AO POVO
Em retribuição às suas "Constelações"Como expressão de paternal carinho. Le Poète est semblable au prince des nuéesQui hante la tempête et se rit de l'archer;Exilé sur le sol, au milieu des huées,Ses ailes de géant l’empêchent de marcher. Charles Baudelaire (L’albatros)
ALBATROZES
Ou sobre as ondas do alto mar, flutuando,Balouçantes, em sonhos, em cismares,Ou sobre as nuvens revolvendo os ares,Sem receio ao ciclone formidando, De penas alvas, misterioso bandoDe albatrozes, transpondo os grandes mares.De encontro aos ventos, suplantando asaresVão ignoradas plaias demandando... Deixai-os voar, em plena liberdade.Ou rente ao mar ou na suprema altura,Sumidos na azulina imensidade. No dilatado voo indefinido,Eles aspiram como ideal ventura,I pousar nas paragens do infinito.
AO POETA
Sofre! É lei natural; a dor nos retempera;Ao choque da emoção, o sangue se aceleraE imprime à fronte em fogo o lampejo febril.Sofre a atroz aflição com ânimo viril.Bem como um reverbero a concentrar no seioIrradiações do sol — que o sofrimento alheioBata em teu coração e se converta em luz. Canta! E a tua voz que inflamada seduzEspalhe à multidão, como uma suave essência,Bondade, amor, poesia, a florir a existência.Canta o Belo que vês em tocante esplendor, O sorrir infantil, o desabrochar da flor,A prece, na mudez eloquente do pranto,O mistério-mulher de indefinido encanto,O mistério da seiva em contínuo vai-vem,O sonho, a vida, a luz, o mistério do Além,O murmurar do rio, o vozear da floresta,Dos ninhos, a oscilar, a pipilante festa,Da invisível monera o estremecer vitalE o eterno evolver do mundo sideral. Quando a morte, por prêmio ao teu apostolado.Conceder-te repouso ao coração cruciado,Encara-a sem temor, pois não é ela um fim.A campa é para nós um novo camarimDe mutações; a vida assume nova forma.Não se destrói o corpo, apenas se transforma.A alquimia subterrânea opera outro existirNo ar, ou no perfume, ou na flor a sorrir,Ou no éter, a flutuar imponderável...Canta:Segue para o infinito em romaria santa!
FESTIM ROMANO
Após o banho em termas perfumadas,Encantadoras cortesãs, trajandoRicas vestes de seda aurilavradas,Em passo airoso e brando,Dirigem-se ao palácioDa romana Barina.Barina! a mais formosa em todo o Lácio!Caprichosa hetaira peregrina!Barina! aquela que ao quebrar os votosSurge mais bela e sedutora ainda!A inspiradora de paixões protervasQue sabe destilar filtros ignotosDe anacampseros e cândidas ervas,Para exaltar amor que nunca finda! Como quem vai ao Panteon da glória.Sobem sorrindo a larga escadariaDe nitidez marmórea,E, ébrias de alegria.Penetram no triclínio iluminadoPor lâmpadas de prata reluzente. Divaga pelo ambienteDe bálano o perfume delicadoA desprender-se das luzentes comas;Vasos da Etrúria adornam-se de floresD’inebriantes aromas;Grinaldas multicoresDe rosas brancas, fulvas, purpurinas,Pendem do teto em larga profusãoOu se enroscam, em curvas serpentinas,Às colunas coríntias do salão.Esplendem as paredes de pinturasA retratar ao vivo imagens frescas,Lindíssimas figurasEm posições lascivas, picarescas,Cuja crueza as atenções atrai;Leda entregue à paixão do cisne ufano;Os amores do touro e Pasifai;O cavalo dileto de Filira;Marte e Vênus em redes do Vulcano...E o mais que o gênio da luxúria inspira. Que imensa turba! Generais, questores,Vates, edis, pretores, argentários,Moços patrícios, velhos legionários,Atletas vigorosos.Hercúleos e potentes gladiadores,Todos sedentos de apurados gozos.A provocar febril concupiscência.As preciosas mundanas.Gentis tessalianas.Em túnicas de rara transparênciaMostram, em linhas sensuais e cruas,A correção das formas seminuas...Outras em véus de Tiro mal ocultamA lúbrica evidênciaDe tesouros que avultam... Que regozijo!... que função é esta?Completa hoje Barina o lustro sexto:Magnífico pretextoPara exibir extraordinária festa,Da qual a aparatosa ostentaçãoLembre Lúculo na exageração. O que Roma possui de mais egrégioComparece ao banquete, quase régio... Como um tributo à História,Barina e oito principais loureirasRepresentam de filhas da Memória,As de Apolo impolutas companheiras. Brilhantes singulares,A deslumbrar as vistas,Valiosíssimas gemasRefulgem nos anéis e nos colaresE dão às Musas divinais encantos.Desde os altos coturnos aos diademas,Mirrites odorantes, ametistas,Pardálios e berilos, zeros, xantos,Astrápias, crisóprasos, sandaresos,Carcínias e calais, altas conquistasDe libertinos Cresos,— Todo um mundo de joias ofuscantesQue são d’Arte famosas maravilhas —Exibe-se. Crotálias sussurrantesImpendem de emperladas gargantilhas.Ostentam-se as esplêndidas beldadesCircundadas de auréolas, reluzindo,Quais se fossem as próprias DivindadesQue ali baixassem do sagrado Pindo. Ancilas, escançãs, lustrosas, pretas,Cintadas de levíssimos sendais,Esbeltas, a mostrar as rijas telasEm linhas belamente esculturais,A sorrir donairosas,Com graça e com presteza,Servem a lauta, enriquecida mesaCoberta de iguarias saborosas:Ostras vivas, de gratas sensações,Sardas do Egeu, saperdas africanas,Atuns da Calcedônia, esturjõesDe Rodes, holotúrias capreanas,Moreias da Sicília e do Oriente,Zorzais d’Ásia Menor, tordos, faisões,Da Frígia francolins, e, ricamente,Línguas de rouxinóis, de reais pavos,De sabor excelente;Veados, javalis e patos bravosOriundos da Gália Transalpina;Fruetas— volemas, tópios deleitosos,Cariotas e, em ricos vasos belosDe incrustações de pedraria fina— Em crisêndetas— doces melimelos;Original dilúvioDe vinhos capitosos,Desde o falerno ao mássico potente,E o de Chipre e o famoso efervescenteEstátana — licor de quente eflúvioFabricado nas fraldas do Vesúvio —E os liberi belaria calorosos:Tudo que ao paladar incita gozosDelicia-se ali avidamente. Vibra, saudosa e límpida, a harmoniaDa tíbia berecíntia comovente;Escravas gregas cantos de poesia,Repassados de amor e de mistério.Soltam nas duplas flautas sonorosas...Gemem, suspiram cordas do saltério,Das harpas e das cítaras queixosas,E aquela deliciosa sinfoniaDos instrumentos suavesLembra a doçura do cantar das avesA festejar o despontar do dia. De vez em vez escuta-se o anagnosta,O escravo que declamaCanções lésbias, ardentes, fesceninas.De que toda a assembleia rindo gosta E mais ateia a chamaDos heróis e das belas messalinas. Bronze-dourados numes— Prendas colhidas em troféu de EleusisErguem ao ar caçoulas fumegantesDe timiamas a exalar perfumes,Como oblação misteriosa aos DeusesPropícios aos amantes. Em grita, soam saudações sincerasÀs Musas em revolto desalinho.E os ciatos imergem nas craterasA transbordar de vinho... Em cimbos áureos libam-se licores;Cantam hinos a Baco os bebedores;Reclamam novas ânforas marcadasPelos nomes dos cônsules antigos,E são logo esgotadasPela avidez dos comensais amigos. Dissolvem ricas pérolas nas taçasOs convivas, em honra de Barina:Aclamam-na mais bela do que as Graças,Rival vitoriosa de Erícina. De escaldadas, raucíssonas gargantasSoam por fim seis brindes — que são tantasAs letras de Berina.Os comensaisVão se entregar às danças sensuais. De anéis de ouro a cingir os tornozelos.Coroados de mitras os cabelos,Assírias bailadeiras,Cor do fruto das altas tamareiras,Olhos violáceos da contínua insônia,— As crotalístrias — a rufar pandeiros,Quase aéreas, deslizam,Em requebros ligeiros,E as mudas plantas só de leve pisamTapetes da opulenta Babilônia. Aqueles corpos juvenis exaltam,Fascinam como a luz...Em doido movimento os seios saltam,— Gêmeos amores ebriosos, nus... A plena embriaguez, a nudez plenaMostra contornos finamente rarosA causar desesperos ao pincel,Ondulações que não descreve a pena,Mimos que exigem mármore de ParosE do inspirado Fídias o cinzel. Após geral tripudio, nova cenaComeça...Vão de Apeles ao painel. Quando o sol do outro dia— Novo conviva — entrando,A rir, iluminou o enorme bando,Viu no triclínio a conclusão da orgia:Atletas, generais, edis, questores.De faces avinhadas,E poetas e patrícios e pretores,Com as frontes não mais engrinaldadasDe louros ou de flores.Dormiam resupinos, arquejantes,Nos braços nus das pálidas bacantes. Descuidosa da sorte,A embriagada Roma não ouviaO galopar dos Bárbaros do Norte.
A ARTE
Quando ela foi à Grécia, à pátria dos primores,
Nua e casta, a sorrir, cingida de lauréis,
Engrinaldou-se em glória a fronte dos pintores,
Rutilou como um sol o aço dos cinzéis.
Famoso estatuário, um gênio inexcedível.
Ao vê-la, prosternou-se aos pés do esbelto vulto,
E quis, num rasgo audaz de inspiração incrível.
Reproduzir a Deusa a quem rendia culto.
O mármore desbasta, esculpe febrilmente.
Contorna a fronte, o colo, os seios virginais,
Adelgaça-lhe a cinta, em ânsia impaciente.
Arredonda os quadris, contorna mais e mais...
E vendo ressurgir do mármore a figura.
É tanta a comoção do espírito intranquilo,
Que o gênio, curvo o joelho, em êxtases, murmura
"A Divindade és tu! És tu, Vênus de Milo!"
O PARTHENON
(Ao poeta sueco Goran Bjorkman)
I
Sob o cinzel de mágico prestígio
De Fídias e de alunos esforçados
— Íctinos e Cálicles inspirados —
Atenas sobe a estético fastígio.
Como imortal, olímpico vestígio
Do talento de artistas sublimados,
Na Acrópole de blocos cinzelados
O Pártenon se impõe como um prodígio
Da Ciência a Deusa armipotente impera.
Feita em ouro e marfim, alta, irradia,
A deslumbrar olhares fervorosos.
Ah! quem ao grande Péricles dissera
Que por museus bretões se espalharia
Tanto esplendor de mármores gloriosos!
Tanto esplendor de mármores divinos!
Relevos de frontões, egrégios bustos,
Apolíneas estátuas, Zeus augustos,
Ártemis, Parcas, Eros peregrinos,
A fileira dos vultos femininos
Das frisas, e os equestres e os robustos
Jovens guerreiros de perfis venustos
Tiveram que sofrer vários destinos.
O tempo destrutor e mãos mesquinhas
Desfizeram-te, ó grego relicário,
E em muda solidão, triste, definhas.
Após fulgente brilho extraordinário,
Tens por hino — o chilrear das andorinhas
E por adorno — o limo parietário.
BANHO DE FRINÉ
Quando Friné, a lúbrica sereia,
Despe na praia o mimo da roupajem,
E nua, em pleno sol, calcando a areia,
Banha-se em ondas de espumante arfagem.
A turba que este fato presencia
Suspira, ofega e freme, em vassalagem
Àquele corpo juvenil que ondeia
Qual da Afrodite a peregrina imagem.
Ela volve, impudica e donairosa,
E expõe, com garbo, à multidão curiosa,
A rara forma em que a beleza e suma.
Ao vê-la, Ápeles, num clarão radioso,
Concebe a ideia do painel famoso:
"Gloriosa Vênus a surgir da espuma!"
CULTO A FORMA
Em face a galeria de pintura,
Sinto estranha paixão quando deparo
Com desnudada, esplêndida figura,
— Belo produto de pintor preclaro.
Enlevado perante a formosura,
Eu, semelhante a fetichista ignaro.
Dobrado em reverente curvatura,
Consagro culto àquele objeto raro.
Se contemplando a estampa inanimada.
Sinto amor e respeito venerando
Pela Forma que apenas foi pintada.
Que sentirei por ti, ó Deusa, quando
Parece que és da tela desligada
E viva e luminosa vais passando?
AMOR DE PIGMALIÃO
Que gozo triunfal de estatuário!...
Ei-lo abraçado à esplêndida figura:
Oscula-lhe o cabelo, a fronte pura,
Belos olhos de mimo extraordinário!
Como um louco febril, um visionário,
Beija-lhe a boca de infantil frescura,
O colo, os seios de brilhante alvura.
Os seios! alvos lírios de um sacrário!
E impreca o céu num grito de agonia;
"Ó Vênus imortal, dá vida à ideia!
Faze animar-se a pedra muda e fria!"
Prodígio divinal! A cípria deia,
Cmpungida do gênio que sofria.
Dá vida à estátua, e surge Galateia!
CLEÓPTRA
I
Cingindo o corpo em tela de brocado
Que mal encobre o contornado seio,
Reclinada em divã auri-lavrado,
Cisma a Rainha em palpitante anseio.
Em forma de asas de íbis, mas de prata.
Luz o toucado; a esplêndida melena
Densa, ondulosa e negra se desata
Sobre a espádua morena.
O diadema de pedras cintilantes
Exibe em ouro a víbora sagrada
De boca de coral, olhos — diamantes,
E tremulante a língua bifurcada.
Cisma, apoiada sobre o cotovelo,
Semblante concentrado, merencorio.
Pés em sandálias a calcar o pelo
De urso branco, hiperbóreo.
Como troféu colhido em puga ardente
— Vencido soberano —
Semideitado, mas de altiva frente,
Vê-se-lhe aos pés enorme tigre indiano.
Esbelta escrava grega, seminua,
Com leque de plumagens multicores,
Agita o ar contra o calor que estua
E sufoca de ardores.
A calma intensa fortemente aflige-a;
À transparência do sutil vestuário.
Bem poderia helênico estatuário
Reproduzir a Vênus Calípigia.
Em que meditas, ambiciosa filha
Dos Ptolomeus, em teu cismar profundo?
No ardente olhar um só desejo brilha:
O de reinar no mundo!
II
Airosa como um cisne e marchetada
De arabescos — dragões de madrepérola —
Resvala a embarcação engrinaldada
Sobre a face do Cidno d’água cérula.
Recebe a egípcia Antônio na galera
De popa d'ouro, velas purpurinas.
Remos de prata. E desde logo impera
No romano de ideias libertinas.
Uma leve harmonia voa incerta
Das citaras em trêmulos arpejos;
Sob o dossel da câmara entreaberta
Soa em surdina a música dos beijos.
Vinhos, perfumes, cantos cristalinos
Transportam ambos a deleites célios...
As três ordens de remos argentinos
Batem cadentes: branda força impele-os.
Subjugando o triúnviro, proclama
Cleópatra, a sonhar mais alto sólio:
"Hão de aclamar-me pela voz da Fama,
Quando eu ditar as leis no Capitólio!"
Sempre utopista, a bela imprevidente,
A fitar o céu puro,
Pressupõe, pelos gozos do presente,
Um grandioso futuro.
Sonha ver hieroglífica escritura
Narrar os planos vastos,
E a vitória já conta por segura,
Ultrapassando de Ramsés os fastos.
Parece-lhe que os ídolos imensos.
Grandes esfinges e animais sagrados
Estão, como suspensos,
No triunfo engolfados.
Alexandria toda se engalana
De adornos emblemáticos,
E, em sinal de alegria, a Soberana
Consagra as noites a festins orgíaticos.
Na desvairada vida a que se vota,
O contendor de Augusto manifesta
Amor insano à culta poliglota,
E repudia Otávia, a esposa honesta.
III
Um dia, após prazeres requintados.
Por dar a Antônio sensação mais forte.
Ao átrio manda vir três condenados
A castigo de morte.
E a extravagante, olímpica Princesa,
Ordena se ministrem corrosivos
Dos três reinos da varia natureza
Aos míseros cativos.
Flautas e guzlas, harpas e pandeiros,
Por moças da Caldeia desferidos.
Destinam-se a espalhar sons prazenteiros
E a sufocar gemidos.
Em ligeiro tablado ao centro posto.
Surge um felá — figura resoluta:
Sem contração no rosto.
Bebe dum trago a taça de cicuta.
Depois, um grande parta musculoso
Recebe o tóxico, a sorrir ingere-o,
E cai, arqueado, a escabujar furioso.
Demente pelo eleito deletério.
Chefe núbio de altura extraordinária,
Negra epiderme, desconformes dentes,
Em jaula aceita luta sanguinária
Com rábidas serpentes.
Seis áspides, seis víboras sanhudas,
Como insulfadas de vertigem louca.
Ensanguentam-lhe as pernas cabeludas.
Braços e peito e escancarada boca.
Contra as horrendas serpes esfomeadas
Desenvolvendo ingênito valor.
Vence-as a pés, a dentes, a punhadas,
E morre como um bravo o lutador.
Marco Antônio horroriza-se ante a cena;
Crispa-lhe o dorso estranho calafrio,
E vê na amante impávida, serena.
Prazer e sangue frio.
IV
À sombra de um velario, no terraço,
Canta o romano herói, ébrio de vinho;
Ela, formosa, a veste em desalinho.
Relembra de Erícina o vivo traço.
Beijam-se a rir, em serpentino abraço;
Da fogosa paixão no torvelinho.
Repetem juras de eternal carinho,
— Amor que vence o tempo e vence o espaço.
Vendo-o dormir, qual fera subjugada,
Levanta-se a Rainha alucinada.
Faces em chamas, desnastrada a coma,
E, olhando o mar, exclama, altiva e brava:
"Jamais! Jamais me arrastarás escrava,
Presa a teu carro triunfal, ó Roma!"
V
Defronte ao cabo d’Ácio, o mar se coalha
De embarcações egípcias e romanas .
A disputar ufanas
Os troféus da batalha.
Vozes em grita, imprecações frementes.
Bem como lanças de arremesso, voam
Das grandes naus de popas imponentes
Que estalando abalroam.
"Por Zeus! Por Ísis!" Orações e pragas
Ressoam no mavórcio incitamento;
Rolam sinistras, espumantes vagas
Sobre verde lençol sanguinolento.
Em defesa da própria liberdade.
Os fortes africanos combatentes,
A praticar ações de heroicidade,
Vão prestes recolher palmas virentes.
Em meio da batalha, a amedrontada
Cleópatra — somente vencedora
Nos combates de amor — foge apressada
Como se a morte a seu encalço fora.
Sob nuvem compacta, aterradora
De setas, segue Antônio a régia amada,
E após, supondo morta a sedutora,
No rude e largo peito embebe a espada.
Morde um áspide o seio palpitante
Da Rainha, que em derradeiro instante
Diz às escravas: "Exaltai-me a sorte!
Filha de heróicos Reis, nunca vencida,
Excelsa glória me coroa a vida,
Pois que à desonra vil, prefiro a morte!"
SÍSIFO
Como Sísifo — a vítima da lendaA rolar o rochedo na montanha,Tendo escrita nas faces a legendaDa existência infernal, escura, estranha; Entregue à luta colossal, tremenda,Que de sangue vivaz as mãos lhe banha.Erguendo o fardo à alcantilada senda.Sem nunca interromper lida tamanha: Assim, por entre os cardos da existência,Ergo, ofegante, à ríspida eminência,Como um suplício atroz, duro rochedo...Um grande amor... Abranda-te, minh'alma!Cessa, doida ilusão! Ó dor, acalma!Coração, não reveles o segredo!
ADORMECIDAIDormes. Sobre o veludo d’almofadaRepousas meiga a face purpurinaPor um belo sorriso iluminada. É cedo. A claridade matutina,Manso beijando a cúpula estrelada,Vai suspendendo a rútila cortina... Desperta a natureza dos enleiosDa noite de luar; e tu, formosa.Entregue ainda a castos devaneios,Vais prolongando a noite esplendorosa... — Braços em cruz guardando os níveos seiosQual guarda a concha a pérola mimosa,Dormes feliz, sem tímidos anseios,Sem as paixões da vida tormentosa.
IINão venho perturbar-te o sonho lindo,Nem te oscular a pálpebra cerrada;Vejo-te a boca rúbida sorrindoComo sorri no céu a madrugada. Em que sonhas? Que gozo etéreo, infindo,Transluz em teu semblante, Lola amada?Que mundo vês além, entreluzindo,Róseo, através da pálpebra rosada? Que sol te doura o sono de inocência?Em que elevada e límpida existênciaDivagas a sonhar, anjo risonho? Mas de leve estremeces... Não, querida!Não despertes! A mágoa desta vidaNão vale as alegrias de teu sonho!
LUTA DE PROMETEU
Qual planeta na esfera diamantinaPreso do sol à rutila influência,Arrebatado à universal cadência,À poderosa força que o fascina, Assim te sigo ansioso. Cumpro a sinaQue me traçaste à túrbida existência!Não posso opor altiva resistênciaÀ luz de teu olhar, mulher divina! Punge-me às vezes íntima saudadeDo que fui, da perdida liberdade,Da minha nobre aspiração suprema! Porém, qual Prometeu acorrentado.Se tento revoltar-me alucinado,Aperto mais a sufocante algema! ANTE O RETRATO DE DANTE
Ao contemplar a pálida figuraCurvada a meio sobre o livro aberto,E em traço firme, vigoroso e certo,Compondo a sós a célebre escritura; Ao ver-lhe a grave e larga curvaturaDo crânio altivamente descoberto,Creio sentir, a fulgurar de perto,Da Renascença a grande aurora pura! E murmuro: "Teu gênio sublimado.Aos infernos e aos céus arrebatado,Por sobre as gerações paira pujante! O tempo curva-se ao teu vulto egrégioE, enlevado, cometo um sacrilégio:— Ósculo a efígie divinal do Dante. PAIXÃO DE MIGUEL ÂNGELO "Que importa que o mundano preconceitoProíba ao meu amor de idolatrar-te?Que importa que se eleve em toda a parteBarreira enorme a sufocar-me o peito? Não devo os meus extremos consagrar-te,Eu! que ao belo, ao sublime rendo preito,E que a teus pés, com íntimo respeito,Amo a virtude quanto adoro a arte? Dá-me a glória!" suplica o visionário— Arquiteto, pintor e estatuário —Em íntima oração de aflito monge. Mas Victoria Colona bela e graveQual de um sonho visão, branca e suave,Circundada de luz, esvai-se ao longe...
MERGULHADOR DE SCHILLER
O pajem nadador que Schiller cantaVai ao fundo do mar buscar a taça.Maravilhado o Rei de audácia tanta,Quer que a novo capricho satisfaça. Torna a arrojar a taça e a mão da infantaPromete ao jovem como regia graça.Louco de amor, o pajem se adiantaE cai ao mar, sorrindo ante a desgraça. Sofre a infeliz Princesa intensa mágoa,Não vendo ressurgir à tona d’águaO noivo, que morreu nas ondas cérulas. Assim também, ó Musa, te amofinas.Por ver que dentre as ondas cristalinasNão surjo à luz do sol trazendo pérolas. ESTÁTUA GREGA Surge gloriosa, de marmórea espuma,Como do mar a Vênus donairosa.Branca mulher — a perfeição e sumaTendo d’Aspásia a Forma esplendorosa. Desnudada Rainha, ela reçumaA soberba de Juno caprichosa;Comove, exalta, sem mostrar nenhumaAlteração na face majestosa. Fídias, surpreso, ao contemplar-lhe o vulto.Curva o joelho em fervoroso cultoE sagra-lhe paixão insana e fátua. Abraça e beija o escultural encanto...Fala-lhe... e sente, com supremo espanto,Que é fria e morta a divinal estátua!
ALMA FORTE Embora insanamente torturada— Cabeça em febre, em sangue o coração,Rotas as vestes nos sarçais da estrada,E de amargo suor banhando o chão. Inunda-te em frescores de alvorada.Musa ferida! Em casta irradiação.Sacode o pó da clâmide sagrada.Distende as brancas asas n’amplidão! Descreve, pelo espaço tormentoso,Um giro triunfal, pleno de gozo,Sufocando no peito a dor atroz! Envolvem-te a procela e os céus em brasas?Que importa! Enverga firme as largas asas!Suplanta as tempestades, albatroz! OS CANÁRIOS Na florida janelaQue a madressilva de festões enrola,Colocara a donzelaA pequena gaiola,— Palacete encantadoEm que a vida passava alegrementeUm lindo belga, um músico inspirado,Um gênio, que excedendo aos mais notórios,Não precisou cursar conservatórios,A modular contente.Qual príncipe em chalé, travesso, e louroComo uma pluma de ouro. Se alguma vez o via com fastio,Rosina, segurando com carinhoEntre os lábios um leve pedacinhoDe pão-de-ló macio,Oferecia a boca nacaradaÀ ave afortunada,Que a beijava, amorosa e saltitante,Qual se beijasse apaixonada amante!Feliz canário! Após a refeição,Sutilmente molhava o bico n'águaE trinava em seguida uma canção,Um hino triunfante,Como um protesto à mágoa,Como um belo sinal de gratidão. Conversavam às vezes. Quadro lindo!Ele, alegre, cantando; ela, sorrindo: "Como feliz tu passas a existencial...És um rei nesta aérea residência,A cantar, a saltar pelos poleiros,Sem a turba servil dos lisonjeiros!Se acaso me deixasses, que tristezaNão sofreras! Que angústia nunca vista!— Vida de sofrimento e de crueza,A beber água turva nos regatos,A procurar debalde pelos matosUm raminho de alface, um grão de alpista!Como alguém que a chorar se desconsola,Na tua soledade.Ou morrias de fome ou de saudade.Saudade desta esplêndida gaiola!... " O pássaro, gorjeandoA música divina.Dizia, ou forte ou brando:"Enganas-te, Rosina!Quando um dia adejar pela amplidão,Poderei eu acaso, ante a grandezaDo infindo azul, de toda a natureza.Recordar com saudade esta prisãoPois eu que tenho sede do infinitoE jamais sentirei cansaço na asa,Preferirei o espaço circunscritoDesta pequena, imperceptível casa?Abraso-me de ardores!Pulsam-me n'alma aspirações tão grandes,Que invejo a hercúlea força dos condoresPara arrojar-me muito além dos Andes! Sei que te aflige a confissão sincera;Porém devo dizer-te: — Um dia, quandoTu’alma, que é risonha primavera.Florir as ilusões que vêm brotando,E alguém aproximar-se, comovidoAnte esse esbelto porte sedutor.Murmurando enlevado ao teu ouvido:Adoro-te! e sentires pela faceVivíssimo rubor,Como refulge à noite esplendorosa Um meteoro rútilo e fugace;Quando ouvires a música do amor— Ai! de certo bem mais harmoniosa.Mais fremente de encantosQue os meus sentidos cantos —Quando enfim da paixão tu fores presa:A tua própria mãoCausará a surpresaDe vir abrir-me a porta da prisão!" Ela ouvia-o cantar, mas não sabiaQue coisas o canário lhe dizia. Em breve prazo, um ente predileto,Terno amor contraído desde a infância,Despertou em Rosina um grande afeto,— Dulcíssima fragrânciaA embalsamar a recatada estância. Rosina amava com ardor profundo,Como se pode amar sobre este mundo. As suas mais risonhas fantasias,Desejos de elevar-se venturosaA outra esfera azul, mais luminosa;Douradas utopias.Mimoso pranto a furto derramado,Vagos pesares, doidas alegrias;Tudo quanto sentia de encantadoNo coração a transbordar de aromas;Tudo quanto a fazia suspirar,Arfando as níveas pomas,Como suspira o marInundado em fulgores de luar;Como suspira a aragemA balançar o lânguido perfilDas flores, ciciando uma linguagemMisteriosa e sutil;Tudo quanto a paixão segreda, inspiraE faz com que famoso estatuárioArranque, corno estrofes de uma lira.Deusas pagãs do olímpico sacrárioDa natureza esplêndida e marmórea;Tudo que é febre, entusiasmo ardente,Santa loucura de atingir à glória:Ela depunha, pálida e tremente.No puro altar sagrado, irradiante,Em que adorava o busto adolescenteDe seu primeiro amante. Quanto ela era feliz! A naturezaParecia-lhe noiva engrinaldada.Cintilante de joias e beleza,A receber na fronte imaculadaUm ósculo do sol! Tão venturosaSe julgava Rosina,De tudo descuidosa.Que se esqueceu de dar o necessárioAo cantador canário,Que desprendia a voz sempre argentina!E no dia seguinte o mesmo olvido!O pássaro trinou, já pouco forte,Misturando no cântico um gemidoDe quem vê perto a morte.Rosina pode ouvi-lo. Num momentoCorre a dar-lhe alimento;Mas, quando lhe abre a porta, alguém reclamaEntregar-lhe uma carta; ela abandonaA gaiola, ao ver letra de quem ama,Daquele por quem toda se apaixona. Curiosa lê, defronte da janela,Quatro linhas da epistola singela: "Não posso unir-me a ti! Um juramentoPrende-me o coração, prende-me a vidaÀ mão de outra mulher! Oh! que tormento!.Despreza-me, querida!" No canapé tombando desmaiada,Deixa cair a carta malfadada. Ao despertar da síncope sombria— A primeira agoniaQue lhe enublava a fronte de criança —Olhou para a gaiola: o meigo louroFugia sem tardança,Qual se buscasse, ardente de esperança,Um precioso tesouro! Cintilavam no espaço as asas de ouro!................................................ Chorosa, ajoelhada, em triste anseio,Qual consternada estátua da aflição.Levou Rosina a mão ao casto seio— Ao soluçante, angélico sacrário —Seguindo o voo da ave na amplidão,E sentiu que outro afeto, outro canário.Também lhe abandonara o coração. A DOMADORA Perante a grande multidão curiosaQue doidamente aplaude e que condena,Ela exibiu-se, impávida e serena,Cingido o corpo em clâmide pomposa. Entrou nas jaulas e afagou mimosaDe hircano leão a túrbida melena;O tigre, o lobo, a carniceira hienaCurvaram-se ante a força prestigiosa. Quando a beijaram canibais panteras,A turba, num transporte delirante.Fez-lhe ovações estrídulas, sinceras. Porém ela chorava nesse instante:Chorava não poder, entre as mais feras,Domar o fero coração do amante.
A CRTSTÓVÃO COLOMBO De pé sobre o convés, batido pelo vento,Sentindo em torno o mar a rebramir violentoComo um monstro feroz na treva a protestar;— Um átomo perdido em meio do infinito —Sobre a agulha o olhar continuamente fito,E tormentoso o céu e tenebroso mar; Sem ver costa ou farol no revolto proscênio,O gênio, iluminado à luz do próprio gênio,Afronta sem temor os rudes vendavais.Quais asas de albatroz, as enfunadas velasParecem provocar a sanha das procelasE para o sol poente avançam mais e mais... A fé exalta o ardor ao forte navegante;Consulta o astrolábio, a bússola, o quadrante,E aponta no horizonte a rota a percorrer;"Dali há de surgir a terra que procuro!"Mas o tempo se alonga e a bruma do futuroFaz a triste companha, em susto, esmorecer. De elétrica descarga o horríssono rebomboNão enruga sequer a fronte de Colombo,De pé sobre o convés, qual sobre um pedestal!Que importa a confusão revolva os elementosE a fúria impetuosa, indômita, dos ventosArraste a natureza em círculo infernal? "Em três dias vos dou a terra prometida,A terra que entrevejo esplêndida de vida.Qual dos povos hebreus a bela Canaã!"E, céus! antes de findo o diminuto prazo,O gajeiro, no tope, a perscrutar o ocaso,"Terra! Terra! "bradou, sorrindo, uma manhã! Pelo espaço cruzou uma alegria — uma ave!Pouco e pouco um perfume edênico e suaveFez palpitar de gozo o peito aos europeus.Curvaram-se os heróis da célebre viagem,A proferir, em coro, altíssima homenagemDe intensa gratidão e puro amor a Deus! Ao contemplar, surpreso, a rara maravilha.Ao ver surgir do mar, entre festões, uma ilha.Sentiu Colombo o pranto umedecer-lhe a tez...Não pode a pena audaz, não pode a língua humanaA emoção descrever, sagrada e soberana,Que o peito fez arfar do grande genovês! Em sonho, acaso viu a encantadora imagemDesta terra feliz que arroja na passagemInventos ao porvir por sobre as multidões,Formosa, a abandonar o seio das florestas,Para dar ao trabalho estrepitantes festas.Altiva, a despertar a inveja das Nações? O gênio imaginou que a terra que surgia,Como a Vênus, do mar, devera ser um diaEmpório do progresso, a pátria do vapor,Emissária da luz, contraria à sombra tétrica.Indo às nuvens roubar a claridade elétricaE dar à humanidade o máximo esplendor? Sublime transição! O louco visionárioA abrir da natureza o mágico sacrário,E, pobre, dar ao mundo um mundo superior!Pequeno, a ver o mar — o torvo mar de Atlante —A cantar docemente um hino triunfante.Qual um escravo núbio às plantas do senhor! Salve, salve, Colombo! A tua imensa glóriaDe luz iluminou os pórticos da história.Rasgando à humanidade a senda do porvir!Do belo pedestal em que soberbo imperas,Vês, quais ondas, passar as transitórias eras!Venceste o mar, e o tempo aos pés te foi cair! O FERREIRO Eu gostava de ver a valentiaDo musculoso obreiro já grisalho,Cuja fronte banhada em santo orvalhoÀ luz da ardente forja resplendia. Que rijeza de pulso! Que alegriaTinha sobre a bigorna do trabalhoA vibrar firme, estrepitante, o malho,O malho que só ele suspendia! Eu, se às vezes nas artes tenho ingressoE vou também, qual simples jornaleiro,Unir-me aos operários do progresso, Não abato a cerviz; mas, altaneiro,Às porfiadas lutas me arremessoSeguindo o nobre exemplo do ferreiro. EM CONSTELLADA NOITE... Em constelada noite, quando fitoA vasta e palpitante imensidade,O pensamento quer, com ansiedade,Perscrutar os mistérios do infinito. Escuto-o, em sonho, a interrogar aflito:"Donde irradia a eterna Divindade,Se dos astros a infinda quantidadeJamais espaço encontra circunscrito? Onde está Deus?" E o pensamento, estuoso.Em gigantesco voar vertiginosoAs estelares amplidões percorre... De mundo em mundo, no aspirar insano.Tenta engolfar-se no profundo arcano...Mas no abismo insondável tomba e morre. ALTO DA SERRA Como e soberbo o panorama agresteQue em torno descortino!Quanto efeito de luz pelas quebradas!Que delicados tons! esmeraldino,E verde-escuro em sombras carregadas,E ao fundo, a recortar o azul celeste.Serranias de azul ultramarino! Prodigioso pincelFez brotar da gigântea fantasiaA vasta encenação deste painel!O sol, o gigantesco lampadário.Rompendo a gaze da neblina fria,Apoteosa a pompa do cenário! Em contorções sequiosas, compressivas,Enroscam-se as orquídeas com violênciaÀ ramagem das árvores altivas.O concentrado ouvido quase escutaO frenesi da luta,Luta pela existência. Soam nas pedras límpidas cascatasE rolam pela Serra alegremente.Indo levar a rápida torrenteÀ profundez das inviáveis matas. Cada vez menos denso,O nevoeiro esgarça-se, e, subindoDo vale à Serra e pelo espaço infindo,Semelha rolos de sagrado incenso... Forte apitar do trem pelas montanhasProduz, em ecos, vibrações estranhas...Rumor das fontes, o cantar das aves,Orquestração misteriosa, idílica,Recorda um hino a estremecer as navesDe festival basílica. Colocada em poética ladeira.Pequenina choupanaFaz ondular o fumo da lareiraE olor de rosas levemente emana. Sorrindo, entregue ao maternal enleio,À luz do sol de resplendente brilho,À porta, uma mulher aleita o filhoNo intumescido seio. Um homem que regressa dos labores,.caricia a face da criançaE das fadigas ásperas descansaFitando os seus dois únicos amores. Invejo-te o viver, serrano obscuro,Indiferente ao social bulido!Circunscreves no lar o teu futuro!Não sabes que irmãos teus — os denodados Filhos do Sul — em bárbaro suplício,Pela guerra civil são destroçados!Não te requeima a artéria palpitanteA febre do amor pátrio que calcina!Neste belo proscênio deslumbranteOutra paixão te arrasta e te domina!Tens em vez de fumaça asfixiante,O perfumado ambiente das florestas!Em vez do sangue a avermelhar os campos,Rúbidas flores a saudar-te em festas!Fulgem-te à noite estrelas, pirilampos,E não canhões ferais tia artilharia! Atônita e surpresa,Tua alma se glória,Engolfada nos grandes esplendores,Na majestade desta natureza!Alheio à guerra, a ódios, a vinganças,Do pesado trabalho tu descansasEm meio de teus únicos amores!Ao passo que minh’alma compungida,Torturada em cruéis desesperanças,Casa a rude existência atormentadaÀ infrene desfiladaDeste agitado trem... chamado vida! Alto da Serra, estação da estrada de ferro de São Paulo a Santos.Maio de 1895.
Como refulge à noite esplendorosa
A LENDA DO JUDEU ERRANTE
Prostrado pela cruz de peso extraordinário,
O justo percorria a rua da Amargura,
Sentindo, longe ainda, o cimo do Calvário
— O desejado termo à trágica tortura.
Parou junto ao portal de ríspido operário
E quis sentar-se ai a arfante criatura;
Mas Ashavero, a rir do mártir missionário,
Não teve compaixão daquela desventura.
Impele-o brutalmente e brada-lhe: "Caminha
Caminha!" Cristo, ouvindo a rude voz mesquinha,
Voltou sereno o rosto e disse esta verdade:
"Caminharás também, sem pátria, sem abrigo,
Sem ter em toda a terra uma afeição de amigo
Caminharás, judeu, por toda a eternidade!"
NOITE DE LUAR A BORDO
À lua, a branca Ofélia, brandamente
Estende o misterioso véu de prata
Pela amplidão dormente
E no rio espelhante se retrata,
A recordar sultana
Que a se rever num lago devaneia.
Trasborda o rio, e a cheia
Alaga a verde alfombra da savana.
Por entre as ramarias
Dos sarandis curvados sobre as bordas,
Geme a corrente vagas harmonias
Como dum bandolim as tênues cordas...
Embalsamam-se os ares de fragrâncias
Agrestes, das campinas
Orientais e argentinas,
E além, sobre os outeiros,
A luz branqueia as casas das estâncias
Ornadas de coqueiros.
Que cenário contemplo!
A lua que em fulgores se dilata,
Semelha enorme lâmpada de prata
A iluminar um templo.
No salão de recreio uma espanhola
Gorjeia, acompanhando-se ao teclado,
Um romance amoroso que se evola
Ao céu todo estrelado:
Todo acabó; estinguida
La antigua lama siento!
No exale ni un lamento
Mi altivo corazon.
Que el mas completo olvido,
Rasgada ia la venda.
Sobre mi amor estienda
Su fúnebre crespón!
Recosto-me à amurada
Da popa, a ver a espuma alvinitente
Que as rodas do vapor em giro ardente
Levantam na carreira arrebatada.
Alguém que não conheço
Acerca-se de mim. Não me recordo
Das palavras trocadas no começo
Da convivência que mantive a bordo.
"Como é belo o Uruguai!" disse enlevada,
A suspirar de manso.
"Como ele espelha a noite constelada!
De vê-lo não me canso!
Para onde vai, senhor?"
— Eu, volto aos lares,
A Porto Alegre, após dorida ausência.
"Eu à França, e cruciada de pesares
Que me tornam suplício esta existência.
Preciso de viajar. A vida agora
É para mim prisão."
E naquele semblante adolescente
Que a lua romantiza e mais descora,
Uma nuvem passou, triste e silente,
Como passa chorando uma ilusão.
— Sofre acaso, senhora?
"Sim; procuro
Sanar a dor pungente
Que sinto a torturar o coração.
— Tenha fé...
"Eu não creio no futuro."
— Acaso amor?
"Amei; mas fui traída.
É vulgar, como vê, banal a história
Que me amargura a vida.
Amor! paixão! miragem transitória
Que enlouquece a razão e o sentimento.
Fenece num momento!
Sei que devo esquecer o noivo ingrato
Que desfez, sem piedade, as minhas crenças
Mas muitas vezes beijo o seu retrato.
Sentindo aqui saudades bem intensas!"
E bela e envolta num clarão de lua,
Aflitamente comprimia o seio.
No salão de recreio
O canto da espanhola continua:
Oh! quanto te adoraba!
Porqué no confersalo?
Cautiva, sin pensarlo,
Me vi de tu beldad!
Y hoi mismo que te huio,
Se hé roto mis cadenas,
A costa de hartas penas
Compré mi libertad!
E a doente saudosa prosseguia:
"Vou visitar Paris. Esta senhora
(Disse indicando alguém) é minha tia,
Uma alma compassiva que me adora,
E me serve de mãe nesta agonia
Que sinto, a definhar-me d'hora em hora.
O senhor é feliz! Já foi amado
E continua a sê-lo... Não é certo?
— Não respondi: sentia igual deserto
No coração ferido e torturado.
No florescer dos anos.
Dezenove talvez, a desventura
Alquebrava a mimosa formosura,
Sob o peso de atrozes desenganos.
Quanta mágoa sentia em morrer cedo!
Seu nome? É meu segredo.
Entregue ao profundíssimo desgosto,
Deixava a lua iluminar-lhe o rosto.
No salão, entretanto,
Como um canário a modular contente.
Soava docemente
Da faceira espanhola o terno canto:
Porque tiernos recuerdos
Me asaltan de otros dias,
Flotantes armonias
De um canto que espiró?
Aun cuando el sol se esconda
Trás las nevadas cumbres,
Revelan sus vislumbres
Mi sueno que pasó!
A natureza em torno estremecia
De infinita poesia.
Naquele belo instante,
A lua, n'amplidão, banhada em glória,
No zênite, seguia a trajetória.
Serena e triunfante.
Nenhuma nuvem pelo céu suspensa.
A vasta imensidade,
Misteriosa e funda como a crença,
Esplendia a solene majestade.
Com íntima tristeza,
A jovem desditosa
Ia soltando as folhas de uma rosa
E as deixava cair na correnteza...
Depois, em vago anseio,
Reclinando a cabeça sobre o seio
Da velha comovida,
Verteu nervoso pranto.
Derradeiro talvez de toda a vida.
E ressoava no salão o canto:
Mas no; nada perturbe
Tu misteriosa calma!
A qué desear la palma
De mi desgraciado amor?
Que Dios que nos escucha
Dé paz à tu existencia!
Yo guardaré la esencia
De la marchita flor!
Reprimindo a emoção, dizia a doente
"Fidelidade eterna, beijo ardente.
Jura de noivo a protestar, chorando,
É sonho de demente,
Um mito neste globo miserando!"
E olhando o calmo céu resplandecente
E olhando o calmo céu resplandecente:
"Além, n'alguma estrela cintilante,
Não formada do lodo deste mundo.
Talvez possa minh’alma — doida amante —
Calmar a febre deste amor profundo.
Serei feliz! Quem sabe?..."
E a voz tremia
De ciúme e de agonia.
"Veja as mãos como escaldam!"
E confiante,
Estendeu-mas chorosa. Nesse instante,
Em que a vi junto a mim, sentida e bela,
Estranha sensação de luto e gozo
Senti pulsar no coração queixoso
Que partilhava a sorte da donzela.
Forte acesso de tosse convulsiva...
Um soluçar intenso
Umedece-lhe os lábios... A saliva
Molha de sangue o pequenino lenço.
Contemplo-a pensativo,
Opresso o peito a tanto sofrimento,
E a pesar meu, revivo
De meu passado um íntimo tormento.
Também sem lenitivo...
E enquanto duas almas
Expandem no silêncio a mesma dor,
Soam bravos e palmas
No salão de recreio do vapor.
NOITE GLORIOSA
"Descreve-me esta noite deslumbrante,
Este céu que de estrelas se constela,
A grande maravilha palpitante
De sóis cravados na azulada tela!
Descreve, numa estrofe rutilante
Em que a chama sagrada se revela,
A lua, a cismadora deusa errante
Que divaga a sorrir, desnuda e bela!
Canta, poeta, a augusta majestade
Que nos rodeia: a luz, a imensidade,
Tudo quanto respiro e sinto e vejo!
Em prêmio da tarefa sublimada,
Que desejas? A glória ambicionada?"
— Sim, amor! Quero a glória de teu beijo!
NO BANHO
Tomba-lhe aos pés a túnica de neve,
E na plena nudez mais provocante
Aproxima-se d'água murmurante
E quer ao mar lançar-se... e não se atreve.
De pedra em pedra salta, airosa e leve,
Como uma ave de mimo cativante.
Expondo ao sol que a beija a todo o instante
Maravilhas que a pena não descreve.
Salta n'água. Espumantes as ondinas
Envolvem-na de gotas cristalinas
Dos pés à cabeleira negra e basta.
Após ligeiro instante, ei-la! aparece
Tão cheia de esplendores, que parece
A imagem de uma Deusa, nua e casta
A GALERA
Voga, através dos tempos, a galera,
— A Vida — que nos leva a estranhas plagas,
Ora ao silvar de tempestade fera.
Ora ao vaivém de balouçantes vagas.
De que ponto da terra tez partida
Talvez d’Ásia central. Qual sua idade?
Tenebrosa questão não resolvida.
Qual seu destino? O vago, a eternidade.
Ou gemendo ou sorrindo, ela percorre
Há milênios a rota do infinito,
E a cada geração que luta e morre
Outra nova se arroja no conflito.
Agonizar de velho, rir de infância,
— Cair de ocaso, enrubescer de aurora
Vício e virtude, ciência ou ignorância,
Ligados tombam pela borda fora.
Prossegue a Vida as velas desfraldadas
Ou brilhe o sol sobre a planície funda.
Ou, a fremir de nuvens carregadas,
A noite espalhe escuridão profunda.
Entre a alegre celeuma dos contentes
Ah! quanta vez o coração não chora,
Ao contemplar estremecidos entes
Mortos, lançados pela borda fora!
Mas não jazem no olvido os cativantes
Afetos a que damos sagrações:
Nós os sentimos flutuar constantes
No mar sem termo das recordações.
Se o materno, bendito sustentáculo
Nos foi levado agora na corrente,
Façamos da saudade um tabernáculo!
De nosso coração — câmara ardente!
FITANDO ESTRELAS
Reclinada a meu ombro, ela, sorrindo,Murmurava, indicando-me as estrelas:"Quisera na amplidão voar, ir vê-las.Engolfar-me na luz deste céu lindo! Se a alma vai ao céu num gozo infindo.Talvez eu possa um dia conhecê-las!Que prazer não terei, vagando pelasConstelações que vejo reluzindo!" Pensativa, mais alva que alabastro,Cismava, divagando de astro em astro,Longe do mundo, longe dos escolhos... E naquele mistério venerando,Eu também me enlevava, contemplandoO brilho das estrelas... nos seus olhos.
O DUELO(Balada antiga) No vetusto salão de austera fidalguia,Ornado de brasões e bustos ancestrais,Dois jovens, dois campeões, de força e galhardia,Cavaleiros e irmãos, e, pela fama, iguais.Por destino fatal encontram-se rivais,Notando à mesma dama intenso amor fremente.À luz do lampadário, a sós, de frente à frente,Espadas a cruzar, em giro ameaçador.Pareciam dizer, no conflito inclemente:"Lutando, hei de alcançar o meu sonhado amor!" O ríspido golpear tinia e retiniaNos muros; as viris imagens patriarcaisDaquela veneranda, egrégia galeria.Relembrando os lauréis das batalhas campais.Em defesa da pátria e dos direitos reais,Os guerreiros-avós, ao ver o duelo ardente.Culpado, fratricida, inglório, deprimente.Despediam do olhar lampejos de furor!Mas ouvia-se a voz de cada combatente:"Lutando, hei de alcançar o meu sonhado amor!" Ferido fundamente o braço que feria,Os peitos a sangrar nos assaltos mortais,Em breve, cada atleta, arquejante, caía,A soltar da garganta estertorados ais!Sucumbiram assim descendentes marciaisDe família de heróis — a progênie valente!Morreu no lampadário a luz intermitente...Silêncio... escuridão... ensanguentado horror!...Não mais se ouviu soar a aspiração veemente:"Lutando hei de alcançar o meu sonhado amor!" (OFERTÓRIO)Ó poeta-estatuário, ousado esteta e crente.Fidalgo e cavaleiro e apóstolo fervente,Que na arte concentraste o teu sublime ardor!Tu, sim, podes bradar, ansioso, febrilmente;"Lutando, hei de alcançar o meu sonhado amor!"
GRANDE, IMPONENTE, O LARGO MAR VOZEIA Grande, imponente, o largo mar vozeia,E as ondas, em constante marulhada,Batem contra o recife, e sobre a areiaVem morrer, em surdina compassada. Ao ver surgir formosa a lua cheiaSobre a cidade, ao longe desenhada,A fantasia, em gozo, devaneia,Como num sonho enorme arrebatada. Sedenta de ascensões, minh'alma ansiosa,Toda engolfada em sideral mistério,Contempla a branca esfera luminosa, E quer, num giro astral, forte, bendito,Transpondo, além, o firmamento etéreo.Percorrer as estrelas do infinito.
NA ARENA
Apraz-me ver-te assim, num ímpeto selvagem,Partir, galgar dum salto o dorso do corcel.Mostrando na expressão a impassível coragemDum Hércules viril, sem maça e sem broquel. Na carreira febril, na rápida passagemSobre infrene animal espumante e revel.Recordas dum centauro a vigorosa imagemPor entre as ovações que arrastas de tropel. Entre o cerrado pó que se eleva ondulante,Perpassas a sorrir, altivo e triunfante.Sob a forte explosão das palmas das platéias... Que famosos lauréis na fronte cingirias.Se pudesses também, fremente de alegrias.Partir, saltar, vencer na arena das ideias! A CARLOS GOMESIQue importa? Não foi ela, a mono, a vencedora!Não apagou no pó, na treva aterradora,A mente a se evolver em mais radiosa luz!Quebrou-lhe o pedestal terreno, derribou-oDo soberbo alcantil, mas não tolheu o vooDa essência que imortal nova forma produz! A morte não destrói as criações do gênio!Do presente ao porvir alonga-se o proscênio.Qual— duma estrela a outra— a eterna luz astral!Permanecem na terra os grandes pensamentos.De duração maior que egípcios monumentos,Impondo às gerações respeito cultual! Concentrando no peito o ardor do Novo Mundo,Quiseste ir expandir o talento fecundoOnde a Arte soleniza as grandes sagrações:Na pátria de Colombo e Galileu e Dante,De Pórpora, Rossini e Verdi e Mercadante,Toste um nome estrelar entre constelações! Quem, longe, te inspirou? A profunda saudade,A saudade da pátria, a erma soledadeDe um coração que sofre em contínuo lutar!Em sonhos, a rever a pompa das florestas,Dos selvagens o amor, o ciúme, a guerra, as festas,Tu'alma se enlevou num livro de Alencar! E, Artista, interpretaste, em estos de harmonia;Das aves o cantar e a épica poesiaDos hinos triunfais dos rudes Aimorés!E a tua inspiração, sublime de grandeza,Bela como o esplendor de nossa natureza,!Fulgiu, irradiou dos tempos através! Pulsou-te na existência um palpitar de glórias,— Mundo de comoções, de febre, de vitórias, .Que vinham como um sol em nos resplandecerA pátria, comovida ao teu fogoso impulso.Sentia, entre ovações, um frêmito convulso.Orgulho nacional de te haver dado o ser! É que ninguém tão alto, em terra americana,Uma batuta ergueu, briosa e soberana.Desde as plagas bretãs às regiões austrais!Só tu, num recruzar de notas e de assombros.Alçaste, novo Atlante, um mundo sobre os ombroE o levaste da história aos brônzeos penetrais! IIUma sombra espectral eis desce da montanha...Longa roupagem branca envolve a forma estranhaQue deixa após de si um rastro de fulgor.De louros coroada, altiva e majestosa,Recorda-nos Cornélia, a romana orgulhosaQue aos filhos incutiu exemplos de valor. E desce, desce mais do píncaro da Serra!Um clarão sideral esplende nesta terraComo outrora o fanal que deslumbrou Belém!Que deusa vitoriosa assim se corporizaPor ventura é Vêleda, a druida, a profetiza,Que nos vem desvendar os mistérios do Além Traços esculturais, o olhar pasma-se ao vê-los!Douram raios de sol a alvura dos cabelos.Servindo-lhe de altar um nimbo rosicler!O porte gigantesco exalta, entusiasma!De que estrela desceu este belo fantasmaQue vem pairar aqui, em forma de mulher? Quem és, visão errante, a alucinar as almas?Vens acaso trazer mais louros e mais palmasAo grande sonhador que aos astros ascendeu"Sou mãe, poeta! Eu sou a terra dos Andradas!Ao som das orações, das músicas sagradas,Eu venho recolher um gênio que morreu!" E o cadáver tomado em suas mãos divinas,Qual uma rara flor brotada nas Campinas,Beijou-o com calor, com íntima efusão;Depois, como a Niobe, em desespero enorme,Rasgando o seio nu, exclama: "Filho, dorme!"E o sepultou ali, no próprio coração! Santos, 21 de outubro de 1896. NOITE DE NATAL Abre-se a porta, e o bando de inocentesLouras crianças que a esperança embala,Insofrido e curioso, invade a sala.Ao som de risos, gritos estridentes. Aos pais, todos saúdam sorridentes,Nessa noite feliz, de festa e gala!Verdejante pinheiro em torno exalaPerfume e luz — repleto de presentes. Soam trombetas, rufos de tamboresDefronte do presépio em que o MeninoJesus sorri mimoso, entre esplendores. Fulge outra luz no quadro peregrino:Assoma aos olhos dos progenitoresPranto de amor, brilhante e cristalino.
REMEMBER... Sei que lembras, em êxtase suspensa,Amor e crença de passadas eras,Quando o teu ser, ardente de quimeras,Só palpitava de paixão imensa. Entregues à dor oculta, mas intensa,A recordar felizes primaveras,Vertes saudosas lágrimas sincerasPor ver perdido o amor, perdida a crença! A vida é qual corrente marulhosaQue as flores de nossa alma arranca e levaNo turbilhão ruidoso, efervescente. Depressa esvai-se a quadra venturosa!Tudo quanto na vida nos enlevaPassa desfeito ao longo da corrente...
LIÇÃO DE GRAMÁTICA Nunca o jovem se vê a sós com ela:A mãe, cosendo junto da janela,Sempre assiste às lições;Mas, por mais forças que ele em si reúna.Sente, em presença da formosa aluna,Febris palpitações. Tem por ela profundo sentimento;Mas deseja ocultar, como avarento, recatado amor;Não dando mostras da paixão imensa,Afeta a mais completa indiferença,Como hábil professor. Julga a aluna uma estátua inerte e fria;E, para convencer-se, quer um diaOuvi-la conjugarUma bela palavra, um verbo ardente,Que faz pulsar o peito adolescenteO doce verbo amar. "Diga o futuro deste verbo."E ela,Sem leve alteração na face bela,Responde: — Eu amarei."Muito bem; mas si o tempo for passado?"Ela diz friamente: — Eu tinha amado,Ou antes: eu amei. "Como chama este modo eu amaria?"A moça lhe responde sempre fria:— Condicional lhe chamo."Diga o presente indicativo."A medo,Ela confessa o virginal segredo!Corando diz: — Eu amo...
ÀS CRIANÇAS
Que gozo divinal eu sinto, quando
Recostado à janela, pensativo,
Contemplo o quadro esplêndido, expressivo,
Das crianças que às aulas vão passando!
Aquele vozear ou forte ou brando
E sempre alegre, cândido, expansivo,
Ecoa na minh’alma em tom festivo
Como harmonia de plumoso bando!
Passai, turba feliz! Vede na escola
Que brilhante porvir se desenrola
Ante vós, aos lampejos da razão!
Estudai entre risos cristalinos!
Enchei de clara luz vossos destinos,
Que em vós reside a glória da nação!
ANDORINHAS
Quando o quente verão se extingue, quando
O fresco outono refrigera os ares,
Elias, vibrando tímidos cantares,
Vão além, novo clima demandando.
Atravessam o azul, de bando em bando,
Boêmias, sem amor aos pátrios lares;
Sem a opressão dos íntimos pesares.
Em caravana aérea vão cantando.
Assim também, ó crenças de outras eras.
Andorinhas azuis, doidas quimeras,
Que me alegráveis no risonho estio.
Fugistes como os pássaros errantes,
E não volveis jamais, nem por instantes,
A visitar o vosso lar vazio!
FESTA DO TRABALHO
À hora do romper da madrugada,
Abre-se a fábrica; o motor apita;
Aproximam-se, em longa desfilada,
Obreiros que o trabalho nobilita.
Homens, mulheres, jovens e pequenos,
Em rumores de alegres matinadas.
Mostram nos rostos de saúde plenos
Almas pelo dever entrelaçadas.
Entram todos; ocupam-se os lugares;
Cada qual tem tarefa competente.
Vai começar a bulha dos teares,
Das lançadeiras o girar ardente.
Ruge o motor, e as rápidas correias
Imprimem às polés rodar insano;
Urdem-se, tramam-se as ligeiras teias
A transformar-se em delicado pano.
Dentadas rodas na engrenagem soam
Rolam volantes; a caldeira treme;
Em seus vai-e-vem as lançadeiras voam;
Tudo palpita; o próprio solo treme!
E os homens, as mulheres e as crianças,
Naquela enorme luta sempre intensa,
Têm como escudo a todas as provanças
A crença no trabalho, altiva crença.
E, ao concluir as lidas triunfantes.
Sorriem comovidos, prazenteiros,
Mostrando gotas de suor — diamantes
A engrinaldar a fronte dos obreiros.
Que imponência na festa da oficina!
Ante o concerto estrepitoso e vário,
Chego a invejar a fortunada sina
Do mais humilde e rústico operário!
VITÓRIA DE FRINÉ
Acusada do crime de impiedade,
Vai ser, de certo, condenada à morte
A cortesã de mais formoso porte
Que na Grécia imperou naquela idade
O povo, no Areópago, em ansiedade,
— Cultor da estatuária — sente a sorte
Do modelo de Vênus, da consorte
De Praxíteles, na celebridade!
Hipérides, num rapto de eloquência.
Rasga-lhe o manto e brada com violência:
"Condenai-a!... Mas vede a forma sua!..."
Contempla-a o tribunal, cheio de pasmo!
E, sob aclamações de entusiasmo.
Absolve o tipo da Beleza nua!
UMA VISITA MÉDICA
O banqueiro lhe diz: "Mandei chamá-lo
Para ver que moléstia impertinente
Incomoda Leonor.
Ela é muito nervosa: um forte abalo
Prostrou-a; sobreveio febre ardente.
Examine-a, doutor.
Queira entrar para a alcova."
No aposento,
Entre a espumosa alvura das cortinas
Cerradas por igual.
Repousa um anjo lindo e sonolento
No mimoso frouxel das rendas finas
Do leito virginal.
Havia ali, no recatado ambiente.
Grato aroma de cravos e baunilha,
E um tépido calor.
Afastando as cortinas levemente.
Diz o pai carinhoso: "Minha filha
Aqui tens o doutor."
Vermelhas de rubor as faces belas,
Ela os olhos que há pouco dormitavam
Abrindo à viva luz,
Casta e surpresa, confrangeu as telas
Sobre os seios que livres palpitavam
Formosamente nus...
Para ver se a moléstia era do peito,
O médico auscultou-a gravemente
Sobre o dorso gentil,
Conchegando-a com íntimo respeito
E ouvindo o forte coração ardente
A palpitar febril...
Auscultou-a, enlevado, ao ver aquela
Perfeição de mulher, lembrando a Vênus
Que em Milo floresceu,
A branca estátua altivamente bela
— A glória da escultura dos helenos —
Que o Louvre recolheu.
Colado o ouvido à pele cetinosa
Há donzela que a medo estremecia
De cândido pudor.
Ele escutava a música nervosa
Do peito que cantava a melodia
De apaixonado amor.
Ah! quanto desejara que a visita
Fosse longa, bem longa, interminável.
Em êxtases assim!...
Mas, repelindo o sonho em que se agita,
Tranquiliza o bom velho impressionável
E receita por fim.
Manda vir um calmante, e, prazenteiro,
Vê a febre ceder incontinente:
Sorri de orgulho então.
Mas, ao sair da casa do banqueiro.
Percebe, dentro em si, novo doente:
— O próprio coração.
SONHO DE SANTOS DUMONT
Como um exemplo do sublime esforço
Do ousado brasileiro,
Águias brancas levantam sobre o dorso
O carro que conduz o mundo inteiro.
E sobre o globo, a estremecer de pasmo,
Um busto varonil
De Dumont, no sagrado entusiasmo
De erguer aos céus o nome do Brasil.
Proclama a Fuma o infindo itinerário...
O Sol, a Lua, a Estrela Matutina
Dão intenso clarão extraordinário
A esta sagração quase divina.
A eterna glória de asas distendidas
À fronte de Dumont cinge a coroa
Prêmio de todas as Nações reunidas
À ideia rara que no espaço voa.
Como um meteoro na amplidão dos ares.
Resplende a Alegoria,
Sorrindo à ira dos revoltos mares,
Sobranceira ao fragor da ventania.
A Musa, deslumbrada ante a conquista,
Pergunta ao Gênio em pleno azul profundo:
— Que intentas, arrojado fantasista?
"Transpor os polos, contornar o mundo!"
OITENTA E NOVE
O povo opresso e a plebe maltrapilha
Cumprem alto dever:
Deitam por terra os muros da Bastilha
— Emblema do despótico poder.
Num momento de febre, de alegria,
De santa embriaguez,
Dietrich incita em chama a fantasia
De Rouget, moço poeta montanhês.
E, pálido, de Lisle, a mente em fogo.
Em ânsia o coração.
Inventa e canta, em pátrio desafogo.
As estrofes da célebre canção.
Alons, enfants de la patrie! dizia
Num brado triunfal,
E a esse canto a França estremecia
Como se ouvisse um hino nacional!
Em breve o canto ardente, imerso em glória,
A fremir de valor,
Não e somente um hino de vitória,
Mas triste De profundis do Terror!
Ao som tia forte imprecação leonina,
Que vibra ao coração,
Sobe firme os degraus da guilhotina
O próprio Dietrich, o nobre ancião!
Rouget de Lisle, trêmulo de espanto,
Pelo Jura a fugir.
Pergunta o nome do terrível canto...
— A Marselhesa! gritam-lhe a rugir!
A canção, como nênia funerária.
Em breve ressoou
Aos ouvidos da grei revolucionária:
Danton, Robespierre, Vergniaud...
O fato Oitenta e nove, soberano,
Enche o mundo de luz;
Porém como Saturno, o deus insano,
Devora os próprios filhos que produz!
AO MAR
Amo-te sempre, ó mar! Amo-te as belas
Transformações grandiosas que apresentas,
Ora ondulante, a balançar as velas,
Ora balido de infernais tormentas!
Quando no espaço as nuvens aguacentas
Despedaçam-se ao sopro das procelas,
E, revoltado, o teu furor ostentas,
Que ciclópica força não revelas!
Em meio de contrários elementos.
Bramir dos raios, sibilar dos ventos,
Convulsionar do pélago insondável.
Eu quisera casar notas troantes
Às tuas sinfonias retumbantes.
CANTANDO
Eles iam cantando à Flor dos mares,
Ao som do vento que impelia a vela;
Ágeis gaivotas, recruzando os ares.
Manchavam, brancas, a azulada tela.
Deslizavam quais rubros nenúfares
Embalados nas ondas! A donzela.
Vibrando,alegre, límpidos cantares.
Dava aos sorrisos a expressão mais bela!
Ambos jovens, em plena puberdade.
Afoitavam-se ao mar com segurança.
Sem temer a longínqua tempestade.
Parecia que o céu, todo bonança.
Lhes dizia: "Cantai, ó mocidade!
São de rosas os mares da esperança!"
A JOSÉ DE ANCHIETA
Glória a ti, abnegado missionário,
Que te internaste nos sertões brasíleos.
Só tendo por escudo o breviário
E por armas a cruz!
Atravessando inóspitas paragens,
Florestas virgens que só feras trilham,
Foste incutir nos corações selvagens
Doutrinas de Jesus.
Ao som fluente de teu verbo augusto,
Que comovia endurecidas almas,
Em rudes frases guaranis, sem custo
Fazendo as pregações,
Transformavas as tabas dos guerreiros,
Onde constante golfejara o sangue,
Em asilos de paz, hospitaleiros
Sacrários de afeições!
Inspirado na excelsa majestade
Da fértil natureza americana,
Ensinavas a crer na Divindade
Aos filhos de Tupã!
E do Evangelho difundindo a crença,
Fizeste a luz resplandecer nos crânios.
Tal como a rósea claridade intensa
Que ilumina a manhã!
Jamais tua alma se inquinou no vício:
Indiferente ás tentações da carne,
Praticavas, no grande sacrifício,
Prodígios de valor.
Igual a Xavier, senão mais forte,
Perduras nos anais do Novo Mundo.
E no volver dos séculos, teu porte
Mostra eterno fulgor !
EM TREM DE FERRO Eu ia, em trem de ferro, ver aquelaCidade de La Plata peregrina;Sentava-se a meu lado, airosa e bela,De mantilha espanhola, uma argentina. Com voz musicalmente cristalina, Travou comigo prática singela:— Mire ested, caballero, esta divina Mañana!...Eu contemplava os olhos dela. E por todo o decurso da viagemMostrava-me as belezas da paisagemQue corriam defronte da janela... — Mire usted como es rico este paseo!No hay nada mas bello!"Si, os creo!"E acreditava, sim, nos olhos dela. NOSTALGIA
Aprazia-me olhar, calmo e sozinho,A vastidão intérmina do mar,Ouvindo em volta o surdo burburinhoDas ondas em cadente suspirar. Rasgava a proa o liquido caminho;E bandos de gaivotas a voar,Qual se tivessem no paquete o ninho,O seguiam, cortando leve o ar... Nenhuma terra ao longe!... Que amarguraAo ver-me na estensíssima planura,Na solidão profunda a meditar! Saudade, amor da pátria, venerando.Tu me falavas n'alma, contemplandoA vastidão intérmina do mar!
A VOZ DO TIRADENTES(Cena Fantástica) O cenário representa a praça do Rio do Janeiro em que foi martirizado o Tiradentes. É noite. O herói surge do chão, revestido da alva de enforcado. Depois de olhar em torno de si, como que a interrogar a sombra: Que funda solidão! Como esta terraJaz num grande silêncio apavorante!Nenhum som! Nenhum brado vingativoContra a cena de sangue! Tudo é morto!A noite negra que me cobre é luto,É mortalha estendida num cadáver!As brasíleas Florestas secularesNão sussurram protestos contra o crime!Os alterosos, escalvados montesSão gigantes de pedra adormecidos!Os próprios rios permanecem quedos!Oh! não!... Que neste solo americanoO santo amor da pátria, amor sublime,Comigo não morreu! Existe ainda!Existe em cada arbusto, em cada pedra.Em cada peito de homem! Não! Não morreA ideia que eterniza o Tiradentes! Vejo ainda meus dignos companheirosReunidos no lar de Cláudio Costa,De Cláudio Costa, do poeta ilustre!Bem reconheço a ti, Tomás Gonzaga,Trovador de Marília e patriota!Paula Freire de Andrade, grande amigo.Desejas dar mais honra à nobre farda.Brandindo a espada em nome da República?És tu. Vidal Barbosa — honroso filhoDe Esculápio, tu vens da culta EuropaJuntar o teu saber à nossa causa?Tu, José Maciel, que assimilasteDe Rousseau as doutrinas filosóficas,Vens também reforçar os conjuradosTu, poeta Alvarenga, lira de ouroTrazes ao grêmio teu sincero auxílio?Salvador do Amaral, José Rezende,Luís Vaz, não faltastes ao congresso!Quero abraçar-te, sim, padre Toledo,E a ti, Rodrigues Costa, ambos ministrosDa crença de Jesus, da augusta crençaQue ao mundo proclamou Fraternidade!Sede os apóstolos da cruzada santa!Intercedei a Deus pela vitóriaDo plano patriota! (Pausa) Irmãos, não vedes,No cenário da América do Norte,Os Estados Unidos, como altivos.Ao impulso dum Washington valente,Libertam-se do jugo da Inglaterra?Imitemos, irmãos, tão belo exemplo! Que o mesmo sol da glória resplandeçaNo solo brasileiro, nestas plagasOpulentas de raras maravilhas!N’Europa a França agita-se, neste anoDe oitenta e nove, para dar ao mundoOs Direitos do Homem, derrocandoA Bastilha do Férreo despotismo!Vão ruir os caducos privilégios!A corte de Luís Décimo Sexto,Os ricos Grão-Senhores, a RainhaMaria Antonieta, os grandes Bispos,Toda a Nobreza e Clero acostumadosAo luxo, ao desperdício, usufruindoRendas do Estado, fabulosas somasArrancadas ao povo em mil impostos,Toda essa aparatosa fidalguiaEm poucos meses tombará por terra!Vai proclamar-se a era da Igualdade!Ouço o rumor confuso que precedeO explodir do vulcão revolucionário!Gira no espaço a ideia redentora,— A liberdade a eletrizar os povos! Formemos, pois, a Federal República!Tenhamos nós também vastos EstadosIndependentes e entre si unidosPor uma lei geral que enlace a todosNum elo só, mas poderoso, eterno!Unidos, marcharemos ao futuro!Seja a nossa divisa LiberdadeInda que tarde! Estampe-se à bandeiraUm gênio a espedaçar algemas férreas!Que a soberba torrente do Amazonas, Estrepitosa como as nossas almas.Repercuta na costa lusitanaO estridor festival de nossos hinos!Porém, quem vem d'encontro à grande causaQuem faz a aurora transmudar-se em trevas?Um judas, um traidor, nos vende a todos!Joaquim Silvério denuncia o fatoE nos entrega à sanha da justiça! Ah! delator! arrastarás na HistóriaComo um grilheta o ferro da ignomínia!Eu serei sempre o morto redivivo,Um brasão imortal de minha pátria,Exemplo de honra às gerações vindouras!E tu, exposto ao publico desprezo,Na forca da traição, terás dos temposA execração que pune Iscariote! Que sorte a dos leais inconfidentes!...Claudio, para eximir-se dos algozes,Vai na prisão buscar o suicídio!Sua. memória e declarada infame!Os mais são degredados, vão para África,Para as febres palustres, para a morte!(Sorrindo)Eu não sou desterrado! A MonarquiaQuer em mim saciar toda a vingança!Quanto me alegra a lúgubre sentença!Fazem-me o chefe da facção, eu pagoPor todos os meus fortes companheiros!Sim, sou o réu do crime escandaloso!Não vos temo, visconde Barbacena! Despojai-me da farda, não poluída,E revesti-me da alva de enforcado!Esta singela, imaculada túnicaVale mais para mim que um manto régio!Subo sereno a escada do patíbulo!Deste cimo alteroso a que me elevamEntrevejo na fimbria do horizonteO grandioso clarão de um sol futuroQue belo surgirá, antes dum século!Eia, carrasco, tem valor, enforca-me.Despedaça-me em nome da Rainha!Minha glória imortal começa de hoje!Meu sangue, derramado nesta terra,Servirá de rastilho para um diaCombalir, arrojar além do AtlânticoO trono, repelido em toda a América!Deste mesmo lugar de meu suplício.Por acaso, destino ou Providência,P Surgirá, qual visão esplendorosa,A veneranda imagem da República! (Soa o hino nacional. Ouve-se bradar: Liberdade ou morte!) Porém, que escuto? Que harmonia é esta?Um hino vibra além! Ouço distintosVivas festivos: Liberdade ou morte!...Do Sul ao Norte as mágicas palavrasTransformam nossa pátria! Não me engano! (Ilumina-se o cenário. Tiradentes ajoelha-se)Eu te agradeço, ó Deus, justiça eterna,Fator dos mundos, protetor dos povosO Brasil despertou!... Vingou a ideia,A ideia que eterniza o Tiradentes! (Ouve-se vivas a D. Pedro I. O herói levanta-se) Que nome escuto em meio da vitória?A multidão aplaude delirante...Viva Pedro Primeiro?! Sim, saúdaPedro Primeiro em vez de João Sexto!Muda apenas de nome ao soberano!O Rei ficou, para firmar um ramoDa velha dinastia nesta terra,Que devera cingir barrete frígio,Nunca rendida à casa de Bragança! Ó multidão de cegos miserandos!Se tens um novo Rei a que te curvas.Submissa como escrava aos pés de um déspota,Se conservas os pulsos algemados,Como podes saudar a Pátria livre?Que adoração dás tu à Liberdade?Deploro o teu segundo cativeiro,Pátria infeliz! Não quero ouvir teu hino! (Cessa o hino e escurece o cenário) Desperta, ó povo, do marasmo inglório!Poetas, escritores, jornalistas.Inspirados tribunos, levantai-vos!No livro, no jornal, nas conferências,Fazei a democrata propaganda!Consagrai-vos ao grande apostolado,Como São Paulo, a doutrinar as turbasNos dogmas do novíssimo Evangelho!De vós depende o próximo triunfo! Tempo, ó gênio veloz, agita as asas,Roda no espaço o globo, volve os dias,Faze correr os anos na ampulheta,Mais rápidos que os raios na tormenta!Concede à Pátria um novo oitenta e nove!(Ilumina-se fortemente o cenário. Ouve-se soar ao longe, entre salvas de artilharia, a "Marselhesa") Que som além ressoa que estremeceAs fibras de meu peito? Não me iludo!Desde o Sul às paragens do Amazonas, Reboa, no troar d'artilharia,Um hino universal — a Marselhesa! (Ouvem-se vivas à República Federal) Saúdam, sim, a Federal República,— A minha aspiração, a minha glória!Como belo fulgura o sol dos livres Neste céu do Cruzeiro! Que epopeia!É este o astro que entrevi da forca!Avante, patriotas, que adotastesA forma federal sem que uma vidaSucumbisse na rápida mudança!Que grande exemplo ofereceis ao mundo!Desfraldai a legenda do Progresso,O livre pavilhão às auras livres!Estremecem de júbilo as ossadasDe meus martirizados precursores!Posso agora dormir! Estou vingado! (Desaparece no mesmo ponto donde surgiu. Levanta-se o pano do fundo para deixar ver uma apoteoso à República dos Estados Unidos do Brasil. Soa o hino republicano. O pano cai lentamente)
A UMA FREIRA Rosa do lar, em plena eflorescência,Mimosa pelo olor e formosura,Vais consagrar a florida existênciaÀ treva sepulcral duma clausura! Foges da vida à nobre resistência,À luta em que noss'alma se depura,E, casta, vais votar-te à penitênciaNa solidão da ela, triste, escura! Pobre flor, murcharás à luz dos círios,Cercada de visões e de martírios,Crendo ainda ofendida a Divindade! Seguissem todas teu votivo exemplo!— Em breves anos, pelo amor ao templo.Iria se extinguindo a humanidade! NAS NÉVOAS, NOS CLARÕES CREPUSCULARES(A Filcas Lebesguc) Nas névoas, nos clarões crepuscularesDa quaternária época do mundo,Vivia o troglodita, vagabundo,Som ler na terra definidos lares. Olhando a solidão dos céus, dos mares.Tomava-se de horror ante o iracundoConvulsionar do pélago profundo.Ante a procela a retumbar nos ares. Só, contra a sanha de animais disformes,De contínuo a travar lutas enormes,Era um temido herói entre a braveza. Porém sentiu-se quase um Deus no diaEm que a Mulher, nascendo, apareciaComo o primor.
A ILHA FLUTUANTE A vida é como uma ilha flutuanteQue pela correnteza vai aos mares,Ora de aromas perfumando os aresFestejada de música orquestrante, Ora vagando à sorte dos azaresNo revolto cairei do abismo hiante,Martirizada ao látego espumanteDo mar que canta nênias tumulares. Arrebatada a ilha, deixa a costaO furor do Oceano, altiva, arrostaE quer vencer a onda que recresce... Mas em meio da rápida viagem,Sem ver a orla oposta, na voragemAnseia, treme, cai, desaparece. A BOCAGEIO IMPROVISADOR Em outeiro, no pátio de conventoDe freiras entusiastas de poesia,Entre vates rivais, ele porfiaE os sobrepuja em rasgos de talento. Ouvido o mote, glosa-o de momento,Com caprichosa, artística harmonia,E a mostrar apolínea valentia,Causa, em torno de si, deslumbramento. A glória, no improviso conquistada,Prende, extasia a turba eletrizada, Que de ovações exalta o repentista. Porem, depois do triunfo caloroso.Ao Botequim das Parras vai, ebrioso.Manchar em vinho seus lauréis de Artista! IIO DEMOCRATAQuando, em França, explodindo a liberdade,Faz ruir, com fragor, o despotismo,E estremecem os reis, ao brilhantismoDaquela rubra, estranha claridade, Porém Manique — o esbirro-mor que aterra —Na humilhação duma cadeia o encerra,Para que o gênio da altivez decaia. Na prisão, revoltado, o bardo exora:Liberdade, onde estás? Quem te demora?Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
IIINA ÍNDIA Manique o força a abandonar Lisboa...E o desditoso, errante, peregrino.Semelhante a Camões, parte, em destinoÀ possessão ultramarina, à Goa. Aí, a vida insípida se escoaEntre chatins de cérebro mofino;E ao tédio sucedendo o desatino,Vai a Surrate macular-se à toa. Ante a impudente Manteigui, o poetaMolha a pena aquilina em tinta abjetaE canta como um fauno alucinado. Após o riso exclama soluçante:Sinto rasgar-me o peito a cada instanteA magna de morrer expatriado!
Que a soberba torrente do Amazonas,
Transformam nossa pátria! Não me engano!
(Ouvem-se vivas à República Federal)
IV
NA VÉSPERA DE MORRER
Quase a deixar a tumultuosa vida,
Contempla no aposento, lacrimosa,
Solto o cabelo, pálida, formosa,
A jovem Márcia, a noiva estremecida.
Pela desgraça e pela dor vencida,
A delicada virgem melindrosa,
Em pranto oscula a fronte luminosa,
Como de um áureo resplendor cingida.
Grato à ventura desta unção extrema.
Improvisa Bocage um terno poema,
Como de.uma ave o derradeiro canto.
Fitando-a, exclama o poeta resignado:
Meu mal dorme, repousa, embriagado
Das mil venturas que me dá teu pranto!
V
ANTES DE MORRER
Arrependido de um viver vicioso,
O trovador de Leandro, penitente,
Espera a dor final, serenamente.
Sempre a cantar em metro sonoroso.
Dos amigos ao círculo piedoso
Mostra-se humilde, afervorado crente,
E junto a frei José, a Deus temente,
Revela o meigo coração bondoso.
Acusa os seus prazeres de tiranos,
Confessa que sua alma em si não coube,
F, implora aos céus, por fim, livre de enganos;
Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube,,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube!
VI
GLORIFICAÇÃO
Portugal e Brasil e toda a parte
Em que ressoa a língua portuguesa,
Comemoram-te a fulgida realeza,
Ó grande, imperecível Mestre d’Arte!
Todo o mundo latino vem saudar-te
Pela expressão de clássica pureza
De teus cantos de amor, de gentileza
F de riso que em dardos se reparte.
Quis a inveja tolher-te o voo altivo,
Mas um centênio passas, redivivo.
De olhos videntes no porvir imersos!
Tens em Setúbal monumento alçado;
Porém mais que a Coluna, mais firmado
É o teu padrão — o bronze de teus versos!
NÃO ERA O ARTISTA O CEGO DE NASCENÇA
Não era o artista um cego de nascença;
Já tinha visto a terra, os céus e o mar;
Porém a febre da varíola intensa
Na infância lhe extinguira a luz do olhar.
Mas como lenitivo ao sofrimento,
À constante tortura,
Interpretava a mágoa no instrumento
Aprendido nos tempos de ventura.
Harmonias vibradas na palheta
Produziam efeito enlevador,
Qual se um gênio chorasse à clarineta
Do jovem professor.
Na treva procurava, em doido anseio,
Uma branca visão que idealizara,
Bela, a sentir no palpitante seio
Paixão ardente e rara.
Aspirava que a imagem peregrina
O amparasse na vida... Vão reclamo!
Nenhuma voz maviosa, feminina,
Lhe disse, em beijos, esta frase: "Eu te amo!"
Quando ouvia o roçar de seda leve
E de mulher o timbre aveludado,
Queria um minuto, embora breve,
Sentir alguém, por ele, apaixonado.
Pedia eterno amor: davam-lhe flores!
Mas palmas festivais e a própria glória
Jamais puderam minorar-lhe as dores
Ou desnublar-lhe a face merencória.
Gozou, por fim, da máxima alegria!
Arfou-lhe o peito, num ideal transporte,
Quando, a sorrir, adormeceu um dia
No seio branco da visão da morte.
CADÁVER TRIUNFANTE
Morrera o Campeador. O corpo embalsamado
É posto no corcel, como se vivo fora;
Prendeu-se-lhe na destra a lança vencedora,
Largo escudo lhe cobre o peito inanimado.
— Calções de preto e branco e o manto costumado
O herói, numa atitude audaz, dominadora.
Rompe, através da noite, a marcha aterradora;
Cavaleiros fiéis o seguem lado a lado.
A inimiga mourama, atônita de susto.
Incapaz de lutar, dispersa-se, fugando:
Búcar, o próprio Rei, tremendo, escapa a custo
O castelhano povo, ante a Vitória absorto,
Na passagem aclama o Cid venerando,
O grande vencedor, inda depois de morto!
NOVO CAVALEIRO
Para ter ordem de cavalaria,
Ele despia emblema de pureza,
— A veste toda branca — e, com presteza,
De túnica escarlate se cobria.
Que pela Igreja o sangue verteria,
O seu vestuário, assim, dava a certeza;
Perante o altar e em face da nobreza,
O sacerdote a espada lhe benzia.
Um cavaleiro armava-o; o juramento
Prestava-o sobre a espada do senhor;
Ofertavam-lhe as damas, no momento.
Cota, braçais, couraça, a lança, a espada
As esporas, porém, de áureo fulgor
Eram prendas de dona apaixonada.
SOBRE A PARIA DE SAGRES, NA LENDÁRIA
Sobre a praia de Sagres, na lendária
Praia donde partiram caravelas,
Impelidas de febre extraordinária
Ao Tenebroso Mar, de atras procelas;
Onde o príncipe Henrique, o sábio infante,
Sentia à fronte borbulhar a ideia,
E em face aos mapas, num pensar gigante,
Sonhava para a pátria uma epopeia;
Aí, onde o passado se condensa
Nas conquistas, frementes de emoções,
Onde o embate das vagas lembra a intensa
Orquestração dos versos de Camões;
Na plaga em que arrojados navegantes
— Colombos, Dias, Gamas imortais —
Souberam planejar feitos brilhantes
Cumulados de aplausos perenais;
Branca Visão, de albente claridade,
Divaga sobre a célebre eminência:
No coração — anseios de saudade,
Nos lábios— um sorriso de clemência.
Quando o sol, a surgir gloriosamente,
Contorna de ouro o vulto soberano,
A sombra, projetada no ocidente.
Sonha vir ao Brasil, transpondo o Oceano.
Porém o mar, na curva despiedosa,
Sufoca-lhe o desejo, e brame e espuma.
Sobe o sol; volta a sombra, pesarosa,
A recolher-se ao pedestal de bruma.
A Visão não realiza a ideal ventura
De contemplar, de longe, a quem tanto ama,
Nem pode, em sombra, vir, pela planura,
Vagar nos florestais do Pindorama...
Porém o Tempo vaticina: "Espera!
Do exílio há de a Justiça arrebatar-te
E em teu país, de eterna primavera.
Num funerário monumento de Arte,
Entre sinceras expansões de glória
De um povo que ao teu nome se reanima.
Recolherá teus restos, em memória
Do que foste e do amor que te sublima.
Filósofo, encaraste o banimento
Sem protesto, sem queixas doloridas;
Só na tua viuvez, o sofrimento
Banhou-te a face em lágrimas sentidas.
Um dia, em frente à nacional bandeira,
Ao som dos hinos fortes da República,
Como um padrão de glória brasileira
A História te erguerá na praça publica!
Finda-se a voz. Radiante o sol no oriente
Faz tanto a sombra enorme se alongar.
Que ela pensa envolver, saudosamente,
O Gigante que dorme à beira-mar.
OS COMBOIOS
(A Augusto de Lima)
De um lado e de outro escuta-se um rumor:
São comboios que vêm precipitar-se,
Num encontro fatal despedaçar-se,
À beira de uni abismo aterrador.
Alucinado o guarda, de terror,
À alavanca da agulha ai lançar-se
Todo ofegante, e evita entrechocar-se
Os trens que correm... rangem com fragor.
Quando ele, no desvio, abre a passagem,
Uma criança avista sobre o trilho,
E a dor quase o fulmina ante essa imagem!
Firme, tendo no olhar estranho brilho.
Salva os trens! Mas, em prêmio da coragem,
Vê morrer esmagado o próprio filho!
VEJO PASSAR NAS ONDAS REVOLTADAS
Vejo passar nas ondas revoltadasBouquet de róseas flores,Condenado aos furoresDo mar, arfante a ríspidas rajadas. Flutua, como um sonho tormentosoQue nos confrange o coração aflito: Parece desprender no pego irosoUm ai de angústia, um sufocado grito... Quem assim te juntou, haste por haste,Como um penhor de sentimentalismo?Bouquet tombado em proceloso abismo,Em que mãos femininas te formaste? Por que foste lançado sem piedadeSobre o revolto Oceano,A servir de joguete à tempestade,Ao rebramir insano? Que existência misérrima e precária,Prenda infeliz! Que lutas dolorosas!Antes tu fosses desfolhar as rosasJunto a cruz funerária. Recordas a mulher a quem no mundoVotamos os mais íntimos amores:Sorrindo, ela arremessa ao mar profundoNosso bouquet de flores... Morrem as flores que a procela truncaE o vento arroja pelo Oceano afora;Porém no coração, ferido embora,Vive a saudade, que não morre, nunca! QUISERA, SOBRE UM MÁRMOR DE CARRARA(A Alberto de Oliveira) Quisera, sobre um mármor de Carrara, Eternizar-te a forma peregrina,Toda a lisa epiderme, branca e fina,Todo o corpo, a mostrar perfeição rara. Com que enlevos eu não esculturaraA estatura, a expressão quase divina,E o sorriso da boca pequeninaQue só heleno artista idealizara! Completa a estátua, esbelta e vencedora,Vencedora do tempo, eu sofreriaDores atrozes que a razão obumbram. Por ver faltar à Deusa encantadora que eu não posso dar à pedra fria;A luz, com que teus olhos me deslumbram! SENTI-ME, DE REPENTE, ARREBATADO Senti-me, de repente, arrebatadoDe verdejante e florida eminênciaE sobre negro abismo arremessado: Tanto o golpe feriu minha existência,Ao perder-vos, o mãe! visão sagrada!Meu amor! minha humana providência! Após a prostração amargurada,Minh'alma, em ascensão prodigiosa,Foi ao Sul, a vos ver inanimada. Ante vós ajoelhou-se, e, lacrimosa,A os osculou a mão que ternamenteMe alentava na bênção carinhosa. Aí, a reprimir o pranto ardente,boi saudosa render-vos a homenagemQue vos devia vosso filho ausente. Envolvida na fúnebre roupagem.Sob um véu para sempre adormecida.Parecia de santa vossa imagem. A morte, ao vos roçar, compadecida,Não deformou o angélico semblanteDe quem sempre formosa foi na vida. Compungiu-se, talvez, naquele instante.Ao ver tanta nobreza em vosso porteE tão risonha graça cativante. Minh'alma que por vós foi sempre forte,Seguiu convosco ao cimo da colinaEm que levanta seus troféus a morte, E viu... ó dor cruel! ó dor ferina! féretro descer à sepultura,Como se esconde joia peregrina. Supus ver, entre anseios de tortura.Surgir de vossa campa, em vivas cores,O meu passado, imerso em desventura. Relembrei os balsâmicos oloresCom que tonificastes a condutaDe quem no coração só teve horrores... Em desfazer tropeços resoluta,Havia em vós o tipo da romanaQue aparelhava os filhos para a luta. Abroquelar vontade soberanaContra o revés, vencer o desalento,Eis a missão que vos fazia ufana. Seguir vosso elevado incitamento,Cumprir indicação propiciatória,Era como observar um juramento. Desprendida da vida transitória,Subiu a vossa mente, etérea e linda,À vida universal, de eterna glória! É ela quem do Além me exalta ainda!É ela quem me inspira esta elegia.Santificada de saudade infinda! Minha mãe! minha estrela! minha guia!Em tudo que engrandece eu vos contemplo,E a vossa voz escuto na harmoniaDa natureza transformada em templo! A VICTOR HUGO Como um colosso ródio em pleno Oceano,Sobrepujante à fúria das procelas,A proteger as erradias velas,Mostrando-lhes a esteira a prosseguir,Assim o Maximo Poeta, soberano,— Foco de luz, de liberdade e crenças —Em meio à sanha das paixões intensas,Indicava aos Artistas o porvir. Entre as radiantes claridades puras Que fulgiam das letras no congresso,O grande arauto do ideal progresso.Em sóis mudava os pensamentos seus!— Águia sempre, librada nas alturas,Com o poderoso, enérgico remígio,Subiu das honras todas ao fastígio:Foi, perante seu século, um semideus! Quando, curvado à lei da natureza,No fim do vitorioso itinerário.Ele caiu no leito funerário,O mundo estremeceu, ouvindo o som...Enlutaram-se os povos de tristeza!Tombara o Poeta do real proscênio!Mas — esplendente apoteose ao gênio! —Por ele, um templo alçou-se num Panteon! MORTE GLORIOSA(A Coelho Neto) Na rocha verdejante, Ensombrada de fetos e arvoredo,A ouvir do mar constante burburinho,O chalé do vetusto comandanteFaz recordar um ninhoDe albatroz sobre a crista dum rochedo. No mar nascera aquele velho austeroE ai desenvolvera a inteligênciaNos estudos da náutica ciência:Ao mar votava grande amor sincero. Sobrepujando o Oceano furibundo,Como se acaso igual gigante fora,Muitas vezes fizera a volta ao mundoNa alterosa galera Lutadora. Mas o navio um dia naufragaraSob o fragor de aspérrimo ciclone...Só quem tenha perdido afeição cara— Mãe devotada ou filho estremecidoE a justo desespero se abandone,Pode julgar a dor do nauta, quando.Pela força dos fatos compelido,Alucinado e trêmulo, chorando,Disse adeus à galera, à companheiraDe toda a sua vida aventureira.Parecia que parte de sua almaFicava ali, gemendo, sem conforto,Naquele barco espedaçado e morto. Nostálgico e doente,Para em final de vida gozar calma.Isolou-se do mundo inteiramente.Com a única filha que tivera— Formoso mimo de inocência e graça —— Orquídea que em ternura ao tronco abraçaFoi curtir as saudades da galera,A todos ocultando o seu segredo,Naquele asilo à beira-mar— a fronteA fitar o horizonte,Como um branco albatroz sobre um rochedo.
IIAo som cadente do quebrar das vagas— Som cheio de tristeza, de poesia.De funda soledade,Que reconcentra a nossa fantasiaNa ideia da infinita imensidade —Tinha prazer em relatar à filhaAlegres excursões a longes plagas...Ir ver um continente; após — uma ilha;E mais outras, mais outros continentes.Belas cidades que o progresso expande.Crenças, costumes, línguas diferentes...Ver quanto é vário, quanto o mundo é grandePara quem lhe perscruta os acidentes!... IIIPensativo, quedava-se à janela,A contemplar num sonho iluminadoAs naves a passar na verde telaDo mar arfante... Que prazer magoado!
IIINo declinar dum dia,Alheio ao mal de morte que o minava,Ficou-se triste, a contemplar a bravaLuta das ondas contra a penedia. "Vinde ao leito, meu pai", pede a donzela— A ingênua providenciaQue toda se desvelaEm prolongar-lhe os dias de existência —"Recolhei-vos ao leito!Não suporteis a insana ventaniaE a chuva intensa e friaQue vos alaga o peito!" Ele, porém, não pode ouvi-la; atente,Olhava uma fragata que impelidaPelo furioso vento,Vinha sobre os parcéis perder a vida.A prever um naufrágio apavorante,Que transfiguração teve esse velho!Esquece a dor que o coração lhe oprime:Ergue-se firme, trágico, sublime,— Figura legendária do Evangelho —E toma o porta-voz no grave instante.Grita, ordena, com voz dominadora,Como se fora o próprio comandante,Ou fosse aquele barco a Lutadora!A maruja que atônita se estorça,Executa a manobra; o navio orça,Deixa os parceis e atasta-se à bolina. IV"Salvei-a! oh! Deus! Salvei-a ."Exclama o doente com febril transporte;Mas uma dor aguda, repentina,Do grande coração rebenta a veia. Tivera, enfim! a sorteDe morrer em seu posto! A fronte inclinaSobre o colo da filha comovida,E a sorrir, venturoso, exala a vida.
ANTE À LUZ
Sentindo n'alma o sereno brilhoDa matutina de eterno alvor,Beijo nas faces e abraço um filhoNo qual meu sangue revive em flor. Não sei quando este mimo inocenteMais me conforta, mais me seduz:Se quando as palmas bate contente.Se quando, absorto, contempla a luz. Minh'alma, ciosa, debalde o chamaAo vê-lo entregue à fascinação;Ele os bracinhos estende à chamaComo atraído pelo clarão. E balbucia! quer, insofrido,— Prometeuzinho — se apoderarDaquele fogo desconhecidoQue lhe não deixo sentir, tocar. A rir, afasto-o do devaneioPorque lhe pode produzir mal;Porém aplaudo tão belo anseio:— Todo embeber-se por um ideal! A luz te faça, meu filho, um forteEm toda a vida que vais fruir!A luz te seja constante norte!A luz resplenda no teu porvir!
Do mar, arfante a ríspidas rajadas.
Quisera, sobre um mármor de Carrara,
Na rocha verdejante,
A FLOR DE MANACÁ Abril. Quanto esplendor na altura iluminada! Pela arenosa praia, em forma de enseada,Riem, folgam ao sol os nus Tupiniquins:Uns remam nas igaras,Outros fazem voar dos arcos as taquaras,Ou sopram nos borés— as flautas dos festins. De enfeite extravagante adornam-se contentesOs ágeis dançadores:Na fronte, o canitar de penas multicores;Ao pescoço, ramais de conquistados dentes;O plumoso enduape em volta da cintura;Nos pulsos, nos artelhos,Os vistosos anéis de penas amarelas.Com tintas vegetais ornando as formas belas,Ou fazem-se vermelhosOu pintam-se em xadrez de cor azul-escura. Nos lábios, nas orelhas, embutidos,Botoques ou metarasD’ossos agudos, dentes retorcidos.Ou madeira espelhante ou pedras raras. Entregues ao prazer aquelas almas,Sobre a macia areia,A saltar, batem palmas,E dão-se as mãos, formando uma cadeia.
IIA moça mais formosaDe toda a tribo que folgando está,Por distinção honrosa,É conhecida Flor de Manacá. Debalde procurais entre as donzelasMais sedutor olhar, linhas mais belas:Mais correção não há.A todas ela vence em gentileza,Como um raro primor da natureza, A Flor de Manacá. Contorna-lhe a cintura delicadaAraçoiá de plumas, variegada, Que mais prestígio a seus encantos dá.Como a Paraguaçu, como a Iracema, Devera ser cantada num poemaFlor de Manacá. Quanta alegria a virgem manifesta.Saltitante e faceira,A dominar a festa!Brinca na espádua a solta cabeleira;Búzios de cores brilham no colar;Nos contornados braços e nos joelhos.Ligas de fios largos e vermelhosA flórea virgindade a revelar. Tez rosada e morena!Seios de estátua! rubra a boca e breve!Linguagem que semelha a cantilenaDa patativa, harmoniosa e leve! Grego escultor, si a viraNo sagrado esplendor da forma nua,Sem poder modelar a imagem sua,Pasmo de assombros, o cinzel partira! Dentre as esbeltas filhas das florestasNenhuma tinha a flecha mais certeira,Nem maneiras mais lestasNa caça ou pesca ou célere carreira. Nos três lustros e meio de existência.Nunca em laços de amor fui ela presaDescuidosa, passava a adolescênciaComo flor, a adornar a natureza. Vinte e quatro de abril. O pôr do solIncendeia as florestas no arrebol.Reverberando a rósea luz celeste,De novo encanto a plaga se reveste. Lançando, acaso, o olharPela extensão do mar.Os selvagens avistam, demandandoA terra pátria, um bandoDe aves enormes de asas distendidas...Cessam danças, os cantos emudecem.Interrogam-se as turbas surpreendidas: "Que embarcações estranhasSão essas que aparecem?Que vêm fazer igaras tamanhas?Por Tupã! Quem são estes navegantesQue assim vencem as ondas atrevidas?São homens como nós? Serão gigantes?" Dos peitos rompe exclamação de pasmo!
IIINa seguinte manha, vivo entusiasmoReúne à praia curiosa gente.Da frota vem Ribeiro, moço ousado,A perlustrar a terra firme ou ilha.Desembarca e contempla, deslumbrado,A Flor que a seu encontro vai, ridente.Palpita alvoroçadoO coração do nauta adolescenteEm face da selvagem maravilha. Como a nuvem tingida pela aurora.Ao sentir do mancebo o olhar ardente,A Flor de Manacá detém-se e cora. Passada a comoção, serve de guiaAo jovem forasteiro,Leva-o consigo a taba, à moradiaDo povo hospitaleiro,Raça Tupi, de nobres sentimentos.Por acenos explicaTudo quanto pertence à tribo errante:De penas coleção formosa e rica;Os maracás, sagrados instrumentos;Dá-lhe a provar cauim, vinho ebriante;Com gestos e com vozes agradáveisO faz entrar nas ocas, nas palhoças,Indicando-lhe as redes confortáveisE com ele passeia pelas roças. Durante aquele esplendoroso dia,u dia da chegada, áureo, risonho.Ribeiro teve-a sempre em companhiaComo enlevado na espiral dum sonho! Ao voltar ao batei, a Flor, sorrindo,Como um penhor preciosoDa recente amizade,Oferta-lhe um colar de conchas, lindo,E o cinge, com galante urbanidade.Ao pescoço do jovem jubiloso.
IVNo festivo domingo de Pascoela,A selvagem donzelaQue a cismar no estrangeiro devaneia,Sentindo o seio arfante de saudade,Da praia em que passeiaVê a missa primeira, pelo fradeHenrique de Coimbra oficiadaNa Coroa Vermelha, desnudada,E agora de homens cheia. À sombra misteriosa de um dossel— Saudoso esparável —,Por entre as rágias pompas da manhã,Toda inundada em luzFulge a festa cristã,Sublime de grandezaPerante a majestosa naturezaDa terra Vera Cruz. O Capitão desfralda sobranceira,Como insígnia real,A Cruz de Cristo, a esplêndida bandeiraQue lhe ofertara o Rei de Portugal. A moça observa, atônita e surpresa,Aquelas nunca vistas louçanias!Os trajes de veludo! a gentilezaDos nobres oficiais!A luz relampejante dos metais!O trêmulo brilhar das pedrarias! Vê Ribeiro ajoelhar-se, levantandoOs braços para o céu; a Flor ajoelha,Também erguendo os braços nus; e quandoO jovem beija o solo,Ela, curvando gentilmente o colo,Com íntimo prazer naquele instante.Roça na areia a boca semelhanteA bela flor vermelha. VMaio, dia primeiro,Manda Cabral que ali,Quase à margem do arroio Matari,Seja plantada a Cruz, sacro madeiro,A que devem solenes homenagens. Marinheiros e frades e selvagensEm procissão conduzem, à porfia,A Cruz que sobre o topo é brasonadaPelas armas da lusa monarquia,Como um padrão de glória ambicionada. E outra missa, maior, esplendorosa.Celebra-se imponente,Junto à primeira Cruz, a mais grandiosaQue SC elevou nas terras do Ocidente. Todo o selvagem povo, estupefatoAnte as grandezas que ali vê patentes.Sem poder explicar tanto aparato,Imita em gestos o fervor dos crentes. Inspirado, eloquente, Frei HenriquePrega junto do altar,Para que a expedição sabendo lique meio de aos pagãos iluminar:"Brandura, amor, afago,São como o sol nu imensa escuridãoEm que se abisma o instinto malfazejo!Sempre é fecundo o permutar de um beijo!"E a vida santa de Felipe e TiagoExalta no sermão. VIMaio, dia segundo.Gaspar de Lemos volta a PortugalA dar grata notícia, não de um mundo,Mas d uma ilha na parte ocidentalDo tenebroso Atlântico profundo. Aproxima-se a hora da viagem...A Flor, prevendo amargurada ausência,Pede a Ribeiro fique na paragemOnde amor os ligara na existência.Em vão! Faz-se mister a despedidaMutuamente sentida. Ah!... pela vez primeira aljôfares divino.sTombam, cheios de luz, dos olhos cristalinos. O dia é de bonança. Ao soprar do terral será partidaA frota, a demandar o cabo enormeQue transformou o Adamastor disforme!O cabo que vai dar boa esperança!A Flor, junto da Cruz na praia erguida,Sofre mágoa cruel,Quando vê que um bateiTraz Afonso RibeiroE mais outro inditoso companheiroQue em ''VERA-CRUZ serão abandonadosPara a pena cumprir de degredados. Após um breve instante,Na capitânia o célebre AlmiranteOrdena às caravelasO desfraldar das velas. A frota faz-se ao largo. Ribeiro então sentiu correr o pranto amargoAo ver os seus irmãos a caminho d'Oriente!Apoiado na Cruz, a soluçar gemente,Seguia com o olhar as naus na imensidade!Que dor e que saudade!A pátria lhe fugia! A pátria, o santo lar,Expulsava-o sem dó! fugia sobre o mar! Sufocando a emoção, o mísero exiladoExclama resignado:"Partis! Ides à glória! Eu fico no desterro,Condenado a morrer em triste solidão!E castigo de mais ao meu desvio ou erro!Quando ao crime ultrapassa, e crime a punição! O livro da Verdade, o livro grandioso,— A História — há de dizer que eu, Afonso Ribeiro,Em abril vinte e cinco, ano mil e quinhentos,Tive a glória de ser o português primeiroQue impávido, animoso,Pisou em Vera Cruz, a terra dos portentos,Que à noite se ilumina às luzes dum Cruzeiro!Vós ides atingir ao pórtico sublimeDa Fama que concede esplêndido troféu,Enquanto vou pagar imaginário crimeAnte o deserto mar, ante o deserto céu!" Depois, lançando em torno o olhar alucinado,Contempla a Flor e a Cruz."O sinal redentor! Sou menos desgraçado.Abraçando-me a ti, ó crença triunfante!Ó crença de Jesus!Como a estrela que o norte aponta ao naveganteNas trevas de minh'alma infiltra nova luz!Ampara-me a existência em meio da rudeza!E tu, ó virgem pura, ó flor, a mais formosaDe quantas produziu aqui a natureza,Que tens no casto olhar irradiação gloriosa.Protege-me entre os teus!Em prêmio, eu te darei a crença no meu Deus!" Os nautas na amplidão, já perto do horizonte.Puderam ver ainda,No fundo verde-azul duma paisagem linda,O proscrito, de pé.Erguida para o céu a iluminada fronte,Entre o emblema do Amor e o símbolo da Fé!
NO TÚMULO DE UM MENINO: JOÃO PAULO(A Afonso Celso) Exulta, filho meu! Já tens formoso estema Sobre a fronte infantil! Já não serás vulgar! 'A Glória te osculou; és o herói de um poema:Mereceste um soneto a Fethion de Villiar!" Vós cantáveis assim, na ventura supremaDe um glorioso porvir ao filhinho apontar!Mas a Morte, sem dó, com despiedade extrema,O mimo encantador vos foi arrebatar! Eu tive-o junto a mim, numa tarde esplendente,E, saudoso, recordo as graças da criançaQue entre rosas viveu cinco anos tão somente!! Religião de Jesus! Conforta o poeta aflito! Vibra em seu coração os carmes da Esperança,—Esperança de o ver a sorrir no infinito! A HEBREIA PECADORA(A Luís Murat)
"Esta mulher que vedes adúlteraE a ser apedrejada a lei condena.Deve morrer. Que nos dizeis da pena?"Mas Jesus, inclinando a fronte austera.Escrevia n’areia. Vendo que eraBaldado o interrogar, o povo ordenaQue a julgue. Ele, então, diz com voz serenaEm que se lia uma emoção sincera: "Quem dentre vós se encontre sem pecadoSeja o primeiro que a apedreje!" O bandoDe fariseus retira-se apressado. Jesus diz à mulher naquele instante:"Vês? Ninguém te condena." E meigo e brando:"Vai. E nunca mais peques d'ora em diante."
FAETONTE(A J. M. Goulart de Andrade) Ígneo plaustro, a quadriga, em fúria tresloucada, Espumante de raiva, em corcovos acesa,;No infrene galopar abala a natureza,E o Sol, ou quase abrasa a Terra apavorada. Ou, perdido dos céus na infinda profundeza,Deixa-a envolta na treva, a morrer congelada.Crendo, na confusão, já convertida ao nada;Mas Faetonte, o cocheiro, orgulhoso da empresa. Por entre os turbilhões de fogo, imerso em glóriaLevado aos repelões, em êxtase, risonho.Brada: Avante! ao tropel, na insana trajetória! Ser quase o Sol! ser quase um Deus!... Rara ventura!Eis o sonho triunfal! o ambicionado sonho!Que lhe importa que Zeus o fulmine da altura? OS CICLOPES(A Raimundo Correa) Nas cavernas restruge um fragor de batalha:O ferro, ao se amolgar, range, ringe, rebrama,E expele com furor, em fagulhas, a chamaAlbi-rósea que salta e morrendo se espalha. Mas a forja moderna em raios não trabalha;Para a humana ruína o ferro não se inflama:Os ciclopes-heróis, envoltos noutra flama.Sentem que nova luz irrompe da fornalha. Esquecidos do Zeus de vinganças tremendas,Gigantescos, febris, os ruivos operáriosMostram às multidões mais dilatadas sendas. Em honra das Nações pela Força oprimidas.Arrojam no cadinho os canhões sanguináriosE os convertem após em máquinas brunidas. PARAÍSO TERRESTRE(Tradução) O POETA Acaso vos lembrais daquela noite lindaEm que o caminho e a porta do Éden reencontrastes?Nas curvas do jardim — cheios de sonho ainda —Erráveis! E ante vós dobravam-se nas hastesAs flores, a imitar mulheres reverentes.Aquele que o limiar do Paraíso guarda,Abandonando o gládio em Mamas esplendentes,Vos precedia a marcha, em marcha leve e tarda,E a Árvore, vos mostrou, dos frutos proibidos,Que, sempre a reflorir, não se fana jamais.Vós repetíeis baixo os mesmos sons queridos,Juntáveis, muita vez, os lábios passionaisPara que os corações, gêmeos, pudessem, certo,Falar-se de mais perto,Entre olhares de luz e bem-aventurança...Tomou o Anjo uma harpa aos ramos, na passagem,E se pôs a cantar o hino da Esperança:A Árvore fatal vos cobria com a ramagem.E a divina VozPassava no silêncio, a bater asas, veloz,A despertar o céu e a terra juntamente.Os astros, a luzir nos espaços infindos.Num palpitar fremente,Quais olhos de mulher pestanejavam lindos.A Voz vos penetrou, naquela noite calma:Essa Voz era uma alma! À árvore do Mal a vossa inconsciente mãoColheu débil botãoDonde devera, em breve, irromper uma flor!Ao ouvir o rumor,O Anjo então parou, a inquirir, agitado;Mas viu que vós ai já tínheis arrancado,Ao passar, a sorrir, um ramo vigoroso,E o fazíeis florir em vosso sangue estuoso! ADÃO E EVA É, pois, pecado algum o acreditar na vida?Deixar cair, chover em noss'alma embebidaDesejos musicais e beijos odorantes,Na hora em que do Amor os risos augurantesFazem ecos vibrarE, pronto, germinarAs formosasMísticas rosas? JEOVÁ De um dia de prazer não sou cioso inclemente:Vivei, sofrei; eu vos absolvo plenamente. SU LE ORME DI DANTE(Ao Conde Ângelo de Gubernatis, professor de Literatura Italiana na Universidade de Roma) E come il pane si manduca per fame,cosi il sovran, quel ch' era superiormente,pose li denti all' altro là dove ilcervel si aggiunge colla nuca.Inferno, Canto XXXII Quem és tu, ó do inferno condenado,Que eternamente cumpres o destinoDe remorder, com tanto desatino, cérebro dum padre torturado? Por que te mostras, mais do que assassino,Um quase irracional, um cão danado?"Erguendo o rosto iroso, ensanguentado.Responde: "Quem sou eu?— Conde Ugolino. Este, a quem o remorso não consome,Quis que eu e quatro jovens descendentesNuma torre morrêssemos de fome!" E, recordando o horrendo vitupério,Como um louco furioso crava os dentesNo espedaçado crânio de Rogério. IIQuando leggemmo il disiato risoesser baciato da cotanto amante,questi, che mai da me fia diviso,la bocca mi baciò tuto tremante Inferno, Canto V. Como um casal de pombos, no ar, aos beijos,No turbilhão dum círculo do inferno,O par gentil, fremente de desejos,Voa e revoa em padecer eterno. Unidos, enlaçados — qual mais terno —Nos torturantes, rápidos adejos.Soltam, gemendo, tristes rumorejos;Mas o suplício não comove o Eterno. "Qual vosso crime?"perguntou-lhes Dante.— Nós líamos o conto apaixonadoDe Lanceloto, e meu cunhado, ardente, Viu que a Rainha um beijo provocanteNo cavaleiro dera, e, alucinado,A boca me beijou todo tremente. LENDO "FEANCESCA DA RIMINI"(Tragédia de Gabriele d’Annunzio) Com o falso coração todo em loucura,Fazendo-me beber um sorvo ardente,Extinguistes a sede incandescenteQue eu sentia por vós, quase perjura. Por que, cruel, não tive eu a venturaDe ser por vós lançada ao mar fremente,E à praia de Ravena, docemente.Me depusestes na arenosa alvura? "Como devo morrer?"O moço aflitoPergunta.— Em vosso ardor eu vejo agravo.Crime esse amor de insólito exagero! Como pena ao desejo, que é delito,Deveríeis morrer, mas como escravo,A remar na galé do Desespero. II— Que livro é este? _ A história do famosoLanceloto do Lago.— Lede-o, em tanto.— Olhai! Cobre-se o mar dum alvo manto!— Lede-o, Francesa...— Um bando fantasioso De andorinhas sombreia o mar calmoso!— Lede-o...— Como produz um suave encantoA rubra vela que se alonga tanto,Como cingida em fogo esplendoroso!...Lê Paulo: "Vendo-o tímido, temente,Ela prende-lhe o mento, e, alucinada,Beija-o na boca prolongadamente." Aí, tendo a razão toda perdida,O moço imprime um beijo na cunhada,Que diz: "Não, Paulo!" e cai desfalecida. FRANCESCA
Ah! si esta noite minha irmã bondosaFizesse o leito seu junto a meu leito,Eu não sentira, a torturar-me o peito,Esta imensa tristeza dolorosa! Ah! si eu pudesse vê-la, jubilosa.Correr descalça, e, junto ao parapeitoDa janela, chamar-me, a ver o eleitoDa estrela d’alva a resplender graciosa!... BIANCOFIOREVós chorais!... Quero, em vossa companhia.Dormir ao pé de vosso leito! FRANCESCANão!Há de passar-me esta melancolia.Vai dormir o teu sono descuidado. BIANCOFIOREIrei... Deus vos conceda proteção! FRANCESCA (dirigindo-se para a alcova)Agora, ao meu destino infortunado! FRANCESCA"Fechemos este livro apaixonadoE nos lancemos ambos á venturaDeste infinito amor, desta loucuraQue me extasia, ó Paulo! o bem amado ! Beija-me os olhos! beija com ternuraO colo, a face, a boca, e, arrebatado,Como num voo ao céu todo estrelado.Lábios unidos, cinge-me a cintura!" E, a palpitar na febre dos desejos,"Francesca!... Paulo!"dizem, num gemidoEntrecortado de ardorosos beijos... Porém a porta se abre de repente!No estoque de Gianciotto enfurecidoSucumbem, traspassados juntamente. V Gianciotto os pilha quase que em flagrante;Vai ferir Paulo em rápida estocada,Mas Francesca interpõe-se, e, desvairada,Quer ser a vitimada nesse instante. E recebe no seio palpitanteGolpe mortal. "Ó Paulo!" exclama, ansiada,E gira em torno a si e cai prostrada.Morta, nos braços do aterrado amante! Ele a beija na boca ardentemente!Em face ao crime, o rábido maridoMata o rival-irmão incontinente. Após a dupla morte, curva um joelhoE no outro despedaça, enfurecido,O longo estoque tinto de vermelho.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
Como a Paraguaçu, como a Iracema,
Exulta, filho meu! Já tens formoso estema
Ígneo plaustro, a quadriga, em fúria tresloucada,
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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