SERMÃO DA SEXAGÉSIMA
Semen est Verbum Dei.
I
E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.
Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo, que saiu o pregador evangélico a semear a palavra
divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas faz também caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura, e hão-nos de contar os passos. O mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que despendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim.
Para quem lavra
com Deus até o sair é semear, porque também das
passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear, são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão: os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa,
pagar-lhes-ão a semeadura:
aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura, e hão-lhes de contar os passos. Ah, Dia do Juízo! Ah, pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.
Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tomou; porque os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles animais
de Ezequiel, que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus, e significavam os pregadores do Evangelho, que propriedades
tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: Uma vez que
iam não tornavam. As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto; mas esse espírito tinha impulsos para os levar, não tinha regresso para os trazer; porque sair para tornar, melhor é não sair. Assim arguis com muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse
semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os
espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos, que havia
de fazer?
Todos estes contrários que digo, e todas estas contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo) mas com pouca ventura. Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos: Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de umidade: Aliud
cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum
est, et volucres
coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no mundo se reduzem a quatro
gêneros: criaturas racionais, como os homens;
criaturas sensitivas, como os animais; criaturas
vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras; a vegetativa nos espinhos; a sensitiva nas aves; a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras
secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no, e os homens? Pisaram-no: Conculcatum est. Ab hominibus
(diz a Glossa). Quando Cristo mandou pregar os apóstolos pelo mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: Ide, e pregai a toda a criatura. Como assim, Senhor? Os animais não são criaturas? As árvores não são criaturas? As pedras não são criaturas? Pois hão os apóstolos de pregar às pedras? Hão de pregar aos troncos? Hão de pregar aos animais? Sim: diz São Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os apóstolos iam pregar a todas
as nações do mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas? Grande desgraça!
Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui
trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido, e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres coeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcatum est. Tudo isto padeceram os semeadores
evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários
afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas: houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Arnãs: houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocantins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dous dias perdido nas brenhas, matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Natum aruit, quia non habebat humorem? E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam
pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum est? Não me queixo, nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são
glórias: mirrados sim, mas por amor de Vós mirrados: afogados sim, mas por amor de Vós afogados: comidos sim, mas por amor de Vós comidos: pisados e perseguidos sim, mas por amor de Vós perseguidos e pisados.
Agora torna a minha pergunta. E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria
da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a casa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel, com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, quando iam não tornavam: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dous versos mais abaixo, e vereis que diz, o mesmo texto, que aqueles animais tornavam, à semelhança
de um raio ou corisco: Ibant, et revertebantur in similitudinem fulguris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam, à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai, e volta como um raio, não torna. Ir, e voltar
como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou, nem a primeira, nem a segunda, nem a terceira perda; continuou por diante
no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se
restauraram com vantagem as perdas dos demais:
nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.
Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este
semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira, porque ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque depois de perder a primeira,
a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três
partes da vida, já que uma parte da idade
a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram as pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos
caminhos, esta quarta e última parte, este último
quartel da vida, por que se perderá também? Por que não dará fruto? Por que não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores, e tempo para os frutos. Por que não terá também o seu outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas,
só essas são as discretas, só essas são as que duram, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o mundo. Será bem que o mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há de ser. Eis aqui por que eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados
com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de
prólogo aos sermões que vos hei de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.
II
Semen est verbum dei.
O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo, que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho, e a terra boa, em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas,
com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações
duros e obstinados;
e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das cousas do mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque ou a desatendem, ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons, ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por
um: Et fructum fecit centuplum.
Este grande frutificar da palavra de Deus, é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o mundo fora santo.
Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias dos admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus.
Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas
e vaidades do mundo; os reis renunciando os cetros e as coroas; as mocidades e as gentilezas
metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje?
Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas
pregações, nem tantos
pregadores como hoje. Pois se tanto
se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva; não há um moço que se arrependa; não há um velho que se desengane; que é isto? Assim como Deus não é hoje menos onipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa, se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, por que não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta tão grande e tão importante
dúvida será a matéria do sermão.
Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós: a mim para aprender a pregar: a vós para que aprendais a ouvir.
III
Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo;
há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo são necessárias três cousas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister espelho, e há mister olhos. Que cousa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta
vista são necessários
olhos, é necessária
luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina. Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador, e do ouvinte; por qual deles havemos de entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?
Primeiramente por parte de Deus não falta, nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou, e três se perderam. E por que se perderam estas três? A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens, e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo, se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela
desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois por que não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são as influências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos
dos caminhos; mas por falta
das influências do Céu, isso nunca é, nem pode ser. Sempre Deus está pronto de sua parte, com o sol para aquentar, e com a chuva para regar; com o sol para alumiar,
e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos, et malos, et pluit super justos, et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? Disse o mesmo Deus por Isaías.
Sendo pois certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus; segue-se, que ou é por falta do pregador, ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não
fazer nenhum fruto, e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo. Os ouvintes, ou são maus ou são bons: se são bons, faz neles grande fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu
nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no:
Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também; mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra,
nasceu e frutificou;
o trigo que caiu na má terra, não frutificou,
mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão fecunda que nos bons faz muito fruto, e é tão eficaz que nos maus, ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou,
mas nasceu até nos espinhos;
lançada nas pedras,
não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E por quê? Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos, e ouvintes de vontades endurecidas, são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar
pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele: o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou a vós, e não é assim; vós sois o que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são
piores, porque um entendimento agudo pode- se ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma cousa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas
são mais agudas,
tanto mais facilmente
se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre
de vontades endurecidas, que ainda
são piores que as pedras. A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de entendimentos agudos, e os ouvintes de vontades
endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que apesar da agudeza nasce nos
espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras. Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho, de não cortar os espinhos, e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. É tanta a força da divina palavra, que sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que sem arrancar
nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos, corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança; tomai exemplo nessas mesmas pedras, e nesses espinhos. Esses espinhos e essas
pedras agora resistem ao Semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras O aclamem, e esses mesmos espinhos O coroem. Quando o Semeador do Céu deixou o campo, saindo deste mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos
e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras,
até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.
Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus,
não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara que fica por parte
do pregador. E assim é. Sabeis,
cristãos, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, por que não faz
fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.
IV
Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma, e buscando esta causa.
Será porventura o não fazer
fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos, eram varões
apostólicos e exemplares,
e hoje os pregadores são eu e outros como eu? Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: Saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit
qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença: Uma cousa é o soldado, e outra cousa o que peleja; uma cousa é o governador, e outra o que governa. Da mesma maneira, uma cousa é o semeador, e outra o que semeia; uma cousa é o pregador, e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter nome de pregador, ou ser pregador de nome não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? É o conceito que de sua vida têm os ouvintes. Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos,
antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras são tiro sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de Davi derrubou ao gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus. As vozes da harpa
de Davi lançavam fora os demônios do corpo de Saul,
mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a
mão:
David tollebat citharam, et percutiebat manu sua. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador.
O pregar, que é falar, faz-se com a boca; o pregar, que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou
cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram cem palavras? Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem
ser só palavras! Quis Deus
converter o mundo, e que fez? Mandou ao mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus enquanto Deus é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum, non factum. O Filho de Deus enquanto Deus e Homem é palavra de Deus e obra de Deus juntamente:
Verbum caro factum est. De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras, não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do mundo. Verbo divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras veem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de O amar. Na Terra há tão poucos que O amem, todos O ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu como na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a O amarem, e na Terra não? A razão é, porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na Terra é Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus e um sicut est; na Terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Vissem os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros.
Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo O fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros, ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos
e que lha pregaram na cabeça,
ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por cetro, continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste passo uma cortina, aparece a imagem do Ecce homo, eis todos prostrados por terra, eis todos a bater nos peitos, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas, que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coroa e daqueles espinhos, já tinha dito daquele cetro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? Porque então era Ecce homo ouvido, e agora é Ecce homo visto: a relação do pregador entrava pelos ouvidos, a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem, padres pregadores, por que fazem pouco abalo os nossos sermões? Porque
não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos.
Por que convertia o Batista tantos pecadores? Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Batista pregavam penitência: Agite poenitentiam: Homens, fazei penitência; e o exemplo
clamava: Ecce homo: eis aqui está o homem que é o retrato da penitência e da
aspereza. As palavras do Batista pregavam jejum, e repreendiam os regalos e demasias da gula: e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Batista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está
o homem vestido de peles de
camelo, com as cerdas e cilício à raiz da carne. As palavras do Batista pregavam despegos e retiros do mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as cidades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma cousa e veem outra, como se hão de converter? Jacó punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam manchados. Se quando
os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia
contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma
cousa é o semeador, e outra o que semeia, como se há de fazer fruto?
Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas.
Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado, iracundo,
impaciente, pouco caritativo,
pouco misericordioso, e mais zeloso
e amigo da própria estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive, e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes: contudo este mesmo homem com um sermão converteu o maior rei, a maior corte, e o maior reino do mundo, e não de homens fiéis, se não de gentios idólatras. Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?
V
Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afetado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo é arte; na música tudo se faz por compasso, na arquitetura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte; caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. Caía o trigo nos espinhos e nascia: Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae. Caía o trigo nas pedras e nascia: Aliud cecidit super petram, et ortum. Caía o trigo na terra boa e nascia: Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo.
Assim há de ser o pregar. Hão de cair as cousas e hão de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa? Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio;
uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados, só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a cousa no levantar, está no cair: Cecidit. Notai uma alegria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu;
para o sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair. Há de cair com queda, há de cair com cadência, há de cair com caso. A queda é para as cousas, a cadência
para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as cousas, porque hão de vir bem trazidas e em seu lugar; hão de ter queda:
a cadência é para as palavras,
porque não hão de ser escabrosas, nem dissonantes, hão de ter cadência: o caso é para a disposição, porque há de ser tão natural e tão desafetada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.
Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no mundo foi o Céu. Coeli enarrant gloriam Dei, et opera manuum ejus annuntiat firmamentum, diz Davi. Suposto que o Céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter palavras. Sim, tem, diz o mesmo Davi, tem palavras e tem sermões, e mais muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum
non audiantur voces eorum.
E quais são estes sermões e estas palavras do Céu?
As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do Céu, com o estilo que Cristo ensinou na Terra?
Um e outro
é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha, ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas:
Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez
de palavras. Se de uma parte está branco,
da outra há de estar negro; se de uma parte está dia, da outra há de estar noite; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra
hão de dizer subiu. Basta que não havemos de ver
num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do Céu o estilo da disposição, e também
o das palavras.
Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas, e muito claras e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem, e tão alto que tenham muito que entender nele os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para a sua lavoura, e o mareante para a sua navegação, e o matemático para as suas observações e para
os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas, e o matemático que tem lido quantos escreveram não alcança a entender
quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas, que todos as veem, e muito
poucos
as medem.
Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos portugueses, e havemos de ouvir um pregador em português,
e não havemos de entender o que diz? Assim como há léxicon para o grego, e calepino para o latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios, porque os cultos têm desbatizados os santos, e cada autor que alegam é um enigma. Assim o disse o Cetro Penitente, assim o disse o evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Cetro Penitente dizem que é Davi, como se todos os cetros não foram penitência; o evangelista Apeles, que é São Lucas; o Favo de Claraval, São Bernardo; a Águia de África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, São Jerônimo; a Boca de Ouro, São Crisóstomo. E quem quitaria ao outro, cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes, que a Águia de África é Cipião, e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse
um homem que assim
falasse na conversação, não o havíeis de ter por néscio? Pois o que na conversação seria necedade como há de ser
discrição no púlpito?
Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo polido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo,
com Leão; e pelo escuro e duro, com Clemente Alexandrino, com Tertuliano,
com Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense, e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores, posto que desejáramos, nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de nossa queixa?
VI
Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar
o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos, e quem levanta muita caça e não segue nenhuma, não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos gêneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma só semente, e não muitas, porque o sermão há de ter
uma só matéria, e não muitas
matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem colher cousa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para
o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia
fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto, e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, que se há de colher senão vento? O Batista convertia muitos em Judeia, mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini; a preparação para o reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas, mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, ei Ninive sobvertetur a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto, e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há de ser duma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria.
Há de tomar o pregador uma só matéria,
há de defini-la para que se conheça, há de dividi-la para que se distinga, há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar, há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades, há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disso há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto. Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos,
mas esses hão de nascer todos da mesma matéria, e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos?
Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem troncos, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há de ser o sermão: há de ter raízes fortes e sólidas, porque há de ser fundado no Evangelho; há de ter um tronco, porque há de
ter um só assunto e tratar uma só matéria. Deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria, e continuados nela. Estes ramos não hão de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios, há de ter flores, que são as sentenças, e por remate de tudo há de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há de ordenar o sermão. De maneira que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos, mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo
são folhas, não é sermão, são verças. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem
árvore. Assim que nesta árvore, a que podemos chamar árvore da vida, há de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos, mas tudo isto nascido e formado de um só tronco, e esse não levantado no ar,
senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão de ser os sermões; eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles.
Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos
Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos oradores evangélicos São João Crisóstomo, de São Basílio Magno, São Bernardo, São Cipriano, e com as famosíssimas orações de São Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto
que nestes mesmos padres,
como em Santo Agostinho, São Gregório e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermões e homilias, uma cousa é expor
e outra pregar, uma ensinar
e outra persuadir. E desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo Antônio de Pádua e São Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja, ainda, esta a verdadeira causa que busco.
VII
Será, porventura, a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não colheram, e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há de pregar o seu e não o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu e não o alheio, porque o alheio e o furtado não são bons para semear, ainda que furto seja de ciência. Comeu Eva o pomo da ciência, e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe, já que comeu o pomo, porque lhe não guardou as pevides. Não seria bem que chegasse
a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que o não fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear; é bom para comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo,
que se nasce,
não há de deitar raízes, e o que não tem raízes, não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto, por que pregam o alheio, e não o seu: semen suum. O pregar é entrar em batalha com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória. Quando Davi saiu a campo
com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja Davi. As armas de Saul só servem a Saul, e as de Davi a Davi, e mais aproveita um cajado
e uma funda própria, que a espada e a lança alheia.
Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derrube gigante.
Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, que foi ordená-los de pregadores; e que faziam os Apóstolos? Diz o texto que estavam: Reficientes retia sua; refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias. Notai: Retia sua: não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam,
não eram suas porque lhes custaram
o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas, e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam
de pescar homens. Com redes alheias ou feitas por mão alheia, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é, porque nesta pesca de entendimentos, só quem sabe fazer a rede, sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há de fazer rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas cousas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves, e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça.
As razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias
vão pegadas à memória,
e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.
Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes
haviam de pôr na boca;
mas elas foram-se
pôr na cabeça.
Pois por que na cabeça e não na boca que é o lugar da língua? Porque o que há de dizer o pregador, não lhe há de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca, para nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento. Ainda têm mais mistério estas línguas
do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum. E por que cada uma sobre cada um, e não todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão vede-o no estilo de cada um dos apóstolos, sobre que desceu o Espírito
Santo. Só de cinco temos Escrituras; mas a diferença com que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas
todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacó forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio,
e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco São Lucas e São Marcos, que também ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu São João no Apocalipse:
Locuta sunt septem tonitrua voces suas. Eram trovões que falavam e dearticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas; suas e não alheias, como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. Enfim pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez cousa boa.
Contudo, eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Batista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou São Lucas, e não com
outro nome senão
de sermões: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonum Isaiae prophetae. Deixo o que tomou São Ambrósio de São Basílio, São Próspero e Beda de Santo Agostinho, Teofilacto e Eutímio de São João Crisóstomo.
VIII
Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz
com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam
conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz, e bom peito.
E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes
mais os brados que a razão. Boa era também esta, mas não a podemos provar com o
semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o que nos negou
o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo acabou a parábola, diz o Evangelho que começou o Senhor
a bradar: Haec dicens clamabat. Bradou o Senhor,
e não arrazoou sobre a parábola, porque era tal o auditório, que fiou mais dos brados que da razão.
Perguntaram ao Batista, quem era? Respondeu ele: Ego
vox clamantis in deserto. Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Batista. A definição do pregador cuidava eu que era: voz que arrazoa, e não voz que brada. Pois por que se definiu o Batista pelo bradar, e não pelo arrazoar: não pela
razão,
senão
pelos brados? Porque há muita
gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a quem o Batista pregava. Vede-o claramente em Cristo.
Depois que Pilatos
examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto: eu nenhuma causa acho neste homem. Neste tempo todo o povo, e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At illi magis clamabant, crucifigatur. De maneira que Cristo tinha por si a razão, e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu para O livrar, os brados bastaram para O pôr na cruz. E como os brados no mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores nuvens: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos,
trovão para os ouvidos, raio para o coração: com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há de ser a voz do pregador:
— um trovão do céu, que assombre e faça tremer o mundo.
Mas que diremos à oração de Moisés: Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ui ros eloquium meum? Desça minha doutrina como chuva do céu, e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se destila brandamente e sem ruído? Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: Non clamabit neque audietur vox ejus foris? Não clamará, não bradará, mas falará com uma voz tão moderada que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete na alma.
Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat; nem a do estilo: seminare; nem a da matéria: semen; nem a da ciência: suum; nem a da voz: Clamabat. Moisés tinha fraca voz; Amós tinha grosseiro estilo; Salomão multiplicava e variava os assuntos; Balaão não tinha exemplo de vida; o seu animal não tinha ciência, e contudo todos estes falando, persuadiam e convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos, finalmente,
que é a verdadeira causa?
IX
As palavras que tomei por tema o dizem: Semen est Verbum Dei. Sabeis (cristãos) a causa por que se faz,
hoje, tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras
de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como dizia) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores
não são palavras
de Deus, que muito que não tenham a eficácia
e os efeitos
da palavra de Deus? Ventum seminabant, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: quem semeia ventos, colhe tempestades. Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra
de Deus, como não há a Igreja de Deus de colher tormenta em vez de colher fruto?
Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra
de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As palavras
de Deus pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavra de Deus;
mas pregadas no sentido que nós queremos, não são
palavra de Deus, antes podem ser palavra do demônio. Tentou o demônio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore Dei. Esta sentença era tirada do capítulo oitavo do Deuteronômio. Vendo o demônio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo 90, diz-lhe desta maneira: Mitte te deorsum; scriptum est enim, quia angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis. Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras, que os anjos te tomarão nos braços para que te não faças mal. De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus; pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu
verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura
em sentido alheio e torcido: e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que tomadas no sentido em que Deus as disse são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do Templo. O pináculo do Templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no Templo: no deserto tentou-o com a gula, no monte tentou-o com a ambição, no Templo tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, se não a Cristo, a sua fé.
Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis que tantas vezes levantais, essas empresas ao vosso parecer agudas que prosseguis, achastes-las alguma vez nos profetas do Testamento Velho, ou nos apóstolos e evangelistas do Testamento
Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo! É certo que não, porque desde a primeira
palavra do Gênese até à última do Apocalipse, não há tal cousa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais. Nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que toam, e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras
de Deus, que nos queixamos de que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem! E então ver cabecear o auditório a estas cousas, quando
devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos! Oh que bem levantou o pregador!
Assim é; mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus! Se a alguém parecer demasiada a censura,
ouça-me.
Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o evangelista São Mateus, que por fim vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi testes. Estas testemunhas
referiram que ouviram
dizer a Cristo
que se os judeus destruíssem o Templo, Ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o evangelista
São João, acharemos que Cristo verdadeiramente
tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o Templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como lhes chama o evangelista
testemunhas
falsas: Duo falsi testes? O mesmo São João deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui. Quando Cristo disse que em três dias reedificaria o Templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os judeus destruíram pela morte, e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico, e as testemunhas o referiram ao Templo material de Jerusalém, ainda que as palavras
eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente
sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho
às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste número! Que muito logo que as nossas imaginações e as nossas vaidades e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!
Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos, pois neles se veio a cumprir a profecia de São Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt. Virá tempo, diz São Paulo, em que os homens não sofrerão a doutrina sã: Sed ad sua desideria coacervabunt
sibi magistros
prurientes auribus; mas para seu apetite terão grande número de pregadores feitos a montão, e sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas: A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas autem convertentur: Fecharão os ouvidos à verdade, e abri-los-ão às fábulas.
Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento,
e quer dizer comédia; e tudo são muitas
pregações deste tempo. São fingimento,
porque são sutilezas
e pensamentos aéreos sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contavam entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédia a muitas pregações das que hoje se
usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito mais sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo que se achem maiores documentos para a
vida nos versos de um poeta profano e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso!
Pouco disse São Paulo em lhes chamar comédia, porque muitos sermões há que
não são comédia, são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência; (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas) a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este se rompeu, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse, e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos, e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto, e com as ações, havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós, que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afetada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar
auroras, a derreter
cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o rei veste como rei e fala como rei, o lacaio veste como lacaio e fala como lacaio; o rústico veste como rústico e fala como rústico; mas um pregador vestir como religioso e falar, como… não o quero dizer por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro, e o sermão comédia, sequer, não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava São Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar; não nos prezamos de seus filhos? Pois por que os não imitamos? Por que não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou São Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou São Francisco de Borja, e eu que tenho o mesmo hábito, por que não pregarei
a sua doutrina, já que me falta o seu espírito?
X
Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que já tenho experimentado, que se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes, e não gostam de ouvir. Oh boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem, e não gostem embora, e façamos nós nosso ofício. A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam,
essa é a
que lhes devemos pregar, e por isso mesmo, porque é a mais
proveitosa e a que mais hão mister. O trigo
que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demônios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: Venit diabolus, et tollit verbum de corde eorum. Pois por que não comeu o Diabo o trigo que caiu entre os espinhos? ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho; Conculcatum est ab hominibus. Pisaram-no os homens: e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a de que o Diabo se
teme. Desses outros conceitos, desses outros pensamentos,
dessas outras sutilezas que os
homens
estimam e prezam, dessas não
se teme, nem se acautela o Diabo, porque sabe, que não são essas as pregações que lhe hão de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: Secus viam; daquela doutrina que parece comum: Secus viam; daquela doutrina que parece trilhada: Secus viam; daquela doutrina que nos põe em caminho, e em via da nossa salvação (que é a que os homens pisam, e a que os homens desprezam), essa é a de que o demônio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do mundo; e por isso mesmo essa é a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes.
Mas se eles
não o fizerem
assim, e zombarem de nós,
zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam, et bonam famam, diz São Paulo. O pregador há de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o apóstolo. Há de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador
para ser afamado,
isso é mundo; mas infamado, e pregar o que
convém, ainda que seja com descrédito de sua fama, isso é ser pregador de Jesus Cristo.
Pois o gostarem ou não gostarem os ouvintes! Oh que advertência tão digna! Que médico há que repare no gesto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem, e não gostem: salvem-se, e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: Hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum. Pois será bem que os
ouvintes gostem, e que no cabo fiquem pedras? Não gostem, e abrandem-se; não gostem, e quebrem-se; não gostem, e frutifiquem. Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: Et fructum afferunt in patientia, conclui Cristo. De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer; frutifiquemos nós, e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita,
não é aquela
que dá gosto
ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atônito, sem saber parte de si, então é a pregação qual convém, então se pode esperar que faça fruto: Et fructum afferunt in patientia.
Enfim, para que os pregadores saibam como hão de pregar; e os ouvintes, a quem hão de ouvir, acabo com um exemplo do nosso reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dous famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos: não os nomeio, porque os hei de desigualar. Altercou-se entre alguns doutores
da Universidade, qual dos dous fosse maior pregador, e como não há juízo sem inclinação,
uns diziam este;
outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: “Entre dous sujeitos tão grandes não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento. Quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim”. Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saireis muito descontentes de vós. Semeadores
do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos
sermões, não que
os homens saiam
contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições, e enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós. Si hominibus placerem, Christi servus non essem, dizia o maior de todos os pregadores, São Paulo. Se eu contentara aos homens, não seria
servo de Deus.
Oh contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma igreja há tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum facti sumus Deo, angelis, et hominibus. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve, e nos há de julgar. Que conta há de dar a Deus um pregador no Dia de Juízo? O ouvinte dirá: não mo disseram; mas o pregador? Vae mihi, quia tacui. Ai de mim que não disse o que convinha! Não seja mais assim
por amor de Deus,
e de nós. Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra
de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos, e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas,
contra os ódios,
contra as ambições, contra as invejas,
contra as cobiças,
contra as sensualidades.
Veja, o Céu que ainda tem na Terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na Terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus; e saiba a mesma Terra, que ainda está em estado de reverdecer, e dar muito fruto:
Et fecit fructum centuplum.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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