SENHOR DAS CAÇAS
Era uma noite de farinhada.
Para adiantar o serviço do dia
seguinte, combinara-se um serão, e neste raspava-se a mandioca, ouvindo-se
alegres cantigas ou casos vistos e presenciados pelos circunstantes, ou dessas
longas histórias que o povo guarda na memória para entretimento de suas noites.
É uma das cenas mais animadas do
trabalho agrícola a — farinhada.
Aqui mulheres, homens, crianças, em
torno à tulha de mandioca, raspam-na com suas quicés, estabelecendo entre si
uma luta — a que chamam botar capote —, raspando alguns a mandioca até o meio
para que os outros acabem de raspá-la. E por isso, que afã, que ligeireza na
lida; quanto dito espirituoso e quanta léria e sorriso ao vencido,
principalmente se este é o que botava capote!
De vez em quando chegam as cargas;
aumenta a tulha e os cargueiros dão recados dos arrancadores, ou respondem aos
preguiçosos, se ainda há muita mandioca arrancada.
Adiante, os puxadores, de camisa
atada à cintura, alagados de suor, puxam a roda cantando com as pausas
apropriadas àquele trabalho, como o fazem os remadores ou falando à cevadeira
que lhes pede ligeireza e azeite nos mancais do rodete. Perto o forneiro,
assentado ao banco do forno ou em pé junto deste, a mover o rodo em todas as
direções, ora animando os carregadores da lenha e lhes pedindo mais fogo, ora a
gritar por
massa ao encarregado da prensa e ao
peneirador.
Depois, cada qual faz o seu beiju,
espreme seu bocado de goma e não deixa de comer o seu punhado de farinha quente
e cheirosa.
E tudo isto por entre as toadas, as
pilhérias, as narrativas, sempre acompanhadas da orquestra que formam os
zunidos da roda, os esguichos do rodete, os gemidos da vara da prensa no
brinquete, e o tom das quicés na mandioca.
Mas, voltemos ao serão da
farinhada, onde apenas trabalham as quicés, pois que o forno, a prensa e o
rodete descansavam para recomeçarem suas lidas ao quebrar das barras da
madrugada, depois que os galos cantassem a terceira vez.
Estava animado o serão e todos
dispostos não só a dar à língua, como a vencer a grande tulha de mandioca que
no meio da casa erguia-se afrontando as quicés. Maria das Dores com a ponta do
lençol enrolada ao pescoço, Chica Pereira com um pano amarrado à cabeça e
Madalena vestida com uma camisa de homem para resguardar o cabeção de rendas,
botavam capote a Zé Gomes, ao Raimundo da Josefa e ao João Marreca e o mesmo
entre si faziam a Rosa dos Tabuleiros, Gonçalo da Silva, a Rita Lavandeira,
Manoel Mateus e os demais trabalhadores. Os cachimbos passavam de mão em mão e
uma vez ou duas apareceu inesperadamente na roda uma botija de aguardente, por
lembrança do dono da farinhada e foi recebida com alegria, e com maior alegria
esgotada.
— Eu não gosto desta bicha, gente:
faz-me mal à cabeça — disse Maria das Dores, e cuspindo e fazendo uma careta,
emborcou a xícara.
— E mais é que não achou espinho...
hein, comadre? — observou o João Marreca piscando o olho à Rosa dos Tabuleiros.
— Eu também não gosto, mas bebo por
penitência, que tenho bastantes pecados — acrescentou Manoel Mateus.
Todos riram e mais animados
continuaram a palestra. Falava-se então em caiporas, aventuras de caçadas e
encantamento.
Cada qual contava a sua história ou
declarava o seu pensamento a respeito, e alguns opunham dúvidas para
afervorarem a discussão.
— Eu não acredito nestas cousas,
minha gente, não sei como se acredite nisto — exclamava com muita graça a
Inácia do Mané Coco.
— Pois deve acreditar, senhora
Inácia; e saiba que este que aqui vosmecê está vendo já teve negócio com os
caiporas...
— Que está dizendo, senhor João
Marreca? Pois vosmecê está falando sério? — tornou-lhe a Rita Lavandeira.
— É o que disse, e fiquem certas de
uma vez que eu não minto.
— E ninguém diz menos disto —
acudiram os ouvintes.
— Eu sei!? — acrescentou em tom duvidoso
a senhora Inácia
— mas às vezes a gente vê cousas em
sonhos que parecem realidades...
— Sim, senhora, mas saiba vosmecê
que eu tive amizade com os caiporas por muitos meses.
— Não duvido da sua honrada
palavra, senhor João; o que não posso é acreditar em bruxarias e feitiços... é
gênio meu.
— Ora... é porque você não viu como
a mulher do Rufino morreu botando baratas pela boca, por causa de feitiço que
lhe botaram — respondeu-lhe Chica Pereira.
— E o filho do Inácio, que quase
vai-se de um mau-olhado que lhe botou a...
— Que é isso, Rosa? Não fale de
quem já deu contas a Deus...
— Mas, nos conte, senhor João, a
história das amizades que teve com os caiporas, pediu-lhe o Raimundo da Josefa.
— Eu lhe conto, embora a senhora
Inácia ria-se de mim. Que me importa? O mundo está cheio de incréus e quem
quiser que o endireite...
Mas, escutem... Uma vez, ainda era
eu bem rapaz, fui esperar na bebida, ali perto do serrote do Bolo. Era meio-dia
em ponto, e o sol estava de queimar a gente. Trepei-me na espera, junto de um
grande poço e armando minha rede, deitei-me com a espingarda atravessada nas
pernas, e pronto para o primeiro movimento.
As veredas estavam fundas. Muitos
bichos bebiam de noite e outros bebiam de dia. Mas o tempo passava e nada
aparecia; e eu já ia desconfiando da minha sorte.
Nisto botei os olhos para a banda
do serrote, e vi descer correndo um caboclinho muito esperto. — "É o tal
caipora!" — disse eu e pus-me a espiá-lo, com o coração meio
sobressaltado. E o culumim chegou, olhou para a espera, deu fé de mim, e sem assustar-se
dirigiu-se ao poço e tirando água com as mãos começou a beber. E eu vendo a
tenção dele!
Boto outra vez os olhos para o
serrote e vejo vir outro caipora, correndo como o primeiro. — "Temos outro
— disse eu — pior vai-se tornando o negócio!" — E bem não tinha chegado
este, o outro apontou para mim; e ele sem fazer caso foi ao poço e tirando água
com as mãos começou a beber.
Então o primeiro caipora
levantou-se, e subindo os paus da espera veio assentar-se à beira da minha
rede...
— Que susto não teve vosmecê,
senhor João! — exclamaram as mulheres. E o que fez ele?
— Não gostei da graça, e tive
vontade de empurrá-lo, mas felizmente lembrei-me que o tal culumim é valoroso,
e podia matar-me. Demais eram dois, e quem sabe se não viriam outros? E logo o
culumim virou-se para mim e pediu-me fumo.
— É o que ele queria; eu vi desde o
princípio que a tenção dele era esta — disse Chica Pereira.
— Eu dei-lhe um pedaço bom, e ele
tirando debaixo do sovaco um cachimbinho, encheu-o, quebrou um garrancho, roçou
um pedaço no outro, fez fogo e o acendeu, num abrir e fechar de olhos.
— Ah, excomungado! — disseram os
rapazes.
— E depois?
— Depois me disse: "Daqui há
pouco virá beber um bando de caititus, e entre eles verás um grande e esbranquiçado;
não atires neste. Deixa todos beberem, e depois mata o que quiseres para te
arremediares com tua família.
— Não quero caititu — lhe tornei —,
o que desejo é um veado capoeiro para minha mulher que está doente.
— Pois então espera mais um pouco,
que eu vou botar veados para cá. E toma este assobio, e quando quiseres caça
sopra três vezes.
E dizendo isto desceu ligeiro como
um fura-coco, repartiu o fumo com o outro e ambos correndo desapareceram.
— E cumpriu o prometido, senhor
João?
— Não se meteu meia hora, Raimundo.
O poço coalhou-se de veados, cada qual o mais bonito; e eu botando a espingarda
ao rosto matei o melhor, e sem detença empurrei-me para casa.
— Homem, esta...
— E o assobio, senhor João?
— Guardei-o na patrona, e desde
então sempre que precisava, assobiava três vezes, aparecia-me o caipora e tudo
me saía a jeito. Mas um dia... não sei que rumo tomou o caipora; cansei de
assobiar e ele nunca mais me apareceu!
— E não viu outros depois, senhor
João? — perguntou Madalena.
— Não, senhora, somente estes. E
quem quiser, ria-se, que se ri de uma verdade.
— Pois eu, gente — disse Manoel
Mateus —, nunca vi e nem desejo ver os caiporas; porém conheci um velho que era
muito amigo deles e por isso tinha artes... Credo... Nem gosto de me lembrar
dessas cousas...
— O Zé de Goes, meu tio?
— Este mesmo, menino. O diabo do
velho era artista!
— E o que ele fazia, senhor Manoel?
— De todas não me lembro, mas
uma... parece que a estou vendo. Trabalhávamos na limpa de uma capoeira, quando
uma cascavel mordeu o pé de um dos rapazes.
— Dá cá um pau — gritaram todos.
— Não precisa — disse o velho.
E cuspiu em cima da cobra e com
pouco ela revirava morta no chão.
Depois... Virgem Maria! Ele
perguntou ao rapaz se queria que o curasse e se para tal se sujeitava ao que
lhe fosse ordenando. O rapaz respondeu que sim, e o velho assobiou e apareceu
cobra de toda a diversidade. Virgem Maria! Eu me trepei por uma cajazeira
arriba com medo de tanto bicho feio. E o velho ordenou que uma das cobras
mordesse o pé do rapaz... Virgem Maria! Dito e feito...
— E morreu o rapaz?
— Qual! Continuou a trabalhar ao
cabo da enxada como se nada sofresse.
— Nanja eu que desse meu pé!
— Nem eu! Virgem Maria! E diziam
que o velho aprendera estas artes com os caiporas...
— Só sendo! — exclamaram alguns dos
ouvintes.
Os outros riram-se baixinho e
olharam curiosos para o velho Gonçalo da Silva, como procurando saber a sua
opinião a respeito.
CAPÍTULO 2
Gonçalo era autoridade na matéria.
Seus cabelos tinham embranquecido
nas caçadas; e as chamas do fuzil de sua lazarina queimaram-lhe as pestanas e diminuíram-lhe
a vista, em mais de mil casos perigosos, de que salvara-se milagrosamente.
Era o mais velho dos caçadores, e o
mais escopeteiro e afamado entre todos os daquelas serranias.
Conhecia a vida dos bichos, sabia
de cor e salteado os seus costumes, adivinhava-lhes o rasto, as veredas e as
tocas, e por isso ninguém tão feliz como ele em suas continuadas correrias. Uma
circunstância mais concorria naquela ocasião para tamanho respeito ao velho; e
era que Gonçalo da Silva tivera seus encontros com um caipora, além de muitas
visagens e misteriosas cenas nas matas virgens da montanha. Ninguém ignorava
essas cousas e por isso os rapazes instantemente pediram ao velho, que ainda
uma vez as contasse.
— Não vejo nesta terra quem melhor
saiba dessas cousas do que o tio Gonçalo...
— Já tu vens, Manoel! Não podiam
acabar tuas conversas sem meter-me no meio.
— E o que lhe parecem, meu tio, o
curador de cobras, e os caiporas do senhor João Marreca?
— É que — quem não vê, é como quem
não sabe. Vocês riem-se, porque nunca viram o que em desconto dos meus pecados
tenho presenciado nestes matos.
— Gosto de ouvir falar assim —
disse João Marreca com ar de triunfo.
— Quem sabe, sabe — acrescentou
magistralmente o Raimundo da Josefa.
— É verdade, tio Gonçalo; mas agora
nos conte a história do que lhe aconteceu com os caiporas ali na serra.
— Inda mais esta, rapaz! Pois já
não te contei isto tantas vezes?
— Sim, senhor, e quem se cansa de
ouvir aquela história? Foi decerto um caso medonho, capaz de estatalar o mais
temero! Vosmecê é homem de coragem, meu tio!
O velho caçador, como todos os
filhos de Adão, gostava da lisonja; era esse o seu fraco; e por isso coçando a
cabeça com o cabo da quicé, espalhou na roda um olhar de satisfação e orgulho,
disposto a corresponder à fineza do rapaz.
— E não é mentira, não, Manoel, que
se me faltasse a coragem, eu não passaria, como passava na mocidade, dias e
semanas no meio daquelas serras, nos lugares mais esquisitos.
— Mas, agora — interrompeu Madalena
sorrindo-se maliciosamente — vosmecê não vai a esses lugares nem que o matem...
— Saia-se daí, que você não sabe o
que diz — respondeu-lhe o velho desconfiando. Intrigado com o caipora, seria
uma loucura embrenhar-me naquelas grotas para ajustar contas com um inimigo tão
feroz como ele. O que é preciso é rezar e não empregar meu tempo em tafularias,
como muita gente que eu conheço...
— Em mim não assenta a carapuça,
tio Gonçalo — respondeu Madalena rindo-se para disfarçar o despeito.
— É assim mesmo, tio Gonçalo;
vosmecê tem razão; mas vamos ao caso...
— Deixemo-nos mais de histórias,
rapaz, que já é tarde, e além disso ali a senhora Madalena pode caçoar a seu
jeito...
— Ora, primo! — replicou Maria das
Dores — pois você não conhece o gênio da Madalena! Conte lá, que estou morta
por ouvi-lo.
— Conte, tio Gonçalo, conte...
E o velho não podendo resistir a
tantos pedidos, acendeu o cachimbo, e após alguns momentos de pausa falou
assim, dirigindo-se a todos.
— Eu não gosto de contar estas
cousas... sim, senhor, não gosto! Há gente que, sem mais nem menos, ri-se dos
casos sérios, como que duvidando. E sabem por quê? Aposto que não sabem; pois é
porque, como lá diz o outro, nunca saíram mais longe do que o terreiro; e
nascem e morrem desconhecendo o que há de assombroso por esses matos de meu
Deus.
— Tal e qual; falou como quem sabe,
senhor Gonçalo da Silva
— disse um velho que perto raspava
mandioca.
— Quanto a mim, nasceram-me quase
os dentes nas brenhas da serra em perigosas caçadas, e em que tempos? Não havia
ali e nem por aqui uma só casa; a mais vizinha era a do João de Góes na
distância de três léguas e meia...
— E das boas, tio Gonçalo!
— É verdade, são léguas que valem
pelo dobro. Mas, como ia contando: nesses tempos... eu andava pelos vinte e
dois ou vinte três anos, e meu emprego era somente caçar. Possuía uma lazarina...
e que arma, rapazes! Parece-me que as boas espingardas também se acabaram.
— Como acabou-se o algodãozinho
americano encorpado, e a chita de cores fixas. Hoje em dia não há chita que não
largue, primo.
— É assim, prima Maria; as cousas
têm mudado completamente e, por infelicidade, para pior.
A rapaziada quis protestar mas,
para não interromper a história, deixou sem resposta a queixa da velhice.
Gonçalo continuou:
— Quando eu levava minha espingarda
ao rosto, via a queda. E eu por isso amava-a mais do que à minha mulher; e
saibam que marido algum já amou tanto a sua cara metade como eu à minha
Lauriana, que Deus haja. E devia ser assim, porque aquela espingarda não só
dava-me o bocado como também muitas vezes salvou-me a vida. Uma vez,
principalmente, se não fosse ela eu teria morrido nas garras de uma suçuarana
audaz. Onça terrível! fez tais voltas e reviravoltas ali no Boqueirão da Arara,
que se me mentisse fogo a lazarina, ou se não fosse tão certeira, o Gonçalo da
Silva teria sido carniça!
Mas, vamos ao caso. Além de tão boa
arma, eu possuía quatro cachorros de caça, que melhores não havia nestes
arredores: o Sereno, o Leão, o Veloz e o Rompe-Ferro. Aquela cadela da Josefa
do Córrego dos Moços é bisneta do Veloz e é pena que dos outros se perdesse a
raça.
Sim, senhor... Eu, quando saía de
casa, não voltava senão quatro ou cinco dias depois e sempre carregado de caça
fresca e seca. Levava a rede às costas para esperar os veados, a cabaça d’água,
a farinha, o algodão ou artifício de tirar fogo, no ombro a lazarina, na
cintura a patrona e a faca e na cabeça uma carapuça de couro de preguiça. E
assim empurrava-me pelo mato adentro, ora trepando-me pelos despenhados da
serra, ora rompendo os fechados, e ia esperar os bichos ao meio-dia nas bebidas
e à noite nas comidas, para tal armando minha tipoia nos galhos das árvores ou
fazer mondés, armar os quixós, cavar os fojos, ou arrancar tatus nos buracos.
Lembro-me agora de uma que me
aconteceu nas esperas.
Escutem lá, que eu vou contá-la
pelo alto.
Uma madrugada... A névoa envolvia a
serra e aumentara a escuridão, de modo que não se enxergava a dez passos. Eu estava
deitado em minha rede, numa espera muito alta e perto de um riacho, e tão
tresnoitado, que dormia a bom dormir. Mas, embora tresnoitado, quem não
acordará ao menor rumor em matos tenebrosos? Foi o que me aconteceu.
No melhor do sono, despertei
ouvindo quebrar paus secos perto da espera. — "Não tem dúvida — disse eu —
é bicho, e grande!" — E senti logo um estremecimento no coração, porque,
rapazes, não há caçador, por mais acostumado que seja, que não se perturbe ao
aproximar-se a caça. E então pegando com cautela na minha lazarina, engatilhei-a
devagar, e botando os olhos para a banda do barulho, vi como que um vulto à
beira do riacho. Não tive mais demora, não; papoquei-lhe fogo, como quem tinha
vontade, e fiquei a observar o efeito.
Tudo calou-se ao redor; e olhando
bem, não vi mais o vulto e nem sinal de cousa alguma. À vista disto, entrei a
maginar, e concluí que atirara em vão e que o rumor não passara de sonho. E
pus-me a esperar com os olhos arregalados, e nada!
Desenganado já, e quando as barras
vinham quebrando, deliberei-me a descer da espera; e, escorregando pelos paus
abaixo, fui beber água, que estava morto de sede. Mas lá me ficara a cuia, e
por isso deitei-me de bruços sobre o riacho entre duas grandes pedras, e assim
bebia, quando... oh, que susto, minha gente! Botei os olhos para um lado e vi
entre dois paus uma onça como que armando o salto para agarrar-me. Não tive
demora, não; dei um pulo, mais de modo tão desastrado que bati com o joelho
direito na pedra e imprensado fiquei sem poder erguer-me.
Considerem agora o meu vexame, a
minha aflição!
Não podia, sem firmeza na perna,
levantar-me de pronto e nem tirar os olhos de cima da onça; e esta sempre na
posição de saltar na minha goela! O que devia eu fazer? Gritar seria tempo
perdido, pois o lugar era deserto e, além disso assanharia mais a fera. Rezei,
pois, o ato de contrição e esperei a morte, que não podia tardar.
Passados alguns instantes, que me
pareceram anos, foi clareando o dia, e, tendo eu melhorado um pouco, e vendo
que a onça não se mexia, levantei-me devagarinho, sempre com os olhos nela, e
aproximei-me...
Oh, rapazes, acontecem neste mundo
cousas à gente! Pois não querem saber? A onça estava morta! Naquele tiro,
ferira-a eu no coração, no momento em que ela ia pular o riacho, e por isso
ficara a bicha enganchada entre os dois paus, naquela posição. E eu a pensar
que estava viva!
— Sim, senhor! E que susto não
raspou vosmecê! Não era para menos — disseram os ouvintes.
— Minha gente, eu morria de medo! —
exclamou a Rita Lavandeira.
— E se te acontecesse outra, que me
aconteceu, ó Rita? Esta, sim, foi de arrepiar as carnes...
— Mas, não tarda acabar-se a
mandioca e o primo ainda não contou a história do caipora — observou Maria das
Dores.
— É verdade. Se eu for contar todas
as aventuras de minha vida de caçador, um mês é pouco; pois não menores perigos
e sustos tive muitas vezes nas brenhas daquela serra. Não têm par e nem conta!
Mas, vamos à história...
CAPÍTULO 3
— Um dia e foi numa sexta-feira! eu
caçava no coração da serra acompanhado dos meus cachorros, quando dei com um
bando de queixadas. Tratei logo de persegui-lo sem descanso, e assim
embrenhei-me, indiferente ao rumo que seguia. O Rompeferro e o Veloz brigavam
bonito com os queixadas e os outros dois não os largavam. Não sei porque
atrasei-me um pouco e os perdi de vista, mas sempre ouvindo o barulho
adiante...
Eis se não quando, rapazes, apenas
ouço gritarem os meus cachorros como se estivessem apanhando! Não havia dúvida,
estavam açoitando os meus bichinhos! Quem seria? Gente não era possível, que
naquelas paragens não passava viva alma. E por isso meus cabelos se arrepiaram
tanto, que mais pareciam de cuandu assanhado, do que de criatura humana.
Considerei um instante — que remédio se não fazer das tripas coração? Reuni
pois as forças, tomei ânimo e, engatilhando a espingarda, empurrei-me para o
lado onde gritavam os cachorros, como quem tem vontade de se desempulhar,
embora com risco de vida.
Quando cheguei... oh, que raiva e
pena senti ao mesmo tempo, minha gente! Os cachorros grunhiam, e rolavam no
chão debaixo do chicote de um caipora cruel!
— De um caipora, tio Gonçalo? —
exclamaram os rapazes.
— Sim, de um caipora! Não sei como
não morri, tamanha foi a minha ira.
— E como era o tal caipora?
— Como todos os outros: um culumim
de cor escura, de cabelos duros como os de porco e dentes alvos e afiados como
os da guariba. Os olhos pareciam dois tições acesos, ou olhos de onça acuada na
furna. Montava um grande caititu, e dando voltas e reviravoltas por entre os
meus cachorros, os açoitava com uma grande chibata de japecanga.
— E o que vosmecê fez?
— O que havia de fazer, gente?
Vontade não me faltou de empurrar-lhe uma bala no bucho; porém felizmente
lembrei-me que sendo os caiporas encantados, de nada valiam as minhas balas.
Talvez as aparasse para sacudi-las depois em meu rosto. Então disse em comigo
mesmo: "Gonçalo, o melhor é não dar sinais de zanga e procurar a amizade
do caipora." Meu dito, meu feito. Tomei chegada e cortesmente tirando a
minha carapuça salvei-o dizendo:
— Perdoe por esta vez os meus cachorros,
senhor caipora.
Ele, suspendendo o castigo,
fitou-me irado — e pouco a pouco se acalmando perguntando-me:
— Quem és tu?
— Eu sou o Gonçalo da Silva, pobre
caçador carregado de família, e moro lá embaixo no talhado das Marizeiras.
— E que andas aqui fazendo?
— Senhor, eu ando caçando uns
bichinhos para comer com a minha mulher e filhos.
— E não sabes que estás nos meus
domínios, e que sou o senhor das caças desta serra?
— Não sabia, senhor; mas fico
sabendo.
— E não sabes também que ninguém
pode caçar nestas florestas sem a minha licença?
— Não sabia, senhor; mas fico
sabendo.
— E não sabes também, que todos os
caçadores são obrigados a pagar-me tributo pelas caças que me roubam?
— Não sabia, senhor, mas fico
sabendo.
— E não sabes também, que mato
aqueles que se negam ao pagamento, e os como assados no moquém de minhas
grotas?
— Não sabia, senhor; mas fico
sabendo.
— Pois, bem, o tributo é um grande
pedaço de fumo...
— Mas, senhor, eu não sabia, e por
isso não o trouxe.
— Pois morrerás.
— E o que será de minha pobre
mulher, senhor, se eu não voltar à casinha das Marizeiras?
— Não me importa; tu morrerás.
— E meus filhinhos, senhor, as
criancinhas que me esperam?
— Não me importa; tu morrerás.
— Mas, eu lhe prometo, senhor,
voltar amanhã e trazer-lhe o dobro do tributo.
— Tu me enganarás, Gonçalo, tu me
enganarás.
— Não o enganarei, senhor, eu lhe
afianço.
— Tu me enganarás, Gonçalo, tu me
enganarás.
Eu estava mais morto que vivo! O
que seria de mim naqueles gerais, no poder do feroz encantado, para quem não
havia balas, nem faca, nem forças humanas capazes de o dominar? E onde tiraria
eu o fumo para lhe pagar o tributo? Não me restava, pois, se não ir à garupa do
seu caititu para as grotas escuras e ser comido assado no moquém.
Assim pensava eu com tristeza,
enquanto o senhor-das-caças fumando em seu cachimbo, ocupava-se em apanhar
perto algumas plantas medicinais.
— E para que essas plantas, tio
Gonçalo?
— Para curar os bichos feridos,
menina, os bichos que escapam dos caçadores. O caipora é o melhor dos
vaqueiros, trata com muito zelo o seu gado e cura-o com plantas virtuosas, que
ele pila nos almofarizes, por suas mãos abertos nas pedras.
— Por isso é que há na serra tantos
buraquinhos nas pedras, assim a modo de pilão...
— Foram feitos pelos caiporas. Mas,
vamos ao caso...
Tristemente imaginava eu, quando o
caipora virou-se para mim, e em tom mais calmo e brando me disse:
— Então, Gonçalo, então?
— Mate-me logo, senhor, pois que
não confia na minha palavra respondi com inteira submissão, lembrando-me de que
quase sempre nada é mais forte que a humildade.
Ele sorriu e tornou-me:
— Gostei de ti, Gonçalo; e por isso
confiarei em tua palavra. Volta agora para casa, e amanhã virei aqui receber o
preço de minhas caças.
E tal dizendo, empurrou-se pelas
brenhas adentro, e eu cuidei em descer logo por via das dúvidas, mas disposto a
cumprir o trato, desse no que desse, para não ficar privado das caçadas da
serra.
A Lauriana não me esperava naquele
dia, e pois assustou-se quando arrebentei em casa, sossegando quando lhe disse
que voltara atrás de pólvora, porque tinha derramado a que levava para o mato.
Nada contei-lhe do sucedido,
receando amedrontá-la; e comprando duas varas de bom fumo, larguei-me à
primeira cantada do galo em procura da serra.
O caipora chegou igual comigo.
— Voltaste, Gonçalo, e bem fizeste
em voltar.
— Sou pobre, senhor, mas não sei
faltar ao prometido. Aqui tem o fumo e desejo que o ache de seu gosto.
O senhor das caças o recebeu, e
enchendo e acendendo o cachimbo, começou a fumar com sinais da mais completa satisfação.
— Podes caçar em todos os meus
domínios, Gonçalo; dou-te licença e protejo-te, porque cumpriste com a tua
palavra.
— Obrigado, senhor, muito obrigado.
— Uma coisa, porém, te peço,
Gonçalo: atira sempre com segurança para que a caça não fuja ferida, e assim
tenha eu o trabalho de curá-la, ou morra pelos matos, perdendo-a tu e eu,
porque deste modo não servirá para ti e nem para mim.
E daí em diante, quando eu ia à
serra, voltava carregado da melhor caça. Parecia um encanto, rapazes! Como que
o caipora, para proteger-me, vaquejava e reunia os seus gados nos lugares em
que os esperava. Eu era, pois, o caçador mais afortunado, o mais afamado entre
todos do pé da serra; e como a ninguém contara esses negócios, asseverava-se
geralmente que só pautas com o demo podiam tanto!
Que me importavam esses ditos?
Seria eu um doido se pretendesse tapar a boca do mundo.
Agora o que querem?
Sempre que subia à serra,
encontrava o caipora, dava-lhe fumo, e conversávamos como dois amigos íntimos;
e então aprendi cousas que nunca ensinarei, por mais que me roguem.
— E por que o tal caipora tornou-se
depois inimigo do tio Gonçalo? — perguntaram as raparigas.
— Ah, isto é história muito
comprida... Fica para outra vez.
— Não, primo, conte agora!
— Ora, prima Maria, pois não vê que
está quase toda raspada a mandioca?
— Ainda falta uma porção... Conte,
tio Gonçalo, conte! — pediram com instância os rapazes.
— Arre lá! Que dores de barriga são
vocês! Pois bem, eu vou contar o resto da história, porque encerra uma lição...
um exemplo para os ambiciosos...
— Isto é bom: presta atenção, ó
Rita — disse João Marreca.
— Que é isso? Quem ouvi-lo há de
pensar que eu sou ambiciosa! Pois se engana: ninguém mais contente com a sua
sorte do que eu.
— Nanja eu; antes queria ser muito
rico...
E restabelecendo-se pouco a pouco o
silêncio, o velho caçador contou como interrompera suas relações com o senhor
das caças, isto é a história da Lagoa encantada.
CAPÍTULO 4
Um dia me disse o caipora:
— Gonçalo, o homem indiscreto, que
não sabe guardar um segredo, não merece confiança, e sim desprezo.
— É assim mesmo, senhor; eu penso
do mesmo modo.
— Gonçalo, o homem que se deixa
dominar pelo demônio da ambição não merece estima, e sim a maldição.
— É assim mesmo, senhor; eu penso
do mesmo modo.
— O indiscreto arrisca o seu amigo,
e o ambicioso é capaz de todos os crimes...
— É tal e qual, senhor, é tal e
qual!
— Homem, o caipora era um vigário!
— exclamou Zé Gomes.
— Sim... senhor! — acrescentaram os
outros.
— Não interrompam! — ralhou a Chica
Pereira.
E disse mais o senhor das caças —
continuou o velho caçador:
— Quem sabe, Gonçalo, se mereces a
minha confiança e a minha estima?
— Não duvide de mim, senhor, que me
ofende.
— Pois bem, vou experimentar-te;
mas se revelares o meu segredo e se fores tentado pelo demônio da ambição,
nunca mais me apareças, nunca mais! Que, indigno de minha amizade, empregarei
contra ti as armas mais ferinas.
E depois acrescentou:
— Escuta. Vou dar-te a riqueza; vou
mudar a tua pobreza em abundância; mas, vê lá! Não sejas o algoz de teus
semelhantes, só porque tens os meios de seres o seu benfeitor! E nunca te esqueças
de que o rico não é mais do que o depositário do ouro de muitos pobres, e por
isso entre eles deve dividi-lo, em suas necessidades, como bom amigo e fiel
tutor. Acompanha-me agora. E montado em seu caititu, enfiou pelas brenhas, e eu
o acompanhei, ora subindo os mais altos penhascos, ora descendo aos mais
profundos abismos. E que lindos arvoredos carregados de flores e frutos e de
viçosa e escura folhagem; que abundantes riachos ladrilhados de pérolas e
diamantes; que longas campinas cheias de veados, de antas, tamanduás e outros
bichos da
serra, atravessamos nós!
Parecia um sonho meus rapazes, um
sonho prodigioso!
Ele caminhava adiante em seu
caititu e eu o acompanhava como fora de mim, de espanto em espanto!
Assim, depois de muito caminhar,
atravessamos um grande corredor, escuro como noite de inverno e como que aberto
nos rochedos, e desembocamos numa lagoa, cercada das mais formosas matas e
sombreada por uma grande gameleira.
Ah, minha gente, não sei como não
caí pela repentina mudança do escuro para a luz, não só do dia como de tão
assombrosa beleza!
O senhor das caças parou e deixando
moderar-se o meu espanto, disse-me:
— Gonçalo da Silva! eis a Lagoa
encantada! Aqui se oculta um grande tesouro; e eu to ofereço para felicidade de
tua família, de teus amigos; e dos pobres que à tua porta baterem. Vai
buscá-lo, vai. Da raiz daquela gameleira desce uma grossa corrente de bronze ao
fundo das águas. Puxa-a, planeando a caridade, e desde logo sentindo o seu
deleitoso prazer, que arrancarás um caixão cheio de ouro. Mas, se tentar-te o
demônio da ambição, debalde, ó Gonçalo da Silva, procurarás arrancá-lo! As águas,
os peixes e as raízes reunir-se-ão para prendê-lo, para zombar de teus
esforços! E se revelares a alguém este mistério... treme, treme de minha
vingança.
E sem mais nem menos, o senhor das
caças açoitou o seu ginete, e trepando-se pelos despenhadeiros mais a pique,
desapareceu a meus olhos.
Fiquei só.
A princípio estendi alucinado a
vista por todo aquele prodigioso quadro, e depois, fatigado pela viagem e
estremecimento do coração, sentei-me numa pedra e pus-me a cismar ou a sonhar
com os olhos abertos.
Não é possível, prima Maria das
Dores, descrever tanta beleza, como a que vi na Lagoa encantada... Não, minha
gente, não se pode pintar, nem mesmo fazer-se ideia de tais maravilhas!
Contudo, eu vou ver se posso contar algumas cousas... Escutem. A mata mais
verde, mais frondosa, mais bonita, que já os olhos de criatura viram neste
mundo, cercava aquela grande lago. De um lado erguia-se a gameleira que o
caipora me apontara, e do outro estendia-se verde-escuro juncal; e por toda a
parte
lindíssimas flores exalando
deliciosos perfumes.
Da lagoa corria um riachinho por
entre seixos alvos como a névoa, e água era cristalina como as chuvas do céu.
Um ventozinho fresco, ou como lá
diz o outro, a brisa, viera encrespar docemente as águas e brincava por entre
as flores; e também por entre elas passarinhos de penas azuis, verdes,
encarnadas, douradas e prateadas voavam alegres cantando uns cantos que...
iguais somente devem ser os dos serafins do Altíssimo! E peixes de todas as
cores e tamanhos vinham à tona d’água, como que para escutar os passarinhos.
Esqueci-me de contar, minha gente,
que no meio da lagoa havia uma ilha, com o mais primoroso jardim e uma gruta de
madrepérolas.
Pois bem, eu contemplava todos
esses abismos de beleza, quando vejo erguer-se das águas uma moça alva e
corada, de cabelos compridos e soltos, colo feiticeiro... enfim de uma formosura
sem igual!
— Era uma mãe-d’água, tio Gonçalo?
— E o que havia de ser, ó rapaz,
senão a mãe-d’água? Depois apareceu outra, e mais outra, e dirigindo-se todas à
ilha, coroaram-se de flores, e começaram a tocar uns instrumentos desconhecidos,
ao mesmo tempo dançando e cantando...
Ah, prima Maria das Dores,
Madalena, compadre Zé Gomes, nunca vi moças tão lindas, e nem danças e cantigas
como aquelas!
Eram decerto mães-d’água, que
tinham deixado no fundo do lago os seus palácios de cristal e vinham brincar à
luz do dia.
Eu estava embasbacado, rapazes, e
mais ainda fiquei quando vi, ao som daqueles cantos, as árvores, as flores, os
juncos e os rochedos movendo-se; os peixes pulando; os passarinhos sal- tando e
batendo as asas; e tudo como que dançando compassado, como se fosse gente!
E dançando cantaram por muito
tempo.
Depois, descansaram um instante e,
fitando-me, continuaram dizendo-me assim em suas melodiosas cantigas:
— Ergue-te, Gonçalo, oh, venturoso,
é tempo.
— Quanto ouro levarás, e no ouro
vai a opulência.
— Levantarás um palácio na vargem;
e no palácio dançarão as belas.
— Terás criados sem conta; e sem
conta serão tuas festas.
— Comprarás sedas para tuas
amantes; manas, sejamos suas amantes.
— Comprarás perfumes e joias para
tuas queridas; manas, sejamos suas queridas.
— Quanta riqueza, Gonçalo; Gonçalo,
quantos prazeres!
— Todos te respeitarão; porque o
ouro é o respeito.
— Todos te obedecerão; porque o
ouro é a obediência.
— Todos te louvarão; porque o ouro
é a lisonja.
— Quanta riqueza, Gonçalo; Gonçalo,
quantas delícias!
— Terás os manjares mais finos;
porque o ouro tudo compra.
— Terás mimosas donzelas; porque o ouro
tudo vence.
— Terás, enfim, o que desejares;
porque o ouro tudo alcança.
— Quanta riqueza, oh Gonçalo; no
cofre pesam as moedas.
— E tantas são as moedas, quantos
besouros nos ares.
E milhares de milhares de
besourinhos dourados surgiram das águas e escureceram o tempo.
Um momento depois, fadas e
besouros, oh, prima Maria, haviam desaparecido. Tudo estava calado. Botei então
os olhos ao redor e somente vi a lagoa, a gameleira, as matas, as flores, a
ilha e os passarinhos, no mesmo estado em que os encontrara; porém eu, minha
prima, estava inteiramente mudado.
Uma fome cruel me roía as entranhas
— a fome dos prazeres; uma sede fatal me consumia — a sede da riqueza!
Levantei-me, então, e pus-me a andar como doido.
— Gonçalo — dizia eu mesmo comigo
—, serás em breve muito rico, Gonçalo! Não caçarás mais para comer, e sim para
te divertires. Terás uma espingarda de ouro, uma patrona enfeitada de
diamantes, um polvarinho de cristal.. e um palácio, e as moças mais formosas, e
banquetes e danças... As melhores fazendas serão tuas... os melhores sítios, os
maiores roçados! Comprarás estas terras... as mais rendosas propriedades...
Todos te respeitarão... Crescerá a tua riqueza... Aumentarás os teus gozos...
Gonçalo, serás em breve muito rico, Gonçalo!
E sem mais demora corri para a
gameleira, e agarrando a corrente de bronze que prendia o tesouro, puxei-a com
força. Nada! Nem ao menos alui...
E uma grande gargalhada estrondou
nos ares.
— São as mães-d’água que zombam de
mim — pensei eu e tornei a puxar, a puxar... até que desalentado caí junto da
corrente, escumando de cansaço e raiva.
Outra gargalhada estrondou nos
ares.
Era demais! Bradei desesperado:
"Dinheiro, hei de arrancar-te, dinheiro!" — E agarrei-me à corrente a
puxar, a puxar... mas, qual! Desta vez, oh rapazes, caí mais depressa, e maior
foi a gargalhada que estrondou nos ares.
Então, sem lembrar-me do que ouvira
ao senhor das caças, eu disse comigo mesmo: "Gonçalo, estão caçoando de
tua fraqueza: corre lá embaixo, e convida dois ou três camaradas para te
ajudarem a arrancar o caixão...
E meu dito, meu feito...
— E não lhe ordenou o
senhor-das-caças, tio Gonçalo, que não revelasse o mistério de seus domínios? —
interrompeu Madalena.
— Eu só me lembrava, menina, da
riqueza, daquele grande caixão de ouro. O demo da ambição me tinha revirado a
bola...
Mas, como ia eu contando, disposto
a descer, enchi o seio de frutas, e saí botando uma no chão a cada passo, para
acertar quando voltasse.
E outra gargalhada estrondou nos
ares e um bando de anuns apareceu e começou a comer as frutas que eu deixava
cair.
Não sei como não morri de raiva!
Enxotei os anuns atirando as pedras
que pude apanhar, e eles voaram, mas voltaram logo em maior número.
Assim contrariado, botei fora o
resto das frutas e arrancando a faca, saí cortando a casca das árvores para
assinalar a passagem.
Mas, ainda não havia eu dado dez
passos quando, olhando para trás, vi os talhos desaparecerem das árvores e
ouvi...
Oh, vocês não podem fazer ideia do
barulho infernal que então estrondou nos ares!
Eram gargalhadas, toques de sinos e
caixas de guerra, assobios, gritos... enfim, o diabo a quatro!
Não tive mais demora, não; azoado e
furioso corri pelos matos adentro, sem direção, ora trepando as mais altas
penhas, ora rompendo espinheiros, aqui escorregando nas lajes, ali batendo nos
troncos — cada vez mais atordoado, porque o barulho me acompanhava...
crescia... tornava-se mais diabólico!
E anoitecera de todo, e a noite era
mais escura do que nunca! Já não enxergava as grotas, o lugar que pisava, o
rumo que seguia... e sempre a correr, a correr... até que, faltando-me o chão nos
pés, caí... em medonho boqueirão... rolei nos ares... e fiquei pendurado nuns
ramos, sobre horroroso abismo!
Mais penosa, pois, tornou-se a
minha posição.
Naquelas profundezas soluçava um
rio por entre as rochas; e os galhos que me seguravam, estremeciam... vergavam
e... de vez em quando estalavam. Eu não podia mexer-me... Qualquer movimento
bastaria para fazer-me cair, e morrer despedaçado naquelas rochas...
Oh, ainda hoje se me arrepiam os
cabelos!
Eis senão quando, minha gente, em
vez do barulho que me perseguia, estouram os trovões, fuzilam os relâmpagos e
zune o vento com força embalando-me sobre o abismo! E no meio da tempestade, aparece
um bando de molequinhos montados em capivaras, lançando fogo pelos olhos,
faíscas pelas ventas, arreganhando os dentes, rodeando-me e cantando,
acompanhados de novas gargalhadas:
— Bacos... ba... bacos; bacos...
bacos...
— Gonçalo, cadê teu ouro? Teu ouro
virou xenxém!
— Gonçalo, por que caíste? Gonçalo,
por que subiste.
— Bacos... ba... bacos; bacos...
bacos...
E assim continuaram, fazendo-me
caretas, sempre ao som das gargalhadas, enquanto uivava a tempestade...
Depois... estalavam os galhos... e caí
perdendo os sentidos!
CAPÍTULO 5
O auditório ouvira gelado de terror
aqueles lances angustiosos da história do tio Gonçalo. Ninguém ousava
interrompê-lo, e nem mesmo mover-se para não perder uma palavra. Como que não
respirava-se, e houve ocasião em que as quicés pararam nas mãos de todos.
Calou-se o velho, e pôs-se a limpar
o seu cachimbo, indiferente à curiosidade geral, ou esperando talvez uma
pergunta para com a resposta fechar o conto.
Madalena não pôde conter-se.
— Então, tio Gonçalo, e depois?
— Clareava o dia quando acordei,
ardendo em febre, ali na cajazeira grande do riacho.
Levantei-me ainda atordoado, e empurrei-me para casa, dando graças ao Altíssimo por ter escapado daquela embrulhada. Adiante encontrei o Mané Coco, que saía para uma pescaria de gereré, e contando-lhe o sucedido, disse-me ele embalançando a cabeça:
— Hum... hum... hum... Estas artes
de caipora... Eu já as conheço! Quase a mesma graça já fizeram eles comigo uma
noite. Eu logo vi, senhor Gonçalo, que as suas caçadas nos esquisitos daquela
serra vinham dar nisto!
E chegando em casa nada contei a
Lauriana, para não afligi-la, mas lembrando-me das agonias da ambição, lidas e
dissabores da riqueza, achei tão doce, tão suave, tão cheia de sossego a
pobreza entre os afagos da família, que não pude deixar de exclamar dentro do
coração: — Quem quiser ser rico, que o seja, que a mim não faz inveja!...
— Eu, da minha parte, quero ser
muito rica, mas da graça do meu divino Jesus — acrescentou Maria das Dores.
— E o caipora não tomou mais
vingança contra vosmecê, tio Gonçalo? — perguntou a Rita Lavandeira.
— Talvez ainda me espere nas
brenhas da serra para isso, Rita; porém eu lá não voltei.
— É verdade que vosmecê só caça
aqui no plano, e pelo pé da serra?
— E nem era eu tolo para caçar lá
em cima; nesta não caía. Naquele dia protestei não continuar a amizade com os
caiporas, e nem subir mais às brenhas esquisitas da serra.
— E faz bem, compadre Gonçalo, que
os tais caboclinhos são levados da breca! — disse o João Marreca, como quem entendia
do negócio.
— Mas devia acontecer o que lhe
aconteceu, primo, para você não ser ambicioso! — observou-lhe Maria das Dores.
— O ambicioso nunca medrou, e nem
quem junto dele morou.
É ditado dos antigos — acrescentou
o Zé Gomes.
E como já não havia mandioca para
raspar e estivesse acabada a história, concluiu-se o serão, e todos ergueram-se,
dando-se as boas noites e retiraram-se os que moravam distante, para suas
casinhas, e os outros, para as suas tipoias.
Um instante depois apenas se ouvia
ao longe a voz de Gonçalo da Silva, que no caminho de sua choça cantava a lenda
do caipora: "...Cuidado, caçadores, cuidado, que o senhor-das-caças campeia
agora na serrania inculta."
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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