OS RETRATOS DE FAMÍLIA
Paz
para as vindimas dez anos, que eu ouvi ao tio Joaquim esta história.
Havia
pouco que saíra da quinta, onde eu estava, o Sr. Antônio Tavares, que passava
por um dos fazendeiros mais ricos dos arredores.
Amanhava
para cima de sessenta jeiras de terra: e só de uva mandava perto de quinhentas
caixas para embarque.
Era
franco, alegre, e homem de boas petas; tinha pilhas de graça e parecia vender saúde;
enquanto a modos e linguagem, sabia o nome aos bois, e quando falava de lavoura
podia-se ouvir, discorria como um livro aberto.
Todos
gostavam dele, por não ser de contos, nem de arcas encoiradas; só cuidava da
sua vida, andando lizo no negócio como poucos. Ninguém lhe aceitava sinal,
porque em dando a sua palavra era como se apresentasse o dinheiro contado na
palma da mão. Não constava que faltasse, nem se dava fé, de quem tivesse duvida
em fiar dele fosse o que fosse.
Tinha
vindo a comprar uns trigos, assistira ao carregar dos carros e saíra depois do
trabalho acabado, numa vaca de cinco anos, esperta como um azougue e preta como
um azeviche. Rira muito, contara muita coisa, e fizera bom negócio; porque lhe
tinham dado o pão em conta por ser a venda redonda.
O
tio Joaquim, que não era dos mais faladores, nem dos que se abria muito com os estranhos,
conversara com o Sr. Antônio Tavares, como quem de há muito o conhecia: apertara-lhe
a mão na despedida com ares afetuosos, e seguira-o com a vista até desaparecer
na volta da alameda, fazendo feitios com o pau na terra do pátio, e resmungando
entre dentes palavras que não entendi.
Esta
exceção nos hábitos do velho, aguçou-me a curiosidade, e perguntei-lhe se
conhecia de há muito o homem que dali saíra.
—
Se conheço!... — respondeu-me inclinando a cabeça de alto a baixo,
compassadamente, duas ou três vezes.
Havia
tantas coisas naquela reticência do tio Joaquim, que não pude resistir, e instei
com ele para que me contasse a história do Sr. Antônio Tavares.
Tanto
fiz, tanto fiz, que sentou-se ao meu lado num poial de tijolo, carregou um cachimbo
de madeira, enfeitado com virolas de latão, como os que usam os campinos do
Ribatejo, petiscou, acendeu-o e começou.
Mais
palavra menos palavra disse o seguinte:
—
Vai tanta diferença deste Antônio, ao de outros tempos, como vai da noite ao
dia, e tanto que se eu não presenciasse esta mudança, não podia acreditá-la
ainda que ma contassem.
Lá
embaixo, ao pé do Joaquim Boleta, no recanto da azinhaga, morou por muito tempo
o pai em companhia da mulher que veio a morrer de parto, quando este Antônio
nasceu. Ali esteve, até que por causa da guerra com os franceses chamaram as
baixas antigas e ele, como tinha sido soldado noutros tempos, teve de partir
deixando o rapaz entregue a uma vizinha, boa mulher na verdade e que prometera
tomar conta dele. Mas é mais fácil ter um pouco de azougue quieto em cima duma
pedra, do que era conseguir, que o rapaz não fizesse por aí obras de cabeça.
Não
deitava Deus nosso Senhor um dia a este mundo, em que se não dissesse: lá
apanhou o Antônio enjeitado, (assim é que lhe chamavam), uma escamoucadela na
cabeça, lá o aleijaram numa brincadeira, lá lhe deram uma coça quando andava
aos figos.
Era
um rosário de coisas, que até fazia admiração como ele resistia; mas se o
carrasco e o zambujeiro crescem, medram e enrijam ao desamparo por esses valados,
e não há madeira como a deles para aguentar dura; não admira também que o rapaz
enrijasse assim ao Deus dará e se fizesse um mocetão de mão cheia, esperto e
guapo que era um regalo vê-lo.
Enquanto
a velha Teresa foi viva ainda ele trabalhou alguma coisa para a sustentar, não
muito, que lá no seu dizer, o trabalho era para os cães e não para as almas cristãs;
mas apenas a velha fechou o olho, adeus minha vida, foi um vadiar, que não é
para dizer.
Neste
comenos tinha um soldado, que viera da campanha passado pela terra, e entregara
ao Antônio umas lembranças do pai, morto num ataque contra os franceses,
recomendando-lhe o filho à hora da morte.
Minguada
herança, que ela era. A farda do soldado, meia dúzia de peças, se tanto, e o
retrato do pai, que um seu companheiro tinha feito numa hora de vagar. Muito
parecido, por tal sinal; era ele por uma pena, só lhe faltava falar.
Antônio
chorou deveras, pouco se lembrava de seu pai; mas custou-lhe muito aquele
lance. E nessa ocasião mesmo deu mostras de boa alma que tinha, e que depois
deixou ver melhor lá para o diante, quando mudou de vida. Apesar de falto de
dinheiro, não gastou consigo nem um real da herança que recebera; uma parte
empregou-a em mandar fazer um caixilho muito bonito para o retrato de seu pai,
e o resto deu-o de esmolas aos pobres, pedindo-lhe que rezassem por alma do finado.
Andou uns dias, que não parecia o mesmo, triste e regular no trabalho, depois
tornou à antiga ou ainda pior se era possível.
Quando
tinha algum vintém de seu não paravam as patuscadas, as festas e os
divertimentos; depois trabalhava pouco e de má vontade até arranjar dinheiro,
e, mal o conseguia, ei-lo que voltava à boa vida.
Mas,
manda a verdade que se diga, esteve por vezes doente no hospital, viu-se em
talas quando por aí faltou o trabalho, vendeu, empenhou tudo, só não tocou, em
ocasião nenhuma, nem na fardeta, nem no retrato, que conservava à cabeceira da
rabeca, onde dormia, como se fossem imagens do Senhor dos Passos ou orações do
Justo Juiz.
Uma
vez, vim a sabê-lo ao depois, tinha-se-lhe acabado todo o dinheiro e não havia
que fazer; o jantar havia de vir; mas donde, é que ele ainda o não sabia. Antônio
foi procurar um ferro velho do lugar e propôs-lhe a venda da enxerga: era o
resto dos trastes, que tinha, e estava tão velha e tão suja, que nem uma de
doze valia.
O
ferro velho entrou, e mal deu com os olhos nas duas relíquias do pobre rapaz ofereceu-se
para lhas comprar; mas inda bem o não tinha dito, já estava arrependido de o
dizer, porque Antônio punha-o imediatamente no meio da rua com promessa de lhe
fazer os ossos num feixe, se tivesse outra vez semelhante lembrança.
Assim
passou algum tempo com a barriga ora em lua cheia ora em quarto minguante, até
que uma gente, que para aqui veio lhe fez mudar o modo de viver.
Um
velho tinha arrendado a quinta dos Fusis, para onde viera preexistir em
companhia de sua filha.
Ele
andava pelos seus cinquenta anos: parecia homem de bem; mas casca grossa e
pouco de graças; ela, mais bonita que uma imagem e mais bem posta que uma
fidalga.
Quando
iam no domingo à missa ou de tarde a espairecer por essas azinhagas, o velho de
cabeça branca, corpo um tanto curvado, bigodes grandes, sobrancelhas espessas,
parecer carregado e faces enrugadas; ela alta, esbelta, de olhos pretos e
vivos, cabelo castanho, faces coradas, feições alegres e cara de riso para
todos, pareciam a noite e a madrugada, ou o inverno e a primavera que se
combinassem para melhor parecer unidos um à outra.
Os
rapazes todos derretiam-se para ela, mas o pai que não tinha cara de muitos
amigos, impunha-lhes respeito e conservava-os de largo; e daí ela assim mesmo
sempre alegre, mas toda senhora, dava também a entender, que não estava
resolvida a aceitar a corte a qualquer badameco.
Antônio
vio-a um dia e ficou perdido de cabeça; desde essa ocasião começou vida nova: e
o rapaz extravagante e vadio, começou a ser homem.
Era
tempo, tinha quase vinte e cinco anos.
Mas
a vida que seguiu, foi tão diferente da antiga, que não parecia o mesmo.
Os
dias passava-os a trabalhar, as noites a aprender a ler, porque o mestre do lugar
lho ensinava a troco dos domingos, em que lhe trabalhava no quintal, e as horas
de sesta ou de jantar passeando pela frente da casa da menina Maria, que o
enfeitiçara: mas para bem, que são os melhores feitiços.
E
o caso é que o maganão do Antônio tinha bom gosto, por que mocetona mais
perfeita não a havia nestas três léguas ao derredor. Ia-se desenvolvendo e
medrando, que era um louvar a Deus, e não seria por sua parte, que pudesse
resultar má fama aos ares do lugar.
Bonita
já ela o era, mas enfezada e doentia por amor daquele mau respirar que as
cidades fazem; apenas porém desatou por aí a passear e a espairecer, entrou a corar,
que nem uma pêra de Santo Antônio, e a encorpar que nem uma maçã bem-posta.
Se
ela reparava no rapaz, nem o sei eu, nem há quem o jure, porque isto de mulheres,
nem o demo as entende; mas que o não visse com maus olhos é de crer, porque o Antônio,
não tinha nada que se deitasse fora e era um rapaz perfeito a mais não poder
ser.
Cá
por a terra não se falava noutra coisa e não havia tenda nem barbeiro, onde se
não desse à taramela a tal respeito. Tudo em bem, que em mal não havia razão,
nem atrevimento para tanto, por que com Antônio ninguém brincava, e todos se pelavam
de medo de um certo marmeleiro ferrado, que ele trazia e que não era palito
para dentes, nem vime de passar crianças.
Tanto
falaram, tanto falaram, que o caso foi aos ouvidos do pai, que já andava com a
pedra no sapato por tanto rondar de porta e tanto encontrar o Antônio nas vizinhanças
da quinta.
Um
dia, que acabava de fazer a barba, dois malteses que estavam no barbeiro, e que
o não conheciam, entraram com pé de conversa a respeito do tal namoro e
deram a entender, lá por meias palavras que o Antônio se fazia com terra de
casar com a menina Maria.
O
Sr. José Alves, assim se chamava o pai, não quis ouvir mais nada; atirou com
uma de três para cima da mesa do barbeiro, e foi se como um raio a casa do Antônio.
Boas
tenções não tinha ele. Ia fumando, e vermelho como um pimentão, sacudia um
camolete que levava, que mais parecia um bastão de tambor-mor, do que uma vara
de encosto. Se encontrasse o rapaz no meio do caminho, atirava-se a ele, e não
o deixava em quanto lhe encontrasse osso inteiro.
Era
um sábado e quase ao sol posto: o quarto estava escuro e Antônio, que voltara
mais cedo do trabalho, tinha-se atirado para cima da cama, farto de lidar e sem
poder consigo.
Apenas
por uma claraboia, que havia no telhado, entrava alguma luz, e essa ia bater de
chapa no retrato, que estava à cabeceira; parecia pessoa viva, e até metia
respeito olhar para ele.
É
de crer que o Sr. José Alves se não demorasse a bater à porta, atirou-lhe um
encontrão e deitou-a dentro às primeiras razões.
Antônio
ia a agarrar no pau, que tinha ao pé de si, e saltar na visita, quando
reconheceu o pai de Maria e ficou varado; este ia para falar, quando deu com os
olhos no retrato e pasmou. As lágrimas saltaram-lhe dos olhos, e, sem mais
satisfações, perguntou a Antônio, apontando-lhe para o painel:
—
De quem é aquele retrato?
—
De meu pai, respondeu o rapaz.
—
De Antônio, do meu velho amigo! — e em vez de se atirar à paulada ao namorado
da filha, atirou-se a abraçá-lo que parecia querer meter-lhe as costelas
dentro.
O
que causara aquela mudança, já o senhor adivinha o que foi, continuou o
tio Joaquim concluindo a sua narração, o Sr. José Alves era o tal camarada de Antônio,
que trouxera o retrato, quando o rapaz ainda era um fedelho, e a quem o pai o
recomendara à hora da morte. Tinha continuado a servir depois que passara pela
terra a cumprir o testamento do moribundo: e de batalha, em batalha,
esquecera-se do companheiro, do filho, e da promessa.
Antônio
foi para casa do velho, entrou a administrar-lhe o que ele tinha e aumentá-lo
com o trabalho e a boa vontade; o casamento que já era de gosto do Sr. José
Alves e a que a rapariga não dizia que não, fez-se dali a pouco... e lá tem vivido como Deus com os anjos até que
o velho morreu, deixando a filha e o genro de posse da fortuna que o senhor
sabe.
No
dia seguinte, àquele em que o tio Joaquim me contara esta história fui
aos Fusis procurar o Sr. Antônio Tavares e receber o dinheiro
dos trigos.
Havia
muito que não entrava numa quinta tão bem cultivada, nem via em fazenda alguma,
naqueles sítios, tanta ordem, nem tão bom gosto.
Os
sistemas mais modernos, os instrumentos mais apropriados, as descobertas de
maior importância pratica, tudo ali estava aproveitado, com uma tal arte, que
bem mostrava ter sido, coisa rara entre nós, a teoria unida à experiência com
muito critério e bom resultado. A dos Fusis poderia servir
de quinta modelo, se os fazendeiros da terra, aferrados à rotina,
cuidassem de modernismos ou tratassem de inovações.
Apenas
soube, que eu ali chegara o Sr. Antônio Tavares, mandou-me entrar para a casa
de jantar, onde estava com a sua família; Maria, que devera ter sido tão
formosa, como o tio Joaquim o dissera: e duas crianças, que se tinham levantado
da mesa e que brincavam ali para um canto.
A
casa, posto que conservasse aquele aspecto severo, que ainda se denota em
algumas fora de Lisboa, que fosse de ladrilho, com as paredes revestidas de
azulejo até meio, e o teto em osso, com as grossas vigas de
castanho do emadeiramento à mostra, era alegre, porque recebia muita luz de
três rasgadas janelas, que deitavam sobre uma horta. A mobília era de pau santo
torneado, e num grande armário meio aberto via-se boa louça da Índia, e algumas
peças duma baixela de prata. No lugar de honra dava-se com o retrato a lápis de
Antônio e com um outro mais moderno, a óleo, que devia ser do sogro: uma santa,
que não sei ao certo qual era e dois quadros de frutas ornavam as paredes.
Tudo
reunido dava à casa de jantar um certo ar patriarcal, que infundia respeito e
inspirava felicidade.
Antônio
depois de me pedir que me sentasse, e de me oferecer um copo de vinho da lavra,
levantou-se e foi a um contador buscar o dinheiro da compra, que já estava
embrulhado e pronto desde a véspera; conversamos um pouco, e quando me despedia,
pediu-me que o visitasse a miúdo, porque estimaria ver-me em sua casa.
—
Voltarei, lhe prometi, e voltarei em breve: o tio Joaquim contou me a sua vida,
e apenas o conheci, comecei a respeitá-lo.
—
Bondades suas e do tio Joaquim, que é muito velho, não há razão para o que diz.
Fui rapaz, fiz o que todos fazem, emendei-me a tempo, se é que não foi tarde:
se alguma virtude tive, e essa mesma bem ma têm pago aqueles,— disse-me olhando
para Maria e para os pequenos,— foi não me esquecer no meio de todas as minhas
doidices, que me tinham ensinado a Honrar pai e mãe.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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