SERMÃO VIGÉSIMO DO ROSÁRIO
Jacob autem genuit Judam, et fratres ejus.
I
Quem negará que são os homens filhos de Adão? Quem negará que são filhos daquele primeiro soberbo, o qual não reconhecendo o que era, e querendo ser o que não podia, por uma presunção vã se perdeu a si e a eles? Fê-los Deus a todos de uma mesma massa, para que vivessem unidos, e eles se desunem: fê-los iguais, e eles se desigualam: fê-los irmãos, e eles se desprezam
do parentesco: e para maior exageração deste esquecimento da própria natureza baste o exemplo que temos presente. O domingo passado, falando na linguagem da terra, celebraram os brancos a sua festa do Rosário, e hoje, em dia e ato apartado, festejam a sua os pretos, e só os pretos. Até nas cousas sagradas, e que pertencem ao culto
do mesmo Deus, que fez a todos iguais, primeiro buscam os homens a distinção que a piedade.
Jacob autem genuit Judam, et fratres ejus: Jacó, diz o nosso tema, gerou a Judas e a seus irmãos: e que irmãos eram estes? Uns eram filhos de Lia e de Raquel, outros eram filhos de Bala, escrava de Raquel, e de Resfa, escrava de Lia. Pois se entre as mães havia uma diferença tão grande, e tão notável na estimação dos homens, quanto vai de senhoras
a escravas, como não distingue o evangelista os filhos, e a todos sem distinção nem diferença chama igualmente irmãos: Et fratres ejus? Olhai para o Livro donde se tirou este texto: Liber generationis Jesu Christi: Livro da geração de Jesus Cristo. O fim por que Jesus Cristo veio ao mundo, foi para reformar os erros de Adão e seus filhos, e para os restituir à igualdade em que
os tinha criado, desfazendo totalmente e reduzindo à primeva e natural união as distinções e diferenças que a sua soberba entre eles tinha introduzido. Tanto é de fé esta razão, como o mesmo texto. Ouvi a São Paulo: Expoliantes vos veterem hominem cum actibus suis et induentes novum qui renovatur secundum imaginem ejus, qui creavit illum. Ubi non est barbarus, et scytha, servus, et liber. Despi-vos (diz o Apóstolo) do homem velho, que é Adão, com todos os seus abusos, e vesti-vos do novo, que é Cristo, o qual veio renovar e reformar em todos os homens a imagem, a que Deus os tinha criado, na qual não há bárbaro ou cita, escravo ou livre, mas todos são iguais. Faz menção entre os bárbaros nomeadamente dos citas,
porque a Cítia era a Angola dos Gregos, com quem falava. E porque na lei de Cristo, onde há um só Deus, uma só fé, e um só batismo, como diz o mesmo São Paulo, também não há,
nem deve haver
distinção de escravo a senhor, nem de cativo a livre: por isso o evangelista aos filhos de Lia e Raquel, que eram as senhoras, e aos de Bala e Resfa, que eram as escravas, a todos sem diferença de condição ou nascimento, igual e indistintamente chama irmãos: Judam, et fratres ejus.
Isto é o que diz e ensina o Evangelho; mas o que vemos na nossa república, não em alguns, senão em todos, é tudo o contrário. Consta esta grande república de três sortes, ou três cores de gentes: brancos, pretos, pardos. E posto que todos se prezam e professam servir a Virgem Maria, Senhora nossa, e se puderam reduzir a uma só
irmandade, como na casa de Jacó,
da qual é descendente a mesma Senhora; seguindo porém todos mais a diferença das cores, que a unidade
da profissão, não só os não vemos unidos em uma irmandade, ou divididos em duas, mas totalmente separados em três. Os em que acho menos razão, são os pardos, porque não só separaram a irmandade, mas mudaram o apelido. Os brancos e os
pretos, sendo cores extremas, conservaram o nome do Rosário, e os pardos, sendo cor meia entre as duas, por mais se extremarem de ambas, deixado o do
Rosário, tomaram o de Guadalupe. Por certo,
que foram mal-aconselhados; porque a Senhora do Rosário
igualmente abraça todas estas três cores: Quae est ista, quae progreditur quasi aurora consurgens, pulchra ut Luna, electa ut Sol? Compara-se a Senhora à aurora, à Lua, e ao Sol:
por quê? Porque igualmente como Mãe, e como a filhos, e irmãos, abraça com seu amor os brancos, os pretos e os pardos,
e alumia com sua
luz todas estas diferenças de cores: como Sol aos brancos, que são o dia; como Lua aos pretos, que são a noite; e como aurora aos pardos, que são os
crepúsculos.
Bem puderam os pardos agregar-se aos pretos, pela parte materna, segundo o texto geral: Partus sequitur ventrem: mas eu não quero senão que se agregassem aos brancos; porque entre duas partes iguais, o nome e a preferência deve ser da mais nobre. Nas mesmas duas cores temos a prova. Fez Deus o dia e a noite com tal igualdade, que segundo diversos tempos do ano nem um minuto de tempo excede o dia à noite, ou a noite ao dia. E a este espaço de vinte e quatro horas, que se compõe de dia e de noite,
como lhe chamou Deus desde seu nascimento? Chamou-lhe dia: Factum est vespere, et mane dies unus. Pois se no mesmo espaço de tempo, composto de duas ametades iguais, tanta parte tem a noite, como o dia;
por que se chama dia, e não se chama noite? Excelentemente São Basílio Magno: Facta est vespera, factum est mane, quibus diem, noctemque significat: non tamen diem, et noctem haec nuncupavit, sed praestabiliori totam tribuit appellationem. Ainda que no círculo, que faz o Sol, do oriente ao ocaso, e do ocaso ao oriente, tanta parte tenha a noite, como o dia, e o dia seja claro, e a noite escura; contudo àquele espaço, que se compõe destas
duas partes iguais, chama-lhe Deus dia, e não lhe chama noite; porque o nome e a preferência sempre devem seguir a parte mais nobre: Praestabiliori totam tribuit appellationem. Por esta regra, que não é menos que divina, ainda que a cor parda se componha igualmente da preta e da branca, se devia agregar, como digo, à branca e não à preta. Mas pois os pardos se quiseram antes distinguir de ambas, e com tanta diferença, que até o apelido da Senhora trocaram, e deixaram o do Rosário: contanto que o rezem, como os outros devotos dele, a Soberana Virgem, que invocada debaixo de qualquer nome é a mesma, se dará por satisfeita da sua devoção.
Excluídos assim, porque se quiseram excluir, os pardos; ficam só os brancos e pretos, cujas cores, ainda que extremas, se poderão muito bem unir na mesma irmandade. Naquele contrato que Jacó fez com Labão sobre as reses pretas e brancas, e as de cor misturada e vária, sempre estas ficaram separadas a uma parte, e as brancas e pretas a outra: Separavit varios, atque maculosos: cunctum autem gregem unicolorem, id est, albi, et nigri velleris, tradidit in manu filiorum, suorum. E por mais que este contrato se trocou dez vezes, é cousa muito notável, que as reses brancas e pretas, ou passassem de Jacó a Labão, ou de Labão a Jacó, sempre andaram unidas. Logo bem puderam também andar unidos, e debaixo da mesma irmandade, os brancos e os pretos. E se quisermos tornar à metáfora do dia e da noite, assim puseram uns e outros junto do mesmo coro os cantores de Babilônia: Benedicite noctes,
et dies
Domino. Respondiam-se alternadamente os dias às noites, e as noites aos dias; e com uniformes vozes, posto que umas mais claras, e outras menos; todos juntamente louvavam e bendiziam a Deus. Mas ainda que esta união fora muito própria da lei evangélica,
em que diferença das cores não dirime a irmandade, nem faz distinção entre senhores e servos;
contudo Davi, como profeta, viu isto
mesmo, que nós temos diante dos olhos. Por isso fez dous coros diferentes, e separados, de brancos e pretos, um em que pôs os dias, que não respondiam às noites, senão aos dias: Dies diei eructat verbum; e outro em que pôs as noites, em que também não respondiam aos dias, senão às noites: Et nox nocti indicat scientiam.
Suposta pois esta distinção
e separação de irmandades, uma dos brancos, outra dos pretos; uma dos senhores, outra dos escravos; o meu assunto, ou questão, muito digna de se disputar, será hoje esta: Qual destas duas irmandades
é mais grata, e mais favorecida da Mãe de Deus: Se a dos pretos, ou a dos brancos; a dos escravos, ou a dos senhores? Uns e outros estão presentes, e a todos toca igualmente ajudarem-me a pedir a graça.
Ave Maria etc.
II
Jacob autem genuit judam, et fratres ejus.
Três causas têm nesta nossa república, os que se chamam senhores, para a grande distinção que fazem entre si, e os seus escravos. O nome, a cor, e a fortuna. O nome de escravos, a cor preta, e a fortuna de cativos, mais negra que a mesma cor. Agora veremos se são bastante estas três causas, para que na estimação da soberana rainha dos anjos tenham melhor lugar os senhores que os escravos, os brancos
que os pretos, e a humilde fortuna desta segunda
irmandade, que a nobreza da primeira.
Começando pois pela comparação dos escravos com seus senhores, no primeiro patriarca desta mesma genealogia do Evangelho, que foi Abraão, têm os escravos um exemplo, que por todas as suas circunstâncias favorece pouco o seu partido. Havia naquela família dous escravos, uma mãe chamada Agar, e um filho chamado Ismael, os quais representavam com grande propriedade as duas diferenças dos que temos presentes. Agar, que quer dizer peregrina, era trazida da África, porque, como diz o texto sagrado, era egípcia: Ancillam aegyptiam nomine Agar: E Ismael era nascido
em casa do mesmo
Abraão, como consta do mesmo texto: Peperitque Agar Abrae filium. Tais são uns e outros escravos, os de que se compõe esta irmandade: uns chamados angolas, que são trazidos da África, outros que se chamam crioulos, e são nascidos e criados no Brasil em casa de seus senhores. É o que tinha prometido Isaías à nova Igreja convertida da gentilidade, que uns filhos lhe viriam de longe, e outros se levantariam do seu lado: Filii tui de longe venient, et filiae tuae de latere surgent. Isto posto, vamos ao caso. Primeiramente diz a Escritura que Sara, mulher de Abraão, tratava com tanto rigor a Agar que a obrigou a fugir, tornando outra vez para casa não menos apadrinhada que por um anjo; finalmente disse a Abraão que lançasse de casa a escrava e a seu filho:
Ejice ancillam hanc, et filium ejus: e assim se fez. Saibamos agora: e esta Sara quem era? Dizem as alegorias, que era figura da Virgem Maria, senhora nossa, e se confirma com o seu próprio nome; porque Sara quer dizer domina, a senhora. Logo pouco favor parece que podem esperar da senhora,
não só alguns escravos, senão todos, ou sejam os de longe como Agar, ou os de perto, como Ismael.
Nunca vistes uma figura mal pintada? Pois assim é Sara, figura da Virgem Maria. As figuras bem pintadas mostram a semelhança,
as mal pintadas
encarecem a diferença. Quereis ver bem pintadas as nossas senhoras no rigor e pouca piedade com que tratam os escravos? Olhai para Sara. E se quereis ver o encarecimento de piedade e amor, com que a Senhora das senhoras os trata, ponde os olhos na Virgem Maria. Para prova de quanto a Virgem Maria ama e estima os escravos, e não despreza este nome, não tenho menos que três testemunhos, todos três divinos: o de Deus, o do Filho de Deus, e o da Mãe de Deus. Comecemos por este
último. E para que apareça
melhor o encarecimento
da diferença, não tiremos os olhos da figura de Sara.
Quando o anjo trouxe a embaixada à Senhora, depois de lhe chamar cheia de graça, e bendita entre todas as mulheres, lhe disse que seria Mãe de um Filho tão grande, que se chamaria Filho de Deus, e herdaria o cetro de Davi seu Pai. E a Virgem, que sobre todos os títulos estimava o de virgem, depois de replicar o que podia fazer dúvida à sua pureza, as palavras com que aceitou a embaixada foram: Ecce ancilla Domini: Eis aqui a escrava do Senhor. Pois agora, quando pela herança do Filho, como Filho de Davi, lhe pertencia o senhorio de Israel; e agora quando pela herança do mesmo Filho, como Filho
de Deus, lhe pertencia o senhorio do mundo, se chama a Virgem Maria escrava? Sim, agora. Quando se viu senhora do reino, e senhora do mundo, então se chamou escrava: para que julguem os senhores e os escravos, se estimará mais os escravos, ou os senhores. Sara também mudou o nome, mas nunca deixou o de senhora; porque dantes chamava-se Sarai, que quer dizer senhora minha, e depois chamou-se Sara, que quer dizer senhora. E quem tão pegada estava ao nome e domínio de senhora, não é muito que fosse de tão dura condição, e tão rigorosa com os escravos: porém Maria, que levantada sobre os dous maiores domínios e senhorios da Terra e do Céu,
troca o nome de senhora pelo de escrava; vede se amará e estimará
muito aqueles de quem tanto lhe agrada o nome?
Esta é a consequência que naturalmente se infere de a Senhora tomar o nome de escrava; mas ainda não está declarada a causa por que o tomou. Para a
Senhora aceitar o que o anjo
lhe propunha, e para encarnar o Verbo Divino em suas entranhas, bastava dizer: Fiat mihi secundum verbum tuum. E assim foi; porque no mesmo ponto em que pronunciou estas últimas palavras,
se obrou o mistério da encarnação. Pois se bastava dizer: Fiat mihi secundum verbum tuum; por que não só acrescentou, mas antecipou ao fiat o ecce ancilla; e antes de ser mãe se chamou escrava? É reparo de São Tomás, arcebispo de Valença: ao qual com novo e esquisito pensamento satisfaz desta sorte: Grandi ergo mysterio, altissimo que Deitatis instinctu conceptura Deum sui meminit ancillatus, ut orientem a se Filium mundi obsequio manciparet. Sabeis por que a Virgem Maria se reconheceu e confessou por escrava antes de conceber ao Filho de Deus? A razão e mistério altíssimo foi porque o parto, segundo as leis, não segue a condição do pai, senão a da mãe: Partus sequitur ventrem. E quis a Senhora por esta declaração antecipada que o Filho, que havia de ser seu, como Filho de escrava, nascesse também escravo nosso. Enquanto Filho de seu Pai, é Senhor dos homens; mas enquanto Filho de sua Mãe, quis a mesma Mãe que fosse também escravo dos mesmos homens. Este foi o intento da Senhora no que disse, e no tempo e modo em que o disse: e isto é o que significa a palavra forense mancipavit, da qual se deriva mancipium: Ut orientem a se Filium mundi obsequio manciparet.
Quando a Senhora disse: Ecce ancilla Domini, acabava de ouvir ao anjo, que o Filho
que d’Ela havia de nascer, reinaria na casa de Jacó: Et regnabit in domo Jacob. E daqui se vê na matéria de escravos outra grande diferença entre uma Senhora e outra senhora, entre Maria e Sara. Sara, porque Ismael é escravo, não quer que trate com seu filho, sendo seu irmão: e Maria, porque seu filho há de ser irmão dos homens, para que os trate, e sirva melhor, quer que seja seu escravo. Sara, para estabelecer a casa de Abraão em Isaque, lança a mãe escrava, e mais o filho escravo fora de casa: e Maria, para estabelecer a casa de Jacó em Cristo, mete a Mãe escrava, e mais o Filho escravo dentro na mesma casa. Digo na mesma casa, porque a casa de Jacó era a mesma de Abraão. E daqui podemos entender com novo pensamento que os antigos rigores de Sara, contra os escravos, eram profecia dos favores com que neste tempo os havia de admitir e tratar a Virgem Maria. Notai as palavras: Ejice ancillam hanc, et filium ejus. Não diz que deite fora de casa a escrava, senão aquela escrava: Ancillam hanc; porque havia de vir tempo em que houvesse outra ancila e outra escrava, a qual tivesse outro filho também escravo, os quais se não haviam de lançar da casa
de Abraão, senão conservar-se e venerar-se nela; para que por seu meio se conseguissem as bênçãos e felicidades, que Deus ao mesmo Abraão tinha prometido. E isto baste quanto ao primeiro testemunho.
III
Ao testemunho da Mãe de Deus, segue-se o do Filho de Deus. Sendo o Filho de Deus igual a seu Eterno Padre em tudo, para mostrar que esta igualdade era própria, e não alheia, natural e não adquirida ou roubada, quis por amor de nós, não fazer, senão fazer-se o que não era. E para se fazer o que
não era, que forma tomaria fora de si mesmo? De quanto
Deus tinha criado
na Terra, tomou o melhor, que era a natureza humana; e de quanto
os homens tinham inventado na mesma Terra, tomou o pior, que era a condição de escravo: Qui cum in forma Dei esset, non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus. São palavras do Apóstolo
São Paulo, nas quais com razão encarece tanto este fazer-se Deus escravo, que lhe não chama fazer-se, senão desfazer-se: Exinanivit semetipsum. Não porque Deus deixasse de ser o que era; mas porque uniu o que infinitamente era, ao
que não só infinitamente, mas mais ainda que infinitamente, distava do seu próprio ser. O ser do homem dista infinitamente do ser de Deus, e o ser, ou não ser do escravo, de outra segunda distância pouco menos que infinita.
E quando o Filho de Deus se não desprezou de ser escravo; quem haverá que se atreva a desprezar os escravos?
Tudo o que no escravo pode causar desprezo, coube em Deus; porque quando tomou a forma de escravo, formam servi accipiens, não a tomou, como dizem, pro forma, senão com todas as formalidades. No Cenáculo
servindo como escravo
a homens de baixa condição no exercício mais baixo: Misit aquam in pelvim, et coepit lavare pedes: na prisão do Horto sendo reputado por escravo fugitivo e ladrão: Tanquam ad latronem existis comprehendere me? Quotidie apud vos eram: na traição de Judas vendido como escravo, e por
vilíssimo preço: Constituerunt ei triginta argenteos: na remissão a Caifás manietado como escravo, ou, como cá dizeis, amarrado: Misit eum ligatum ad Caipham: no Pretório açoutado como escravo, e cruelissimamente açoutado: Flagellis caesum: nas ruas públicas de Jerusalém como escravo com a carga mais pesada e mais afrontosa às costas: Bajulans sibi crucem: no Calvário como escravo despido: Acceperunt vestimenta ejus. E finalmente como escravo e mau escravo, pregado e morto em uma cruz, que era o suplício próprio de escravos. E se estes são os maiores abatimentos, a que pode chegar
o estado da servidão; quem haverá, se tem fé, que se atreva a desprezar no seu escravo o que vê no seu Deus?
Para remir o gênero humano bastava que o Filho de Deus se fizesse homem: e como os homens pervertendo
a igualdade da natureza a distinguiram com dous nomes tão opostos, como são os de senhor e escravo, bem pudera o Filho de Deus contentar-se com se fazer homem do predicamento dos senhores. E por que não quis? Pela razão que deu São Paulo: Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit, formam servi accipiens. O Apóstolo diz que se o Verbo se não fizesse homem na forma de escravo, seria furto que faria à divindade de seu Pai: e eu acrescento que também faria furto à vontade e exemplo de sua Mãe. Ora vede. Quem visse que o Filho
de Deus recebia
a natureza humana, e se
recebia com ela na forma e condição de escrava, poderia bem cuidar, que se casara a furto: mas nem foi a furto do Pai, nem a furto da Mãe. Não a furto do Pai; porque do mesmo entendimento (que era do Pai, e mais do Filho) saiu o arbítrio, com que o Filho tomou a forma de escravo: Non rapinam arbitratus est, formam servi accipiens. Nem a furto da Mãe; porque assim o confirmou a Mãe assinando o contrato com a firma de escrava: Ecce ancilla Domini. E se o Filho de Deus, por arbítrio de seu Pai, por eleição de sua Mãe, e por inclinação e vontade própria, havendo de se fazer
homem, se não fez do predicamento dos senhores,
senão da condição
dos escravos. Vejam lá os que ainda no serviço da Mãe de Deus, se separam dos escravos, se favorecerá mais a mesma Senhora aqueles com quem se quis parecer seu Filho, ou aos que se desprezam de se parecer com eles?
Grande caso é que cabendo a forma de Deus, e a forma de escravo em uma só Pessoa, e essa divina (Cum in forma Dei esset, formam servi accipiens) um homem com nome de senhor, e outro com nome de escravo, não caibam em uma grande
congregação, e por isso se
houvessem de separar em duas confrarias?
IV
Depois do testemunho da Mãe de Deus, e do Filho de Deus, só resta o do mesmo Deus, isto é, de Deus Padre. Quis Deus Padre, que assim como seu Filho tinha Pai, tivesse também Mãe, e para achar em todo o mundo, e em todos os séculos pessoa digna de tão alta e soberana assunção, já sabemos que a não buscou nas cortes dos assírios,
persas, gregos, ou romanos, entre as princesas
de sangue imperial, nem a achou na mesma Jerusalém, cabeça da verdadeira fé naquele tempo, senão em Nazaré, povo de poucas casas, e na mais humilde delas. Ali estava escondida aos olhos
do mundo aquela donzela mais divina que humana, que só mereceu ser digna Mãe de Deus Homem. Mas por que motivos? Nela tinha o mesmo Deus depositado e juntas todas as perfeições e graças,
que divididas fazem bem-aventuradas no Céu, e ilustres na Terra ambas as naturezas, humana e angélica. Qual destas perfeições, pois, e qual destas graças foi a que mais encheu o entendimento, e cativou a vontade divina, para que Maria unicamente fosse a bendita entre todas as mulheres, e entre todas A escolhesse Deus para Mãe de seu Filho? A mesma Senhora o disse: Quia respexit humilitatem
ancillae suae: Porque pôs Deus os olhos na humildade e baixeza de sua escrava. Vede, que diferentes são os olhos de Deus dos nossos. Mas agora pergunto eu: E poderia a Mãe de Deus desprezar o que Deus estimou, e reprovar o que Deus elegeu, e onde Deus pôs os olhos, deixar Ela de pôr também os seus? Claro está que não. Logo se Deus não pôs os olhos na majestade e grandeza das senhoras, senão na humildade e baixeza da
escrava; seguro
têm os escravos, ainda em comparação de seus
senhores, o maior favor, e o maior agrado dos olhos da Mãe de Deus.
E se vos não contentais com a razão desta consequência, que todos veem, eu vos hei de dar ainda outra, que ninguém imagina. A razão que todos veem, é que não podem os olhos da Senhora deixar de imitar e seguir os olhos de Deus. E a que eu digo que ninguém imagina, qual será? É, que quando a Mãe de Deus põe os olhos, olha pelos olhos de seu Filho. É caso verdadeiramente admirável, e de grande consolação para todos os devotos da Virgem Maria, o que agora direi. Em Delfes, cidade de Holanda, no dia do nascimento da Senhora, cantavam a Salve Regina no coro certas religiosas, de que era uma, Santa Gertrudes, e quando chegaram àquelas palavras, Illos tuos misericordes oculos ad nos converte, em que pedimos à Mãe de Deus incline a nós seus misericordiosos olhos; viu a santa, que tendo a imagem da Senhora seu Bendito Filho no braço esquerdo, movia o direito e aplicando os dedos aos olhos, que o Menino Jesus tinha levantados, os inclinava brandamente, para que os pusesse nas monjas, que A invocavam. E porque não ficasse em dúvida, o que significava a visão, disse a Soberana Virgem a Gertrudes: Isti sunt misericordiosissimi oculi, quos ad omnes me invocantes
salubriter
possum
inclinare, ut et uberrimum fructum consequantur salutis aeternae: estes são os misericordiosíssimos olhos, que eu posso inclinar, e inclino sobre todos os que me invocam, para que por meio de sua saudável vista alcancem a vida eterna. De sorte que, quando a Mãe de Deus põe os olhos em nós, não só imita, e segue os movimentos e inclinações de sua vista, mas olha pelos olhos do mesmo Filho Deus. E se os olhos de Deus, como diz a mesma Senhora, não olharam para a nobreza e soberania das senhoras, senão para a humildade e baixeza da escrava: Respexit humilitatem ancillae suae: ditosa a humildade e baixeza dos que sois escravos, pois não podem deixar de se inclinar piedosamente a ela os olhos de Deus, e de sua Mãe.
Só pode ter esta verdade uma réplica, não para vós, senão para os que sabem mais
que vós. Dirão que o Respexit humilitatem ancillae suae, se entende da virtude e excelência
da humildade, e não da humildade e baixeza da condição. E posto que a humildade, e baixeza da condição se acham em todos os escravos, a virtude e excelência
da humildade, que na Mãe de Deus foi sumamente perfeita,
ainda nos que professam perfeição, é muito rara. Logo ainda que sejais escravos, como a Senhora se chamou escrava, não basta a humildade e baixeza da condição, que traz consigo este nome, para que os olhos de Deus, e da Mãe de Deus se ponham mais benignamente em vós. Ora não vos desconsoleis, que se esta réplica tem por si muitos e graves autores, o sentido em que eu vos expliquei
as palavras da Senhora, é fundado no mesmo texto, cuja autoridade prevalece a todas. Onde a Vulgata lê humilitatem ancillae suae, o texto original tem exiguitatem, parvitatem, como verte
Vatablo, nihileitatem. De maneira que a palavra humilitatem não significa
humildade, enquanto
é virtude da pessoa, senão
humildade, enquanto é baixeza da condição pessoal, e vileza dela. Assim o entendem, fundados na propriedade do texto, o mesmo Vatablo, Isidoro Clário, Jansênio, Caetano, e todos os expositores modernos mais literais, como já o tinha entendido Eutímio, conforme a significação natural da palavra e língua grega, em que escreveu o evangelista São Lucas e a quem ditou o seu Cântico a mesma Virgem Maria. E ser esta a verdadeira inteligência se confirma com a razão; porque o intento da Senhora, como sumamente humilde, não foi engrandecer a sua virtude, senão abater a sua indignidade. Assim, que a baixeza e vileza própria da condição dos escravos, essa é a que levou após si os olhos de Deus, quando a Senhora
se chamou escrava:
Quia respexit
humilitatem ancillae
suae.
E para que se veja, finalmente, o lugar que têm na estimação da mesma Senhora os escravos,
não obstante a baixeza de sua condição, ainda comparados com o nascimento e nome dos que se chamam seus senhores; nos irmãos do nosso tema o temos, Judam, et fratres ejus. Vendo Raquel que a fecundidade de Lia lhe tinha dado quatro filhos, e que ela era estéril, para suprir este desar, que naquele tempo era afrontoso, pediu a Jacó que admitisse ao tálamo a sua escrava Bala, para que dela ao menos tivesse filhos. Assim como Raquel o traçou, assim sucedeu. E como desta
substituição nascessem dous filhos a Bala, um chamado Dã, outro Neftali, a mesma Raquel, que a propósito do sucesso lhe tinha posto os nomes, disse estas notáveis palavras: Comparavit me Dominus cum sorore mea, et invalui: ora graças sejam dadas a Deus, que me igualou com minha irmã, e eu prevaleci. Quem não soubesse que Lia tinha já quatro filhos, e não adotivos, senão naturais e próprios,
faria bem diferente
conceito desta, que Raquel chamou primeiro igualdade e depois vitória. Mas se os filhos de Lia eram quatro, e os de Bala só dous, como diz Raquel, que igualou a sua irmã, e que a venceu! Para igualar, era necessário que fossem tantos os filhos de Bala como os de Lia; e para vencer era necessário que fossem mais: pois se não eram mais, nem tantos, senão a metade menos, como diz Raquel, não só que igualou, senão que venceu:
Comparavit me Dominus cum sorore mea, et invalui? O pensamento com que isto disse Raquel, ela o saberia: eu só sei que a mesma Raquel era figura da Virgem Maria, e que os filhos de Lia eram filhos de senhora, e os de Bala filhos de escrava: e era tal a conta e a diferença, que Raquel fazia entre os filhos da escrava e os filhos da senhora, que sendo os da senhora quatro, e os da escrava dous, estes dous para com ela no número eram outros tantos, e na estimação
muitos mais; no número outros tantos, e por isso disse que Deus a igualara; e na estimação muitos mais, e por isso disse que ela prevalecera. Aplicai vós, que eu não quero fazer mais largo este primeiro ponto.
V
O segundo, e segunda causa da grande distinção que fazem entre si e os escravos os que se chamam senhores, é como dizíamos, a cor preta. Mas se a cor preta pusera pleito à branca, é certo que não havia de ser tão fácil de averiguar a preferência entre as cores, como a que se vê entre os homens. Entre os homens dominarem os brancos aos pretos, é força, e não razão ou natureza. Bem se vê onde não tem lugar esta força, nem a cor é vencida dela. Quando os portugueses
apareceram a primeira
vez na Etiópia, admirando os etíopes neles a polícia europeia, diziam: tudo o melhor deu Deus aos Europeus, e a nós só a cor preta. Tanto estimam mais que a branca a sua cor! Por isso, assim como nós pintamos aos anjos brancos e aos demônios negros; assim eles, por veneração, aos anjos pintam negros, e aos demônios, por injúria e aborrecimento, brancos. Deixando porém os que podem parecer apaixonados, ninguém haverá que não reconheça e venere na cor preta duas prerrogativas muito notáveis. A primeira, que ela encobre melhor os defeitos, os quais a branca manifesta e faz mais feios: a segunda, que só ela não se deixa tingir de outra cor, admitindo a branca a variedade de todas: e bastavam só estas
duas virtudes para a cor preta vencer, e ainda envergonhar a branca. Mas das cores só os olhos podem ser juízes. Vejamos o que eles julgam ou experimentam. Os filósofos
buscando as propriedades radicais com que se distinguem estas duas cores extremas dizem que da cor preta é próprio unir a vista, e da branca disgregá-la e desuni-la. Por isso a brancura da neve ofende e cega os olhos. E não é isto mesmo o que com grande louvor dos pretos, e não menor afronta dos brancos, se acha em uns e outros? Dos pretos é tão própria e natural a união, que a todos os que têm a mesma cor, chamam parentes; a todos os que servem na mesma casa, chamam parceiros: e a todos os que se embarcaram no mesmo navio, chamam malungos. E os brancos? Não basta andarem meses juntos no mesmo ventre, como Jacó e Esaú, para se não aborrecerem; nem basta serem filhos
do mesmo pai e da mesma mãe, como Caim e Abel, para se não matarem. Que muito logo, que sendo tão disgregativa a cor branca, não caibam na mesma congregação os brancos com os pretos?
E para que vejamos quão diferente é a distinção que a Virgem, Senhora nossa, faz entre uns e outros, ouçamos também neste ponto a Deus, e à mesma Mãe de Deus. Havendo Deus criado o primeiro homem, pôs-lhe por nome Adão, que quer dizer ruber, vermelho, por ser esta a cor do barro do campo damasceno, de que o formou. Tão importante é à altiveza humana a lembrança de seus humildes princípios. Mas se o intento de Deus era formar-lhe o nome da mesma matéria, de que o tinha formado, e a matéria era o barro vermelho, por que lhe não deu o nome do barro, senão o da cor, ruber? Porque no barro não havia perigo de se desigualarem os homens; na cor sim. No barro não; porque todos os filhos de Adão se haviam de resolver na mesma terra. Na cor sim; porque uns haviam de ser de uma cor, e outros de outra. E não quis Deus que aquela cor fosse alguma das extremas, quais são a branca e a preta, senão outra cor meia e mista que se compusesse de ambas,
qual é a vermelha; para que na mesma mistura e união da cor se unissem também os homens de diversas cores, ainda que fossem tão diversas como a branca e a preta. Por isso no mesmo nome de Adão lhe distinguiu também Deus as terras, em que, segundo a qualidade de cada uma, se lhe haviam de variar
as cores. É advertência engenhosa de Santo Agostinho, o qual notou que as quatro letras, de que se compõe o nome de Adão, são as mesmas que no texto grego dão princípio às quatro partes do mundo, oriente, ocidente, setentrião, meio-dia. E como os homens divididos pelas mesmas quatro partes do mundo, os da Europa, os da África, os da Ásia, e os da América, conforme os diferentes climas haviam de nascer de diferentes cores: traçou a sabedoria do Supremo Artífice, que assim como em todo o nome de Adão, Ruber, estava rubricada a memória do Pai, e sangue comum de que descendiam; assim a cada letra do mesmo nome respondessem os diversos climas do mundo, que lhe haviam de variar as cores, para que na variedade da cor
se não perdesse
a irmandade do sangue.
Por espaço de dous mil anos foram da mesma cor todos os homens, até que habitando as duas
Etiópias os descendentes do segundo filho de
Noé começaram muitos deles a ser pretos.
Mas acudindo Deus à diferença que podia causar nos ânimos esta
diferença das cores, logo na Lei escrita, e no mesmo Legislador dela honrou com tal igualdade a ambas, que nem os pretos tivessem que invejar na branca, nem os brancos que desprezar na preta. Na Lei mandava Deus, que o cordeiro, ou cordeiros, que
se lhe oferecessem, fossem inviolavelmente
imaculados. Assim se prescreve em todos os ritos do Êxodo, do Levítico, dos Números. E em que consistia o ser imaculado
o cordeiro? Cuidam muitos que consistia em ser extremadamente
branco, que nem sinal nem mancha alguma tivesse de preto. Mas não eram estas as manchas, ou máculas que Deus proibia. Não estava a mancha na cor, senão no corpo da vítima. Se a inteireza natural do corpo do cordeiro
não tinha defeito, ou deformidade alguma, ainda que fosse em uma só unha, era imaculado. E quanto à cor, ou fosse todo branco, ou todo preto, ou branco com parte de preto, ou preto com parte de branco, igualmente era aceito a Deus e digno de seus altares. Immaculatus esse debebat, id est, integer, et sine vitio corporis: poterat tamen esse albus, niger, et habere maculas albas, vel nigras: comenta o douto A Lápide. De sorte que por ser branco ou preto, ou em todo, ou em parte,
não deixava o cordeiro de ser imaculado, sendo figura do mesmo Deus feito homem: para que os homens se não desonrassem, ou tivessem por mancha em si, o que Deus não tinha por mancha no seu retrato. Isto quanto à Lei.
Quanto ao Legislador, ainda foi maior o exemplo não só da providência, mas da severidade divina, no rigor com que castigou
o desprezo desta indiferença das cores. Não reparando nela Moisés, como homem de tão sublime juízo, casou-se com a filha de um rei da Etiópia, que ele tinha vencido em batalha, por isso chamada etiopisa. Não levando porém a bem este casamento Maria, irmã do mesmo Moisés, e murmurando dele com Aarão, que era o irmão maior; Deus, que costuma acudir pelos que não acodem por si, como vos parece que emendaria, ou desfaria esta murmuração? É caso verdadeiramente notável! Não tinha bem acabado de murmurar Maria, quando apareceu de repente coberta de lepra; e como leprosa, conforme a Lei, foi lançada fora dos arraiais. As palavras
do texto são estas: Et ecce Maria apparuit candens lepra, quasi nix: e subitamente Maria apareceu coberta de lepra branca como a neve. Reparai muito nesta brancura e nesta neve. Bem pudera Deus castigar a murmuração de Maria na língua, emudecendo-a, ou com outro castigo e enfermidade maior e mais perigosa que a lepra: mas por que quis que fosse lepra particularmente, e tal lepra que a fizesse branca como a neve:
Candens quasi nix? Para que respondesse a pena direitamente à culpa, e para que aprendesse Maria na sua brancura a não desprezar
a pretidão da etiopisa. Como se dissera Deus: já que nela desprezais a sua cor, olhai agora para a vossa: nela a sua pretidão é natureza, em vós a vossa brancura é lepra. Oh quantas brancuras se prezam de muito
brancas, que são como a da irmã de Moisés! Quanto melhor lhe fora ser negras sem lepra, que brancas e leprosas! Assim castigou Deus naquela Maria os desprezos da Etiopisa; e assim nos ensinou, pelo contrário, quanto preza e quanto estima a todos os etíopes a outra Soberana Maria, que como bendita entre todas as mulheres, nasceu para emendar os erros de todas.
VI
Dos exemplos de Deus passemos aos de seu Filho, e vejamos quanto estimou e estima Cristo os pretos.
É observação em que porventura não tendes reparado, a que agora direi. Digo que estima tanto o Filho de Deus os pretos, que mil anos antes de tomar o nosso sangue, deu aos pretos o seu. Vejamos primeiro a verdade do caso, e depois iremos ao cômputo dos tempos. O Filho de Deus tomou o nosso sangue, quando encarnou e se fez homem: e deu o seu aos pretos, quando lhes deu o sangue que Ele havia de tomar, que era o de Davi. E foi desta maneira. Reinando Salomão, filho de Davi, levada da fama de sua sabedoria veio a vê-lo e ouvi-lo a rainha Sabá, que o era da Etiópia. E como Salomão tivesse por mulheres setecentas rainhas, recebeu também no número delas, posto que de cor preta, a mesma rainha Sabá, de quem houve um filho,
o qual nasceu depois na Etiópia, e a mãe lhe pôs o nome de seu avô, e se chamou Davi. Sendo já de vinte e dous anos este príncipe, desejoso de ver e tomar a bênção a seu pai, veio a Jerusalém, onde Salomão não só o reconheceu por filho, mas com todas as cerimônias e insígnias reais o fez ungir no Templo por rei da Etiópia, sendo os ministros desta solenidade
Sadoque e Joás, em quem estava o sumo sacerdócio naquele tempo. Esta é a origem dos imperadores da Etiópia, mil anos,
como dizia, antes da encarnação do Filho de Deus; porque o mistério altíssimo da encarnação foi obrado no ano 41 do império de Augusto César, quando se contavam quatro mil e cinquenta e um anos da criação do mundo: e a vinda da rainha Sabá a Jerusalém tinha sido no ano 24 do reinado de Salomão, quando o mesmo mundo desde sua criação contava somente três mil cinquenta e três
anos. De sorte que quando o Filho de Deus, fazendo-se homem, tomou o sangue da geração de Davi, já havia mil anos que tinha dado o mesmo sangue aos pretos da Etiópia no seu primeiro rei ou imperador (porque até então eram governados
pelas rainhas): em memória desta descendência por tradição antiquíssima, e sempre continuada, se intitula hoje o mesmo imperador: Filius David,
filius Salomonis,
filius columnae
Sion, filius de semine Jacob, filius magnus Mariae.
Esta última cláusula de grande filho de Maria acrescentaram
os imperadores da Etiópia depois do nascimento de Cristo, o qual tantos séculos antes tinha honrado os etíopes com os mesmos nomes ou títulos, com que hoje se intitula no Livro de sua geração. Que diz São Mateus, ou que nome dá ao Livro da geração de Cristo? Liber generationis Jesu Christi, filii David, filii Abraham: Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, e filho de Abraão. E deste mesmo Davi, e deste mesmo Abraão, de quem Cristo hoje se chama filho, por descender deles por quarenta e duas gerações; destes mesmos, e não de outros, se chamavam também os etíopes, filhos de Davi, e filhos de Abraão, não por quarenta e duas gerações, senão por quinze somente, que tantas conta o mesmo São Mateus
até Salomão. Filhos de Davi, porque todos os etíopes conservaram sempre o nome de Davi, como hereditário
em seus príncipes: e filhos de Abraão,
porque todos tomaram dele a circuncisão.
E se buscarmos a razão, motivo ou merecimento destes tão antecipados favores do Filho de Deus aos etíopes, o mesmo Davi o tinha já cantado, quando disse: Aethiopia praeveniet manus ejus Deo. Onde a palavra praeveniet é o mesmo que prima veniet; porque a Etiópia, e os etíopes seriam os primeiros entre todos os gentios, que receberiam a fé do verdadeiro Deus. E declara
o profeta com excelente propriedade e energia este reconhecimento e aceitação da fé, dizendo, como se lê no hebreu, que estenderiam
a Deus as suas mãos, porque este é o estilo ou ação natural, como vemos, com que os mesmos etíopes novamente trazidos das suas terras reconhecem o domínio dos que têm por senhores, estendendo para eles as mãos, e batendo-as. Grande prerrogativa, e singular por certo
desta nação, que quando todas as outras adoravam muitos deuses (chegando esta multidão em todo o mundo a número de trinta mil, como refere Hesíodo) ela só reconhecesse a unidade em Deus, sem a qual não pode haver divindade. E que direi da mesma divindade unida à humanidade em Cristo, em cuja notícia e pregação se anteciparam os etíopes aos mesmos Apóstolos? Quando os Apóstolos repartiram entre si o mundo, coube a São Mateus a Etiópia; mas quando lá chegou São Mateus, que foi no ano 44 do nascimento de Cristo, já havia nove anos que o eunuco da rainha Cândace, guarda-mor do seu erário, convertido e batizado por São Filipe, lhe tinha levado e mostrado os tesouros do Evangelho, sendo ele o primeiro apóstolo da sua pátria, da mesma nação, da mesma língua, e da
mesma cor que os outros etíopes.
Mas não foi esta ainda a primeira e mais antecipada diligência com que os pretos se adiantaram a pregar a fé e veneração de Cristo e sua Santíssima Mãe. Os três reis orientais, que vieram adorar o Filho de Deus recém-nascido em Belém, é tradição da Igreja que um era preto. Mas de que terra ou nação fosse, andou em opiniões muitos séculos, até que no ano de 1499 descobriram os nossos argonautas da Índia, que tinha sido o rei de Cranganor. Este rei, pois tão preto como o pintam,
mudando o nome que dantes tinha, se chamou Cheriperimale, que quer dizer Terceiro, por ser ele o terceiro que seguindo a estrela se ajuntou aos dous naquela prodigiosa viagem. Chegaram, acharam o Rei que buscavam, e como a rei, como a Deus, e como a homem, lhe ofereceram, prostrados a seus pés,
os misteriosos tributos. Voltando para suas terras e reinos, o que fez o de Cranganor, foi edificar logo um templo, e no meio dele uma capela, a que se subia por muitos degraus, na qual colocou uma imagem da Virgem Maria com o Menino Deus nos braços, como refere São Mateus, que o acharam: Invenerunt puerum cum Maria Matre ejus. A este monumento de religião acrescentou por lei
ou rito perpetuamente estabelecido que todas as vezes que se nomeasse o santíssimo nome de Maria, todos se prostrassem por terra; e assim o fizeram os sacerdotes do mesmo templo em presença do nosso
Gama, e de todos os que com ele desembarcaram na mesma cidade. Agora vede se tenho eu razão para dizer que no culto e veneração pública de Cristo, e sua Santíssima Mãe, se adiantaram os pretos aos mesmos Apóstolos. O primeiro templo que os Apóstolos levantaram à Virgem Maria em sua vida, foi o do Pilar de Saragoça pelo apóstolo Santiago. Mas quando? No ano 20 do império de Tibério, que era o ano 36 do nascimento de Cristo. De maneira que quando o primeiro apóstolo, à instância da mesma Mãe de Deus, lhe edificou a primeira capela em Espanha, já o rei preto, com seus vassalos da mesma cor, lhe tinham edificado templo na Índia. Para que se veja se esta
antecipada devoção dos pretos mereceu tão antecipados favores de Cristo; e se à vista deles merecem ser desprezados dos que se chamam seus senhores. E senão, digam-me os mesmos portugueses, qual era a sua religião naquele tempo, e muitos anos depois? O que se acha em pedras e inscrições antigas é que dedicaram templo a Octaviano Augusto, templo a Trajano, e a todos os deuses; templo a Ísis, templo e estátuas a Tibério e sua mãe Lívia, templo e estátuas a Nero e sua mãe Agripina. E quando os portugueses, sem se lhe fazerem as faces vermelhas na sua brancura, reconheciam divindade nestes monstros da ambição e de todos os vícios, os pretos nos seus altares adoravam o verdadeiro Filho de Deus e a verdadeira Mãe do mesmo Filho.
VII
Mas ouçamos por fim a estimação que faz da cor preta, não só neles, mas em si, a mesma Mãe de Deus: Nigra sum, sed formosa, Filiae Jerusalem, sicut tabernacula Cedar, sicut pelles Salomonis. Nestas palavras se defende a Pastora dos Cantares, respondendo às filhas
de Jerusalém, as quais como criadas na corte, e Ela no campo, e como prezadas de muito brancas, a notavam de preta.
Diz, pois, que ainda que preta, nem por isso deixa de ser formosa: e o prova principalmente com as famosas tendas de Salomão, quando saindo da corte morava no campo: Sicut pelles
Salomonis. Assim como as peles que cobrem as tendas de Salomão, são pretas e muito formosas, assim pode haver formosura, e grande formosura em couros pretos.
E se este dote da natureza, filhas de Jerusalém, não está vinculado à cor branca, de que tanto vos prezais, notai-me embora de preta, mas não de feia,
porque
ainda que sou preta, sou formosa: Nigra
sum, sed formosa. Até aqui a que em trajo pastoril representava a Virgem, Senhora nossa, a qual
com as mesmas palavras confessa ser a cor
preta
natural da sua pátria, e sua; porque a Palestina, como vizinha ao Egito e à África, por razão do clima mais exposto aos ardores do sol, participa da cor com que ele costuma tostar e escurecer a brancura, como logo acrescentou a mesma Pastora: Nolite me considerare, quod fusca sim, quia decoloravit me sol. Assim lemos em Nicéforo, que aquele soberano rosto, em que Dionísio Areopagita reconheceu raios de divindade, entre as duas cores extremas, propendia mais para a preta. O mesmo diz Santo Epifânio. E mais claramente o demonstra o retrato
natural da mesma Virgem Maria, pintura da mão de São Lucas, que hoje se vê, e venera em Roma na Basílica de Santa Maria Maior, como
um dos mais preciosos
tesouros daquele famosíssimo
santuário.
Cousa é porém muito digna de reparo que neste epitalâmio, escrito pela sabedoria de Salomão, nunca a Senhora se chamasse formosa, senão depois de se chamar preta. Catorze vezes
por diversos modos, e com diversos encarecimentos celebra o esposo a sua formosura, e lhe chama formosa: mas a Senhora não se atribuiu este louvor, de que tanto se gloriam, ainda as que o não merecem, senão uma só vez, e quando juntamente disse que era preta: Nigra sum, sed formosa. Seria porventura para escurecer com estas sombras a mesma formosura? Não, diz Santo Ambrósio; senão para a engrandecer e realçar mais: Praemisit nigram, ut augeret decoram. E se buscarmos a razão desta consequência, que não parece fácil; na semelhança das mesmas tendas de Salomão a temos excelentemente declarada. Porque sendo por fora lavradas com todos os primores da arte na cor preta, e por isso muito formosas à vista; por dentro eram recamadas de ouro, pérolas, e diamantes, cujos reflexos na oposição daquela cor brilhavam mais, e faziam um admirável composto de maior graça e formosura. E desta maneira sendo o preto esmalte do branco, e o escuro realce do claro, se pareciam muito vistosas, no que mostravam por fora,
muito mais formosas e preciosas eram no que cobriam por dentro: Praemisit nigram, ut augeret decoram.
Notem isto as pretas e os pretos, para que os não desconsole, ou desanime a sua cor: e notem
também o mesmo as brancas e os
brancos, para sua confusão, se tendo a brancura só por fora, forem negros por dentro. Mandava Deus no Levítico que o cisne, como ave imunda, se lhe não sacrificasse, nem ainda se comesse. E em que defeito se fundava esta lei, se o cisne, cantor de suas próprias exéquias, é tão
branco como a mesma neve? Porque por fora tem as penas brancas, e por dentro a carne negra: Cujus plumae licet albae sint, et molles, caro tamen est dura, nervosa, et nigra. Olhe para si a brancura, e veja se responde ao interior, ou se é hipocrisia. O carvão coberto de neve, nem por isso deixa de ser carvão: antes junto dela é mais negro. Por isso Cristo, Senhor nosso, comparava
os escribas e fariseus às sepulturas branqueadas:
Vae vobis scribae, et pharisei hypocritae: quia similes estis sepulchris dealbatis. E em que consistia a hipocrisia daquelas sepulturas vivas? Em que a brancura de fora
lhe dava aparências de formosura,
e por dentro estavam cheias de corrupção e horrores: Quae a
foris parent hominibus speciosa, intus vero plena sunt ossibus mortuorum, et omni spurcitia. Vede agora se a Mãe de Deus, para estimar mais os brancos que os
pretos, se deixará enganar das aparências, ou hipocrisias da cor!
Lá disse Deus a Samuel que Ele não era como os homens; porque os homens olham para o rosto, e Deus para os corações: Homo videt ea, quae parent, Dominus autem intuetur cor. Pois assim como nos olhos de Deus, assim também nos de sua Mãe, cada um é da cor do seu coração. E para
que vejamos quão pouco importa, para maior estimação da Senhora, a cor ou aparência do rosto, na história do nosso tema o temos. Vendo Lia que Raquel tinha filhos da sua escrava Bala, quis ela também ter filhos da sua escrava Rasfa; e parece que sem razão. Que Raquel vendo-se estéril, busque esta consolação, ou alívio à sua infecundidade, perdão merece a sua dor: mas que Lia achando-se com quatro filhos legítimos de Jacó, os queira também ter da sua escrava Rasfa, apetite parece alheio de todo o bom juízo. Quanto mais que as cores e feições do rosto de Rasfa eram tão pouco para estimar, como significa o seu próprio nome, que quer dizer, Contemptum oris, desprezo do rosto. Pois de uma escrava, que na cara e na cor trazia o próprio desprezo, quer Lia ter filhos? Sim. Porque entendeu, e esperou, que os filhos da escrava, posto que de tão desprezada cor, podiam fazer mais ditosa a sua casa, que os da mesma Senhora. E assim foi. Nasceu o primeiro filho a Rasfa, e pôs-lhe
Lia por nome Felicidade, chamando-lhe Dã: Dixit feliciter: et appellavit nomen ejus Dan. Nasceu o segundo filho à mesma Rasfa, e pôs-lhe a mesma Lia por nome Bem-Aventurança, chamando-lhe Aser: Dixit: Hoc pro beatitudine mea: Beatam quippe me dicent mulieres. Propterea
appellavit eum Aser. Comparai-me agora os quatro
filhos de Lia senhora com os dous de Rasfa escrava, e escrava de cor, e rosto tão desprezado.
Os quatro filhos de Lia senhora eram Rúben, Simeão, Levi, e Judas: e destes quatro os primeiros três foram
amaldiçoados de seu pai, e privados do morgado: e os dous de Rasfa escrava nasceram com tão diferente estrela, que o primeiro a fez felice, e o segundo bem-aventurada entre as mulheres:
Hoc pro beatitudine mea: Beatam
quippe me dicent
mulieres. E parou aqui o encarecimento desta grande diferença? Não. O que depois dele se seguiu daí a muitos séculos, é a mais forte, e apertada conclusão, com que se pode rematar este ponto. Porque quando a Virgem, Senhora nossa, no seu Cântico disse que pelo Filho, de que Deus a tinha feito Mãe, lhe chamariam todas as gerações bem-aventurada, foi tomando da boca de Lia as mesmas palavras com que ela se chamou bem-aventurada pelos filhos da sua escrava Rasfa. Huc allusit Beata Virgo Deipara, cum cecinit: Beatam me dicent omnes generationes, diz o doutíssimo Cornélio. E se a mesma Mãe de Deus mediu os seus louvores pelos da escrava Rasfa, desprezada pelo rosto e pela cor, bem claramente se deixa ver, se pela diferença das cores estimará mais os brancos e menos os pretos.
VIII
Só resta a última razão, ou sem-razão, por que os senhores desprezam os escravos, que é a vileza e miséria da sua fortuna. Oh Fortuna! E que mal considera a cegueira humana as voltas da tua roda? Virá tempo, e não tardará muito, em que esta roda dê volta, e então se verá qual é melhor fortuna, se a vil e desprezada dos escravos, ou a nobre e honrada dos senhores. Muitas vezes tendes ouvido a história
daquele rico sem nome, e do pobre chamado Lázaro. O rico vivia em palácios dourados, e Lázaro ao sol e à chuva jazia na rua: o rico vestia púrpuras e holandas, e Lázaro se estava coberto, era de chagas: o rico banqueteava-se esplendidamente todos os dias, e Lázaro, para matar a fome, não alcançava as migalhas que caíam da sua mesa. Pode haver maior diferença de fortunas? Todos os que passavam, e viam as delícias do rico, invejavam a sua felicidade; e todos os que não tinham asco de pôr os olhos em Lázaro, tinham compaixão da sua miséria. Senão quando chegou ali de repente a morte,
deu um pontapé na roda da Fortuna, e foi tal a volta em um momento, que Lázaro se achou descansando no seio de Abraão, e o rico
ardendo no Inferno. Clamava o triste por remédio, quando já não era tempo de remédio, e pedia uma gota de água, a quem não tinha dado uma migalha de pão. Mas que resposta tiveram os seus clamores? Respondeu-lhe Abraão com este último desengano, e tão justa como tremenda sentença: Fili, recordare, quia recepisti bona in vita tua, et Lazarus similiter mala: nunc autem hic consolatur, tu vero cruciaris: Lembra-te, filho, do outro tempo, e do outro mundo, e não estranharás que na tua fortuna, e na de Lázaro, vejas uma tão grande mudança: tu na tua vida gozaste os bens, e Lázaro padeceu os males; agora tu padeces os males, e ele logra os bens: Fili, recordare. Oh se os ricos, e os Lázaros, não esperaram pela outra vida para se lembrarem do que agora são, e do que podem ser depois!
Digam-me os ricos, quem foi este rico, e os pobres, quem foi este Lázaro? O rico foi o que são hoje os que se chamam senhores: e Lázaro foi o que são hoje os pobres escravos. Não são os senhores os que vivem descansados e em delícias, e os escravos em perpétua aflição e trabalhos? Os senhores vestindo holandas e rasgando sedas, e os escravos nus e despidos? Os senhores em banquetes e regalos; e os escravos morrendo à fome? Que muito logo, que acabada a comédia desta vida, a Fortuna troque as mãos, e que os que neste mundo lograram os bens, no outro padeçam os males; e os que agora padecem os males, depois também eles vão lograr os bens? E se alguém me disser que os escravos, que nesta vida padecem os males, também têm pecados, e os senhores, que logram os bens,
também têm boas obras? Respondo que tais podem ser as boas
obras de uns, e os muitos pecados dos outros, que uns e outros sejam a exceção desta regra. Mas, geralmente falando, a sentença de Abraão é fundada no que ordinariamente sucede. Dá a razão muito adequada São Gregório papa: Mala Lazari purgavit ignis inopiae: bona divitis remuneravit felicitas transeuntis vitae. Lázaro também teria
alguns
pecados, como têm os escravos; mas esses purgaram-se pela sua pobreza, pela sua miséria, pelos seus trabalhos: e o rico também teria algumas boas obras, como hoje têm os senhores; mas essas pagou- lhas Deus com os bens que logram nesta vida. De sorte que os ricos e os senhores têm nesta vida o seu paraíso, e os Lázaros e os escravos o seu purgatório. Ensoberbeçam-se agora os senhores com a sua fortuna, e desprezem a dos seus escravos.
Qual destas fortunas haja de ter mais de sua parte o favor, e amparo da Virgem, Senhora nossa, a mesma Senhora
o declarou canora e canonicamente,
quando disse: Dispersit superbos mente cordis sui. Deposuit potentes de sede, et exaltavit humiles. Esurientes implevit
bonis: et divites dimisit inanes. A razão manifesta desta diferença, e que não tem réplica, é: porque a Virgem Maria é Mãe de misericórdia: o objeto da misericórdia é a miséria: logo para a parte da miséria, e dos que a padecem, há de propender a Mãe da misericórdia. Cada um dos outros dous pontos provamo-los com Deus, com o Filho de Deus, e com a mesma Mãe de Deus: e também o faremos neste: mas brevissimamente, pois não permite mais o tempo.
Pecou o anjo no Céu, e o homem no Paraíso: que resolveu Deus nestes dous casos tão semelhantes? Aos homens remiu, e aos anjos não: Aos homens, como diz Zacarias, abriu as entranhas da sua misericórdia, e com os anjos executou toda a severidade de sua justiça. Pois se os anjos são as mais nobres de todas as criaturas, e os
homens formados
de barro: os anjos de
tão sublime entendimento, e os homens ignorantes: os anjos por natureza imortais, e os homens sujeitos a todas as misérias da mortalidade: por que se compadeceu Deus da caída dos homens, e não reparou
a ruína dos anjos? Por isso mesmo. Porque a vileza,
a ignorância, e a miséria estavam só da parte dos homens, como cá da parte dos escravos, e para onde carregou o peso da miséria,
para ali inclinou a balança da misericórdia: Propter miseriam inopum, et gemitum pauperum, nunc exurgam, dicit Dominus. Isto é o que fez Deus Padre sem perdoar ao sangue de seu próprio Filho.
E o Filho do mesmo Deus, que fez? Ele (bendito seja) o escreveu com a pena do profeta Isaías: Spiritus Domini super me, eo quod unxerit Dominus me. O Filho de Deus feito homem é Cristo, que quer dizer ungido: e diz que O ungiu o Espírito do mesmo Deus: e para quê? Ut mederer contritis corde, et praedicarem
captivis indulgentiam, ut consolarer omnes lugentes: para remediar,
para livrar, para consolar a todos os afligidos, a todos os cativos, e a todos os que choram suas misérias. Bem está. Mas os que não têm misérias,
nem trabalhos, nem cativeiros,
nem aflições que chorar,
não veio o Filho
de Deus ao mundo também para eles? Sim, veio: mas como o seu espírito é de piedade, de compaixão, e de misericórdia, os tristes, os afligidos, os cativos, e os miseráveis, são os que mais lhe movem, e levam o coração, como se só para eles viera. E se esta é a inclinação, e propensão do Filho de Deus, qual podemos considerar que será a da Mãe do mesmo Filho?
Gerson, aquele famoso cancelário
de Paris, mais santo ainda que político, diz que a Mãe de Deus se
chama Mãe de misericórdia; porque é propriedade
particular, que a Senhora tomou para si, favorecer os miseráveis: Maria Mater ideo dicitur misericordiae, quia quodammodo sibi proprium est misereri miseris. E acrescenta que a figura que a ele lhe parece mais própria desta misericórdia da Virgem Maria, é a que pintou o poeta Estácio na descrição do templo que os atenienses dedicaram à mesma misericórdia: Tu ipsa es
verum templum
Misericordiae
in templo Misericordiae figuratum, de quo loquitur Statius poeta. E que diz Estácio? Diz que naquele templo pôs seu assento a Clemência, e que os miseráveis são os
que lho consagraram: Posuit Clementia sedem, Et miseri fecere sacram.
Diz mais, que de dia, e de noite tem as portas abertas, e que as queixas, e petições de todos os que a ele concorrem, são ouvidas: Auditi quicumque rogant, noctesque, diesque Ire datum, et solis Numen placare querelis.
Diz mais, que não se veem ali fumos de incenso, nem sangue de vítimas, porque os sacrifícios que se oferecem, são somente lágrimas e gemidos:
Non thurea flamma, nec altus
Accipitur sanguis, lacrimis altaria sudant.
Finalmente conclui que o templo da Misericórdia está sempre cheio de pobres e miseráveis, todos tremendo: e que só os felices e bem-afortunados não conhecem aqueles altares: Semper habet trepidos, semper locus horret egenis Coetibus, ignotae tantum felicibus arae.
Oh se os que se têm por felices, e bem-afortunados, reparassem bem nesta última cláusula! Os miseráveis são os que
consagraram o templo à Misericórdia: os miseráveis os que têm nele sempre as portas abertas: os miseráveis os que ali oferecem seus gemidos, e sacrificam suas lágrimas: os miseráveis são aqueles cujas queixas e deprecações sempre são ouvidas; e só os felices e bem- afortunados os que
não são admitidos àqueles altares, nem os conhecem: Ignotae tantum felicibus arae.
Tal é, senhores, os que assim vos chamais, a vossa fortuna, e tal a que desprezais nos vossos escravos: eles por miseráveis têm sempre abertas as portas de misericórdia da Mãe de Deus, e abertos e prontos a suas queixas seus piedosos ouvidos: e vós com as vossas fortunas, pode ser que nem ouvidos, nem conhecidos sejais em seus altares. E se me disserdes
que isto são encarecimentos
poéticos, praza a Deus que o experimenteis assim, quando a morte
der a volta
à roda da Fortuna. Mas eu tenho outra figura mais verdadeira que a de Estácio, e outra aplicação mais certa que a de Gerson, a qual tão admirável, como temerosamente, concorda com ela. A passagem do Egito para a Terra de Promissão significa a deste mundo para o Céu: os filhos de Israel todos eram escravos dos egípcios: Faraó, e os egípcios eram os senhores destes escravos: e na passagem do mar Vermelho,
qual foi o sucesso? Os senhores todos ficaram afogados; os escravos,
todos passaram a salvamento; e quem celebrou este triunfo, foi Maria, irmã de Moisés, figura da Virgem Maria. Eu confesso que não reconheço nos escravos
geralmente tais virtudes, às quais se possa prometer uma segunda fortuna tão notável como esta; mas também sei que é tão poderosa a misericórdia da Mãe de Deus, que compadecida das misérias que eles padecem
em toda a vida, lhe pode converter as mesmas misérias em virtudes. E para que também neste último ponto nos não falte a história do nosso tema, ouçamos o que ela nos diz.
O primeiro nos confirmaram os dous filhos de Bala, escrava de Raquel: o segundo os dous filhos de Rasfa, escrava de Lia: e este último nos confirmaram todos os quatro. Chegado à hora da morte, Jacó lançou a bênção a todos os seus filhos; a qual bênção juntamente foi profecia do que eles haviam de ser. E se bem notarmos a bênção e profecia
de cada um, acharemos que nestes quatro filhos das escravas, repartiu Deus aquelas quatro virtudes, a que os filósofos
chamam morais, porque compõem os costumes; e os teólogos, cardeais, porque são os quatro polos de que depende toda a vida racional, e felicidade humana. In his quatuor virtutibus tota boni operis instructura consurgit: diz São Gregório papa. A primeira é a prudência, e esta coube a Neftali: Nephtali cervus emissus, et dans eloquia pulchritudinis. A segunda é a justiça, e esta coube a Dã: Dan judicabit. A terceira é a fortaleza, e esta coube a Gad: Gad accinctus praeliabitur. A quarta e última é a temperança, e esta coube a Aser: Aser pinguis panis ejus. Comparai-me
agora aqueles filhos das senhoras
com estes das escravas: e naqueles achareis imprudências e ignorâncias, nestes a prudência: naqueles injustiças e tiranias, nestes a justiça: naqueles fraquezas e inconstâncias, nestes a fortaleza: naqueles intemperanças
e graves excessos, nestes a temperança. Não há dúvida que o senhorio e liberdade são mais aparelhados para os vícios, e a obediência e sujeição
mais dispostas para as virtudes. E se aquela é a condição e fortuna dos senhores, e esta a dos escravos, por certo, se alguns irmãos se deviam desprezar da irmandade dos outros, antes haviam de ser os filhos de Bala e Rasfa que os de Raquel e Lia. Por isso o evangelista não só não distinguiu os irmãos
por esta diferença, mas igualmente
contou os da fortuna mais baixa, que eram os escravos, com os da mais nobre e mais alta, qual era a real de Juda: Judam, et fratres ejus.
IX
Temos visto como os motivos ou sem-razões, por que os senhores desestimam e desprezam o nome, a cor, e a fortuna de seus escravos, são as mesmas razões por que a Virgem, Senhora nossa, mais os estima, favorece e ama. E pois o mesmo desprezo entre os desprezadores e desprezados foi causa da separação de uns e outros, dividindo-se brancos e pretos em duas irmandades do Rosário; muito temo que a mesma Senhora em castigo deste agravo da natureza, e seu, tenha aprovado a mesma separação, e que nela fiquem de pior partido os brancos. No capítulo quarto dos Cânticos, diz o autor deles, Salomão, que a Virgem Maria foi ao seu jardim, e mandou ao vento Áquilo, que se apartasse dele, e ao vento austro que viesse, para que o mesmo jardim exalasse com maior abundância a fragrância e suavidade de seus aromas: Surge aquilo, et veni auster, perfla hortum meum, et fluant aromata. O jardim da Virgem Maria já se sabe que é o seu Rosário: e também não é dificultoso
entender quais sejam neste texto os dous ventos, Áquilo e austro. Na Sagrada Escritura pelos quatro ventos principais se entendem as quatro partes do mundo, e pelas mesmas partes, ou regiões do mundo, os habitadores delas. Quem são pois os habitadores do Áquilo, e quem os do Austro? Não há dúvida que os do Áquilo, que é o Norte, são os europeus mais brancos de todos: e os do Austro, que em respeito da Palestina era a Etiópia, são os etíopes e os pretos, que por isso a rainha Sabá no Evangelho se chama Regina Austri. Diremos logo que a mesma Senhora do Rosário manda separar dele os brancos, e admite e chama
os pretos? E mais a fim de lhe
comunicar com maior abundância os seus
aromas, isto é, a suavidade de seus
favores e graças? Verdadeiramente o sentido mais comum e literal do texto assim o significa. E não seria maravilha que a Mãe de misericórdia,
que tanto favorece os miseráveis, fizesse esta justiça. Como se dissera: já que vós (ó brancos) tanto desprezais o nome de escravos,
tendo-me eu chamado escrava, e tanto abateis a cor preta, tendo-me eu honrado da mesma cor, e tão pouco vos compadeceis da fortuna dos miseráveis, sendo eu sua protetora,
venham os miseráveis,
venham os escravos, venham os pretos para o jardim do meu Rosário, e separem-se dele os brancos.
Isto é o que significa naturalmente, e com grande propriedade, o texto no primeiro e mais comum
sentir dos intérpretes. Mas porque Beda, Cassiodoro, Justo Orgelitano, Apônio, Ruperto e outros, dizem que nas palavras surge aquilo, et veni auster, igualmente se chama o austro, e se esperta o Áquilo, a que cada um segundo suas qualidades com o calor e movimento das rosas, excitem nelas maior fragrância: seguindo este segundo sentido
mais conforme
à benignidade universal da Mãe de misericórdia, que a nenhum exclui, e a todos abraça;
digo por última conclusão que assim aos brancos, significados no Áquilo, como aos pretos, no austro, a uns e outros convida e excita a Senhora a que venham ao seu jardim do Rosário, posto que de partes opostas: e que essa mesma oposição sirva só de contenderem entre si, a quem com maior afeto, devoção e fervor, se há de esmerar em seu serviço. Lá disse São Paulo, que dividiu
Deus o gênero
humano em dous povos, gentílico e judaico, para que o gentio por emulação do hebreu, e o hebreu por emulação do gentio, se animassem e provocassem reciprocamente, não só a
receber e conservar a fé do verdadeiro Deus, mas a se
vencer à porfia no exercício mais perfeito da religião e culto divino. Seja este pois o fim desta separação de irmandades entre brancos e pretos. Os brancos e senhores não se deixem vencer dos pretos,
que seria grande afronta da sua devoção: os pretos e escravos procurem de tal maneira imitar os brancos e os senhores, que de nenhum modo consintam ser vencidos deles. E desta sorte, procedendo todos como filhos igualmente da Mãe de Deus, posto que diferentes na cor, não só conservarão a irmandade
natural em que Deus os criou, mas alcançarão a sobrenatural e adotiva
de seu Filho, herdeiro enquanto homem do cetro de Judas: Judam, et
fratres ejus.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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