pinho, uns frascos com remédios, uma tigela com água, e... nada mais!

Pelas paredes, via-se estendida uma enorme rede de pesca; junto a esta, uma espingarda velha; mais além, um espelho inutilizado, duas cadeiras, um banco tosco, e só!

Acerquei-me do leito do moribundo que conservava os olhos fechados, não podendo ver-me por isso.

Pressentindo, porém, não estar só, perguntou:

— Quem está aí?

— Amigas suas, tio Pedro, disse eu.

— Onde está a Joana?

— No quarto próximo.

— Pobre companheira!... eu morro , sinhá dona; porém ela fica... tão pobre... sem ninguém...

— Descanse; fale pouco, e não me fale em morte, respondi.

— Eu sinto-a aqui... disse-me apontando com a mão ossuda e emagrecida o lugar do coração.

— Qual!... você ainda irá contar-me historias, e há de viver muito para consolo da Joana... e de... sua filha também.

Ao proferir assim à queima roupa o nome da filha ingrata, eu sentia o coração quase a sair do seu âmbito.

— Morreu, para mim, dona.

— Não diga isso, meu velho: não há quem tenha o direito de fazer assim morrer um ente que a natureza manda e ordena que a gente ame, e demais, vamos ao caso que você morra... diga-me: — quer ser perdoado por Deus? se o quer, deixe-se desse orgulho embora justo, e mostre o seu bom coração.

Olhe; lá bem dentro de sua alma, deverá ter por sua filha um pouquinho de amizade... e de... clemência.

— Estarei enganada?

Ele suspirou.

Do quarto próximo, um soluço ferio-nos o ouvido.

— Diga à Joana que não chore.

— Quem chora não é ela, mas sim a Rosinha. Mostre-se pai... tornei eu, que envidando para a minha verbosidade toda a pujança que dispunha a minha pouca inteligência, citava-lhe exemplos aos quais ele nem sequer parecia prestar atenção. Reuni então todas as minhas forças; com as mãos geladas e trêmulas, tomei, as igualmente geladas do quase agonizante. Sentindo quase arrefecer a situação, lembrei-me de tentar um outro meio.

Eu era então muito crente, e como a gente do povo gosta por índole de tudo quanto é religioso, inquiri se tinha desejo de confessar-se.

— Queria, porém é tarde, respondeu.

— Não; falta-lhe para isso um padre aqui, é verdade; mas faça-o a Deus; então com um fervor quase evangélico, eu, que havia há pouco vindo do colégio, onde tivera uma boa educação religiosa, rezei com ele o Confiteor, roguei-lhe que pedisse perdão a Deus... mas que para ser perdoado, tornava-se preciso perdoar, como Jesus o fizera.

Sem consciência de si, com os músculos contraídos pela emoção, abriu os olhos donde escaparam duas lágrimas.

Aproveitei a situação.

— Quer a ela, não é?... faz-me a vontade, sim?

— Perdoo, respondeu já muito ansiado, para que Deus me perdoe a mim dentro em pouco.

Exultei.

Corri a chamar a minha protegida, que ajoelhou chorando, junto ao pai.

Sem querer, no auge da comoção, eu também chorava; porém como nada mais tinha a fazer ali, parti.

**

No dia imediato, à tarde, colhia no terraço umas rosas que se enlaçavam no gradil do jardim , quando vi assomar na estrada uma rede carregada por dois homens descobertos, indo com outros atrás da mesma, o genro do tio Pedro.

O pobre homem do mar morrera pela madrugada, e o enterro fazia-se a expensas de minha mãe.

Sentindo sem querer, os olhos rasos de pranto; acompanhei com a vista o fúnebre préstito até sumir-se nas moitas da estrada, que avistava-se ao longe.

Muitos anos hão decorrido depois deste fato. Então, era quase uma criança; hoje, porém, sou já uma mulher, que com o frio olhar do raciocínio, sinto, magoo-me, analiso, julgo, e desprezo: no entanto, o que asseguro ao leitor, é que este primeiro benefício me há servido de guia na peregrinação custosa da vida, e que nunca, nunca me arrependo de fazer o bem, muito embora esteja certa que hei de ter como recompensa, o quinhão ferino do ingrato.

 

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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