SERMÃO DA VISITAÇÃO DE NOSSA SENHORA
Pregado no Hospital da Misericórdia da Bahia, na ocasião em que chegou àquela cidade o Marquês de Montalvão, Vice-Rei do Brasil.
Ut facta est vox salutationis
tuae in auribus meis, exultavit in gaudio infans in utero meo (Luc.
I)
I
Viu o
profeta Malaquias em espírito aquela felicíssima jornada que havia de
fazer do céu à terra o Redentor e restaurador do mundo, e dando as boas novas a
todos os homens, como a enfermos pelo pecado de Adão, diz assim: Orietur
vobis Sol justitiae, et sanitas in pennis ejus: Alegra-te,
enfermo gênero humano, alegra-te, e começa a esperar melhor de teus males, porque "virá
o Sol de justiça, e te trará a saúde nas asas".
Cumprida
temos hoje esta tão esperada profecia, e cumprida, se eu me não
engano, em dois sentidos. Tanto que o divino sol de justiça, Cristo,
se vestiu da nuvem branca de nossa humanidade, tanto que tomou carne o Filho de
Deus nas entranhas puríssimas da Virgem Maria, como ele era a inteligência
soberana que movia aquele céu animado, no mesmo ponto, diz o evangelista São Lucas
que se partiu a Senhora para as montanhas de Judeia: Exsurgens
Maria abut in montana — e
acrescenta — cum festinatione: "com
passos mui apressados", porque nem à delicadeza da
donzela se lhe fizeram ásperas as montanhas, nem à grandeza da Mãe de Deus lhe
pareceram desautorizadas as pressas. Que errado que anda o mundo, e mais o nosso,
em julgar e introduzir que os passos vagarosos sejam os mais autorizados! Se
por vagares se perde o mundo todo, como pode consistir a autoridade dele
nos mesmos meios de sua perdição?
Na
fábrica deste universo que vemos criou Deus o sol e a
lua ao quarto dia, e não ao primeiro, diz São Severiano, porque, como ainda então
não havia criaturas que influir, nem hemisfério que alumiar, estiveram-se os
planetas ociosos e parados, em grave descrédito de seus resplendores, que a
quem Deus fez para sol, não o fez para estar quieto. Foram formadas aquelas
duas tochas do céu, para um alternado império governarem o dia e a noite: Luminare
majus ut praeesset diei, luminare minus ut praeesset
nocti. E como nasceram para todos, andam
sem descansar em perpétua roda, que é gloriosa pensão do bem universal correr e
nunca estar parado. Por isso Cristo hoje, assim como sol material, tanto que recebeu
a investidura dos raios, no mesmo instante partiu de carreira, e
começou a fazer velocissimamente seu curso, assim o divino Sol de justiça,
tanto que se vestiu de nossa humanidade nas
entranhas da Virgem Mãe, no mesmo ponto arrebatou aquela
celestial esfera, e a levou às montanhas com tanta pressa, com tão arrebatado curso, cum
festinatione, que para o explicar Malaquias na terra houve de
fingir um monstro no céu: Orieturvobis Sol justitiae, et
sanitas in pennis ejus. Sol com asas! Quem
negará que é uma resplandecente monstruosidade? E acrescenta com muita propriedade
o profeta que levará o sol nas asas a saúde, porque a dar saúde, e não a outro
fim, parte hoje o Redentor com tanta pressa.
Estava a
casa de Zacarias nesta ocasião para que falemos com frase de
hospital — feita uma enfermaria de diversos males. O velho Zacarias havia
seis meses que emudecera; Santa Isabel, sobre os da velhice, padecia os
achaques de pejada; e, mais mortal que todos, o menino Batista jazia enfermo do
pecado original, relíquias daquele antigo veneno que, dentro em uma maçã proibida,
deu a serpente a nossos primeiros pais. Se por uma maçã tomada contra a
vontade de seu dono se perdeu o mundo todo, que muito que se perca tanta parte
dele em tempo que se toma tanto! Enfim, chegou a Senhora, que nunca tarda a quem
a há mister, e aos primeiros abraços que deu a Santa Isabel, às primeiras
palavras de cortesia com que a saudou, ouviu-as o menino enfermo, e logo ficou
são: Ut facta est vox salutationis tuae in
auribus meís, exultavit in gaudio infans in utero meo. Oh! como
quisera que entenderam daqui as pessoas soberanas que com abraços e com
boas palavras podem dar vida! Se muitas vezes, pela impossibilidade dos tempos,
é força que estejam as mãos fechadas, por que não estarão os braços abertos?
E que avareza pode ser mais cruel que negar a vida a um homem quem lha pode dar
com palavras? Tão alentado, tão alegre ficou o menino Batista com as da
soberana Princesa, que a saltos de prazer começou a inquietar o silêncio das
entranhas maternas, e quase a sair de si com alegria: Exultavit infans
in gaudio. Montanhesa cortesia parece receber a saltos uma majestade
tão soberana, mas acomodou-se o menino à estreiteza do lugar, e não fez pouco,
porque fez o que pôde.
Este foi
o principal efeito que causou a entrada de Cristo em casa de Zacarias,
e semelhante a este é, Excelentíssimo Senhor, o estado em que se acha a Bahia,
hoje alentada com a boa vinda, e alegre com a tão desejada presença de Vossa Excelência.
Solenizou-a esta cidade com menos alegrias suntuosas, com menos festas
públicas do que costuma, mas bem desculpa Santa Isabel a falta destes aplausos
exteriores, que o prazer de São João todo foi por dentro, e a alegria
verdadeira toda é de entranhas: Exultavit infans in utero. Como
levantaria arcos triunfais a cabeça de uma província
vencida, assolada, queimada, e por tantas vezes, e de tantas maneiras
consumida? Prudente se portou em suas alegrias esta cidade, por não
desmentir seu estado; acomodou-se, como São João, à estreiteza do tempo,
e reservou os triunfos para o dia das vitórias, que espera. Quanto mais,
Senhor, que nunca ninguém entrou por arcos triunfais mais gloriosos, que quem foi
recebido nos corações de todos.
Alegra-se,
pois, o enfermo Brasil e será o segundo sentido das palavras
porque vê também cumprida em si aquela profecia, que havia de vir um Sol de
justiça a restaurá-lo, que traria a saúde nas asas. Que maior alegria para um enfermo
aflito que luz e saúde? A nenhum lhe importa mais uma e outra que ao Brasil,
porque não sei qual o tem posto sempre em maior perigo, se a enfermidade, se
as trevas. As trevas cederão ao sol, a enfermidade obedecerá à saúde, e
como todo este bem nos vem com asas, certa será a melhoria. Custará a
diligência o que danou a remissão, e recuperará a pressa o que os vagares perderam.
Muitas ocasiões há tido o Brasil de se restaurar, muitas vezes tivemos o remédio
quase entre as mãos, mas nunca o alcançamos, porque chegamos sempre um dia depois. Como havia de
aproveitar ocasião a quem a tomou pela calva sempre? E, como estamos tão
lastimados das tardanças, o primeiro bom anúncio que temos, Senhor, é sabermos
que nos vem a saúde nas asas, e que voando mais que correndo, partiu Vossa
Excelência a restaurar este Estado, sem reparar nos novos inconvenientes que da
última fortuna sobrevieram, nem em quão descaído está o Brasil das forças
e do poder com que Vossa Excelência aceitou a restauração dele.
Aconteceu-lhe a Vossa Excelência com o Brasil o que
a Cristo com Lázaro. Chamaram-no para curar um enfermo: Ecce
quem amas infirmatur; e quando chegou foi-lhe
necessário ressuscitar um morto. Morto está o Brasil, e ainda mal, porque tão morto e
sepultado; fumeando estão ainda, e cobertas de suas cinzas estas campanhas. E
verdade que nunca se viu esta província tão autorizada como agora, mas
podem-lhe servir os títulos de epitáfios, que pois a vemos levantada a Vice-Reino
entre as mortalhas, bem se pode dizer por ela
também que depois de ser morta foi rainha. Mas assim como São
João à voz da Senhora, assim como Lázaro à voz de Cristo, assim ressuscitará
também o Brasil à voz e ao império de Vossa Excelência, podendo dizer vitorioso
dentro em pouco tempo o que disse Paulo Fábio orando no Senado: Macedonian'
in potestatem populi Romani redegi, et quod bellum quatuor ante me consu les
ita gesserunt, ut semper successori traderent gravius, id ego paucis perfeci: "Restaurei a Macedônia,
reduzindo-a à sujeição do Império Romano, diz o grande Fábio, e acabei
felizmente em poucos dias aquela guerra que tinham governado
quatro cônsules antes de mim, entregando-a sempre cada um a seu sucessor em
pior estado". Quatro generais têm governado a guerra do Brasil. depois
de ocupado Pernambuco. Grande conjectura de ser a enfermidade mortal mudarmos
tantas vezes a cabeceira. Todos foram capitães famosos, todos se portaram
com grande valor e prudência militar: mas é desgraça levar o leme no
tempo da tempestade, e quando o castigo é do céu, como o hão de resistir
braços humanos? Passou-se a fortuna à Holanda, nós a retirar, nós a descair, nós a
perder, de sorte que, de quatro generais valorosos, nenhum governou a guerra que a
não entregasse a seu sucessor em pior estado do que a recebera. Mas, assim
como a restauração de Macedônia estava reservada para o grande Fábio, assim
espera a sua o Brasil do valorosíssimo braço de Vossa Excelência, tantas vezes
armado e tantas vitorioso contra inimigos da fé.
Para que
se logrem melhor os felizes auspícios desta tão desejada saúde,
representarei eu hoje a Vossa Excelência neste sermão o estado do nosso
enfermo Brasil, as causas de sua enfermidade, e, do modo que souber, o remédio
dela. E por que nos não saiamos do Evangelho (ainda que os casos grandes
escusam qualquer divertimento) irão as enfermidades do Brasil retratadas na
doença de São João, a quem a Virgem Maria hoje foi visitar e dar
saúde. Todos sabem que esta saúde foi de graça. Peçamo-la
ao divino Espírito por intercessão da mesma Senhora. Ave
Maria.
II
Ut facto est vox salutationis
tuae in auribus areis, exultavit in gaudio infans.
Comecemos
por esta última palavra, Bem sabem os que sabem a língua latina
que esta palavra infans (infante)
— quer dizer o que não fala. Neste estado estava o
menino Batista quando a Senhora o visitou, e neste esteve o Brasil
muitos anos, que foi a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como o
doente não pode falar, toda a outra conjectura dificulta muito a
medicina. Por isso Cristo nenhum enfermo curou com mais
dificuldade, e em nenhum milagre gastou mais tempo que em
curar endemoninhado mudo: Erat ejiciens daemonium, et illud erat mutum. O pior
acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala:
muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de
seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta ou o respeito, ou
a violência, e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o
devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da
razão. Por esta causa serei eu hoje o intérprete do nosso enfermo, já que a mim
me coube em sorte, que também São João não falou por si, senão por boca de
Santa Isabel. Na primeira informação da enfermidade consiste o
acerto do remédio, e assim procurarei que seja muito
verdadeira e muito desinteressada: falaremos, já que nos é lícito,
para que se não diga do Brasil o que se disse da cidade de Amidas, que a perdeu o
silêncio: Silentium Amidas perdidit. E como a causa é
geral, falarei também geralmente, que não é razão nem condição
minha que se procure o bem universal com ofensas
particulares.
III
A enfermidade
do Brasil, Senhor, é, como a do menino Batista, pecado original. Santo
Tomás e os teólogos definem o pecado original com aquelas palavras
tomadas de Santo Anselmo: Est privatio justitiae debitae: que
o pecado original é uma
privação, urna falta de devida justiça. Bem sei de que justiça falam os teólogos, e o sentido em que entendem as
palavras, mas a nós, que só buscamos
a semelhança, servem-nos assim como soam. É pois a doença do Brasil — privatio
justitiae debitae (falta da devida justiça) —
assim da justiça punitiva, que castiga maus, como da justiça distributiva, que
premia bons. Prêmio e castigo são os dois pólos em que se revolve e sustenta a
conservação de qualquer monarquia, e porque ambos estes faltaram sempre ao
Brasil, por isso se arruinou e caiu. Sem justiça não há reino, nem província
nem cidade, nem ainda companhia de ladrões que possa conservar-se. Assim o prova Santo Agostinho, com autoridade de
Cipião Africano, e o ensinam conformemente Túlio, Aristóteles, Platão, e todos
os que escreveram de república. Enquanto os romanos guardaram igualdade, ainda
que neles não era verdadeira
virtude, floresceu seu império, e foram senhores do mundo; porém, tanto que a
inteireza da justiça se foi corrompendo pouco a pouco, ao mesmo passo enfraqueceram as forças, desmaiaram os
brios, e vieram a pagar tributo
os que o recebiam de todas as gentes. Isto estão clamando todos os reinos com suas mudanças, todos os impérios com suas
ruínas, o dos persas, o dos gregos,
o dos assírios. Mas, para que é cansar-me eu com repetir exemplos, se
prego a auditório católico, e
temos autoridade de fé? Regnum de
gente in gentem transtertur
propter injustitias, diz o
Espírito Santo, no capítulo décimo do Eclesiástico: que a
causa por que os reinos e as monarquias se não conservam debaixo do mesmo
senhor, a causa por que andam passando inconstantemente de umas nações a
outras, como vemos, é propter injustitias: por injustiças. As
injustiças da terra são as que abrem a parta à justiça do céu. E
como as nações estranhas são a vara da ira divina: — Assu;
virga furoris mei — com elas nos castiga, com elas nos desterra,
com elas nos priva da pátria, que é mui antiga razão de estado da providência
de Deus, quando se não guarda justiça na sua vinha, dá-la a outros lavradores: Vineam
suam locabit aliis agricolis. Pois, se por injustiças se perdem
os estados do mundo, se por injustiças os entrega Deus a nações
estrangeiras, como poderíamos nós conservar o
nosso, ou como o poderemos restaurar depois de perdido,
senão fazendo justiça? O contrário seria resistir a Deus, e porfiar
contra a mesma fé.
Sem
justiça se começou esta guerra, sem justiça se continuou, e por falta de justiça chegou ao
miserável estado em que a vemos. Houve roubos, houve homicídios, houve desobediências, houve outros delitos muitos e
enormes, que não sei se chegaram a tocar na religião, mas nunca houve
castigo, nunca houve um rigor que
fizesse exemplo. Muitos bandos se lançaram muito justos, muitas ordens se deram muito acertadas,
mas, como disse Aristóteles, as leis não são boas porque bem se mandam, senão
porque bem se guardam. Que importa que fossem justos os bandos, se não se
guardavam mais que se se mandara o
que se proibia? Que importa que fossem acertadas as ordens, se nunca foi
castigado quem as quebrou, e pode ser que nem repreendido? Baste por todo encarecimento nesta matéria que em onze anos
de guerra contínua e infeliz, onde
houve tantas rotas, tantas retiradas, tantas praças perdidas, nunca vimos um capitão, nem ainda um soldado que com a
vida o pagasse. Oh! aprendamos,
aprendamos se quer de nossos inimigos, que nesta última fortuna tão
grande que tiveram, quando com
um poder tão desigual nos derrotaram a maior armada que passou a Linha, a dois capitães sabemos que
degolaram no Recife, e a outros
inabilitaram com suplícios menos honrosos, só porque andaram remissos em acudir
à sua obrigação. Pois, se o inimigo quando ganha dá mortes de barato, se quando consegue o intento, se quando se vê
vitorioso sabe cortar cabeças, nós, que sempre perdemos e nem sempre por falta
de poder, por que não atalharemos a novas perdas com castigo exemplar de quem
for a causa? Por que há de ser consequência na guerra do Brasil: se
me renderem passarei à Espanha, e despachar-me-ei?
Há resolução mais indigna de espanhóis? Há razão mais indigna de
católicos?
Toda
esta falta de castigo, toda esta remissão de culpas nasceu de uma razão de
estado que cá se praticou quase sempre: que se não hão de matar os homens em
tempo que os havemos tanto mister; que não é nem que se perca em uma hora
um soldado que se não faz senão em muitos anos; que justiçar um homem
porque matou outro é curar uma chaga com outra chaga, e que se
não remedeiam bem as perdas acrescentando-as, que a
primeira máxima do governo é saber permitir, e que se há de dissimular
um dano, por não o evitar, com outro maior, como se não fora maior dano a destruição
de toda a república que a morte de um particular, como se não fora grande expediente
resgatar com uma vida as vidas de todos: Expedit ut unus moriatur
honro, ne toca gens pereat. Ah! triste e miserável Brasil,
que porque esta razão de estado se praticou em ti, por isso és
triste e miserável! Não é miserável a república onde há delitos, senão onde
falta o castigo deles, que os reinos e os impérios não os arruínam os
pecados por cometidos, senão por dissimulados. Dissimular com os maus é
mandar-lhes que o sejam, disse Sêneca, e mais era gentio: Qui
non vetat peccare, cum possit jubet. A conquistar
dilatadíssimas províncias caminhava Moisés, general dos israelitas, e não duvidou
degolar de uma vez vinte e quatro mil homens, como se lê na Escritura, porque
entendia, como experimentado capitão, que mais importava no seu exército a
observância da justiça que o número dos soldados. Quem pelejou nunca no mundo
com número mais desigual que Judas Macabeu? E, contudo, nem os exércitos de
Apolônio, nem os ardis de Seron, nem os elefantes de Antíoco o
puderam jamais vencer, antes ele saiu sempre
carregado de despojos e de vitórias. Por quê? — Porque primeiro tirava a
espada contra os seus, e depois contra os inimigos. Pelejava com poucos
soldados, e mais vencia, porque poucos com justiça é grande
exército. Alagou Deus o mundo com o dilúvio universal, e para
restauração dele não guardou mais que Noé com três filhos seus em uma arca.
Pois, Senhor, parece que pudéramos replicar, quereis restaurar o mundo,
quereis-lo restituir a seu antigo estado, e para uma facção tão grande
não guardais mais que quatro homens em um navio? — Sim; que depois de um castigo tão grande,
depois de uma justiça tão exemplar, quatro homens e um só navio bastam
para restaurar um mundo inteiro. Vede se nos sobejaram sempre soldados para
restaurar o Brasil, se não nos faltara a justiça.
IV
E não só
é necessária ao nosso enfermo esta, justiça punitiva, que castiga
malfeitores, senão a outra parte da justiça distributiva, que premie liberal mente
aos beneméritos. Assim como a medicina, diz Filo Hebreu, não só atende a purgar
os humores nocivos, senão a alentar e alimentar o sujeito debilitado,
assim a um exército ou república não lhe basta aquela parte da justiça que com
o rigor do castigo a alimpa dos vícios, como de perniciosos humores, senão que é
também necessária a outra parte, que, com prêmios proporcionados ao
merecimento, esforce, sustente e anime a esperança dos homens. Por isso os romanos, tão
entendidos na paz e na guerra, inventaram para os soldados as coroas cívicas e
murais, as ovações, os triunfos, e outros prêmios militares, porque, como o amor da
vida é tão natural, quem se atreverá a arriscá-la intrepidamente, senão
alentado com a esperança do prêmio?
Quando
Davi quis sair a pelejar com o gigante, perguntou primeiro: Quid
dabitur viro, qui percusserit Philisthaeum hunc? "Que se há de dar ao homem
matar este filisteu?" Já naquele tempo se não arriscava a vida, senão por
seu justo preço; já então não havia no mundo quem quisesse ser valente de graça
Necessário é logo que haja prêmios para que haja soldados, e que aos
prêmios se entre pela porta do merecimento: dêem-se ao sangue derramado, e
não ao herdado somente; dêem-se ao valor, e não à valia, quer depois que no mundo
se introduziu venderam-se as honras militares, converteu-se a milícia em
latrocínio, e vão os soldados à guerra a tirar dinheiro com que comprar, e não
a obrar façanhas com que requerer. Se se guardar esta igualdade, entrará em
esperanças o mosqueteiro e soldado de fortuna, que também para ele se
fizeram os grandes postos, se os merecer; e, animados com este pensamento os de que
hoje se não faz caso, serão leões, e farão maravilhas, que muitas vezes debaixo
da espada ferrugenta está escondido o valor, como talvez debaixo dos talis
bordados anda dourada a cobardia. Assim que, é necessário que
haja Sauis liberais, para que se levantem Davis animosos, e
muito mais necessário que os prêmios se dêem a quem
disparar a funda e derrubar o gigante, e não a quem ficar olhando desde
os arraiais.
Nenhuns
serviços paga Sua Majestade hoje com mais liberal mão que os do
Brasil, e contudo a guerra enfraquece, e a reputação das armas cada vez
em pior estado, porque acontece nos despachos o de que ordinariamente se
queixa o mundo, que os valorosos levam as feridas e os venturosos os prêmios.
Na Filosofia bem ordenada, primeiro é a potência e o ato, depois o hábito; cá, se
olharmos para os peitos dos homens, acharemos muitos hábitos, e mui
pensionados, onde nunca houve ato, nem ainda potência. Desta
desigualdade se segue que o efeito dos prêmios militares vem a
ser contrário a si mesmo, porque em vez de com eles se
animarem os soldados, antes se desanimam e desalentam. Como se animará o soldado a
buscar a honra por meio das bombardas e dos mosquetes, se vê em um peito o
sangue das balas, e noutro a púrpura das cruzes? Como se alentará a padecer os
trabalhos e perigos de uma campanha, se vê premiado a Jacó, que ficou em casa, e
sem prêmio a Esaú, que correu os montes? Se às peles de Jacó se dá o morgado,
e às setas de Esaú se nega a bênção, se alcança mais este com o seu engano
que o outro com a sua verdade, quem haverá que trabalhe? Quem haverá que se
arrisque? Quem haverá que peleje? Não há dúvida que, à vista de semelhantes
mercês, dirão os valorosos que vão errados, terão contrição do que deveram ter
complacência, arrepender-se-ão de seus brios, condenarão suas passadas finezas,
e se chegarem a pelejas valentemente, será por desesperação, que não há coisa
que assim desespere os beneméritos como ver os indignos premiados.
Mas
muitas graças sejam dadas a Deus, que, para remédio deste grande mal, não
só temos justiça na terra, senão justiça de Sol, como diz Malaquias: Orietur
vobis Sol justitiae. Sol para alumiar, para conhecer, para distinguir;
justiça para premiar com igualdade. Por isso eu já dizia que não sei qual lhe
fez sempre maior mal ao Brasil, se a enfermidade, se as trevas. Muitas vezes
prevaleceu o engano contra a verdade nesta guerra, muitas vezes luziu o que não
era ouro, e foi tão injusta a fama que trocou os nomes às coisas e às pessoas,
e soaram pelo mundo erradamente.
O maior
escândalo que tenho contra a
natureza é um que cada hora experimentamos na artilharia. Por que razão há de fazer
tanto estrondo uma peça que perdeu o pelouro, como outra que empregou o tiro?
Há maior injustiça, há maior deformidade da natureza? A peça que acertou, soe
muito embora, atroe o mundo, estremeça a terra com seu estampido; mas a peça que
errou, a peça que não fez nada, a peça que não fez mais que empobrecer os
armazéns de el-rei sem proveito, por que há de soar, por que há de ser ouvida? Ainda
tenho advertido mais nesta matéria. Quando aqui estivemos sitiados no ano de trinta
e oito, tirava o inimigo muitas balas ao baluarte de Santo Antônio: os pelouros
que acertavam ficavam enterrados na trincheira os que erravam voavam por
cima, vinham rompendo os ares com grande ruído, e os que andavam por estas ruas,
aqui se abaixava um, acolá se abaixava outro, e muita gente lhes fazia
cortesias demasiadas. De sorte que o pelouro que errou, esse fazia os
estrondos, a esse se faziam as reverências, e o outro, que acertou, o outro que
fez a sua obrigação, esse fica enterrado. Ah!
quantos exemplos destes se acharam na guerra do Brasil! Quantos
foram mais venturosos com seus erros que outros com seus acertos? Algum,
que sempre errou, que nunca fez coisa boa, nomeado, aplaudido, premiado; e o
que acertou, o que trabalhou, o que subiu a trincheira, o que derramou o
sangue, enterrado, esquecido, posto a um canto. Importa, pois, que não roube
a negociação, o que se deve ao merecimento, que se desenterrem os talentos
escondidos que sepultou a fortuna ou a sem-razão, que não haja benemérito que
não seja bem-afortunado, que se corte a língua à fama, se for injusta, que
se qualifiquem papéis, que se examinem certidões, que nem todas são verdadeiras.
Se foram verdadeiras todas as certidões dos soldados do Brasil, se aquelas
rumas de façanhas em papel foram conformes a seus originais, que mais queríamos
nós? já não houvera Holanda, nem França, nem Turquia: todo o mundo fora nosso.
V
Não
pretendo dizer com isto que não merecem muito os soldados desta guerra,
porque antes tenho para mim, como é opinião de todos, que não há soldados no
mundo, nem que mais valentes sejam, nem que mais sirvam, nem que mais trabalhem,
nem que mais mereçam.
Já outra
vez tive este pensamento, e agora me torno a
confirmar mais nele, que para se despacharem os soldados do Brasil,
principalmente os que anda em campanha, não têm necessidade de mais certidão
que tomar o capítulo onze da Segunda Epístola de São Paulo aos
Coríntios, firmada e jurada por seus generais, que
bem o puderam fazer sem nenhum escrúpulo. Faz ali o
apóstolo uma ladainha mui comprida de seus serviços e trabalhos, e diz
assim: In laboribus plurimis, in carceribus abundantius, in plagis supra modum,
in mortibus frequenter etc. Demo-lo
por lido, e vamos aplicando. In laboribus plurimis: que
soldados padecem no mundo maiores trabalhos que os do Brasil? In carceribus abundantius: também muitas vezes são
prisioneiros, e nas prisões
nenhuns mais cruelmente tratados que eles. In plagis supra modum: quantas sejam as feridas que recebem, e quão contínuas,
bem o dizem esses hospitais, bem o dizem essas campanhas, e também os peitos
vivos o podem dizer, que apenas se achará algum que não ande feito um crivo. In mortibus frequenter: frequentemente
mortos, porque não há guerra no mundo onde se morra tão frequentemente como na
do Brasil, de dia e de noite, no inverno e no verão, na trincheira e na campanha,
nas nossas terras e nas do inimigo, e agora, nesta jornada última e milagrosa,
onde se não deu quartel, o mesmo foi ser ferido que morto, deixando os amigos
aos amigos, e os irmãos aos irmãos, por mais não poderem, ficando os miseráveis
feridos nesses matos, nessas estradas, sem cura, sem remédio, sem companhia,
para serem mortos a sangue-frio, e cruelmente despedaçados dos alfanjes
holandeses, pelo rei, pela pátria, pela honra, pela religião, pela
fé. Ó valorosos soldados, que de boa vontade me detivera eu agora convosco,
pregando vossas gloriosas exéquias, mas vou depressa seguindo aos que vos deixam;
perdoai-me. In itineribus saepe: quem andou nunca, nem ainda
correu com a imaginação os caminhos que fazem estes soldados? Daqui a
Pernambuco, daqui à Paraíba, daqui ao Rio Grande, e
mais abaixo, por sertões de trezentas e quatrocentas léguas,
levando sempre as munições às costas, e os mantimentos nos ferros dos chuços e
nas bocas dos arcabuzes. Periculis fluminum: atravessando rios tantos
e tão caudalosos, sem barca, sem ponte, mais que os braços e a indústria para os passar. Periculis
latronum: saindo-lhes os ladrões a cada passo. Periculis ex
genere: sendo espanhóis, a quem os
holandeses têm mortal ódio. Periculis ex gentibus:
arriscadosa mil emboscadas do gentio rebelde. Periculis in civitate: com
perigos na cidade, como o que tiveram nesta, quando a preço de tantas vidas a
defenderam valorosamente. Periculis in solitudine: com perigos no
deserto, porque são vastíssimos os despovoados que passam, sem casa, sem gente,
e muitas vezes sem rasto de fera, nem de animal, mais que céu e terra. Periculis
in mari: com perigos no mar, que ainda que bem se sabe quão grandes na
armada, e ainda não se sabe tudo. Periculis in falsis fratribus:
com perigos de falsos irmãos, porque nem com os nossos portugueses estão
seguros, na campanha, que o temor da morte os obriga a descobrir muitas vezes o
que não deveram. In frigore et nuditate: nus, despidos, descalços,
ao sol, ao frio, à chuva, às inclemências dos ares deste clima, que são os mais
agudos que se sabem. In fame et siti, in jejunis multis: jejuando e
padecendo as mais extraorninárias fomes e sedes que nunca suportaram corpos
mortais, sustentando a triste e animosa vida com as ervas do campo, com as
raízes das árvores, com os bichos do mato, com as frutas agrestes e venenosas,
e tendo-se por mui regalados se chegavam alcançar para comer meia libra de
carne de cavalo. Há mais invencível paciência? Há mais dura e pertinaz
constância? Se isto sabeis, holandeses, em que fundais vossas esperanças, como
não desistis da empresa, como não desmaiais, como não vos ides?
Tendo os
soldados de Júlio César sitiada a cidade de Dirráquio, chegaram a comer não sei
que pão feito de ervas, mas pão enfim, o qual, como visse Pompeu, que era o
capitão sitiado, primeiramente disse que ele pelejava com feras, e não com
homens, e logo mandou que aquele pão não aparecesse, porque, se o vissem os
seus soldados, sem dúvida desmaiariam, e não se atreveriam a resistir a gente
de tanta constância e pertinácia. Ne visa patientia et pertinacia
hostis, animi suorum frangerentur — diz Suetônio. Bem digo eu logo, holandeses,
vedes o pão com que se sustentam os nossos soldados, de cujo veneno morreram em
uma noite mais de vinte, se vedes esta paciência, esta constância,
esta pertinácia, como vos atreveis a pelejar com tal gente, como se vos não
quebram os ânimos, como não desistis da empresa?
Mas agora o fareis, agora o veremos, com o favor divino, que já é chegado o
tempo.
Por tudo
isto dizia São Paulo: Plus omnibus laboravi: "Que trabalhou
mais que todos os apóstolos"; e pela mesma razão digo eu dos soldados
do Brasil: Plus omnibus laboraverunt: "Que
trabalharam e trabalham mais que todos os soldados
do mundo", e se mais que todos trabalham, bem merecem ser premiados mais que
todos. Mas, o fortuna viris invida fortibus! — dizia
Hércules: "Oh fortuna, sempre invejosa aos varões
fortes!" Bem experimentam nossos soldados que se ajuntam
poucas vezes valor a fortuna, porque, assim como são valentes mais que todos,
assim são mais que todos desgraçados. Não há infantaria no mundo nem mais mal
paga, nem mais mal assistida: é possível que há de andar descalços e despidos
uns corpos tão ricos de valor! Descalços e despidos os soldados do Rei das Espanhas, do
mais poderoso Monarca do mundo! Bem sabemos a quanta estreiteza está reduzida
a fazenda real no tempo presente; mas quando El-Rei neste estado não tivera
outra coisa, a camisa (como dizem) havia de tirar para vestir tais
soldados.
Nenhum
monarca no mundo chegou nunca a tanta pobreza como Cristo, Redentor nosso, na
cruz, e contudo, tanto que se viu com o título de rei sobre a cabeça: Rex judaeorum,
não só os
vestidos exteriores, senão a túnica interior deu aos soldados, e não a
soldados que defendiam a fé, senão a soldados que crucificavam a Cristo: Milites
ergo cum crucifixissent eum, acceperunt vestimenta ejus, et
tunicam. E que
fizeram esses soldados logo? — Tomaram os vestidos do Senhor, e puseram-se a
jogá-los. Pois, se o verdadeiro Rei se despe para que os soldados tenham que
jogar, quanto mais se deve despir para que tenham que vestir? E mais quando eles
são tão valentes e tão briosos que, andando rotos e tão despidos, que puderam
ter esquecido o vestir, nem por isso se esquecem do investir. É
certo, Senhores, para que digamos e confessemos tudo, não
haveria muito de que nos espantar quando assim o fizeram.
Quando
Deus perguntou a Adão por que se escondera no bosque do paraíso, respondeu
ele: Timui, eo quod nudus essem, et abscondi me: "Senhor,
olhei para mim, vi-me despido: por isso temi, e me escondi". O mesmo puderam
fazer os soldados desta guerra: temerem e esconderem-se na
ocasião, e quando lhes perguntassem
por que, responder: Timui, eo quod nudus essem, et abscondi me: Escondi-me em um mato, temi a morte, não quis pelejar com
os holandeses, porque quando olho para mim, vejo-me despido, e não quero dar o
sangue por quem me não dá de vestir.
Isto puderam fazer os nossos soldados como filhos de Adão, mas como filhos e descendentes daqueles portugueses
famosos, pelejam, trabalham, cansam, morrem, e quando olham para si, como andam despidos, vêem-se a si, e
fazem como quem são. Há maior
fineza? Há maior constância? Há maior fidelidade? Portuguesa, enfim. Lá Jacó, um dia que se viu mui favorecido
de Deus, saiu com um voto, e disse desta maneira: Si dederit mihi panem ad vescendum, et
vestimentum ad induendum, erit
mihi Dominus in Deum: Se Deus me
der pão para comer, e roupa para
vestir, eu faço voto à sua divina Majestade de o servir como a meu
Senhor. Vós passais pelo
descanso da condição, pela valentia da promessa? Pois este era aquele famoso Jacó, a quem se lançavam escadas do
céu à terra, a quem o mesmo Deus
vigiava o sono. Para que conheça Espanha, para que conheça nosso grande Monarca quanto mais deve aos fidelíssimos
soldados desta guerra, pois, com as obras e com o sangue prometeram sempre a
vozes que haviam de servir a seu Rei, e morrer por ele, ainda que nunca lhes desse de comer nem
de vestir.
E se sem
vestir e sem comer obraram até aqui tão valorosamente, agora, que
a cuidadosa providência do Marquês Vice-Rei, que Deus guarde, de nenhuma
coisa mais tratou que de trazer com que vestir e sustentar esta
infantaria, que farão, ou que não farão? Que não farão agradecidos, se tanto fizeram
descontentes? Que não merecerão trabalhando os que tanto trabalharam sem
merecer? Não há dúvida que, alentados os bons, que serão os mais, com o prêmio, e
refreados os maus, que serão os menos, com o castigo, entre as resistências do
temor e os impulsos da esperança, tornará o Brasil em si, e debaixo das asas de
uma e outra justiça, recobrará a perfeita saúde, que tanto lhe desejamos.
VI
Mas como
a experiência ensina que, para a saúde ser segura e firme, não
basta sobressarar a enfermidade, se não se arrancam as raízes e se cortam
as causas dela, é necessário vermos ultimamente quais são e quais foram as
causas desta enfermidade do Brasil. A causa da enfermidade do Brasil, bem
examinada, é a mesma que a do pecado original. Pôs Deus no Paraíso Terreal a nosso
pai Adão,
mandando-lhe que o guardasse e trabalhasse: Ut
operaretur; et custodiret: e ele,
parecendo-lhe melhor o guardar que o trabalhar, lançou mão à árvore
vedada, tomou o pomo que não era seu, e perdeu a justiça em que vivia, para si
e para o gênero humano. Esta foi a origem do pecado original, e esta é a causa
original das doenças do Brasil: tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos e conveniências
particulares, por onde ajustiça se não guarda, e o Estado se perde.
Perde-se
o Brasil, Senhor digamo-lo em uma palavra porque alguns ministros de Sua
Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm cá buscar nossos bens. Assim
como dissemos que se perdeu o mundo porque Adão fez só a metade do que Deus lhe
mandou, em sentido averso, guardar sim, trabalhar
não, assim podemos dizer que se perde também o Brasil
porque alguns de seus ministros não fazem mais que ametade do que
El-Rei lhes manda. El-Rei manda-os tomar Pernambuco, e
eles contentam-se com o tomar. Se um só homem que tomou perdeu o mundo,
tantos homens a tomar como não hão de perder um estado? Este tomar o alheio,
ou seja o do rei ou o dos povos, é a origem da doença; e as várias artes,
e modos, e instrumentos de tomar são os sintomas, que, sendo de sua
natureza mui perigosa, a fazem por momentos mais mortal. E se não, pergunto para que
as causas dos sintomas se conheçam melhor: —Toma nesta terra o Ministro da
Justiça? — Sim, toma. Toma o Ministro da Fazenda? — Sim, toma. Toma o ministro da
República? — Sim, toma. Toma o Ministro da Milícia? — Sim, toma. Toma o
Ministro do Estado? — Sim, toma. E como
tantos sintomas lhe sobrevêm ao pobre enfermo, e todos acometem
à cabeça e ao coração, que são as partes mais vitais, e todos são atrativos e
contrativos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos e das repúblicas,
fica tomado todo o corpo, e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que
castigue, nem mão direita que premie, e, faltando a justiça punitiva para
expelir os humores nocivos, e a distributiva para alentar e alimentar o
sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é
que não tenha expirado.
Como se
havia de restaurar o Brasil (não falo de hoje, nem de ontem, que a
enfermidade é muito antiga, ainda mal) como se havia de restaurar o Brasil, se
ia o capitão levantar uma companhia pelos lugares de fora, e, por lhe não fugirem os
soldados, trazia-os na algibeira? E como após este ia logo outro do mesmo humor,
que os trazia igualmente arrecadados, houve pobre homem nestes arredores que,
sem sair da Bahia, como se quatro vezes fora a Argel, quatro vezes se resgatou
com o seu dinheiro. Como se havia de restaurar o Brasil, se os mantimentos se
abarcavam com a mão de El-Rei, e talvez os vendiam seus ministros, ou os ministros
de seus ministros (que não há Adão que não tenha sua Eva), pondo os preços às
coisas a cobiça de quem vendia e a necessidade de quem comprava? Como se
havia de restaurar o Brasil, se os navios, que sustentam o comércio e enriquecem
a terra, haviam de comprar o descarregar, e o dar querena, e o carregar, e o
partir, e não sei se também os ventos? Como se havia de restaurar o Brasil, se o
capitão de infantaria, por comer as praças aos soldados, os absolvia das guardas e
das outras obrigações militares, envilecendo-se em ofícios mecânicos os ânimos
que hão de ser nobres e generosos? Como se havia de restaurar o Brasil, se o
capitão-de-mar-e-guerra fazia cruel guerra ao seu navio, vendendo os mantimentos,
as munições, as enxárcias, as velas, as antenas, e se não vendeu o casco do
galeão, foi porque não achou quem lho comprasse? E como mais ou menos por nossos
pecados sempre houve no Brasil ministros destas qualidades, que importava que
os generais ilustríssimos fossem tão puros como o sol, e tão incorruptíveis como os
orbes celestes? Digo isto porque sei que o vulgo é monstro de muitas cabeças,
que não se governa por verdade nem por razão, e se atreve a pôr a boca no mesmo
céu, sem perdoar nem guardar decoro ainda ao maior planeta. O certo é que
muitas coisas se dizem que não são, e há sucessores de Pilatos no mundo que,
por se lavarem as mãos a si, lançam as culpas à cabeça. Que haviam as cabeças de
executar, meneando-se com tais mãos e obrando com tais instrumentos? Desfazia-se
o povo em tributos e mais tributos, em imposições e mais imposições, em
donativos e mais donativos, em esmolas e mais esmolas que até à humildade deste
nome se sujeitava a necessidade ou se abatia a cobiça e no cabo nada aproveitava,
nada luzia, nada aparecia. Por quê? — Porque o dinheiro não passava das mãos
por onde passava. Muito deu em seu tempo Pernambuco,
muito deu e dá hoje a Bahia, e nada se logra, porque o que se tira
do Brasil tira-se do Brasil: o Brasil
dá, Portugal o leva.
VII
Com
terem tão pouco do céu os ministros que isto fazem, temo-los retratados
nas nuvens. Aparece uma nuvem no meio daquela baía, lança uma manga ao
mar, vai sorvendo por oculto segredo da natureza grande quantidade de
água, e, depois que está bem cheia, depois que está bem carregada, dá-lhe o
vento, e vai chover daqui a trinta, daqui a cinquenta léguas. Pois, nuvem ingrata,
nuvem injusta, se na baía tomaste essa água, se na baía te encheste, por que não
chaves também na Bahia? Se a tiraste de nós, por que a não despendes conosco? Se a
roubaste a nossos mares, por que a não restituis a nossos campos? Tais como
isto são muitas vezes os ministros que vêm ao Brasil, e é fortuna geral das
partes ultramarinas. Partem de Portugal estas nuvens, passam as calmas da
Linha, onde diz que também reservem as
consciências, e em chegado verbi
gratia a esta Bahia, não fazem
mais que chupar, adquirir, ajuntar, encher-se (por meios ocultos, mas sabidos), e
ao cabo, de três ou quatro anos, em vez de fertilizarem a nossa terra com a água que
era nossa, abrem as asas ao vento, e vão chover a Lisboa, esperdiçar a Madrid.
Por isso nada lhe luz ao Brasil por mais que dê, nada lhe monta e nada lhe aproveita
por mais que faça, por mais que se desfaça. E o mal mais para sentir de todos é
que a água que por lá chovem e esperdiçam as nuvens não é tirada da abundância
do mar, como noutro tempo, senão das lágrimas do miserável e dos suores do
pobre, que não sei como atura já tanto a constância e fidelidade destes vassalos.
Tenho
reparado muito que em nenhum tormento da Paixão desceu anjo do céu a
confortar a Cristo, senão quando suou no Horto. Pois, por que mais nos suores do
Horto, que nos açoites da coluna, nos tormentos da cruz, ou noutro daqueles
transes rigorosíssimos? Os porquês de Deus são só a ele manifestos. Mas o que
ele nos revelou daquele caso é que suou pela saúde, pela vida e pela glorificação
dos homens. E que hajam de viver outros à custa do meu suor! Que haja de
suar eu para que outros vivam! Que haja de suar eu para que outros triunfem, é
um ponto tão rigoroso, considerado humanamente como Cristo
então o considerava é um ponto tão rigoroso, é um transe tão apertado, que até o
coração de um homem-Deus parece que há mister que venha um anjo do céu a o
confortar, que não há forças na natureza nem cabedal para tanto.
Muitos
transes destes tens padecido, desgraciado Brasil, muitos te
desfizeram para se fazerem, muitos edificam palácios com os pedaços de tuas
ruínas, muitos comem o seu pão ou o pão não seu
com o suor do teu rosto; eles ricos, tu pobre; eles salvos, tu em perigo; eles por ti
vivendo em prosperidade, tu por eles a risco de expirar. Mas agora alegra-te, anima-te,
torna em ti, e dá graças a Deus, que já por mercê sua estamos em tempo que se
concorrermos com o nosso suor, há de ser para nossa saúde. Pelo que, Senhores,
vós, os que governais a República, não atenteis só para a fraqueza do enfermo,
que bem vemos quão pouca substância tem e quão debilitado está; mas olhai
muito para o bem da saúde e para a importância do remédio. O doente que quer
sarar, levado do amor da vida, nada põe por diante, em nada repara: por ásperos
que sejam os medicamentos, a tudo fecha os olhos. Bem sei que se hão de ouvir
ais, bem sei que se hão de ouvir gemidos, e muito justos; mas compadecer e cortar (como
seja com a igualdade e moderação devida); que ser nesta parte cruel é a
maior piedade. Anime-se, pois, a fidelidade e liberalidade deste povo a se socorrer
e ajudar nesta causa tão justa e tão sua, estando mui certo e seguro que se der o
suor, se der o sangue, não há de ser para que outros vivam e triunfem, senão para que
nós vivamos e triunfemos de nossos inimigos. Tudo o que der a Bahia, para
a Bahia há de ser; tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar.
VIII
E porque
sei de certo que assim o havemos de ver, como digo, quero acabar
este sermão com uma profecia alegre, fundada na mesma verdade, e é que desta vez
se há de restaurar o Brasil. Dêem-me licença para que pondere um lugar, que hoje
tudo foram palavras; mas foi necessário dizer muito: outro dia pregaremos
pensamentos.
Sacramento
Eucharistiae totus mundus subjugatus est diz Santo Elígio
na Homilia onze, e é autoridade mui
recebida de toda a Igreja, que "com o
Santíssimo Sacramento da Eucaristia sujeitou Cristo e restaurou o mundo". Na cruz
alcançou a primeira vitória; mas com o Sacramento do seu corpo e sangue foi
restaurando e restituindo a seu império quanto o demônio lhe tinha
tiranizado. Ora, examinemos e saibamos por que mais com o Sacramento da Eucaristia
que com outro mistério. Cristo nascido, Cristo morto, Cristo ressuscitado não
pudera restaurar o mundo? Pois, por que mais Cristo sacramentado? Por que se
tomou por instrumento desta restauração o mistério sagrado da Eucaristia?
Lavremos
um diamante com outro diamante, e expliquemos um santo com outro santo.
Santo Tomás, falando do Santíssimo Sacramento do Altar, nota uma coisa muito
digna de ponderação, e é que neste soberano mistério, "quanto Cristo
recebeu de nós, tudo despende conosco": Et hoc insuper
quod de nostro assumpsit, totum nobis contulit
ad salutem. Que recebeu Cristo de nós na
Encarnação? — Recebeu a carne e recebeu o sangue. E que nos
dá Cristo na Eucaristia? — Dá-nos essa mesma carne na
Hóstia, dá-nos esse mesmo sangue no Cálix. E este soberano príncipe é tão justo
e tão desinteressado, que quanto recebe de nós tudo despende conosco, e quanto
toma dos homens tudo gasta com os homens, para sita sustentação e
proveito: Quod de nostro assumpsit, totum nobis contulit ad
salutem. Logo, com muito fundamento, ao mistério
em que exercita esta grande ação, mais que a nenhum outro, se deve e se
atribui a restauração do mundo: Sacramento Eucharistiae lotus
mundus subjugatus est que em despendendo com os homens
tudo o que se recebe dos homens, em se gastando em benefício do povo tudo o que do
povo se tira (como daqui por diante se há de fazer), logo a restauração está
certa, e a vitória segura.
Tenho
provada a minha profecia? Pois ainda a confirmo com outra razão, e
vai por conta dos enfermos deste hospital, os quais me pediram desse as graças
ao Senhor Marquês da piedade tão cristã e zelo verdadeiramente de pai de
soldados, com que a primeira ação que Sua Excelência fez em saltando em terra,
foi mandar chamar o provedor e irmãos desta Santa Casa, e, sendo informado
do aperto em que estavam os doentes, e as misérias que padeciam, ordenar
que se fizesse novo hospital, e que com toda a caridade e liberalidade se
acudisse à saúde e regalo destes pobres enfermos. Desta ação infiro eu e confirmo que é
chegada a restauração do Brasil, e vede se o provo. Mandou São João Batista uma
embaixada a Cristo por dois discípulos de sua escola, em que dizia assim: Tu es,
qui venturas es, an alium expectamus? "Sois
vós, Senhor, o que haveis de vir restauraremos, ou havemos de esperar
ainda por outro?" Não puderam perguntar mais a
propósito se nós ditáramos a pergunta. Nenhuma coisa lhes respondeu Cristo de palavra:
manda buscar pela terra os cegos, os surdos, os mancos, os leprosos, enfim
quantos enfermos se puderam achar, e, depois de os curar a todos, virou-se então
para os embaixadores, e disse: Renuntiate
Joanni quae audistis et vidistis: "Ide, dizei a João o
que ouvistes e vistes". Pois, Senhor, com licença vossa,
esta resposta parece que não diz com a pergunta. Perguntam-vos se sois o Messias
esperado, perguntam-vos se sois vós o que haveis de restaurar o mundo, e por
resposta pondes-vos a curar enfermos? — Sim, com muita razão, diz São Cirilo: Ut congrua
ratione sumentes lidem ipsius, ad cum revertantur qui misit eos. — Pôs-se
Cristo a curar enfermos diante dos embaixadores do Batista, para que desta ação,
que lhe viam fazer, cressem e inferissem por boa razão que ele era o restaurador do
mundo por quem perguntavam. Este Senhor trata de curar enfermos: Caeci
vident, claudi ambulant, leprosi mundantur? Logo este
é o que há de restaurar o mundo: Tu es qui
venturus es; porque não há conjectura mais verdadeira
nem consequência mais formal de ser restaurador que ter grande cuidado dos
enfermos, e tratar destas obras de misericórdia.
E se não,
diga-nos o nosso Evangelho qual foi a primeira ação que fez no mundo
o Redentor e Restaurador dele? A primeira ação que Cristo fez em pondo o
pé em terra foi partir-se para as montanhas de Judeia, a curar, como dissemos,
um menino enfermo. Não é frase minha, senão do Cardeal de Toledo, que
fecha e confirma todo este discurso: Mira
Christi et Matris visitatio attulit Joanni peccati medicinam: "Esta
visita de Cristo e sua Mãe Santíssima foi como visita
de médico soberano, que curou a enfermidade de São João, e lhe trouxe a medicina
do pecado". Tão próprio é de quem há de restaurar mundos consagrar a primeira
ação à cura e ao remédio dos enfermos. Mas, como não são menos de Deus os
fins que os princípios, e nas profecias e prognósticos humanos nos ensina a Fé a
dizer — Deus sobre tudo, peçamos à
divina Majestade seja servido prosperar-nos estas tão bem fundadas
esperanças, e ouvir os suspiros e gemidos já cansados deste enfermo e aflito
Brasil. E para que mais eficazmente alcancemos o desejado despacho
desta tão justa petição, tomemos por valedora a Virgem Mãe do mesmo Deus,
por quem hoje se começou a dispensar a primeira graça, para que nos alcance esta,
oferecendo-lhe três Aves-Marias.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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