O PRIMEIRO BENEFÍCIO
( A MEUS IRMÃOS)
Estava eu nessa crise de
sentimentos em que a alma procura investigar a realidade do que nos cerca, ao
passo que as sombras dos primeiros anos envolvendo-nos nas suas dobras,
mostra-nos ainda a vida, serena, como a vítrea face de um lago, sem preocupações,
sem desgostos, sem mesmo pensarmos no dia de amanhã, pois que apenas tivemos o
de ontem, e sem sabermos o que quer dizer futuro, por ignorarmos se podemos bem
contar com o dia de amanhã.
Era-me comum por uma espécie de contágio,
todas as alegrias, todas as afeições, todos os entusiasmos, todas as ilusões,
todas as dores!
Vivia em uma atmosfera de virtude e
de bem estar, sentindo no entretanto que alguma coisa me faltava para ser
completamente feliz.
Eu fui sempre muito emocionável, e,
embora levasse a vida alegre e discuidosa, a lágrima agradecida do pedinte, ou
a bênção daquele que sofresse, à semelhança do que via praticar-se com minha mãe,
seria a maior recompensa para o meu espírito ainda não contaminado pelos ressaibos
da vida, nem muito menos purificado pelo contágio da experiência própria.
***
Figure-se uma povoação à beira-mar,
habitada na maior parte por pescadores que moram em choças tecidas de folhas de
coqueiros a que dão impropriamente o nome de: “Mocambos”, tendo, além de uma ou
outra habitação isolada, uma carreira de casinhas defronte da igreja que é
conhecida sob o orago de Nossa Senhora da Boa Viagem, cujo recinto abandonado
durante o ano, só vê-se repleto de fiéis, quando as pessoas abastadas, fugindo
ao calor dom mês de setembro a janeiro, vão do Recife, para aí fartarem-se de
banhos do mar, e de brisas marinhas.
Nesse lugar, tinha minha família
uma aprazível casa de campo com todo o conforto que é dado a pessoas de certa
posição social e pecuniária.
Minha mãe, era muito querida pela
pobreza daí, porque, naturalmente caridosa, saía quase sempre a visitar aqueles
a quem protegia distribuindo esmolas e remédios, ocupando meu pai o lugar de médico
da pobreza, quando por um ou dois dias vinha entre a família, descansar das
lidas da clínica.
Notava que aqueles rústicos sentiam
prazer em vê-lo; muitos, deviam-lhe a vida; por isso descobriam-se à sua
passagem, idolatravam-no; sendo que à minha mãe, davam-lhe também provas
singelas, mas tocantes do muito que a queriam, estendendo-se igualmente à minha
pessoa alguns obséquios dos rudes mais sinceros homens do mar.
Uma das maiores distinções que se
nos fazia, era a de tomarem-nos para comadres, parentesco que a pobre gente
levava muito a sério.
Eu ficava muito ancha quando me
apresentavam um pequerrucho como afilhado; e, por dar a mão a beijar a um já
meio taludo, provando por tanto valer alguma coisa, era o que mais me
deleitava, desfazendo-me toda em sorrisos.
***
Entre as famílias conhecidas, havia
uma, composta de pai, mãe, e filha: — a Rosinha, que aos domingos ia à missa
trajando com faceirice vestido de graúdas ramagens, tendo ao pescoço três voltas
de cordão de ouro, onde via-se um coração de filigrana; na cabeça, preza com
certa graça, uma rosa de Alexandria unida a um raminho de rezedá; na mão, um
lenço dobrado em três pontas, sustentado com denodo à altura do estômago, e
rescendendo a Patchouli.
O tio Pedro mais a senhora Joana, iam
na retaguarda, com toda a gravidade possível, pairando-lhes de vez em quando um
sorriso nos lábios, quando dirigia-lhes qualquer conhecido um ou outro
comprimento à cerca do fruto dos seus amores.
Passado algum tempo, um dia eu
estudava, quando interrompeu o meu tem a uma mulher nova em quem reconheci a
filha do velho pescador, que acercou-se de mim, tendo nos braços uma criancinha
de meses, pedindo-me que desejava fosse eu a intermediária das pazes que queria
fazer com o pai que estava à morte.
Dessas idas à igreja, entabulou a
rapariga um namoro com o filho de um pescador lá das Candeias, que depois de um
não, dado pelo pai dela a si, a quem
de há muito já não via com bons olhos, uma noite, rapta a Rosinha do lar paterno
com grande escândalo de todos que a conheciam.
caso foi tido e havido no lugar como um fato
de horror, e minha mãe aproveitando o ocorrido, apontou-me esta lição como um
salvo conduto para a moral, ouvindo eu religiosamente o que ela me dizia, mas
pairando me no espírito a convicção que, do rico, ao pobre, e deste, ao
remediado, todos têm o seu quinhão de dor, no retalho do manto da vida.
***
Passado algum tempo, um dia eu
estudava, quando interrompeu o meu tem a uma mulher nova em quem reconheci a
filha do velho pescador, que acercou-se de mim, tendo nos braços uma criancinha
de meses, pedindo-me que desejava fosse eu a intermediária das pazes que queria
fazer com o pai que estava à morte
Pus a pena ao lado e perguntei-lhe:
— Por que não procura a minha mãe?
— Queria mesmo a Senhora... — Quem
aconselhou-a valer-se de mim?
— Meu marido!
— E... você casou?...
Narrou-me que o pai havia cedido
afinal, mas com a condição de não querer vê-la mais.
Consultei a minha mãe, que
animou-me a ir. Acompanhada de uma amiga de minha família, fui ao lugar onde
tinha a sua casinha de palha, o bom do homem que tanto já divertira-me a
contar a luta que tivera com o oceano quando moço e marinheiro; depois, os episódios
da pesca; tendo os pés sobre uma frágil jangada, onde à mercê das ondas, envelhecera,
adoentara, e crestara as mãos e o rosto, nessa faina comum própria das
necessidades humanas.
Ao entrar na m orada indicada, o
coração bateu-me apressadamente, a respiração, parecia opressa! Olhei em roda;
a pobreza, quase que disputava a palma à miséria.
O leito tosco, estava sobre uma
esteira a fim de preservar o doente da um idade do chão; junto à cabeceira; havia
um quadro com uma estampa sacra, sobre uma pequena mesa de pinho, uns frascos
com remédios, uma tigela com água, e... nada mais!
Pelas paredes, via-se estendida uma
enorme rede de pesca; junto a esta, uma espingarda velha; mais além, um espelho
inutilizado, duas cadeiras, um banco tosco, e só!
Acerquei-me do leito do moribundo
que conservava os olhos fechados, não podendo ver-me por isso.
Pressentindo, porém, não estar só,
perguntou:
— Quem está aí?
— Amigas suas, tio Pedro, disse eu.
— Onde está a Joana?
— No quarto próximo.
— Pobre companheira!... eu morro ,
sinhá dona; porém ela fica... tão pobre... sem ninguém...
— Descanse; fale pouco, e não me fale
em morte, respondi.
— Eu sinto-a aqui... disse-me apontando
com a mão ossuda e emagrecida o lugar do coração.
— Qual!... você ainda irá contar-me
historias, e há de viver muito para consolo da Joana... e de... sua filha também.
Ao proferir assim à queima roupa o
nome da filha ingrata, eu sentia o coração quase a sair do seu âmbito.
— Morreu, para mim, dona.
— Não diga isso, meu velho: não há quem
tenha o direito de fazer assim morrer um ente que a natureza manda e ordena que
a gente ame, e demais, vamos ao caso que você morra... diga-me: — quer ser
perdoado por Deus? se o quer, deixe-se desse orgulho embora justo, e mostre o
seu bom coração.
Olhe; lá bem dentro de sua alma,
deverá ter por sua filha um pouquinho de amizade... e de... clemência.
— Estarei enganada?
Ele suspirou.
Do quarto próximo, um soluço
ferio-nos o ouvido.
— Diga à Joana que não chore.
— Quem chora não é ela, mas sim a
Rosinha. Mostre-se pai... tornei eu, que envidando para a minha verbosidade toda
a pujança que dispunha a minha pouca inteligência, citava-lhe exemplos aos quais
ele nem sequer parecia prestar atenção. Reuni então todas as minhas forças; com
as mãos geladas e trêmulas, tomei, as igualmente geladas do quase agonizante.
Sentindo quase arrefecer a situação, lembrei-me de tentar um outro meio.
Eu era então muito crente, e como a
gente do povo gosta por índole de tudo quanto é religioso, inquiri se tinha
desejo de confessar-se.
— Queria, porém é tarde, respondeu.
— Não; falta-lhe para isso um padre
aqui, é verdade; mas faça-o a Deus; então com um fervor quase evangélico, eu,
que havia há pouco vindo do colégio, onde tivera uma boa educação religiosa,
rezei com ele o Confiteor, roguei-lhe
que pedisse perdão a Deus... mas que para ser perdoado, tornava-se preciso
perdoar, como Jesus o fizera.
Sem consciência de si, com os músculos
contraídos pela emoção, abriu os olhos donde escaparam duas lágrimas.
Aproveitei a situação.
— Quer a ela, não é?... faz-me a vontade, sim?
— Perdoo, respondeu já muito ansiado,
para que Deus me perdoe a mim dentro em pouco.
Exultei.
Corri a chamar a minha protegida,
que ajoelhou chorando, junto ao pai.
Sem querer, no auge da comoção, eu também
chorava; porém como nada mais tinha a fazer ali, parti.
**
No dia imediato, à tarde, colhia no
terraço umas rosas que se enlaçavam no gradil do jardim , quando vi assomar na
estrada uma rede carregada por dois homens descobertos, indo com outros atrás
da mesma, o genro do tio Pedro.
O pobre homem do mar morrera pela madrugada,
e o enterro fazia-se a expensas de minha mãe.
Sentindo sem querer, os olhos rasos
de pranto; acompanhei com a vista o fúnebre préstito até sumir-se nas moitas da
estrada, que avistava-se ao longe.
Muitos anos hão decorrido depois
deste fato. Então, era quase uma criança; hoje, porém, sou já uma mulher, que
com o frio olhar do raciocínio, sinto, magoo-me, analiso, julgo, e desprezo: no
entanto, o que asseguro ao leitor, é que este primeiro benefício me há servido
de guia na peregrinação custosa da vida, e que nunca, nunca me arrependo de
fazer o bem, muito embora esteja certa que hei de ter como recompensa, o
quinhão ferino do ingrato.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo,
2023.
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