SERMÃO DOS BONS ANOS
PREGADO EM LISBOA,
NA CAPELA REAL, ANO DE 1642
I
Em um mundo tão avarento de bens, onde apenas se encontra com um bom-dia, ter obrigação de dar bons anos, dificultoso empenho! Deus, que é autor de todos os bens, os dê a Vossas Reais Majestades felicíssimos (mui altos e mui poderosos Reis e Senhores nossos) com a vida, com a prosperidade, com a conservação e aumento de estados, que as esperanças do mundo publicam, que o bela da fé católica deseja, que a monarquia de Portugal há mister, e que eu hoje quisera prometer e ainda assegurar.
Em um mundo, digo, tão avarento de bens, onde apenas se encontra com um bom-dia, ter obrigação de dar bons anos, dificultoso empenho! E na minha opinião cresce mais ainda esta dificuldade, porque isto de dar bons anos entendo-o de diferente maneira do que comumente se pratica no mundo. Os bons anos não os dá quem os deseja, senão quem os assegura. A quantos se desejaram nesta vida, a quantos se deram os bons anos, que os não lograram bons, senão mui infelizes? Segue-se logo, própria e rigorosamente falando, que não dá os bons anos quem só os deseja, senão quem os faz seguros. Esta é a dificuldade a que me vejo empenhado hoje, que o tempo e o Evangelho fazem ainda maior. Em todo o tempo é dificultosa coisa assegurar anos felizes, mas muito mais em tempo de guerras e em tempo de felicidades. Se o dia dos bens é véspera dos males, se para merecer uma desgraça basta ter sido ditoso, quem fará confiança em glórias presentes, para esperar prosperidades futuras? Se a campanha é uma mesa de jogo, onde se ganha e se perde, se as bandeiras vitoriosas mais firmes seguem e vento vário que as meneia, quem se prometerá firmeza na guerra, que derruba muralhas de mármore? E como a guerra e a felicidade são dois acidentes tão vários, como a fortuna e Marte são dois árbitros do mundo tão inconstantes, como poderei eu seguramente prometer bons anos a Portugal, em tempo que o vejo, por uma parte com as armas nas mãos, por outra com as mãos cheias de felicidades? Se apelo para o Evangelho, também parece que promete ameaças mais que esperanças, porque nos aparece nele um cometa abrasado e sanguinolento: Ut circumcideretur puer, e os cometas desta cor sempre foram fatais aos reinos, e formidáveis às monarquias.
Terret fera regna
cometes sanguineum spargens ignem — disse lá Sílio. A matéria dos cometas são os vapores ou
exalações da terra subidas ao céu; e como no mistério da Encarnação subiu ao
céu a terra de nossa humanidade, que outra coisa parece Cristo hoje com o
sangue da circuncisão, senão um cometa abrasado e sanguinolento, e por isso
funesto e temeroso? Ora, com isto se representar assim, com o Evangelho e o
tempo parecer que nos promete poucas esperanças de felizes anos, do mesmo tempo
e do mesmo Evangelho hei de tirar hoje a prova e segurança deles. Será, pois, a
matéria e empresa do sermão esta: Felicidades
de Portugal, juízo dos anos que vêm. Digo dos anos, e não do ano, porque
quem tem obrigação de dar bons anos, não satisfaz com um só, senão com muitos.
Funda-me o pensamento o mesmo Evangelho, que parece o desfavorecia, porque toda
a matéria e sentido dele é um prognóstico de felicidades futuras.
Toda a matéria do brevíssimo Evangelho, que hoje canta a
Igreja, vem a ser a circuncisão de Cristo, e o nome santíssimo de Jesus. E
destes dois grandes mistérios se compôs uma constelação benigníssima, que, tomada
no horizonte oriental de Cristo, foi figura de todo o bem, e remédio do mundo,
que o Senhor havia de obrar em seus maiores anos. São Cirilo: Vocatum est nomen ejus Jesus, quod
interpretatur Salvator; editus enim fuit ad totius mundi salutem, quam sua circumcisione
praefiguravit. Grande palavra! De sorte que circuncidar-se Cristo, e
chamar-se Jesus no dia de hoje, foi levantar figura — praefiguravit — aos sucessos dos anos seguintes, à salvação e
felicidades futuras de todo o gênero humano: Totius mundi salutem, quam sua circumcisione praefiguravit. Nem
desfaz esta verdade a representação do sanguinolento, com que parece nos
atemorizava Cristo nos efeitos da circuncisão, porque aquele belo infante não é
cometa, é planeta; não é terra subida ao céu, é céu descido à terra. E o céu,
quando se põe de vermelho, que prognostica? — O mesmo Cristo o disse, que não é
menos que sua esta matemática: Serenum
erit, rubicundum est enim caelum. Quando o céu se veste de vermelho,
prognostica serenidade. Sempre a serenidade foi título natural das púrpuras. E
como aquele céu animado, como aquele rei celestial se veste hoje da púrpura de
seu sangue, serenidades e felicidades grandes nos prognostica, que nas ações do
tempo, e nas palavras do Evangelho, iremos discorrendo por partes.
II
Postquam consummati
sunt dies octo, ut circumcideretur puer, vocatum est nomen ejus Jesus, quod
vocatum est ab angelo, priusquam in utero conciperetur. Comecemos por estas últimas
palavras.
Diz São Lucas que, passados os oito dias, termo da circuncisão, lhe puseram a Cristo por nome JESUS, e nota, antes, manda notar o evangelista, que este nome foi anunciado pelo anjo antes que o Senhor fosse concebido: Quod vocatum est ab angelo, priusquam in utero conciperetur. Dá a razão desta advertência a Glosa Interlineal, e diz que foi: Ne homo videretur machinator hujus nominis: "Para que não parecesse este glorioso nome maquinado por invento de homens", senão mandado, como era, pela verdade de Deus. Entrou Cristo no mundo a reduzi-lo com nome de Salvador e Libertador, que isso quer dizer Jesus: pois, para que esta apelidada liberdade não a possa julgar alguém por invenção e obra humana, seja profetizada e revelada primeiro por um ministro da providência divina: Quod vocatum est ab angelo, priusquam in utero conciperetur.
Não quero referir profecias do bem que gozamos, porque as suponho mui pregadas neste lugar, e mui sabidas de todos; reparar sim, e ponderar o intento delas quisera. Digo que ordenou Deus que fosse a liberdade de Portugal, como os venturosos sucessos dela, tanto tempo antes, e por tão repetidos oráculos profetizada, para que, quando víssemos estas maravilhas humanas, entendêssemos que eram disposições e obras divinas, e para que nos alumiasse e confirmasse a fé, onde a mesma admiração nos embaraçasse. (Falo de fé menos rigorosa, quanta cabe em matérias não definidas, posto que de grande certeza). Alega Cristo um texto do Salmo 40, em que descreve Davi o meio extraordinário por onde os procedimentos injustos de um mau homem dariam princípio à redenção de todos, como seria traído o Redentor, como o pretenderiam derrubar por engano de seu estado, e, intimando o Senhor o caso aos discípulos, disse estas particulares palavras: Dico vobis antequam fiat, ut cum factum fuerit, credatis quia ego sum: "Eu sou este de quem aqui fala Davi (que assim explica o lugar Santo Agostinho, Ruperto, Teofilato, e outros) e digo-vos isto antes que aconteça, para que depois de acontecer o creiais".
Notável Teologia por certo! Se o Senhor dissera: Digo-vos estas coisas para que as creiais antes que aconteçam, facilmente dito estava; isso é fé — crer o que não se vê; mas dizer as coisas antes que se façam, a fim de que se creiam depois de feitas: Ut cum factum fuerit, credatis? O que está feito, o que se vê, o que se apalpa, necessita de fé? — Algumas vezes sim, porque sucedem casos no mundo, como este de que Cristo falava, tão novos e inauditos; sucedem coisas tão raras, tão prodigiosas, e por meios de proporção tão desigual, e muitas vezes tão contrários ao mesmo fim, que ainda depois de vistas com os olhos, ainda depois de experimentadas com as mãos, não basta a evidência dos sentidos para as não duvidar: é necessário recorrer aos motivos da fé para lhes dar crédito: Dico vobis antequam fiat, ut cum factum fuerit, credatis.
Tais considero eu os sucessos nunca imaginados de nosso Portugal, que, como excessivamente nos acreditam, assim excedem todo o crédito. Quis Deus que fossem tantos anos antes, e tão vulgarmente profetizados estes sucessos, não tanto para os esperarmos futuros, quanto para os crermos presentes; não para nos alentarem a esperança antes de sucederem, mas para nos confirmarem a fé depois de sucedidos. Haviam de suceder as coisas de Portugal, como sucederam, de tão prodigiosa maneira, que ainda depois de vistas, parece que as duvidamos, ainda depois de experimentadas, quase as não acabamos de crer; pois, profetize-se esta venturosa liberdade, e ainda o nome felicíssima do libertador, muito tempo antes — priusquam in utero conciperetur — para que, entre as dúvidas dos sentidos, entre os assombros da admiração, peçam os olhos socorro à fé, e creiam o que veem por profetizado, quando o não creiam por visto.
Por duas razões se persuadem mal os homens a crer algumas
coisas: ou por muito dificultosas, ou por muito desejadas; o desejo e a
dificuldade fazem as coisas pouco críveis. Era Sara de idade de noventa anos
sobre estéril; promete-lhe um anjo que Deus lhe daria fruto de bênção, e diz a
Escritura que se riu e zombou muito disso Sara, e ainda depois de ter um filho
chamou-lhe Isaque, que quer dizer riso: Risum
fecit mihi Deus. Estava São Pedro em poder de el-rei Herodes preso, e com
apertada guarda; apareceu-lhe outro anjo, que lhe quebrou as cadeias, e o
livrou, e diz o texto sagrado: Existimabat
autem se visum videre: que "cuidava Pedro que era aquilo sonho e
ilusão". Pois Pedro, pois Sara, que incredulidade é esta? Vê-se Sara com
um filho nos braços, e chama-lhe riso? Vê-se Pedro com as cadeias fora das
mãos, e chama-lhe sonho? — Assim havia de ser, porque ambas eram coisas muito
dificultosas, e ambas muito desejadas. Desejava Sara um filho, como a sucessão
de uma casa; desejava Pedro a liberdade, como a mesma liberdade e bem da
Igreja: a sucessão de Sara estava em poder de noventa anos; a liberdade de
Pedro estava em poder de Herodes e de seus soldados, e, como a dificuldade era
tão grande, e o desejo igual à dificuldade, ainda que viam com seus olhos, e
tinham nas mãos o que desejavam, a Sara parecia-lhe coisa de riso, a Pedro
parecia-lhe coisa de sonho. Que Sara estéril haja de ter filho! Que a prosápia
real portuguesa, esterilizada e atenuada na décima-sexta geração, haja de ter
descendente que lhe suceda! Que Sara depois de noventa anos! Que a coroa de
Portugal depois de sessenta! O que não teve quando estava na flor de sua idade,
o que não teve quando estava com todas as suas forças, o viesse alcançar depois
de tão envelhecida e quebrantada? Muito desejávamos, muito suspirávamos por
este bem, mas quanto maior era o desejo, tanto mais parecia e quase parece
ainda coisa de riso: Risum fecit me Deus.
Que Pedro, em poder de el-rei Herodes! Que Portugal, em poder, não de um, senão
de muitos reis que o dominavam, lhes houvesse de escapar das mãos tão
facilmente! Que Pedra, cercado de guardas: — Quatuor quaternionibus militum! Que Portugal, presidiado de
infantaria em tantos castelos, em tantas fortalezas, sem se arrancar uma
espada, sem se disparar um arcabuz, conseguisse em uma hora sua liberdade! Era
empresa esta tão dificultosa, representava-se tão impossível ao discurso
humano, que ainda agora parece que é sonho e ilusão: Existimabat se visum videre. Assim lhes aconteceu aos filhos de
Israel, quando se viram livres do cativeiro de Babilônia: In convertendo Dominus captivitatem Sion, facit sumus (lê
o hebreu) sicut somniantes: que,
incrédulos de admirados, "tinham a verdade por imaginação, e cuidavam que
estavam sonhando o que viam com os olhos abertos". E como os sucessos de
nossa restauração eram matérias de tão dificultoso crédito, que ainda depois de
vistos parecem sonhos, e quase se não acabam de crer, ordenou Deus que fossem
tanto tempo antes, com tão singulares circunstâncias, e com o nome do mesmo
libertador, profetizadas, para que a certeza das profecias desfizesse fizesse
os escrúpulos da experiência; para que, sendo objeto da fé, não parecesse
ilusão dos sentidos; para que, revelando-as tantos ministros de Deus, se visse
que não eram inventos dos homens: Ne homo
videretur machinator hujus nominis, quod vocatum est ab angelo, priusquam in
utero conciperetur.
III
Temos considerado o priusquam; vamos agora ao postquam: Postquam consummati sunt dies octo, ut circumcideretur puer. O que aqui pondera e sente muito a piedade dos santos, principalmente São Bernardo, é que, nascido de oito dias, sujeitasse o Senhor aquele corpozinho tenro ao duro golpe da circuncisão. Tão depressa? Aos oito dias, já derramando sangue? Desta pressa se espantam os doutores, mas eu não me espanto senão deste vagar. Que venha Cristo a remir, e que espere dias? E que espere horas? E que espere instantes? Quem cuida que é pouco tempo oito dias, mal sabe que é esperar pela Redenção.
Quando Cristo se encontrou com os discípulos de Emaús, iam eles contando a história de seu Mestre, e a causa que os levava peregrinos por esse mundo, e disseram estas notáveis palavras: Nos autem sperabamus quia ipse esset redempturus Israel: et nunc super haec omnia, tertia dies est hodie: "Nós esperávamos que este nosso mestre havia de remir o povo de Israel, e no cabo de tudo isto vemos agora que já se vão passando três dias". Três dias? Pois, que muito é isso? Que espaço de tempo são três dias para uns homens desmaiarem? Para uns homens se entristecerem? Para uns homens se desesperarem tanto? — Não se desesperavam porque eram três dias, senão porque eram três dias de esperar pela redenção. Esperavam aqueles discípulos que o Senhor havia de remir a Israel: Nos autem sperabamus quia ipse esset redempturus Israel. E para quem está cativo, para quem espera pela redenção, três dias é muito tempo: Et nunc super haec omnia: como se foram passadas três eternidades: Tertia dies est hodie; já se vão passando três dias; e se três dias é muito tempo para quem espera pela redenção, quanto mais tempo seriam os oito dias que se dilatou a circuncisão de Cristo, pois esperava o mundo neles que começasse o Senhor a derramar sangue, e dar o preço com que o remiu?
Não há dúvida que foi muito cedo para a dor, mas não foi muito cedo para o remédio; foram poucos dias para quem vivia, mas muitos para quem esperava. Bem o entendeu assim o evangelista, porque, havendo de contar estes oito dias, veja-se o aparato de palavras com que o faz: Postquam consummati sunt: "Depois que foram consumados"; parece que armava a dizer oito séculos, ou oito mil anos, segundo a grandeza vagarosa e ponderação das palavras, e no cabo disse — dies octo — oito dias, que, como eram dias de esperar pela redenção, ainda que não foram mais que oito, pareciam uma duração mui comprida, e que não acabavam de chegar, segundo tardavam: Postquam consummati sunt.
E, se oito dias de esperar pela redenção, e ainda três dias, é tanto tempo, quanto seria, ou quanto pareceria, não três dias, nem oito dias, não três anos, nem oito anos, senão sessenta anos inteiros, nos quais Portugal esteve esperando sua redenção, debaixo de um cativeiro tão duro e tão injusto? Não me paro a o ponderar, porque em dia tão de festa não dizem bem memórias de tristezas, ainda que os males passados parte vêm a ser de alegria. O que digo é que nos devemos alegrar com todo o coração, e dar imortais graças a Deus, pois vemos tão felizmente logradas nossas esperanças. Nem nos pese de ter esperado tão longamente, porque se há de recompensar a dilação da esperança com a perpetuidade da posse.
Perguntam os teólogos, com Santo Tomás, na terceira parte, por que se dilatou por tanto tempo o mistério da Encarnação, por que não desceu o Verbo Eterno a remir o mundo, senão depois de tantos anos. Várias razões dão os doutores; a de Santo Agostinho é muito própria do que queremos dizer: Diu fuit expectandus, semper tenendus: Quis o Verbo Eterno que esperassem os homens, e suspirassem tantos séculos por sua vinda, porque era bem que fosse muito tempo esperado um bem que havia de ser sempre possuído. Haviam os homens de gozar para sempre a presença de Cristo, havia o Verbo de Ser homem perpetuamente, porque — quod semel assumpsit, nunquam demisit — o que uma vez tomou, nunca mais largou; — seja, pois este bem por muito tempo esperando, pois há de ser por todo o tempo possuído, e mereça, com as dilações da esperança, a perpetuidade da posse: Diu fuit expectandus, semper tenendus.
Não necessita de acomodação o lugar, de firmeza sim, pelas dependências que tem do futuro; mas um espírito profético, e português, nos fiará a conjectura desta tão gostosa verdade. São Frei Gil, religioso da sagrada Ordem de São Domingos, naquelas suas tão celebradas profecias, diz desta maneira: Lusitania sanguine orbata regio diu ingemiscet: "A Lusitânia, o reino de Portugal, morrendo seu último rei sem filho herdeiro, gemerá e suspirará por muito tempo". Sed propitius tibi Deus: "Mas lembrar-se-á Deus de vós, ó pátria minha" — diz o santo; Et insperate ab insperato redimeris: "e sereis remida não esperadamente por um rei não esperado". E, depois de assim remido, depois de assim libertado Portugal, que lhe sucederá? — Africa debellabitur: Será vencida e conquistada África. Imperium Ottomanum ruet: O Império Otomano cairá sujeito e rendido a seus pés. Domus Dei recuperabitur: A casa santa de Jerusalém será finalmente recuperada. — E por coroa de tão gloriosas vitórias: Aetas aurea reviviscet: "Ressuscitará a idade dourada". Pax ubique erit: "Haverá paz universal no mundo". Felices Qui viderint: "Ditosos e bem-aventurados os que isto virem".
Até aqui São Frei Gil profetizado. De sorte que, assim como antes da redenção haverá possuir e gozar; e assim como os suspiros e gemidos duraram por tantos anos, assim as felicidades e bens permanecerão sem termo e sem limite. O muito, quer Deus que não custe pouco; e era justo que a tanta glória precedesse tanta esperança, e que quem havia de gozar sempre, suspirasse muito: Lusitania diu ingemiscet. Diu fuit expectandus, semper tenendus.
E já que vai de esperanças, não deixemos passar sem
ponderação aquelas palavras misteriosas da profecia: Insperate ab insperato redimeris. De propósito reparei nelas, para
refutar com suas próprias armas alguma relíquia que dizem que ainda há daquela
seita ou desesperação dos que esperavam por el-rei Dom Sebastião, de gloriosa e
lamentável memória. Diz a profecia: Insperate
ab insperato redimeris. "Que seria remido Portugal não esperadamente
por um rei não esperado". Segue-se logo, evidentemente, que não podia
el-rei Dom Sebastião ser o libertador de Portugal, porque o libertador
prometido havia de ser um rei não esperado: Insperate
ab insperato; e el-rei Dom Sebastião era tão esperado vulgarmente, como
sabemos todos. Assim que os mesmos sequazes desta opinião, com seu esperar,
destruirão sua esperança, porque, quanto o faziam mais esperado, tanto
confirmavam mais que não era ele o prometido, podendo-se-lhe aplicar
propriamente aquelas palavras que São Paulo disse de Abraão: Contra spem in spem credidit; que "creram
em uma esperança contrária à sua mesma esperança", porque, pelo mesmo que
esperavam, tinham obrigação de não esperar.
IV
Mas, ainda que concedamos que os portugueses não souberam esperar, não lhes neguemos que souberam amar, e com muita ventura, que, talvez buscando a um rei morto, se vêm a encontrar com um vivo. Morto buscava a Madalena a Cristo na sepultura, e a perseverança e amor, com que insistiu em o buscar morto, foi causa de que o Senhor lhe enxugasse as lágrimas, e se lhe mostrasse vivo. Grande exemplar, temos entre as mãos. Assim como a Madalena, cega de amor, chorava às portas da sepultura de Cristo, assim Portugal, sempre amante de seus reis, insistia ao sepulcro de el-rei Dom Sebastião, chorando e suspirando por ele; e, assim como a Madalena no mesmo tempo tinha a Cristo presente e vivo, e o via com seus olhos, e lhe falava, e não o conhecia, porque estava encoberto e disfarçado, assim Portugal tinha presente e vivo a el-rei nosso senhor, e o via, e lhe falava, e não o conhecia. Por quê? —Não só porque estava, senão porque ele era o Encoberto. Ser o encoberto, e estar presente, bem mostrou Cristo neste passo que não era impossível. E quando se descobriu Cristo? Quando se manifestou este Senhor encoberto? Até esta circunstância não faltou no texto. Disse a Madalena a Cristo: Tulerunt Dominum meum: "Levaram-me o meu senhor"; e o senhor não lhe deferiu. Nescio ubi posuerunt eum: queixou-se que não sabia onde lho puseram, e dissimulou Cristo da mesma maneira. Si tu sustulisti eum: "Se vós, Senhor, o levastes, dicito mihi, dizei-mo"; e ainda aqui se deixou o Senhor estar encoberto sem se manifestar. Finalmente, alentando-se a Madalena mais do que sua fraqueza permitia, e tirando forças do mesmo amor, acrescentou: — Et ego eum tollam: "E eu o levantarei". E tanto que disse: Eu o levantarei: Ego cum tollam, então se descobriu o Senhor, mostrando que ele era por quem chorava, e a Madalena o reconheceu, e se lançou a seus pés.
Nem mais nem menos Portugal depois da morte de seu último rei, Buscava-o por esse mundo, perguntava por ele, não sabia onde estava, chorava, suspirava, gemia, e o rei vivo e verdadeiro deixava-se estar encoberto, e não se manifestava, porque não era ainda chegada a ocasião; porém, tanto que o reino animoso sobre suas forças, se deliberou a dizer resolutamente: Ego eum tollam: Eu o levantarei e sustentarei com meus braços — então se descobriu o encoberto senhor, porque então era chegado o tempo, dizendo-nos aos portugueses o que diz São Gregório que disse Cristo à Madalena, manifestando-se. Recognosce eum, a quo recognosceris: "Reconhecei a quem vos reconhece"; reconhecei por rei a quem vos reconhece por vassalos. Então sim, e não antes; então sim, e não depois, porque aquele, e não outro era o tempo oportuno e determinado de dar princípio à nossa redenção.
Recebeu Cristo o golpe da circuncisão deu princípio à
redenção do mundo, não antes, nem depois, se não pontualmente aos oito dias; Dies octo, ut circumcideretur puer.
Pois, por que não antes, ou por que não depois? Não se circuncidara ao dia
sétimo? Não se circuncidara ao dia nono? Por que não antes, nem depois, senão
ao oitavo? A razão foi porque as coisas que faz Deus, e as que se hão de fazer
bem feitas, não se fazem antes nem depois, senão a seu tempo. O tempo
assinalado nas Escrituras para a circuncisão era o dia oitavo, como se lê no
Gênesis e no Levítico: Die octavo circumcidetur infantulus. E
por isso se circuncidou Cristo, sem se antecipar nem dilatar, aos oito dias; Postquam consummati sunt dies octo;
porque, como o Senhor remiu o gênero humano por obediência aos decretos
divinos, o tempo que estava assinalado na lei para a circuncisão era o que
estava predestinado para dar princípio à redenção do mundo. Da mesma maneira se
deu princípio à redenção e restauração de Portugal em tais dias e em tal ano,
no celebradíssimo de 40, porque esse era o tempo oportuno e decretado por Deus,
e não antes nem depois, como os homens quiseram. Quiseram os homens que fosse
antes, quando sucedeu o levantamento de Évora; quiseram os homens que fosse
depois, quando assentaram que o dia da aclamação fosse o primeiro de janeiro,
hoje faz um ano; mas a providência divina ordenou que o primeiro intento se não
conseguisse, e que o segundo se antecipasse, para que pontualmente se desse
princípio à restauração de Portugal a seu tempo: Postquam consummati sunt dies octo.
V
Daqui fica tacitamente respondida uma não mal fundada admiração, com que parece podíamos reparar os portugueses em que os sereníssimos duques de Bragança vivessem retirados todos estes anos, sem acudirem à liberdade do reino, como legítimos herdeiros que eram dele. Respondido está: declaro mais a resposta: Cristo, Redentor nosso ainda enquanto homem, como provam muitos doutores, era legítimo herdeiro da coroa de Israel: Dabit illi Dominus Deus sedem Davi patris ejus, et regnabit. Tinha tiranizado este reino Herodes homem estrangeiro, a quem por este, e por muitos outros títulos, não pertencia; e, como sobre ser usurpado o reino, lhe quisesse tirar a vida a Cristo, diz o texto que o Senhor se lhe não opôs, antes se retirou para o Egito: Secessit in Aegyptum. Notável ação! Não sois vós, Senhor, o verdadeiro rei de Israel, como legítimo herdeiro seu, que, ainda que não empunhais o cetro, rei sois, e rei nascestes, e assim o confessam as nações e reis estrangeiros: Ubi est qui natus est rex Judaeorum? Pois, como vos retirais agora, como vos não opondes à tirania de Herodes, como ides viver ao Egito, e tantos anos? Não vedes o que padecem tantos inocentes? Não ouvis que já chegam ao céu as vozes da lastimada Raquel, que chora seus filhos: Vox in Rama audita est, ploratus et ululatus multus, Rachel plorans filios suos? — Pois, se a vós, como a rei natural, incumbe a restauração do reino, como vos retirais da empresa? Não me aleguem em contrário os poucos dias que tinha o Senhor de vida ou idade, depois dos oito da circuncisão, porque na mesma circuncisão, e na mesma retirada do Egito, tinha e lhe sobejava tudo o que era necessário para livrar de cativeiro os que nele tinham a esperança da liberdade. Ou Cristo, os havia de remir com o sangue próprio ou com o alheio: se com o próprio, bastava uma só gota do sangue da circuncisão para remir, não só o reino de Israel, senão todo o mundo. Se com o sangue alheio, o mesmo anjo, que disse a São. José: Fuge in Aegyptum, podia fazer a Herodes, e a todos seus presídios e soldados, o que o outro anjo fez aos exércitos de El-rei Senaqueribe, matando em uma noite oitenta e cinco mil dos que sitiavam a mesma Jerusalém. Pois, se isto era, não só possível, mas fácil, ao legítimo e verdadeiro Rei de Israel, por que o não executou então? Porque não era ainda chegado o tempo, diz excelentemente São Pedro Crisóstomo: Cedens tempori, non Herodi. Tinha decretado e disposto que o tempo da redenção fosse dali a trinta e três anos; e, se a providência divina, que tudo pode, espera pelas disposições e circunstâncias do tempo, quanto mais a providência humana, a qual o não seria, se com toda a atenção e vigilância as não observasse, aguardando pelas mais convenientes e oportunas, que Deus, e o mesmo tempo, lhe oferecesse. Assim que podiam responder aqueles príncipes, como legítimos e naturais senhores e herdeiros da coroa de seus avós, o que em semelhante caso disseram os famosos Macabeus, assim antes, como depois de restituídos ao seu próprio patrimônio: Ne que alienam terram sumpsimus, neque aliena detinemus:: sed haereditatem patrum nostrorum, quae injuste ab aliquo tempore ab inimicis nostris possessa est. Nos vero tempus habentes, vindicamus haereditatem patrum nostrorum.
E foi de tanta importância esperar pela oportunidade do tempo, que por esta dilação se veio a lograr aquela primeira máxima de toda a razão de estado, assim da providência divina como da providência humana, que é saber concordar estes dois extremos: conseguir o intento e evitar o perigo. Já perguntamos que razão teve Cristo para receber a circuncisão ao oitavo dia, conforme a lei. Agora pergunto: que razão teve a lei para mandar que a circuncisão se fizesse ao oitavo dia? A circuncisão naquele tempo era o remédio do pecado original, como hoje o é o batismo, bem que com diferente perfeição. Pois, se na circuncisão consistia o remédio do pecado original, e a liberdade das almas cativas pelo pecado, por que não mandava Deus que se circuncidassem os meninos logo quando nasciam, ou ao terceiro, ou ao quarto dia, senão ao oitavo? — A razão literal foi, diz o Abulense, porque quis Deus aplicar o remédio de tal maneira que se evitasse o perigo: Quia ante octo dies potest esse vitae periculum. Quando os meninos nascem, em todos aqueles primeiros sete dias correm grande perigo de vida, porque são dias críticos e arriscados, como diz Aristóteles e Galeno; pois, ainda que o remédio dos recém-nascidos, e sua espiritual liberdade consistia na circuncisão, não se circuncidem, diz a lei, senão ao oitavo dia, passados os sete, que essa é a excelente razão de estado da providência de Deus, saber dilatar o remédio para escusar o perigo: dilate-se o remédio da circuncisão até o oitavo dia, para que se evite o perigo da vida, que há do primeiro ao sétimo: Quia ante octos dies potest esset vitae periculum.
Se Portugal se levantara enquanto Castela estava vitoriosa, ou quando menos, enquanto estava pacífica, segundo o miserável estado em que nos tinham posto, era a empresa mui arriscada, eram os dias críticos e perigosos; mas como a providência divina cuidava tão particularmente de nosso bem, por isso ordenou que se dilatasse nessa restauração tanto tempo, e que se esperasse a ocasião oportuna do ano de quarenta, em que Castela estava tão embaraçada com inimigos, tão apertada com guerras de dentro e de fora, para que na diversão de suas impossibilidades se lograsse mais segura a nossa resolução. Dilatou-se o remédio, mas segurou-se o perigo. Quando os filisteus se quiseram levantar contra Sansão aguardaram a que Dalila lhe tivesse presas e atadas as mãos, e então deram sobre ele. Assim o fizeram os portugueses bem advertidos. Aguardaram a que Catalunha atasse as mãos ao Sansão que os oprimia, e como o tiveram assim embaraçado e preso, então se levantaram contra ele tão oportuna como venturosamente.
Mas vejo que me dizem os lidos na Escritura que é verdade que
os filisteus se levantaram contra Sansão, mas que ele soltou as ataduras,
voltou sobre eles, e desbaratou-os a todos. Primeiramente, muito vai de Sansão
a Sansão, e de filisteus a filisteus. Mas, dado que em tudo fora a semelhança
igual, esta mesma réplica confirma mais o meu intento. Não tiveram bom sucesso
os filisteus, porque, ainda que nós os imitamos em parte, eles não nos deram
exemplo em tudo. Intentaram, mas não conseguiram, porque as diligências que
fizeram não as aplicaram a tempo. As diligências que fizeram os filisteus
contra Sansão foi atarem-lhe as mãos e cortarem-lhe os cabelos; mas não
aproveitaram estes efeitos, ainda que se obraram, porque, devendo-se fazer ao
mesmo tempo, fizeram-se em diversos. Quando lhe ataram as mãos, deixaram-lhe
ficar, os cabelos, com que teve força para se desatar; quando lhe cortaram os
cabelos, deixaram-lhos crescer outra vez, com que teve mãos para se vingar.
Pois, que remédio tinham os filisteus, para se livrarem de todo, e acabarem de
uma vez com Sansão? — O remédio era fazerem como nós fizemos, e como nós
fazemos, e como nós havemos de fazer. Enquanto Sansão está com as mãos atadas,
corta-lhe os cabelos no mesmo tempo, e acabou-se Sansão. Assim o podiam vencer
os filisteus com muita facilidade, que doutra maneira não seria tão fácil.
Porque, se lhe não cortassem os cabelos, teria forças para desatar as mãos, e
se desatasse as mãos, seria necessária muita força para lhe cortar os cabelos.
Tanto como isto importa executar os remédios a tempo, como nós, por mercê de
Deus o temos feito até agora tão felizmente, conseguindo a maior empresa e
evitando o menos perigo, porque soubemos esperar pelos dias oportunos, como
mandava a lei esperar pelos da circuncisão: Dies
octo, ut circumcideretur puer.
VI
Ut circumcideretur puer, vocatum est nomen ejus Jesus: Tanto que se circuncidou o Menino, logo se chamou Salvador. — Mas com que consequência? — pergunta São Bernardo: Circumciditur puer, et vocatur Jesus: quid sibi vult ista connexio? Que parentesco tem o nome com a ação, que combinação tem o salvar-se com o circuncidar-se? Três razões acho nos santos; duas repito, uma só pondero. S. Bernardo e Eusébio Emisseno dizem que foi a circuncisão de Cristo: Totius superfluitatis abjectio: Uma estreita e mui reformada privação de todo o supérfluo. Vinha Cristo, como rei e redentor do mundo, a remi-lo e restaurá-lo, e a primeira coisa que fez, como a mais necessária e importante, foi estreitar-se em sua pessoa, cercear demasias, cortar superfluidades, e fazer uma premática geral com seu exemplo: Totius superfluitatis abjectio. Muitas graças sejam dados a Deus que, para confirmação ou imitação desta grande razão de estado divina, não temos necessidade de cansar a memória, senão de abrir os olhos; não de revolver escrituras antigas, senão de venerar e amar exemplos presentes. Assim obra quem assim reina, assim sabe libertar quem assim se sabe estreitar: Ut circumcideretur puer, vocatum est nomen ejus Jesus.
A segunda razão é de Santo Epifânio, e diz que foi: Ut confirmaret circumcisionem, quam olim instituerat, ejus adventui servientem: "Que quis o redentor confirmar desta maneira, e honrar a circuncisão, pelo que antes de sua vinda tinha servido". Bem advertido, mas muito melhor imitado. Parece que os decretos do governo de Portugal e os decretos da Providência divina correram parelhas (quanto pode ser) na sua e na nossa redenção. Decretou Deus que à circuncisão se lhe confirmassem suas antigas honras, havendo respeito ao bem que tinha servido, e o mesmo decreto se passou cá, e com muita razão: Ut confirmaret circumcisionem, ejus adventui servientem. Tinha servido a circuncisão no tempo passado e na lei velha; pois honre-se no tempo presente, e premie-se na lei nova, que não é bem que a felicidade geral venha a ser infortúnio dos que serviram. Que a circuncisão, que tinha tantos anos de serviços, que a circuncisão, que tinha derramado tanto sangue, houvesse de ser desgraçada porque o mundo foi venturoso, não estava isto posto em razão. Pois baixe um decreto que lhe confirme efetivamente todas as honras passadas: Ut confirmaret circumcisionem, quam olim instituerat; que é bem que a lei da graça premie não só os serviços seus, senão os da lei antiga, para mostrar nisso mesmo que é lei da graça.
Oh! que grande política esta, assim humana como divina!
El-rei Assuero mandava ler as histórias e crônicas do reino, para fazer mercês
aos que em tempo de seus antecessores tinham servido. El-rei Salomão sustentava
de sua própria mesa aos seus filhos de Berzelai, por serviços feitos em tempo e
à pessoa de Davi; e os Reis dos reis, Cristo, Redentor nosso, quando no Monte
Tabor desembargou suas glórias (que também pode ser expediente estarem
embargadas por algum tempo), repartiu-as a três que serviam, e a dois que
tinham servido: a São Pedro, a São João e a São Tiago, porque atualmente
serviam; e a Moisés e a Elias, um vivo, e outro defunto, porque tinham servido
em tempos passados. Assim recebe Cristo, e autoriza hoje a circuncisão,
conforme as honras do tempo antigo, não pontue se quisesse servir dela, que já
estava mui envelhecida, e a queria aposentar, senão pelo bem que dantes tinha
servido: Ejus adventui servientem.
A terceira e última razão é de Santo Ambrósio, de Santo Agostinho, de São João Crisóstomo, de Santo Tomás, e ainda de São Paulo, ou, quando menos, fundada em sua doutrina, e é esta (alego tantos doutores pela dificuldade da razão): — Ea ratione pro nobis circumcisus est, ut circuncisionem auferret: "Recebeu Cristo a circuncisão, porque, como autor da lei nova, queria tirar do mundo a circuncisão". Estranha sentença! Pois, porque Cristo queria tirar do mundo a circuncisão, por isso recebe e executa em si a mesma circuncisão? Antes parece que, para a tirar do mundo, havia de entrar condenando-a, desterrando-a, proibindo-a sob graves penas, e não a admitindo por nenhum caso.
Pouco sabe das razões verdadeiras de estado quem assim discorre. Circuncida-se Cristo para tirar do mundo a circuncisão, porque quem entra a introduzir uma lei nova não pode tirar de repente os abusos da velha. Há de permitir com dissimulação, para tirar com suavidade; há de deixar crescer o trigo com cizânia, para arrancar a cizânia quando não faça mal às raízes do trigo. Todo o zelo é mal sofrido, mas o zelo português; mais impaciente que todos. A qualquer relíquia dos males passados, a qualquer sombra das desigualdades antigas, já tomamos o céu com as mãos, porque não está tudo mudado, porque não está emendado tudo. Assim se muda um reino? Assim se emenda uma monarquia? Tantos entendimentos assim se endireitam? Tantas vontades tão diferentes assim se temperam? Rei era Cristo, e rei redentor, e nenhuma coisa trazia mais diante dos olhos que extinguir os usos da lei velha, e renovar e introduzir os preceitos da nova; e, com ter sabedoria infinita e braços onipotentes, ao cabo de trinta e três anos de reino, muitas coisas deixou como as achara, para que seu sucessor, São Pedro, as emendasse. Já Cristo não estava vivo quando se rasgou o véu do Templo, figura da lei antiga. E que coisa se podia representar mais fácil que romper um tafetá em trinta e três anos? Pouco e pouco se fazem as coisas grandes, e não há melhor arbítrio para as concluir com brevidade que não as querer acabar de repente.
Instituiu Cristo, Redentor nosso, o sacramento da Eucaristia, e instituiu-o na mesma mesa em que estava o cordeiro legal. Pois, Senhor meu, que combinação é esta, ou que companhia? O cordeiro com o Sacramento? As cerimônias da lei velha com os mistérios da nova na mesma mesa? Sim, que assim era necessário que fosse. Queria Cristo introduzir o Sacramento, e lançar fora o cordeiro da lei, e para isso permitiu que o cordeiro estivesse embora na mesma mesa com o Sacramento, que desta maneira se desterram com suavidade as sombras das leis velhas, e se vão introduzindo e conciliando os resplendores das novas. Estejam agora juntos o Sacramento e o cordeiro que amanhã irá fora o cordeiro, e ficará só o Sacramento. Com este vagar faz Deus as coisas, e assim quer que as laçam os que estão em seu lugar (quando elas o sofrem); e tenha mais paciência o zelo, não seja tão estreito de coração. Mais dói aos reis que aos vassalos dissimular com algumas coisas; mas por força se hão de fazer assim, para se não fazerem por força. Muito lhe doeu a Cristo, gotas de sangue lhe custou contemporizar com a circuncisão; mas foi necessário dissimular com dor para remediar com sucesso. Não é o mesmo permitir que aprovar; antes, o que se permite, já se supõe condenado. A benevolência e dissimulação, como são afetos da mesma cor, equivocam-se facilmente nas aparências; e quantas vezes se choraram ruínas os que se invejaram favores! Vem a ser indústria no príncipe o que é razão de estado no lavrador: que as espigas que há de cortar, essas abraça primeiro. Assim abraçou Cristo a circuncisão, porque a queria cortar e arrancar do mundo: Ea ratione circumcisus est, ut circumcisionem auferret, mostrando na suavidade desta razão, e nas outras coisas por que se circuncidou, quão bem se proporcionava com os meios o nome que lhe puseram de Salvador: Ut circumcideretur puer, vocatum est nomen ejus Jesus.
Mas por que se chamou Salvador? Por que não tomou outro nome? Que o não tomasse de algum atributo de sua divindade, bem está, pois vinha a ser homem; mas, ainda enquanto homem, tinha Cristo a maior dignidade da terra, que era a de rei, Pois, já que havia de tomar o nome do ofício, e não da pessoa, por que não se chamou rei, por que se chamou Salvador? — A razão deu Tertuliano: Gratius illi erat pietatis nomen, quam majestatis: Deixou Cristo o nome de rei, e tomou o de Salvador, porque "estimava mais o nome de piedade que o título de majestade". O nome de rei era nome majestoso, o nome de Salvador era nome piedoso; o nome de rei dizia imperar, o nome de Salvador dizia libertar, e, fazendo o Senhor a eleição pela estimação, tomou o de nosso remédio, deixou o de sua grandeza. Por isso os anjos, na embaixada que deram aos pastores, puseram primeiro o nome de Salvador, e depois o nome de ungido: Quia natus est vobis hodie Salvador, qui est Christus Dominus. E por isso, no título da cruz, se chamou o Senhor Jesus Rei, e não Rei Jesus: Jesus Nazarenus Rex Judaeorum;— para mostrar, no princípio e no fim da vida, que estimava mais o exercício de nossa liberdade que a grandeza de sua majestade: Gratius illi eras pietatis nomen, quam majestatis.
Se os corações puderam discorrer sensivelmente, quanto melhor
falaram neste passo do que os pudera copiar a língua? Isto que Tertuliano disse
pelo primeiro libertador do gênero humano, pudéramos nós dizer com ação de
graças pelo segundo libertador de Portugal, o qual nesta felicíssima e
verdadeiramente real ação, mostrou bem quanto mais estimava o nome da piedade
que o título da majestade, pois, convidado tantas vezes para a grandeza,
rejeitou generosamente o cetro; e agora, chamado para o remédio, aceitou
animosamente a coroa: Gratius illi eras
pietatis nomen, quam majestatis. Rei, não por ambição de reinar, senão por
compaixão de libertar. Rei verdadeiramente imitador do Rei dos reis, que, sobre
todos os títulos da sua grandeza, estimou mais o nome de libertador e Salvador:
Vocatum est nomen ejus Jesus.
VII
Acabou-se o Evangelho, e eu tenho acabado o sermão. Mas vejo que me estão caluniando e arguindo, porque não provei o que prometi. Prometi fazer neste sermão um juízo dos anos que vêm, e eu não fiz mais que referir os sucessos dos anos passados. Mostrei a razão das profecias, as dilações da esperança, a oportunidade do tempo, o acerto dos decretos, a propriedade e merecimento do nome, e tudo isto é história do que foi, e não prognóstico do que há de ser, Ora, ainda que o não pareça, eu me tenho desempenhado do que prometi, e todo este discurso foi um prognóstico certo e um juízo infalível dos anos que vêm. Tudo o que disse, ou foram profecias cumpridas, ou benefícios manifestos da mão de Deus; e em profecias e benefícios começados, o mesmo é referir o passado que prognosticar e segurar o futuro.
Partiu Cristo desterrado a Egito, e diz o evangelista São Mateus: Ut impleretur quod dictum est per prophetam: Ex Aegypto vocavi filium meum: que aqui "se cumpriu a profecia do profeta Oséias, em que dizia Deus que havia de chamar e tirar do Egito a seu Filho".
Dificultoso lugar! Argumento assim: As profecias não se cumprem senão quando sucedem as coisas profetizadas; Cristo não voltou do Egito senão daí a sete anos: logo, não se cumpriu então, nem se pode cumprir esta profecia de Oséias. Se dissera o evangelista que se cumpria a profecia de Isaías: Ecce Dominus ascendet super nubem levem, et ingredietur Aegyptum, claro estava; mas dizer quando entrou no Egito, que então se cumpriu a profecia de quando saiu, que não foi senão daí a tantos anos, como pode ser? Reparo foi este de Ruperto Abade, o qual satisfaz à dúvida com uma razão mística; mas a literal, e que nos serve é esta. Como as profecias, quanto à evidência, se qualificam pelos efeitos, e na execução do que prometem têm a canonização de sua verdade, é consequência tão infalível, cumpridas as primeiras profecias, haverem-se de cumprir as segundas, que, quando se mostra o cumprimento de umas, logo se podem dar por cumpridas as outras. Por isso o evangelista, ainda discursando humanamente, quando viu que se cumpria a profecia de Cristo entrar no Egito, deu logo por cumprida também a profecia de haver de voltar para a pátria, e assim disse: Ut impleretur quod dictum est per prophetam: que então se cumpriu o que tinha profetizado Oséias, não quanto à execução, senão quanto à evidência, porque o cumprimento da profecia passada era nova e certa profecia de se cumprir a futura; que, se numa parte não faltou o efeito, como poderia faltar na outra? Muitas felicidades tem logo que ver Portugal nos anos seguintes, e muitas lhe tenho eu prognosticado neste sermão, porque como as mesmas profecias, que prometeram o que vemos cumprido, prometem ainda outros maiores aumentos a este reino, ou a este império, como elas dizem, o mesmo foi referir o desempenho felicíssimo das profecias passadas, que prognosticar, antes segurar com firmeza o cumprimento infalível das que estão por vir. Se as nossas profecias, na parte mais dificultosa, foram profecias, na parte mais fácil, que resta, por que o não serão?
Sete coisas profetizou o anjo embaixador à Virgem Maria: Ecce concipies in utero, et paries filium,
et vocabis nomen ejus Jesum. Hic erit magnus, et filius Altissimi vocabitur, et
dabit illi Dominus Deus sedem David, patris ejus: et regnabit in domo Jacob in
acternum, et regni ejus non erit finis: que "conceberia, que pariria um
filho, que lhe poria por nome Jesus, que seria grande, que se chamaria Filho de
Deus, que Deus lhe daria o trono de Davi seu pai, que reinaria na casa de Jacó
para sempre, que seu reino não teria fim". E destas sete profecias, vendo
cumprida Santa Isabel só a primeira, pelos efeitos dela julgou que haviam de
cumprir todas as mais: Quoniam
perficientur ea, quae dicta sunt tibi a Domino. O mesmo discurso fiz eu, e
o devemos fazer todos os portugueses, se não queremos ser hereges da boa razão,
e de uma fé mais que humana, dando todos o parabém a Portugal, e chamando-lhe
mil vezes feliz: Quoniam perficientur ea,
quae dicta sunt tibi a Domino. Porque, como se começaram a cumprir as
profecias em sua restauração, assim as levará Deus por diante, e lhes dará o
cumprimento gloriosíssimo que elas prometem. Até agora era necessária pia
afeição para dar fé às nossas profecias; mas já hoje basta o discurso e boa
razão, porque os efeitos presentes das passadas são nova profecia dos futuros;
bem assim como (para que até aqui nos não falte o Evangelho) a imposição do
nome de Jesus, que hoje chamaram a Cristo — Vocatum
est nomen ejus Jesus — foi cumprimento do que estava profetizado, e
profecia do que estava por cumprir. Foi cumprimento do que estava profetizado,
porque profetizado estava que se chamaria Jesus o Filho da Virgem: Paries filium, et vocabis nomen ejus Jesum.
Foi profecia do que estava por cumprir, porque o nome de Jesus, que quer dizer
Salvador, era profecia que havia de salvar Cristo e remir o gênero humano: Vocabitur nomen ejus Jesus: ipse enim salvum
faciet populum suum a peccatis eorum.
VIII
Nos benefícios passa o mesmo. Muitos lugares pudera trazer; um só digo, que, pela propriedade do nome, tem privilégio de se preferir a todos. Nasceu São João Batista, e assentaram consigo os vizinhos daquelas montanhas que havia de ser o menino pessoa notável, e que esperavam grandes venturas em seus maiores anos: Posuerunt in corde suo, dicentes: Quis, putas, puer iste erit? Pois, donde o tiraram estes homens? Que fundamento tiveram para se resolverem tão assentadamente nas grandezas de João e em seus aumentos? O fundamento que os moveu, eles mesmos o disseram, ou o evangelista por eles: Quis, putas, puer iste erit? Etenim manus Domini eras cum illo. Viam os milagres, viam as maravilhas, viam as mercês extraordinárias a que Deus, com mão tão liberal, fazia a João logo em seus princípios, e do erat tiraram o erit; das experiências do que era inferiam evidências do que havia de ser, porque aqueles benefícios de Deus presentes eram prognósticos das felicidades futuras: Etenim manus Domini erat cum illo. Assim como a quiromancia humana, quando, quer dizer a boa ventura, olha para as mãos dos homens, assim a quiromancia divina, a arte de adivinhar ao celeste, olha para as mãos de Deus; e como a mão de Deus estava tão liberal com João: Etenim manus Domini erat cum illo, na disposição destas primeiras liberalidades, como em caracteres expressos, estavam lendo a sucessão das futuras, e das grandezas maravilhosas, que já eram, julgavam as que, correndo os anos, haviam de ser: Quis, putas, puer iste erit: Etenim manus Domini eras cum illo.
Ora, grande simpatia tem a mão de Deus com o nome de João. Bem o mostrou o Senhor na feliz aclamação de Sua Majestade, que Deus nos guarde, como há de guardar muitos anos, pois aos ecos do nome de João despregou da Cruz o braço o mesmo Cristo, assegurando-nos que, assim como a mão de Deus estivera com o primeiro João de Judéia, assim estava e havia de estar sempre com o quarto de Portugal: Etenim manus Domini erat cum illo. Bem experimentamos esta assistência nos sucessos que referi, e em todos os felicíssimos do ano passado, que em todas as coisas que Sua Majestade pôs a mão, pôs também a divina a sua. E se estes ou semelhantes efeitos dei mão de Deus foram bastantes prognósticos para uns montanheses rústicos, assaz claro foi o modo de prognosticar que segui, falando entre cortesãos tão entendidos. Nem aqui também nos faltou o Evangelho, porque, se nos confirmou a primeira razão com o mistério do nome de Jesus, agora nos prova a segunda com o da circuncisão, da qual dizem comumente os doutores que aquele pouco sangue, que o Senhor derramou hoje no presépio, foi sinal e como penhor de haver de derramar todo na cruz, que, como Deus é liberal com onipotência e bom sem arrependimento, o mesmo é fazer um benefício menor que penhorar-se a outros maiores. E, se estes benefícios, que da divina mão, temos recebido, se podem chamar menores, os maiores, quão grandes serão?
Nem nos desconfiem estas esperanças os temores que propusemos ao princípio, da variedade dos sucessos da guerra, da inconstância das felicidades do mundo, porque só as felicidades que vêm por mão dos homens são inconstantes; mas as que vêm por mão de Deus são firmes, são permanentes. Quando Josué, à entrada da Terra de Promissão, venceu aquelas primeiras e milagrosas batalhas, mostrando os inimigos mortos aos soldados, lhes disse, o que eu também digo a todos os portugueses: — Confortamini, et estore robusti: sic enim faciet Dominus cunctis hostibus vestris, adversum quos dimicatis. Grande ânimo, valentes soldados, grande confiança, valorosos portugueses, que assim como vencestes felizmente estes inimigos, assim haveis de vencer todos os demais, que, como são vitórias dadas por Deus, este pouco sangue, que derramastes em fé de seu poderoso braço, é prognóstico certíssimo do muito que haveis de derramar vencedores; não digo sangue de católicos, que espero em Deus que se hão de desapaixonar muito cedo nossos competidores, e que em vosso valor, e seu desengano, hão de estudar a verdade de nossa justiça; mas sangue de hereges na Europa, sangue de mouros na África sangue de gentios na Ásia e na América, vencendo e sujeitando todas as partes do mundo a um só império, para todas em uma coroa se meterem gloriosamente debaixo dos pés do sucessor de S. Pedro. Assim o contam as profecias, assim o prometem as esperanças, assim o confirmam estes felizes princípios, que a divina bondade se sirva de prosperar até os fins felicíssimos que desejamos, que são os com que remata um sermão deste dia São Bernardo, cujas palavras tantas vezes têm sido profecias a Portugal: Multiplicabitur sane ejus imperium, ut merito Salvator dicatur pro multitudine etiam salvandorum, et pacis non erit finis.
Para que nossas orações comecem a obrigar a Deus, não peço
três Ave-Marias, senão três petições do Padre-nosso: Sanctificetur nomen muni, adveniat regnum muni, fiat voluntas tua.
Santificado e glorificado seja, Senhor, vosso nome, porque ao posse santíssimo
de Jesus, como o primeiro e principal libertador, reconhecemos dever a
liberdade que gozamos. Adveniat regnum
tuum: "Venha a nós, Senhor, o vosso reino": vosso, porque vosso é
o reino de Portugal, que assim nos fizestes mercê de o dizer a seu primeiro
fundador, el-rei Dom Afonso Henriques: Volo
in te, et in semine tuo, imperium mihi stabilire. E por isso mesmo adveniat, venha; porque, como há de ser
Portugal um tão grande império, posto que tem já vindo todo o reino que era,
ainda o reino que há de ser não tem vindo todo. E para que nossas más
correspondências não desmereçam tanto bem: Fiat
voluntas tua: Fazei, Senhor, que façamos inteiramente vossa santa vontade,
porque, assim como nos prognósticos humanos, para advertir sua contingência, se
diz: Deus, sobre tudo, assim eu neste divino, para assegurar sua certeza, digo
também: Deus, sobre tudo; porque, se sobre tudo amarmos a Deus, cumprindo
perfeitamente sua vontade, sem dúvida se inclinará o Senhor a ouvir e
satisfazer os afetos da nossa, perpetuando a sucessão de nossas felicidades na
perseverança de sua graça: Quam mihi et
vobis, etc.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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