COMO EU CONHECI O MESTRE
As “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, — dedicadas como saudosa lembrança “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes” do cadáver do herói, tinham aparecido em 1881, e eu ainda não conhecia o livro maravilhoso, quando, em janeiro do ano seguinte, levado por um amigo querido, fui, pela primeira vez, a Petrópolis, a passeio, um passeio que durou oito dias, e de que me ficou uma lembrança imperecível.
Naquele tempo a viagem de Petrópolis consumia umas quatro ou cinco horas, mas era admirável. Primeiro a travessia da baía, nas barcas, muito limpas e elegantes da empresa; em seguida, os vinte minutos de comboio até à Raiz da Serra; e, por fim, as diligências da União e Indústria, a três parelhas, galgando o aclive da bela e ótima estrada macadamizada, ao lado da qual se iam desdobrando, em maravilhas, os variados panoramas da paisagem.
Do alto da serra, uma carruagem nos conduziu ao Hotel do Oriente, que já não existe, e onde tive a surpresa agradável de encontrar França Júnior, então em plena voga, por causa dos seus folhetins humorísticos da “Gazeta de Notícias”. O folhetinista popular, o comediógrafo do “Defeito de família”, do “Direito por linhas tortas”, de “Como se fazia um deputado” e de outras comédias de grande êxito, era um dândi notado bela elegância e correção do trajar, o que lhe atenuava a escassa esbelteza das linhas e era, além disso, um ótimo palestrador. Estava lá com a esposa, uma senhora muito alta e esguia, distintíssima, de grande cultura e de nobres maneiras, como toda a família dos Amarais, a que pertencia, filha do diplomata e poeta José Maria de Amaral, hoje tão esquecido, e sobrinha do visconde de Cabo Frio.
— Por aqui? Mas que bela surpresa!
— Você vai ter outra mais agradável: está cá também o Machado de Assis, com a senhora; conhece-a?
— Não; mesmo o Machado só o conheço de vista.
Disse-lhe quanto lhe seria grato se me fizesse a fineza de me apresentar ao Mestre; e França Júnior, amável, apresentou-me, à hora do jantar, quando Machado, com a esposa, ia sentar-se à mesa. Fiquei sempre grato a França Júnior por essa apresentação e também porque ele, pacientemente, me mostrou, em dias sucessivos, todos os recantos belos ou interessantes de Petrópolis, que era naquele tempo uma vilazinha florida onde as flores desabrochavam em todas as casas, ricas e pobres, subiam em hastes pelas paredes e iam rebentar em esmaltes e matizes variegados sobre as telhas das casas térreas. O doutor França conhecia todos os centímetros de terreno de Petrópolis e ninguém tão bem como ele me poderia pôr em contato com os seus encantos.
No dia seguinte, ao almoço, apareceu no hotel outro poeta, Rozendo Muniz, que, chegado nesse dia, parou à minha mesa, para me cumprimentar. Disse-lhe que tínhamos ali o nosso Machado de Assis e logo ele me fez um sinal discreto para me eu calar:
— Não nos damos...
Fiquei espantado de haver alguém zangado com o Mestre ilustre, tão afável, tão doce, tão alegre no conversar. Mas logo me refiz, por saber que Rozendo era o que nós chamamos um estoirado.
Enfim, ali começaram as minhas relações com o poeta das “Crisálidas”, das “Falenas” e das “Americanas”, com o insigne prosador, de “Brás Cubas” e de “Quincas Borba”. Sereno, sorrindo com indulgência à minha mocidade estouvada, sempre a par da esposa, senhora de incomparável encanto, inteligentíssima, que Portugal parecia ter mandado ao Brasil expressamente para ser a companheira e o anjo bom do grande escritor brasileiro, irmã também de um poeta — Faustino Xavier de Novais, — Machado não desdenhava de conversar comigo, que era um principiante ignorado e de poucas letras, de me contar anedotas, o que ele fazia com imensa “verve”, tirando efeitos de graça da sua própria gaguez. E comecei a amá-lo e a venerá-lo desde então, sem poder imaginar que um dia me seria dada a honra de me sentar ao seu lado, numa Academia.
Foi um passeio feliz, aquele de Petrópolis, no ano remoto de 1882! Dele me ficaram no coração a amizade de Machado, e na memória os dois nobres perfis de medalha antiga, que eram o da sua esposa e o da senhora França Júnior.
Agora, volvidos quase treze anos sobre a morte do Mestre, Mário de Alencar, que foi o mais querido dos seus discípulos e dos seus amigos, propôs que a Academia Brasileira de Letras promovesse a ereção de um monumento público que perpetuasse no belo parque do Passeio a memória do seu primeiro presidente, um monumento modesto, condizente com a índole e com a vida discreta do Mestre.
À Academia não seria difícil, nem pouco agradável, o erigir ela mesma, à sua custa, o monumento. Mas não foi esse o pensamento de Mário de Alencar; antes ao contrário, do que se cogitou foi de provar que o público, o público de todos os recantos do Brasil, que sabe ler e que lê, preza a memória do maior dos escritores nacionais e que é capaz de fazer o sacrifício de alguns mil réis, para perpetuar essa memória na capital do país. Há quem diga que não, porque Machado de Assis não foi nem podia ser um escritor popular, no sentido comum desse adjetivo; mas também há quem diga que sim.
Nas palavras “ao leitor”, que precedem as “Memórias”, Brás Cubas delas escreve: “É obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia; e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que “a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual”; e ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião”.
E eu estou certo de que “A Noite” iniciará no nosso jornalismo a subscrição pública para o monumento, com uma quantia bem modesta, que não espante os futuros subscritores, quando por tal não seja, ao menos pela curiosidade de vermos como o povo ledor do Brasil responde à duplicidade do conceito de Brás Cubas.
E logo veremos como se expressam as duas colunas máximas da opinião...
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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