4/09/2023

Senhor das caças (Conto), de Juvenal Galeno




SENHOR DAS CAÇAS

Era uma noite de farinhada.

Para adiantar o serviço do dia seguinte, combinara-se um serão, e neste raspava-se a mandioca, ouvindo-se alegres cantigas ou casos vistos e presenciados pelos circunstantes, ou dessas longas histórias que o povo guarda na memória para entretimento de suas noites.

É uma das cenas mais animadas do trabalho agrícola a — farinhada.

Aqui mulheres, homens, crianças, em torno à tulha de mandioca, raspam-na com suas quicés, estabelecendo entre si uma luta — a que chamam botar capote —, raspando alguns a mandioca até o meio para que os outros acabem de raspá-la. E por isso, que afã, que ligeireza na lida; quanto dito espirituoso e quanta léria e sorriso ao vencido, principalmente se este é o que botava capote!

De vez em quando chegam as cargas; aumenta a tulha e os cargueiros dão recados dos arrancadores, ou respondem aos preguiçosos, se ainda há muita mandioca arrancada.

Adiante, os puxadores, de camisa atada à cintura, alagados de suor, puxam a roda cantando com as pausas apropriadas àquele trabalho, como o fazem os remadores ou falando à cevadeira que lhes pede ligeireza e azeite nos mancais do rodete. Perto o forneiro, assentado ao banco do forno ou em pé junto deste, a mover o rodo em todas as direções, ora animando os carregadores da lenha e lhes pedindo mais fogo, ora a gritar por

massa ao encarregado da prensa e ao peneirador.

Depois, cada qual faz o seu beiju, espreme seu bocado de goma e não deixa de comer o seu punhado de farinha quente e cheirosa.

E tudo isto por entre as toadas, as pilhérias, as narrativas, sempre acompanhadas da orquestra que formam os zunidos da roda, os esguichos do rodete, os gemidos da vara da prensa no brinquete, e o tom das quicés na mandioca.

Mas, voltemos ao serão da farinhada, onde apenas trabalham as quicés, pois que o forno, a prensa e o rodete descansavam para recomeçarem suas lidas ao quebrar das barras da madrugada, depois que os galos cantassem a terceira vez.

Estava animado o serão e todos dispostos não só a dar à língua, como a vencer a grande tulha de mandioca que no meio da casa erguia-se afrontando as quicés. Maria das Dores com a ponta do lençol enrolada ao pescoço, Chica Pereira com um pano amarrado à cabeça e Madalena vestida com uma camisa de homem para resguardar o cabeção de rendas, botavam capote a Zé Gomes, ao Raimundo da Josefa e ao João Marreca e o mesmo entre si faziam a Rosa dos Tabuleiros, Gonçalo da Silva, a Rita Lavandeira, Manoel Mateus e os demais trabalhadores. Os cachimbos passavam de mão em mão e uma vez ou duas apareceu inesperadamente na roda uma botija de aguardente, por lembrança do dono da farinhada e foi recebida com alegria, e com maior alegria esgotada.

— Eu não gosto desta bicha, gente: faz-me mal à cabeça — disse Maria das Dores, e cuspindo e fazendo uma careta, emborcou a xícara.

— E mais é que não achou espinho... hein, comadre? — observou o João Marreca piscando o olho à Rosa dos Tabuleiros.

— Eu também não gosto, mas bebo por penitência, que tenho bastantes pecados — acrescentou Manoel Mateus.

Todos riram e mais animados continuaram a palestra. Falava-se então em caiporas, aventuras de caçadas e encantamento.

Cada qual contava a sua história ou declarava o seu pensamento a respeito, e alguns opunham dúvidas para afervorarem a discussão.

— Eu não acredito nestas cousas, minha gente, não sei como se acredite nisto — exclamava com muita graça a Inácia do Mané Coco.

— Pois deve acreditar, senhora Inácia; e saiba que este que aqui vosmecê está vendo já teve negócio com os caiporas...

— Que está dizendo, senhor João Marreca? Pois vosmecê está falando sério? — tornou-lhe a Rita Lavandeira.

— É o que disse, e fiquem certas de uma vez que eu não minto.

— E ninguém diz menos disto — acudiram os ouvintes.

— Eu sei!? — acrescentou em tom duvidoso a senhora Inácia

— mas às vezes a gente vê cousas em sonhos que parecem realidades...

— Sim, senhora, mas saiba vosmecê que eu tive amizade com os caiporas por muitos meses.

— Não duvido da sua honrada palavra, senhor João; o que não posso é acreditar em bruxarias e feitiços... é gênio meu.

— Ora... é porque você não viu como a mulher do Rufino morreu botando baratas pela boca, por causa de feitiço que lhe botaram — respondeu-lhe Chica Pereira.

— E o filho do Inácio, que quase vai-se de um mau-olhado que lhe botou a...

— Que é isso, Rosa? Não fale de quem já deu contas a Deus...

— Mas, nos conte, senhor João, a história das amizades que teve com os caiporas, pediu-lhe o Raimundo da Josefa.

— Eu lhe conto, embora a senhora Inácia ria-se de mim. Que me importa? O mundo está cheio de incréus e quem quiser que o endireite...

Mas, escutem... Uma vez, ainda era eu bem rapaz, fui esperar na bebida, ali perto do serrote do Bolo. Era meio-dia em ponto, e o sol estava de queimar a gente. Trepei-me na espera, junto de um grande poço e armando minha rede, deitei-me com a espingarda atravessada nas pernas, e pronto para o primeiro movimento.

As veredas estavam fundas. Muitos bichos bebiam de noite e outros bebiam de dia. Mas o tempo passava e nada aparecia; e eu já ia desconfiando da minha sorte.

Nisto botei os olhos para a banda do serrote, e vi descer correndo um caboclinho muito esperto. — "É o tal caipora!" — disse eu e pus-me a espiá-lo, com o coração meio sobressaltado. E o culumim chegou, olhou para a espera, deu fé de mim, e sem assustar-se dirigiu-se ao poço e tirando água com as mãos começou a beber. E eu vendo a tenção dele!

Boto outra vez os olhos para o serrote e vejo vir outro caipora, correndo como o primeiro. — "Temos outro — disse eu — pior vai-se tornando o negócio!" — E bem não tinha chegado este, o outro apontou para mim; e ele sem fazer caso foi ao poço e tirando água com as mãos começou a beber.

Então o primeiro caipora levantou-se, e subindo os paus da espera veio assentar-se à beira da minha rede...

— Que susto não teve vosmecê, senhor João! — exclamaram as mulheres. E o que fez ele?

— Não gostei da graça, e tive vontade de empurrá-lo, mas felizmente lembrei-me que o tal culumim é valoroso, e podia matar-me. Demais eram dois, e quem sabe se não viriam outros? E logo o culumim virou-se para mim e pediu-me fumo.

— É o que ele queria; eu vi desde o princípio que a tenção dele era esta — disse Chica Pereira.

— Eu dei-lhe um pedaço bom, e ele tirando debaixo do sovaco um cachimbinho, encheu-o, quebrou um garrancho, roçou um pedaço no outro, fez fogo e o acendeu, num abrir e fechar de olhos.

— Ah, excomungado! — disseram os rapazes.

— E depois?

— Depois me disse: "Daqui há pouco virá beber um bando de caititus, e entre eles verás um grande e esbranquiçado; não atires neste. Deixa todos beberem, e depois mata o que quiseres para te arremediares com tua família.

— Não quero caititu — lhe tornei —, o que desejo é um veado capoeiro para minha mulher que está doente.

— Pois então espera mais um pouco, que eu vou botar veados para cá. E toma este assobio, e quando quiseres caça sopra três vezes.

E dizendo isto desceu ligeiro como um fura-coco, repartiu o fumo com o outro e ambos correndo desapareceram.

— E cumpriu o prometido, senhor João?

— Não se meteu meia hora, Raimundo. O poço coalhou-se de veados, cada qual o mais bonito; e eu botando a espingarda ao rosto matei o melhor, e sem detença empurrei-me para casa.

— Homem, esta...

— E o assobio, senhor João?

— Guardei-o na patrona, e desde então sempre que precisava, assobiava três vezes, aparecia-me o caipora e tudo me saía a jeito. Mas um dia... não sei que rumo tomou o caipora; cansei de assobiar e ele nunca mais me apareceu!

— E não viu outros depois, senhor João? — perguntou Madalena.

— Não, senhora, somente estes. E quem quiser, ria-se, que se ri de uma verdade.

— Pois eu, gente — disse Manoel Mateus —, nunca vi e nem desejo ver os caiporas; porém conheci um velho que era muito amigo deles e por isso tinha artes... Credo... Nem gosto de me lembrar dessas cousas...

— O Zé de Goes, meu tio?

— Este mesmo, menino. O diabo do velho era artista!

— E o que ele fazia, senhor Manoel?

— De todas não me lembro, mas uma... parece que a estou vendo. Trabalhávamos na limpa de uma capoeira, quando uma cascavel mordeu o pé de um dos rapazes.

— Dá cá um pau — gritaram todos.

— Não precisa — disse o velho.

E cuspiu em cima da cobra e com pouco ela revirava morta no chão.

Depois... Virgem Maria! Ele perguntou ao rapaz se queria que o curasse e se para tal se sujeitava ao que lhe fosse ordenando. O rapaz respondeu que sim, e o velho assobiou e apareceu cobra de toda a diversidade. Virgem Maria! Eu me trepei por uma cajazeira arriba com medo de tanto bicho feio. E o velho ordenou que uma das cobras mordesse o pé do rapaz... Virgem Maria! Dito e feito...

— E morreu o rapaz?

— Qual! Continuou a trabalhar ao cabo da enxada como se nada sofresse.

— Nanja eu que desse meu pé!

— Nem eu! Virgem Maria! E diziam que o velho aprendera estas artes com os caiporas...

— Só sendo! — exclamaram alguns dos ouvintes.

Os outros riram-se baixinho e olharam curiosos para o velho Gonçalo da Silva, como procurando saber a sua opinião a respeito.


CAPÍTULO 2

Gonçalo era autoridade na matéria.

Seus cabelos tinham embranquecido nas caçadas; e as chamas do fuzil de sua lazarina queimaram-lhe as pestanas e diminuíram-lhe a vista, em mais de mil casos perigosos, de que salvara-se milagrosamente.

Era o mais velho dos caçadores, e o mais escopeteiro e afamado entre todos os daquelas serranias.

Conhecia a vida dos bichos, sabia de cor e salteado os seus costumes, adivinhava-lhes o rasto, as veredas e as tocas, e por isso ninguém tão feliz como ele em suas continuadas correrias. Uma circunstância mais concorria naquela ocasião para tamanho respeito ao velho; e era que Gonçalo da Silva tivera seus encontros com um caipora, além de muitas visagens e misteriosas cenas nas matas virgens da montanha. Ninguém ignorava essas cousas e por isso os rapazes instantemente pediram ao velho, que ainda uma vez as contasse.

— Não vejo nesta terra quem melhor saiba dessas cousas do que o tio Gonçalo...

— Já tu vens, Manoel! Não podiam acabar tuas conversas sem meter-me no meio.

— E o que lhe parecem, meu tio, o curador de cobras, e os caiporas do senhor João Marreca?

— É que — quem não vê, é como quem não sabe. Vocês riem-se, porque nunca viram o que em desconto dos meus pecados tenho presenciado nestes matos.

— Gosto de ouvir falar assim — disse João Marreca com ar de triunfo.

— Quem sabe, sabe — acrescentou magistralmente o Raimundo da Josefa.

— É verdade, tio Gonçalo; mas agora nos conte a história do que lhe aconteceu com os caiporas ali na serra.

— Inda mais esta, rapaz! Pois já não te contei isto tantas vezes?

— Sim, senhor, e quem se cansa de ouvir aquela história? Foi decerto um caso medonho, capaz de estatalar o mais temero! Vosmecê é homem de coragem, meu tio!

O velho caçador, como todos os filhos de Adão, gostava da lisonja; era esse o seu fraco; e por isso coçando a cabeça com o cabo da quicé, espalhou na roda um olhar de satisfação e orgulho, disposto a corresponder à fineza do rapaz.

— E não é mentira, não, Manoel, que se me faltasse a coragem, eu não passaria, como passava na mocidade, dias e semanas no meio daquelas serras, nos lugares mais esquisitos.

— Mas, agora — interrompeu Madalena sorrindo-se maliciosamente — vosmecê não vai a esses lugares nem que o matem...

— Saia-se daí, que você não sabe o que diz — respondeu-lhe o velho desconfiando. Intrigado com o caipora, seria uma loucura embrenhar-me naquelas grotas para ajustar contas com um inimigo tão feroz como ele. O que é preciso é rezar e não empregar meu tempo em tafularias, como muita gente que eu conheço...

— Em mim não assenta a carapuça, tio Gonçalo — respondeu Madalena rindo-se para disfarçar o despeito.

— É assim mesmo, tio Gonçalo; vosmecê tem razão; mas vamos ao caso...

— Deixemo-nos mais de histórias, rapaz, que já é tarde, e além disso ali a senhora Madalena pode caçoar a seu jeito...

— Ora, primo! — replicou Maria das Dores — pois você não conhece o gênio da Madalena! Conte lá, que estou morta por ouvi-lo.

— Conte, tio Gonçalo, conte...

E o velho não podendo resistir a tantos pedidos, acendeu o cachimbo, e após alguns momentos de pausa falou assim, dirigindo-se a todos.

— Eu não gosto de contar estas cousas... sim, senhor, não gosto! Há gente que, sem mais nem menos, ri-se dos casos sérios, como que duvidando. E sabem por quê? Aposto que não sabem; pois é porque, como lá diz o outro, nunca saíram mais longe do que o terreiro; e nascem e morrem desconhecendo o que há de assombroso por esses matos de meu Deus.

— Tal e qual; falou como quem sabe, senhor Gonçalo da Silva

— disse um velho que perto raspava mandioca.

— Quanto a mim, nasceram-me quase os dentes nas brenhas da serra em perigosas caçadas, e em que tempos? Não havia ali e nem por aqui uma só casa; a mais vizinha era a do João de Góes na distância de três léguas e meia...

— E das boas, tio Gonçalo!

— É verdade, são léguas que valem pelo dobro. Mas, como ia contando: nesses tempos... eu andava pelos vinte e dois ou vinte três anos, e meu emprego era somente caçar. Possuía uma lazarina... e que arma, rapazes! Parece-me que as boas espingardas também se acabaram.

— Como acabou-se o algodãozinho americano encorpado, e a chita de cores fixas. Hoje em dia não há chita que não largue, primo.

— É assim, prima Maria; as cousas têm mudado completamente e, por infelicidade, para pior.

A rapaziada quis protestar mas, para não interromper a história, deixou sem resposta a queixa da velhice.

Gonçalo continuou:

— Quando eu levava minha espingarda ao rosto, via a queda. E eu por isso amava-a mais do que à minha mulher; e saibam que marido algum já amou tanto a sua cara metade como eu à minha Lauriana, que Deus haja. E devia ser assim, porque aquela espingarda não só dava-me o bocado como também muitas vezes salvou-me a vida. Uma vez, principalmente, se não fosse ela eu teria morrido nas garras de uma suçuarana audaz. Onça terrível! fez tais voltas e reviravoltas ali no Boqueirão da Arara, que se me mentisse fogo a lazarina, ou se não fosse tão certeira, o Gonçalo da Silva teria sido carniça!

Mas, vamos ao caso. Além de tão boa arma, eu possuía quatro cachorros de caça, que melhores não havia nestes arredores: o Sereno, o Leão, o Veloz e o Rompe-Ferro. Aquela cadela da Josefa do Córrego dos Moços é bisneta do Veloz e é pena que dos outros se perdesse a raça.

Sim, senhor... Eu, quando saía de casa, não voltava senão quatro ou cinco dias depois e sempre carregado de caça fresca e seca. Levava a rede às costas para esperar os veados, a cabaça d’água, a farinha, o algodão ou artifício de tirar fogo, no ombro a lazarina, na cintura a patrona e a faca e na cabeça uma carapuça de couro de preguiça. E assim empurrava-me pelo mato adentro, ora trepando-me pelos despenhados da serra, ora rompendo os fechados, e ia esperar os bichos ao meio-dia nas bebidas e à noite nas comidas, para tal armando minha tipoia nos galhos das árvores ou fazer mondés, armar os quixós, cavar os fojos, ou arrancar tatus nos buracos.

Lembro-me agora de uma que me aconteceu nas esperas.

Escutem lá, que eu vou contá-la pelo alto.

Uma madrugada... A névoa envolvia a serra e aumentara a escuridão, de modo que não se enxergava a dez passos. Eu estava deitado em minha rede, numa espera muito alta e perto de um riacho, e tão tresnoitado, que dormia a bom dormir. Mas, embora tresnoitado, quem não acordará ao menor rumor em matos tenebrosos? Foi o que me aconteceu.

No melhor do sono, despertei ouvindo quebrar paus secos perto da espera. — "Não tem dúvida — disse eu — é bicho, e grande!" — E senti logo um estremecimento no coração, porque, rapazes, não há caçador, por mais acostumado que seja, que não se perturbe ao aproximar-se a caça. E então pegando com cautela na minha lazarina, engatilhei-a devagar, e botando os olhos para a banda do barulho, vi como que um vulto à beira do riacho. Não tive mais demora, não; papoquei-lhe fogo, como quem tinha vontade, e fiquei a observar o efeito.

Tudo calou-se ao redor; e olhando bem, não vi mais o vulto e nem sinal de cousa alguma. À vista disto, entrei a maginar, e concluí que atirara em vão e que o rumor não passara de sonho. E pus-me a esperar com os olhos arregalados, e nada!

Desenganado já, e quando as barras vinham quebrando, deliberei-me a descer da espera; e, escorregando pelos paus abaixo, fui beber água, que estava morto de sede. Mas lá me ficara a cuia, e por isso deitei-me de bruços sobre o riacho entre duas grandes pedras, e assim bebia, quando... oh, que susto, minha gente! Botei os olhos para um lado e vi entre dois paus uma onça como que armando o salto para agarrar-me. Não tive demora, não; dei um pulo, mais de modo tão desastrado que bati com o joelho direito na pedra e imprensado fiquei sem poder erguer-me.

Considerem agora o meu vexame, a minha aflição!

Não podia, sem firmeza na perna, levantar-me de pronto e nem tirar os olhos de cima da onça; e esta sempre na posição de saltar na minha goela! O que devia eu fazer? Gritar seria tempo perdido, pois o lugar era deserto e, além disso assanharia mais a fera. Rezei, pois, o ato de contrição e esperei a morte, que não podia tardar.

Passados alguns instantes, que me pareceram anos, foi clareando o dia, e, tendo eu melhorado um pouco, e vendo que a onça não se mexia, levantei-me devagarinho, sempre com os olhos nela, e aproximei-me...

Oh, rapazes, acontecem neste mundo cousas à gente! Pois não querem saber? A onça estava morta! Naquele tiro, ferira-a eu no coração, no momento em que ela ia pular o riacho, e por isso ficara a bicha enganchada entre os dois paus, naquela posição. E eu a pensar que estava viva!

— Sim, senhor! E que susto não raspou vosmecê! Não era para menos — disseram os ouvintes.

— Minha gente, eu morria de medo! — exclamou a Rita Lavandeira.

— E se te acontecesse outra, que me aconteceu, ó Rita? Esta, sim, foi de arrepiar as carnes...

— Mas, não tarda acabar-se a mandioca e o primo ainda não contou a história do caipora — observou Maria das Dores.

— É verdade. Se eu for contar todas as aventuras de minha vida de caçador, um mês é pouco; pois não menores perigos e sustos tive muitas vezes nas brenhas daquela serra. Não têm par e nem conta! Mas, vamos à história...

 

CAPÍTULO 3

— Um dia e foi numa sexta-feira! eu caçava no coração da serra acompanhado dos meus cachorros, quando dei com um bando de queixadas. Tratei logo de persegui-lo sem descanso, e assim embrenhei-me, indiferente ao rumo que seguia. O Rompeferro e o Veloz brigavam bonito com os queixadas e os outros dois não os largavam. Não sei porque atrasei-me um pouco e os perdi de vista, mas sempre ouvindo o barulho adiante...

Eis se não quando, rapazes, apenas ouço gritarem os meus cachorros como se estivessem apanhando! Não havia dúvida, estavam açoitando os meus bichinhos! Quem seria? Gente não era possível, que naquelas paragens não passava viva alma. E por isso meus cabelos se arrepiaram tanto, que mais pareciam de cuandu assanhado, do que de criatura humana. Considerei um instante — que remédio se não fazer das tripas coração? Reuni pois as forças, tomei ânimo e, engatilhando a espingarda, empurrei-me para o lado onde gritavam os cachorros, como quem tem vontade de se desempulhar, embora com risco de vida.

Quando cheguei... oh, que raiva e pena senti ao mesmo tempo, minha gente! Os cachorros grunhiam, e rolavam no chão debaixo do chicote de um caipora cruel!

— De um caipora, tio Gonçalo? — exclamaram os rapazes.

— Sim, de um caipora! Não sei como não morri, tamanha foi a minha ira.

— E como era o tal caipora?

— Como todos os outros: um culumim de cor escura, de cabelos duros como os de porco e dentes alvos e afiados como os da guariba. Os olhos pareciam dois tições acesos, ou olhos de onça acuada na furna. Montava um grande caititu, e dando voltas e reviravoltas por entre os meus cachorros, os açoitava com uma grande chibata de japecanga.

— E o que vosmecê fez?

— O que havia de fazer, gente? Vontade não me faltou de empurrar-lhe uma bala no bucho; porém felizmente lembrei-me que sendo os caiporas encantados, de nada valiam as minhas balas. Talvez as aparasse para sacudi-las depois em meu rosto. Então disse em comigo mesmo: "Gonçalo, o melhor é não dar sinais de zanga e procurar a amizade do caipora." Meu dito, meu feito. Tomei chegada e cortesmente tirando a minha carapuça salvei-o dizendo:

— Perdoe por esta vez os meus cachorros, senhor caipora.

Ele, suspendendo o castigo, fitou-me irado — e pouco a pouco se acalmando perguntando-me:

— Quem és tu?

— Eu sou o Gonçalo da Silva, pobre caçador carregado de família, e moro lá embaixo no talhado das Marizeiras.

— E que andas aqui fazendo?

— Senhor, eu ando caçando uns bichinhos para comer com a minha mulher e filhos.

— E não sabes que estás nos meus domínios, e que sou o senhor das caças desta serra?

— Não sabia, senhor; mas fico sabendo.

— E não sabes também que ninguém pode caçar nestas florestas sem a minha licença?

— Não sabia, senhor; mas fico sabendo.

— E não sabes também, que todos os caçadores são obrigados a pagar-me tributo pelas caças que me roubam?

— Não sabia, senhor, mas fico sabendo.

— E não sabes também, que mato aqueles que se negam ao pagamento, e os como assados no moquém de minhas grotas?

— Não sabia, senhor; mas fico sabendo.

— Pois, bem, o tributo é um grande pedaço de fumo...

— Mas, senhor, eu não sabia, e por isso não o trouxe.

— Pois morrerás.

— E o que será de minha pobre mulher, senhor, se eu não voltar à casinha das Marizeiras?

— Não me importa; tu morrerás.

— E meus filhinhos, senhor, as criancinhas que me esperam?

— Não me importa; tu morrerás.

— Mas, eu lhe prometo, senhor, voltar amanhã e trazer-lhe o dobro do tributo.

— Tu me enganarás, Gonçalo, tu me enganarás.

— Não o enganarei, senhor, eu lhe afianço.

— Tu me enganarás, Gonçalo, tu me enganarás.

Eu estava mais morto que vivo! O que seria de mim naqueles gerais, no poder do feroz encantado, para quem não havia balas, nem faca, nem forças humanas capazes de o dominar? E onde tiraria eu o fumo para lhe pagar o tributo? Não me restava, pois, se não ir à garupa do seu caititu para as grotas escuras e ser comido assado no moquém.

Assim pensava eu com tristeza, enquanto o senhor-das-caças fumando em seu cachimbo, ocupava-se em apanhar perto algumas plantas medicinais.

— E para que essas plantas, tio Gonçalo?

— Para curar os bichos feridos, menina, os bichos que escapam dos caçadores. O caipora é o melhor dos vaqueiros, trata com muito zelo o seu gado e cura-o com plantas virtuosas, que ele pila nos almofarizes, por suas mãos abertos nas pedras.

— Por isso é que há na serra tantos buraquinhos nas pedras, assim a modo de pilão...

— Foram feitos pelos caiporas. Mas, vamos ao caso...

Tristemente imaginava eu, quando o caipora virou-se para mim, e em tom mais calmo e brando me disse:

— Então, Gonçalo, então?

— Mate-me logo, senhor, pois que não confia na minha palavra respondi com inteira submissão, lembrando-me de que quase sempre nada é mais forte que a humildade.

Ele sorriu e tornou-me:

— Gostei de ti, Gonçalo; e por isso confiarei em tua palavra. Volta agora para casa, e amanhã virei aqui receber o preço de minhas caças.

E tal dizendo, empurrou-se pelas brenhas adentro, e eu cuidei em descer logo por via das dúvidas, mas disposto a cumprir o trato, desse no que desse, para não ficar privado das caçadas da serra.

A Lauriana não me esperava naquele dia, e pois assustou-se quando arrebentei em casa, sossegando quando lhe disse que voltara atrás de pólvora, porque tinha derramado a que levava para o mato.

Nada contei-lhe do sucedido, receando amedrontá-la; e comprando duas varas de bom fumo, larguei-me à primeira cantada do galo em procura da serra.

O caipora chegou igual comigo.

— Voltaste, Gonçalo, e bem fizeste em voltar.

— Sou pobre, senhor, mas não sei faltar ao prometido. Aqui tem o fumo e desejo que o ache de seu gosto.

O senhor das caças o recebeu, e enchendo e acendendo o cachimbo, começou a fumar com sinais da mais completa satisfação.

— Podes caçar em todos os meus domínios, Gonçalo; dou-te licença e protejo-te, porque cumpriste com a tua palavra.

— Obrigado, senhor, muito obrigado.

— Uma coisa, porém, te peço, Gonçalo: atira sempre com segurança para que a caça não fuja ferida, e assim tenha eu o trabalho de curá-la, ou morra pelos matos, perdendo-a tu e eu, porque deste modo não servirá para ti e nem para mim.

E daí em diante, quando eu ia à serra, voltava carregado da melhor caça. Parecia um encanto, rapazes! Como que o caipora, para proteger-me, vaquejava e reunia os seus gados nos lugares em que os esperava. Eu era, pois, o caçador mais afortunado, o mais afamado entre todos do pé da serra; e como a ninguém contara esses negócios, asseverava-se geralmente que só pautas com o demo podiam tanto!

Que me importavam esses ditos? Seria eu um doido se pretendesse tapar a boca do mundo.

Agora o que querem?

Sempre que subia à serra, encontrava o caipora, dava-lhe fumo, e conversávamos como dois amigos íntimos; e então aprendi cousas que nunca ensinarei, por mais que me roguem.

— E por que o tal caipora tornou-se depois inimigo do tio Gonçalo? — perguntaram as raparigas.

— Ah, isto é história muito comprida... Fica para outra vez.

— Não, primo, conte agora!

— Ora, prima Maria, pois não vê que está quase toda raspada a mandioca?

— Ainda falta uma porção... Conte, tio Gonçalo, conte! — pediram com instância os rapazes.

— Arre lá! Que dores de barriga são vocês! Pois bem, eu vou contar o resto da história, porque encerra uma lição... um exemplo para os ambiciosos...

— Isto é bom: presta atenção, ó Rita — disse João Marreca.

— Que é isso? Quem ouvi-lo há de pensar que eu sou ambiciosa! Pois se engana: ninguém mais contente com a sua sorte do que eu.

— Nanja eu; antes queria ser muito rico...

E restabelecendo-se pouco a pouco o silêncio, o velho caçador contou como interrompera suas relações com o senhor das caças, isto é a história da Lagoa encantada.


CAPÍTULO 4

Um dia me disse o caipora:

— Gonçalo, o homem indiscreto, que não sabe guardar um segredo, não merece confiança, e sim desprezo.

— É assim mesmo, senhor; eu penso do mesmo modo.

— Gonçalo, o homem que se deixa dominar pelo demônio da ambição não merece estima, e sim a maldição.

— É assim mesmo, senhor; eu penso do mesmo modo.

— O indiscreto arrisca o seu amigo, e o ambicioso é capaz de todos os crimes...

— É tal e qual, senhor, é tal e qual!

— Homem, o caipora era um vigário! — exclamou Zé Gomes.

— Sim... senhor! — acrescentaram os outros.

— Não interrompam! — ralhou a Chica Pereira.

E disse mais o senhor das caças — continuou o velho caçador:

— Quem sabe, Gonçalo, se mereces a minha confiança e a minha estima?

— Não duvide de mim, senhor, que me ofende.

— Pois bem, vou experimentar-te; mas se revelares o meu segredo e se fores tentado pelo demônio da ambição, nunca mais me apareças, nunca mais! Que, indigno de minha amizade, empregarei contra ti as armas mais ferinas.

E depois acrescentou:

— Escuta. Vou dar-te a riqueza; vou mudar a tua pobreza em abundância; mas, vê lá! Não sejas o algoz de teus semelhantes, só porque tens os meios de seres o seu benfeitor! E nunca te esqueças de que o rico não é mais do que o depositário do ouro de muitos pobres, e por isso entre eles deve dividi-lo, em suas necessidades, como bom amigo e fiel tutor. Acompanha-me agora. E montado em seu caititu, enfiou pelas brenhas, e eu o acompanhei, ora subindo os mais altos penhascos, ora descendo aos mais profundos abismos. E que lindos arvoredos carregados de flores e frutos e de viçosa e escura folhagem; que abundantes riachos ladrilhados de pérolas e diamantes; que longas campinas cheias de veados, de antas, tamanduás e outros bichos da

serra, atravessamos nós!

Parecia um sonho meus rapazes, um sonho prodigioso!

Ele caminhava adiante em seu caititu e eu o acompanhava como fora de mim, de espanto em espanto!

Assim, depois de muito caminhar, atravessamos um grande corredor, escuro como noite de inverno e como que aberto nos rochedos, e desembocamos numa lagoa, cercada das mais formosas matas e sombreada por uma grande gameleira.

Ah, minha gente, não sei como não caí pela repentina mudança do escuro para a luz, não só do dia como de tão assombrosa beleza!

O senhor das caças parou e deixando moderar-se o meu espanto, disse-me:

— Gonçalo da Silva! eis a Lagoa encantada! Aqui se oculta um grande tesouro; e eu to ofereço para felicidade de tua família, de teus amigos; e dos pobres que à tua porta baterem. Vai buscá-lo, vai. Da raiz daquela gameleira desce uma grossa corrente de bronze ao fundo das águas. Puxa-a, planeando a caridade, e desde logo sentindo o seu deleitoso prazer, que arrancarás um caixão cheio de ouro. Mas, se tentar-te o demônio da ambição, debalde, ó Gonçalo da Silva, procurarás arrancá-lo! As águas, os peixes e as raízes reunir-se-ão para prendê-lo, para zombar de teus esforços! E se revelares a alguém este mistério... treme, treme de minha vingança.

E sem mais nem menos, o senhor das caças açoitou o seu ginete, e trepando-se pelos despenhadeiros mais a pique, desapareceu a meus olhos.

Fiquei só.

A princípio estendi alucinado a vista por todo aquele prodigioso quadro, e depois, fatigado pela viagem e estremecimento do coração, sentei-me numa pedra e pus-me a cismar ou a sonhar com os olhos abertos.

Não é possível, prima Maria das Dores, descrever tanta beleza, como a que vi na Lagoa encantada... Não, minha gente, não se pode pintar, nem mesmo fazer-se ideia de tais maravilhas! Contudo, eu vou ver se posso contar algumas cousas... Escutem. A mata mais verde, mais frondosa, mais bonita, que já os olhos de criatura viram neste mundo, cercava aquela grande lago. De um lado erguia-se a gameleira que o caipora me apontara, e do outro estendia-se verde-escuro juncal; e por toda a parte

lindíssimas flores exalando deliciosos perfumes.

Da lagoa corria um riachinho por entre seixos alvos como a névoa, e água era cristalina como as chuvas do céu.

Um ventozinho fresco, ou como lá diz o outro, a brisa, viera encrespar docemente as águas e brincava por entre as flores; e também por entre elas passarinhos de penas azuis, verdes, encarnadas, douradas e prateadas voavam alegres cantando uns cantos que... iguais somente devem ser os dos serafins do Altíssimo! E peixes de todas as cores e tamanhos vinham à tona d’água, como que para escutar os passarinhos.

Esqueci-me de contar, minha gente, que no meio da lagoa havia uma ilha, com o mais primoroso jardim e uma gruta de madrepérolas.

Pois bem, eu contemplava todos esses abismos de beleza, quando vejo erguer-se das águas uma moça alva e corada, de cabelos compridos e soltos, colo feiticeiro... enfim de uma formosura sem igual!

— Era uma mãe-d’água, tio Gonçalo?

— E o que havia de ser, ó rapaz, senão a mãe-d’água? Depois apareceu outra, e mais outra, e dirigindo-se todas à ilha, coroaram-se de flores, e começaram a tocar uns instrumentos desconhecidos, ao mesmo tempo dançando e cantando...

Ah, prima Maria das Dores, Madalena, compadre Zé Gomes, nunca vi moças tão lindas, e nem danças e cantigas como aquelas!

Eram decerto mães-d’água, que tinham deixado no fundo do lago os seus palácios de cristal e vinham brincar à luz do dia.

Eu estava embasbacado, rapazes, e mais ainda fiquei quando vi, ao som daqueles cantos, as árvores, as flores, os juncos e os rochedos movendo-se; os peixes pulando; os passarinhos sal- tando e batendo as asas; e tudo como que dançando compassado, como se fosse gente!

E dançando cantaram por muito tempo.

Depois, descansaram um instante e, fitando-me, continuaram dizendo-me assim em suas melodiosas cantigas:

— Ergue-te, Gonçalo, oh, venturoso, é tempo.

— Quanto ouro levarás, e no ouro vai a opulência.

— Levantarás um palácio na vargem; e no palácio dançarão as belas.

— Terás criados sem conta; e sem conta serão tuas festas.

— Comprarás sedas para tuas amantes; manas, sejamos suas amantes.

— Comprarás perfumes e joias para tuas queridas; manas, sejamos suas queridas.

— Quanta riqueza, Gonçalo; Gonçalo, quantos prazeres!

— Todos te respeitarão; porque o ouro é o respeito.

— Todos te obedecerão; porque o ouro é a obediência.

— Todos te louvarão; porque o ouro é a lisonja.

— Quanta riqueza, Gonçalo; Gonçalo, quantas delícias!

— Terás os manjares mais finos; porque o ouro tudo compra.

— Terás mimosas donzelas; porque o ouro tudo vence.

— Terás, enfim, o que desejares; porque o ouro tudo alcança.

— Quanta riqueza, oh Gonçalo; no cofre pesam as moedas.

— E tantas são as moedas, quantos besouros nos ares.

E milhares de milhares de besourinhos dourados surgiram das águas e escureceram o tempo.

Um momento depois, fadas e besouros, oh, prima Maria, haviam desaparecido. Tudo estava calado. Botei então os olhos ao redor e somente vi a lagoa, a gameleira, as matas, as flores, a ilha e os passarinhos, no mesmo estado em que os encontrara; porém eu, minha prima, estava inteiramente mudado.

Uma fome cruel me roía as entranhas — a fome dos prazeres; uma sede fatal me consumia — a sede da riqueza! Levantei-me, então, e pus-me a andar como doido.

— Gonçalo — dizia eu mesmo comigo —, serás em breve muito rico, Gonçalo! Não caçarás mais para comer, e sim para te divertires. Terás uma espingarda de ouro, uma patrona enfeitada de diamantes, um polvarinho de cristal.. e um palácio, e as moças mais formosas, e banquetes e danças... As melhores fazendas serão tuas... os melhores sítios, os maiores roçados! Comprarás estas terras... as mais rendosas propriedades... Todos te respeitarão... Crescerá a tua riqueza... Aumentarás os teus gozos... Gonçalo, serás em breve muito rico, Gonçalo!

E sem mais demora corri para a gameleira, e agarrando a corrente de bronze que prendia o tesouro, puxei-a com força. Nada! Nem ao menos alui...

E uma grande gargalhada estrondou nos ares.

— São as mães-d’água que zombam de mim — pensei eu e tornei a puxar, a puxar... até que desalentado caí junto da corrente, escumando de cansaço e raiva.

Outra gargalhada estrondou nos ares.

Era demais! Bradei desesperado: "Dinheiro, hei de arrancar-te, dinheiro!" — E agarrei-me à corrente a puxar, a puxar... mas, qual! Desta vez, oh rapazes, caí mais depressa, e maior foi a gargalhada que estrondou nos ares.

Então, sem lembrar-me do que ouvira ao senhor das caças, eu disse comigo mesmo: "Gonçalo, estão caçoando de tua fraqueza: corre lá embaixo, e convida dois ou três camaradas para te ajudarem a arrancar o caixão...

E meu dito, meu feito...

— E não lhe ordenou o senhor-das-caças, tio Gonçalo, que não revelasse o mistério de seus domínios? — interrompeu Madalena.

— Eu só me lembrava, menina, da riqueza, daquele grande caixão de ouro. O demo da ambição me tinha revirado a bola...

Mas, como ia eu contando, disposto a descer, enchi o seio de frutas, e saí botando uma no chão a cada passo, para acertar quando voltasse.

E outra gargalhada estrondou nos ares e um bando de anuns apareceu e começou a comer as frutas que eu deixava cair.

Não sei como não morri de raiva!

Enxotei os anuns atirando as pedras que pude apanhar, e eles voaram, mas voltaram logo em maior número.

Assim contrariado, botei fora o resto das frutas e arrancando a faca, saí cortando a casca das árvores para assinalar a passagem.

Mas, ainda não havia eu dado dez passos quando, olhando para trás, vi os talhos desaparecerem das árvores e ouvi...

Oh, vocês não podem fazer ideia do barulho infernal que então estrondou nos ares!

Eram gargalhadas, toques de sinos e caixas de guerra, assobios, gritos... enfim, o diabo a quatro!

Não tive mais demora, não; azoado e furioso corri pelos matos adentro, sem direção, ora trepando as mais altas penhas, ora rompendo espinheiros, aqui escorregando nas lajes, ali batendo nos troncos — cada vez mais atordoado, porque o barulho me acompanhava... crescia... tornava-se mais diabólico!

E anoitecera de todo, e a noite era mais escura do que nunca! Já não enxergava as grotas, o lugar que pisava, o rumo que seguia... e sempre a correr, a correr... até que, faltando-me o chão nos pés, caí... em medonho boqueirão... rolei nos ares... e fiquei pendurado nuns ramos, sobre horroroso abismo!

Mais penosa, pois, tornou-se a minha posição.

Naquelas profundezas soluçava um rio por entre as rochas; e os galhos que me seguravam, estremeciam... vergavam e... de vez em quando estalavam. Eu não podia mexer-me... Qualquer movimento bastaria para fazer-me cair, e morrer despedaçado naquelas rochas...

Oh, ainda hoje se me arrepiam os cabelos!

Eis senão quando, minha gente, em vez do barulho que me perseguia, estouram os trovões, fuzilam os relâmpagos e zune o vento com força embalando-me sobre o abismo! E no meio da tempestade, aparece um bando de molequinhos montados em capivaras, lançando fogo pelos olhos, faíscas pelas ventas, arreganhando os dentes, rodeando-me e cantando, acompanhados de novas gargalhadas:

— Bacos... ba... bacos; bacos... bacos...

— Gonçalo, cadê teu ouro? Teu ouro virou xenxém!

— Gonçalo, por que caíste? Gonçalo, por que subiste.

— Bacos... ba... bacos; bacos... bacos...

E assim continuaram, fazendo-me caretas, sempre ao som das gargalhadas, enquanto uivava a tempestade...

Depois... estalavam os galhos... e caí perdendo os sentidos!


CAPÍTULO 5

O auditório ouvira gelado de terror aqueles lances angustiosos da história do tio Gonçalo. Ninguém ousava interrompê-lo, e nem mesmo mover-se para não perder uma palavra. Como que não respirava-se, e houve ocasião em que as quicés pararam nas mãos de todos.

Calou-se o velho, e pôs-se a limpar o seu cachimbo, indiferente à curiosidade geral, ou esperando talvez uma pergunta para com a resposta fechar o conto.

Madalena não pôde conter-se.

— Então, tio Gonçalo, e depois?

— Clareava o dia quando acordei, ardendo em febre, ali na cajazeira grande do riacho.

Levantei-me ainda atordoado, e empurrei-me para casa, dando graças ao Altíssimo por ter escapado daquela embrulhada. Adiante encontrei o Mané Coco, que saía para uma pescaria de gereré, e contando-lhe o sucedido, disse-me ele embalançando a cabeça:

— Hum... hum... hum... Estas artes de caipora... Eu já as conheço! Quase a mesma graça já fizeram eles comigo uma noite. Eu logo vi, senhor Gonçalo, que as suas caçadas nos esquisitos daquela serra vinham dar nisto!

E chegando em casa nada contei a Lauriana, para não afligi-la, mas lembrando-me das agonias da ambição, lidas e dissabores da riqueza, achei tão doce, tão suave, tão cheia de sossego a pobreza entre os afagos da família, que não pude deixar de exclamar dentro do coração: — Quem quiser ser rico, que o seja, que a mim não faz inveja!...

— Eu, da minha parte, quero ser muito rica, mas da graça do meu divino Jesus — acrescentou Maria das Dores.

— E o caipora não tomou mais vingança contra vosmecê, tio Gonçalo? — perguntou a Rita Lavandeira.

— Talvez ainda me espere nas brenhas da serra para isso, Rita; porém eu lá não voltei.

— É verdade que vosmecê só caça aqui no plano, e pelo pé da serra?

— E nem era eu tolo para caçar lá em cima; nesta não caía. Naquele dia protestei não continuar a amizade com os caiporas, e nem subir mais às brenhas esquisitas da serra.

— E faz bem, compadre Gonçalo, que os tais caboclinhos são levados da breca! — disse o João Marreca, como quem entendia do negócio.

— Mas devia acontecer o que lhe aconteceu, primo, para você não ser ambicioso! — observou-lhe Maria das Dores.

— O ambicioso nunca medrou, e nem quem junto dele morou.

É ditado dos antigos — acrescentou o Zé Gomes.

E como já não havia mandioca para raspar e estivesse acabada a história, concluiu-se o serão, e todos ergueram-se, dando-se as boas noites e retiraram-se os que moravam distante, para suas casinhas, e os outros, para as suas tipoias.

Um instante depois apenas se ouvia ao longe a voz de Gonçalo da Silva, que no caminho de sua choça cantava a lenda do caipora: "...Cuidado, caçadores, cuidado, que o senhor-das-caças campeia agora na serrania inculta."

 

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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