4/08/2023

Os pescadores (Conto), de Juvenal Galeno

  

OS PESCADORES

CAPÍTULO 1

Caía a madrugada.

Dormido o primeiro sono, o sono profundo e reparador de quem palmeou légua e sofreu os calores ardentes do sol impiedoso do norte, viera-me a sonolência matutina, esse meio dormir povoado de sonhos encantadores, que abandona-se com saudade ao romper d’alva.

A família despertara na choça, e como costuma o povo, rezava cantando o Ofício de Nossa Senhora:

Agora, lábios meus,
Dizei e anunciai
Os grandes louvores
Da Virgem Mãe de Deus. 

Sede em meu favor,
Virgem soberana,
Livrai-me do inimigo
Com vosso valor. 

E eu sonhava: que lindo sonho!

Terno, vago, melodioso o som do bendito divino ecoava-me n’alma: o céu iluminara-se... abrira-se... eu via o bom Deus, os santos e os anjinhos, todos mui contentes, a sorrir-me, a chamar-me, descantando estrofes repassadas de unção e coadas na felicidade pura, extrema, celestial... E largando sem pena este vale de lágrimas, eu subia as escadas diamantinas do céu... ia voando leve de culpas, sutil... vaporoso... em pleno contentamento.

Ah, como era suave aquele sonho!

Como a flor que n’aurora desabrocha, que sacia a sede de orvalhos, de luz, de ar, e de vida, minh’alma como que despertara de um longo letargo, e recebia em seu seio as emanações do mais cândido afeto; como que tinha ânsia fervente de amor; como que queria mergulhar-se nesse delicioso oásis, saturar-se de seus eflúvios, absorvê-los por todos os poros, não satisfeita de libá-los na taça d’ouro que se lhe chegava aos lábios.

E é assim!

O abrasado peregrino dos areais desertos, se encontra o arroio de seus anelos, no delírio da sede, não contenta-se muitas vezes em tocá-lo com os lábios gretados pela febre, não; mergulha-se nele, quer esgotá-lo, sem atentar à sua abundância.

Do mesmo modo o descrente... o desgraçado... aquele que passa no vaivém do mundo sem uma ilusão, uma esperança, um consolo, isolado, indiferente a tudo como a lapa das serranias! Se um dia acorda desse marasmo horrível... que sede, que desespero, que ânsia de fé e de amor!

Quando despertei continuava a família a entoar pausadamente o Ofício da Virgem:

Estrela da manhã,
Deus vos salve, cheia
De graça divina,
Formosa e louçã.

Ouvi, Mãe de Deus,
 Minha oração,
Toquem em vosso peito
 Os clamores meus.

Deixando minha rede, aproximei-me de uma fresta, e vi todos ajoelhados ante o pequeno Registro, pendurado à forquilha da cabana, enfeitado de raminhos verdes, e alumiado por dois pavios preparados na cera amarela da jandaíra.

André tirava a reza, e sua mulher e filhos o acompanhavam entoando as coplas do inspirado hino.

Que espetáculo sublime e grandioso!

Lá fora, o mar, agitado e gemebundo, a quebrar-se de encontro às rochas; o vento a soluçar entre as palmas dos coqueiros e da casinha; os passarinhos a despertarem cantando; as florinhas a menearem sorrindo e a desprenderem os seus olores; as gaivotas e os grauçás a correrem brincando n’areia.

Aqui, a família, — o homem, a imagem de seu Criador — rogando a intercessão da Virgem:

Pois sois esperança
Dos pobres errantes,
E seguro porto
Aos navegantes.

e rendendo graças ao seu bondoso Pai:

‘Glória seja ao Padre,
Ao Filho e Amor também,
Que é um só Deus,
E pessoas três,
Agora e sempre
E sem fim. Amém.

E por toda a parte, o mar, o vento, o passarinho, o homem... cada qual na sua linguagem, a pronunciarem os cantos da manhã, seus hinos fervorosos ao Senhor dos céus e da terra.

Como tocou-me a singeleza deste quadro, como embeveceu-me a mente!

E que simplicidade no altar da pobre família! Um Registro, dois pavios acesos, alguns ramos... e nada mais! Quanto fervor, porém, em seus acentos; quanta devoção em sua alma; e quanta sinceridade em seus dizeres! Que lhe importava que o mar bramisse ameaçador, que o vento uivasse desenfreado, que a tempestade estalasse irada, ameaçando rasgar aquela fraca casinha de varas e palhas, esmigalhar no rochedo a jangada, o frágil batel do pão quotidiano? Que lhe importava o perigo, o futuro, se esperava na intercessão da Mãe Santíssima, se tinha fé na misericórdia de Deus?!

E não era, pois, a sua oração mais agradável ao Eterno, do que a dos grandes templos, balbuciada entre as pompas da vaidade, entre os fulgores do luxo, muitas vezes por lábios crestados pela mentira?

Sim; que aquela prece era a do coração, e não a das conveniências; era a voz sacrossanta da fé, e a fé, segundo Jesus, é a salvação, a chave da suprema ventura.

 

CAPÍTULO 2

Amanhecera. Finda a reza, André e sua mulher abençoaram os filhos, e todos beijaram devotamente o santo Registro.

Joana desarmou logo o tosco altar, botando os seus acessórios na pequena mala de cedro, onde guardava o que de melhor possuía a família, isto é, a saia preta e o lençol branco de babados de cassa com que ela se confessava, ouvia missa nas desobrigas e visitava as comadres; a calça e o chapéu do marido, com que ele se casara — seu uniforme também de missa, confissão e festas — que sem dúvida passaria ao filho mais velho: o bentinho que lhe dera o virtuoso missionário que por ali passara há muitos anos; duas medidas de santos, uma do Senhor S. Francisco do Canindé e outra de Nossa Senhora das Candeias; uma oração da peste; um ramo bento para queimar nas horas da trovoada; uma tesourinha; dois rolinhos de retalhos; e outras preciosidades.

Depois, juntou a lenha, soprou, e feito o fogo, botou neste a panela cheia d’água, que adoçara com pedacinhos de rapadura. E dentro de pouco tempo fumegava nas tigelas o saboroso café, nos alegrando a todos, principalmente a meninada que o esperava impaciente.

André, quando findou-se a reza, dirigira-se à porta e pondo as mãos nos portais, com os braços abertos, fitara o mar, para ver como ia o tempo, e depois a praia. Isto feito, sentou-se sobre os calcanhares, riscando com o dedo a areia, e esperando conversa. E ao mesmo tempo, eu examinava com atenção a casinha, ad- mirando sua simplicidade, e filosofando sobre o viver de seus donos. Como era singela a pequenina! Entretanto — pensava eu -, talvez satisfeitos, André e Joana, não a comparem invejosos à grande casa do rico.

E tem razão...

Qual o alvo de todos os desejos neste mundo senão a felicidade?

E onde moras tu, ó filha de meu Deus?

Será nos palácios, no meio da abundância, por entre o luxo, à mesa dos banquetes, e no salão dos bailes?

Quê? E a ambição, essa febre intensa que corrói as entranhas do rico ou poderoso senhor, essa medida que não se enche, essa sede que não se sacia? E o pânico que lhe rouba o sono, que lhe banha o corpo em gélidos suores, que torna ásperos como as rochas os seus colchões de seda, que fá-lo escutar nos menores rumores os passos do ladrão, do assassino? E o fastio que o definha, que o mata à fome, no meio dos mais finos manjares? E a desconfiança, que muitas vezes transforma o seu mais dedicado fâmulo, o mais fiel amigo, em astucioso zangão? E essa amarga persuasão de que os obséquios que recebe, as atenções que lhe prestam, são devidas ao seu ouro, à sua alta posição, e não aos seus dotes pessoais? E as modas que lhe arrancam a mulher, que tornam-na caprichosa, esquecida de seus deveres, e alucinada no turbilhão dos festins? E o filho ocioso que, trilhando a senda dos vícios, primeiramente o rouba, e depois desonra-lhe o nome? E os infortúnios comerciais, que vêm surpreendê-lo na hora do repouso? E a intriga e o tédio e o desespero?...

Quantas vezes não se confrange amargurado o coração dos poderosos, quando os lábios riem-se, no baile, para os alegres convivas! Quantas vezes, prazenteiros e festivos, nos banquetes, não recebem parabéns e brindes, quando o ciúme e os desgostos os ferem no mais íntimo d’alma?

Onde, pois, encontrar-te-ei, ó divina felicidade?

Será então verdade, que tu és impossível no meio das criaturas humanas?...

Mas, que singelo quadro é este que me encanta os olhos? Donde nascem os risos que escuto com delícia? Que doce enlevo é este que assenhoreia-se de minha mente? Como aquelas afetuosas cantigas me embalam a alma? Será tudo isto um sonho ou uma realidade?

Pois quê? Habitarás acaso em tão miserável choupana, ó divina felicidade?

— Graças ao bom Deus — respondeu-me André, ouvindo estas palavras que insensivelmente eu pronunciara em minhas cogitações. — Sou pobre, muito pobre, como vê; possuo apenas esta casinha, aquela jangada e a noite e o dia; mas, estou  satisfeito, e nada mais desejo senão a saúde para continuar a trabalhar ganhando o bocado, a roupa, enfim o necessário à minha família. Que me importa a riqueza? O que é certo, senhor, é que tudo que Deus faz é bom; e por isso cada qual deve contentar-se com a sua sorte.

— Pensa bem, senhor André — lhe respondi admirado de suas judiciosas reflexões. — Feliz daquele que, isento de ambições, possui o carinhoso amor da esposa e dos filhos, e sente no corpo o vigor da saúde, e n’alma o sacrossanto fogo da fé.

E, voltando às minhas cogitações, continuei a admirar em doce enlevo aquele ninho de amor e de ventura.

Como era linda a paisagem que circundava a casinha da praia! De um lado o mar, e do outro as selvas. Ali, a vaga encapelada da tormenta ou a onda pacífica da bonança; aqui o regatinho do outeiro a serpear brandamente na relva em flor. No mar, o pescador em seu pequeno batel a descantar saudoso; nas selvas, o passarinho a gorjear canoro. Por toda a parte o sublime espetáculo da natureza.
 

CAPÍTULO 3

E a casinha? Como era singelo o seu teto de palmas de carnaubeira!

Suas paredes eram de taipa, isto é, de troncos, varas, pedaços de atapu e ossos de peixe, tudo coberto de barro; e o ladrilho compunha-se de pequenos búzios da praia, formando as mais caprichosas flores.

Uma parede dividia-a em sala e camarinha, e um puxado servia de cozinha.

Na sala, um caritó de casca de velho tronco, um jirau encarregado das funções de mesa e um banco constituíam a mobília. Via-se mais ali a minha rede, o trem da jangada, as tarrafas, e grudados à parede quatro ou cinco rótulos de peças de fazenda, e de novelos de linha. Talvez brinquedo das crianças, ou lembranças da costureira.

E na camarinha vi a rede do casal, as tipoias dos meninos, a malinha de cedro e uma corda de roupa.

Era naquela pequena alcova que todos os dias, no fim da madrugada, a família entoava o santo bendito, que eu ouvira há pouco embevecido. Era ali também que no mais ditoso conchego, pais e filhos repousavam — André ao lado de sua querida Joana, e os filhinhos ao redor nas tipoias —, enquanto talvez o Padre Eterno os contemplava lá do céu, sorrindo-se como benigno pai... Que tranquilo sono! Que lhes importavam os malfeitores, as feras, os perigos, se não tinham inimigos e riquezas, e se confiavam em Deus? Nem sequer pensavam na fragilidade da cabana, na fraqueza das portas de talos e de esteira! Adormeciam após uma prece, e seus sonhos eram iguais aos seus pensamentos — as impressões do trabalho e as da oração — a praia e o céu — o seu viver singelo neste mundo, e as delícias do outro...

E que encanto para André, quando acordava alta noite e via junto a si a carinhosa esposa, a mulher de seu primeiro amor, e perto os filhinhos ressonando, ou sorrindo nos inocentes sonhares, e, através das palmas do teto, as estrelas cintilando como olhos contentes a espreitá-los! E ouvia o vento gemendo nas folhagem, o mar soluçando talvez com pena do vento, e longe o grito do tetéu nos alagadiços, ou o canto das nambus marcando as horas? — "Pai do céu, como sois grande e misericordioso!" — não diria ele então no mais íntimo d’alma? E volvendo os olhos para sua Joana e mirando-a em seu sossegado sono, não diria também: ‘‘Dorme, meu bem, dorme, que muito lidaste durante o dia com estas criancinhas, e o bom Deus te livre das amarguras, e te guarde na hora do repouso!’’

E Joana, se despertava ao choro do filhinho, talvez dissesse: ‘‘Não acordes teu pai, ó filhinho; que ele ontem muito trabalhou para nos dar o bocado, e precisa por isso descansar. Não chores mais, ó lindo menino, cala-te; e tu, meu velho, dorme, que és o arrimo e o amor desta família, E vós, ó Virgem Santíssima, rainha dos céus, intercedei por nós, jamais esquecendo a humilde casinha das praias.’’

Ah, dizia eu, quanto mistério de afeto e ternura, naquele estreito recinto, despido de todos os ornatos do luxo e comodidades da abastança!

E dirigindo-me a André, interroguei-o então sobre a construção da casa.

— De que madeira são estes caibros, meu amigo?

— Guarapé, senhor: é um pau branco, linheiro e muito bom para caibros. As varas são de ubaia; a cumeeira, de batinga; e o cipó é o chamado canga-de-boi.

— E das paredes?

— É pau-ferro... Todas estas madeiras são aqui da praia e excelente para este tanto.

— Que tempo gastou fazendo esta casinha?

— Uma semana, porque o João das Neves, meu vizinho, ajudou-me trocando alguns dias comigo, e a Joana e os meninos trabalharam de rijo!

— Como?

— Escute lá... Eu e o João cortamos e carregamos as madeiras, enficamos as forquilhas, armamos a casa, finalmente fizemos o serviço mais pesado. E Joana e os meninos enxamearam e embarrearam as paredes e se encarregaram deste ladrilho de búzios que vosmecê está vendo...

— E achando muito bonito com suas flores e ramagens... A senhora Joana é bem habilidosa...

— Vosmecê está caçoando decerto... mas, o que se há de fazer? Eu bem disse a Joana que não era preciso isto; mas, teimou, dizendo-me: — ‘‘Ora, homem, deixe-me enfeitar o nosso palácio, que está ficando mais bonito do que o do rei!’’ — E eu pus-me a rir da graça, e ela foi fazendo o que lhe vinha à cabeça.

— E conseguiu, senhor André, o mais pitoresco ladrilho...

Mas, onde morava vosmecê até então?

— Ali embaixo, defronte daquele pedregulho. E mudei-me, porque o lugar não era sadio e a casa já não prestava. Quase nada aproveitei dela, senhor! A palha apodrecera e as estacas e forquilhas estavam cortadas pelas areias.

— E que madeiras há nestas praias, senhor André?

— Temos além daquelas de que falei há pouco, o jucá, pau-d’óleo, maçaranduba, juá, pau-d'arco, jatobá...

— E oiticica?

— Distante, que ela gosta mais do sertão do que das praias.

— E o gurari não dá boa madeira para casa?

— Qual, meu senhor! O gurari é um pau moitento, duro, espinhoso e doido; só serve para rasgar a roupa da gente. O espinho dói muito, e é venenoso. Matou o filho da Josefa Gomes, que morava na Lagoa Salgada, de um modo horrível!

— Conte-me lá como aconteceu isso...

— Pobre rapaz! — Deus lhe perdoe os pecados. — Vinha a cavalo, correndo a todo o pano, quando os espinhos do tal pau o agarraram pelos cabelos... Coitadinho... ficou pendurado e assim, no outro dia, foi encontrado morto!

Houve um momento de silêncio, e depois erguendo-se André e tomando uma tarrafa me disse:

— Com sua licença... Vou ali dar uns lanços, que preciso de saúnas para isca; hoje é dia de botar a jangada no mar... Mas, volto logo...

— Eu o acompanho para gozar um pouco do fresco da manhã...

— Joana — disse ele à mulher —, arranja o almoço, que já voltamos.
 

CAPÍTULO 4

Que formoso panorama o da praia naquela hora alegre e feiticeira, em que tudo sorri entoando seus hinos ao supremo Senhor do universo!

O sol despontava entre nuvens cor-de-rosa, dourando as águas do mar.

Os passarinhos cantavam nos coqueiros, nas pitombeiras e axixás. Aqui a sura e pedrês zabelê, entre o capim dos córregos, gritava — ô zabelê! — perto dos seus quatro ou cinco ovos, que ocultara no folhiço seco do chão. Ali, a pequena e roxa nambu, indicando as horas com o seu canto igual ao ingênuo sorriso da criança, ora vigiava os seus dois ovos também guardados nas folhas secas, ora encolhia-se medrosa e se escondia ou voava produzindo o rumor de uma frecha. E além, as gaivotas corriam em bando na beira da praia, ou batiam asas de contentes surpreendendo os peixinhos nos maceiós.

A brisa balançava-se nas palmas, como a cabocla indolente. Os botos brincando pulavam na pancada do mar.

Ao mesmo tempo os homens preparavam-se para a pescaria; as mulheres cuidavam do necessário à viagem; e os meninos vadiavam n’areia.

E André, sempre com os olhos fitos n’água e com o lanço armado, ora acompanhando a onda que fugia, ora fugindo da que se desenrolava, de vez em quando tarrafeava, colhia as saúnas e as guardava no uru.

Meia hora depois voltamos à casinha, onde Joana já nos esperava com o almoço, que cedo preparara, porque o marido não podia demorar-se. E, pois, sentamo-nos logo em torno do jirau que de mesa servia.

— Não repare, senhor — me disse a dona da casa, — comer de pobre...

— Ora, senhora Joana, eu também sou pobre...

E pus-me a comer com o maior contentamento, notando o asseio e ordem da tosca mesa, e mais admirando aquela zelosa mãe de família.

Como é bom o comer preparado por mãos queridas; e por isso quanta disposição em todos!

Onde te escondias então, ó pálido fastio, que não te vi à mesa de André? E tu, ó carrancudo tédio? Por que não viestes àquele frugal banquete, para ostentar o vosso poder, nos anunviando o semblante e nos tornando insípida a comida? Seria porque não encontrais lugar no jirau do pobre, ao passo que o tendes franco à mesa dos ricos? Pois bem! Continuai à vossa vontade nas grandes casas, ao lado da hipocrisia, ou desenvolta crápula, que neste casinha jamais achareis guarida!

Meu Deus, se é certa a crença popular de que presidis sempre a mesa da refeição, como satisfeito não estivestes na da pobre casinha! E como não vos sorristes à vista daquele quadro de tão eloquente simplicidade, talvez ouvindo o André dizer em seu coração: —‘‘Como a minha Joana arranjou bem estes manjares!" — E Joana do mesmo modo: — ‘‘Como o meu André vai gostando da comida!’’ — E as crianças: — ‘‘Como está bom! Tomara que nos toque maior quinhão!’’ — E depois, ó Pai Santíssimo, como cheio de amor não os abençoastes quando, erguendo-se de mãos postas, vos agradeceram a mercê recebida!

As criancinhas, divididas em dois grupos de três cada um, comiam em dois pratos, que a louça não chegava para mais. De vez em quando, pois uma, com engraçada inocência, reclamava contra os companheiros que a iludiam, comendo ligeiros; e outra pedia pirão ou peixe, às vezes instando pelo pedacinho que mais apreciava.

— Olhe, mamãe, o João está bulindo comigo...

— Tem modo, João — ralhava a paciente mãe.

— É porque ela tirou o peixe todo...

— Papai, eu quero os olhos do peixe... Ouviu?... Lá estão eles... Eu gosto tanto...

— Aqui os tem, Mariquinhas.

— Homem, como está hoje saída a Mariquinhas! Nem tem vergonha ali do senhor.

— Não há de que, senhora Joana... a Mariquinhas já parece uma moça...

— Ih! botou as mãos no rosto! — observa o Felismino.

— Gente, para que envergonhou a minha filhinha? — disse o pai com acento amoroso e brando, dirigindo-se à consorte.

Acabando o almoço, nos levantamos, rezamos o bendito, e cada qual tratou de seus afazeres.

André, como eu já disse, preparava-se para ir ao mar naquele dia. Perto, encalhada n’areia, esperava-o sua jangada — a Ligeira

— nome que ela bem merecia, porque muitas vezes vencera na carreira a Duvidosa, a Veloz, a S. Vicente, e outras afamadas. O pescador amava-a quase tanto como a mulher e os filhos! E tinha razão, porque a Ligeira, além da casinha, era o seu único possuído, a sua companheira nas lidas, e o meio que o bom Deus lhe dera de ganhar o bocado, e o vintém para comprar o taco de pano e para outras necessidades da família.

Então, ajudado do seu filho mais velho, que já o acompanhava ao mar, André palombou a vela, e, conduzindo de casa, colocou em seus lugares a bolina, a tapinambaba, o samburá, o remo, a bicheira, a cuia de vela, o barrilzinho d’água, e a quimanga que Joana enchera de farinha, rapadura e peixe assado. Tudo assim disposto, empurramos sobre os roletes a jangada para o mar, no meio dos aplausos das crianças; e pouco depois a Ligeira sulcava garbosa as ondas, com a vela enfunada por vento de feição; e ouviu-se na praia, como expressão da mais afetuosa

saudade, esta cantiga que André cantava:

Ai amor, por ti eu parto,
Por ti, amor, voltarei...
Quanto amor levo p'r'os mares,
Nas praias quanto deixei!

E Joana, sentada perto da porta a remendar a roupa do marido e dos filhinhos, corou e sorriu-se, ouvindo a amorosa cantiga.

 

CAPÍTULO 5

Mudara-se o quadro da praia.

O trabalho sucedera ao repouso; o rumor ao silêncio; o movimento à quietação.

Agora cada qual tratava de seus afazeres, procurando ganhar o necessário à vida.

Entretanto, como a flor a boiar no meio das vagas, quanta poesia nas lidas, a amenizá-las, a torná-las em vez de uma pena severa, como impostas foram à humanidade, quase um entretimento, um deleite mesmo!

Quem o duvida?... Vós, ó filho das cidades, ó miseranda vítima do luxo e da vaidade, ó infeliz escravo de uma sociedade exigente e de uma família insensata e pródiga?...

Tendes razão, porque o trabalho é sempre penoso, sempre um suplício na escravidão e a vossa vida é a escravidão sem tréguas! Sim! E por isso, quantas vezes, apesar de enfermo, não trabalhais sem descanso, porque precisais do ouro para manter-vos nessa posição em que vos colocou o mau fado, e para satisfazer a vaidade e os caprichos da família?...

Oh, e que martírio cruel!

Em vez de uma companheira terna e amante, e de filhos carinhosos, que o auxiliem nas lidas, que o tornem objeto de constantes mimos e desvelos — essa mulher louca e pródiga, que traja sedas, que dança nos bailes, que dá jantares, e que desperdiçando o fruto de longas fadigas, incessante e impiedosamente lhe brada aos ouvidos: ‘‘Trabalha, trabalha, escravo, para que eu continue a figurar nos salões e não me envergonhe no meio de minhas amigas!’’ — E essas moças que, seguindo os exemplos maternais, lhe dizem: ‘‘Trabalha, escravo, para que tuas filhas se enfeitem e mais facilmente possam conquistar um noivo!’’ — E esses rapazes ociosos, que bebem, fumam e jogam, e que sem cessar também impiedosamente bradam: ‘‘Trabalha, escravo, para que teus filhos cursem as aulas superiores com a decência precisa!...

E não se transformam assim, aqueles que deveram ser queridos e amá-lo ternamente, em desumanos algozes, que o torturam, que o esmagam sob o peso de seus desmandos?

E não se torna, pois, excessivo e aflitivo o trabalho que lhe impõem esses algozes e as malditas conveniências sociais?

E o que fazer?

Sentar-se no meio das lidas para que o corpo descanse, embora assim se amesquinhe o seu salário? Mas, como? Se a despesa do lar não descansa; se a indústria, as artes e civilização não param, criando novos artefatos, novas necessidades, novos sorvedouros para o seu suor; e se os credores o ameaçam com a bancarrota, a penhora, e a pecha de caloteiro?

Fugir dessa sociedade que o escraviza e procurar a paz dos ermos? Mas, como? Se a família não quer acompanhá-lo; se acostumada aos gozos que ele intenta evitar, não pode prescindir deles; e se também lhe falta a coragem precisa para suportar o escárnio que semelhante procedimento despertaria sem dúvida?

Separar-se dessa família opressiva e cruel? E que remorsos quando encontrasse nos prostíbulos a esposa e as filhas, por ele abandonadas sem os meios de manterem-se honestamente? E lhe consentiria tal infâmia esses sentimentos nobres que o dominam, que o algemam ao cumprimento de seus deveres?

Dominar então a família em seus ímpetos de prodigalidade; e fazê-la volver à posição compatível com os seus recursos? Mas, não seria isso uma luta de todas as horas, de todos os instantes

— luta amargurada e esmagadora, cujas consequências em vez de benéficas seriam fatais? E demais, teria ele coragem, possuiria acaso a força necessária a semelhante luta?

E o que fazer, pois, se não suportar resignado o peso dos grilhões de tão bárbaro cativeiro? Trabalhar, exaurir o seu alento, derramar a última gota de suor, até o cimo do calvário, e lá, nos umbrais da eternidade, deixar a sua pesada cruz para sempre?!

E nem sequer uma compensação, um consolo! Nem ao menos a íntima convivência com a esposa, e o carinho constante das filhas; porque elas pertencem mais às festas, às modas, às etiquetas da sociedade, do que ao mísero escravo de seus caprichos e desperdícios!

Oh, e não é assim penoso o trabalho? E não é tal vida um suplício infernal?

Sim! E por isso tendes razão, ó desgraçado, para duvidar da suavidade e muito mais do deleite das lidas entre os filhos humildes dos arraiais marítimos.

É que, no meio de tamanhas amarguras, ignorais que ali o trabalho é livre como as auras do oceano, e limitadíssimo como as necessidades da pobre gente — necessidades que não passam de um pedaço de peixe que a mãe de família mesmo cozinha, de dois vestidos que ela mesmo cose, da pequena choça que o marido levanta facilmente em poucos dias e de quase nada mais! E que é doce e suave, porque a pesca e a caça são verdadeiros passatempos, e porque não o envenena a inveja, a ambição e todas essas outras paixões ruins da multidão. É delicioso, não só porque é consagrado às pessoas queridas, como por elas partilhado gostosamente.

Mas, aonde me levaste, ó peregrina imaginação, companheira gentil de minhas noites? Que te importa a dor que se oculta nos sorrisos da cidade, como a víbora entre as flores? Mais não fujas! e vem agora comigo, ó minha borboleta, contemplar nestas areias o quadro das lidas populares e inebriar-te naquela singeleza tão poética do homem da natureza, do esquecido pescador destas ermas praias.

 

CAPÍTULO 6

Nas casinhas, as mulheres sentadas à costura, ou batendo os bilros na almofada, cantavam os benditos de sua devoção ou os improvisos felizes da musa do povo, ora volvendo os olhos para o mar, cujas ondas se desenrolavam até quase o alpendre e ora para os morros onde brincavam seus filhos. E perto os velhos e enfermos escutavam-nas enlevados, recordando-se aqueles com saudade dos tempos idos, e estes embalando-se na esperança de em breve recuperarem as forças para volver à pesca.

E entretanto aquelas sossegadas mulheres tinham marido e filhos no dorso das ondas, entre mar e céu, cercados de imensos perigos!

Oh! tu que assim cantas, pois não sabes que o teu esposo e teu filhinho partiram para o mar, e nesta hora, naquela frágil jangadinha, naqueles seis paus mal seguros, lutam com a fúria das tormentas? Quem sabe se uma rajada de vento não rasgou agora a vela, não sacudiu teu filho n’água, naquela água sem fim, em cujos vagalhões a morte dança fatal? Se uma fera daqueles abismos não devorou o teu esposo, quando este, com a maior coragem, abandonou o barco e foi nadando segurar o peixe que morto boiava a algumas braças? Se uma dessas visões que alucinam os pescadores nos ermos do oceano não te enlouquece o companheiro querido? Se a mãe-d’água não o arrebatou para os palácios cristalinos que possui no fundo dos mares? Pois quê? E não te assustas, não tremes receosa enquanto permanecem no meio de tamanhos perigos os objetos de seu afeto?

E não estamos todos nós — me respondes talvez — acostumados aos perigos? E no meio deles não nos guarda o bom Deus? E haverá canto na terra onde a criatura se esconda dos males que lhe são destinados? E tudo que nos acontece não é ordenado pelo Pai do céu, e para nosso bem? E demais, não temos junto do supremo Juiz uma advogada poderosa na Virgem Santíssima?

Tens razão, sossegada mulher. Feliz do que tem fé na misericórdia divina, porque será tranquilo no meio das procelas. Feliz do que em Deus crê, porque será por Ele guardado e amado.

E interrompendo suas cantigas, de vez em quando as mães admoestavam brandamente os filhos que fora brincavam:

— Meninos, saiam do sol, meninos!

— Gentes, pois não levaram também a Raimundinha para os morros?

— Ó, Manoel!

— O que é, mamãe?...

— Menino, bota a Raimundinha para dentro, que ela não anda boa...

— Aqui está ela, mamãe...

— Eu quero ir... eu quero vadiar lá fora com os outros...

— Não chore, filhinha, que seus olhinhos doem... Quando você ficar boa irá vadiar lá fora... Olhe! assim você não fica boa tão cedo!

E para acomodar a Raimundinha vem o Manoel brincar com ela dentro de casa, o que logo começa armando a casinha com espinhas de peixe e fazendo curraizinhos de gravetos — à imitação daquele que o pai fizera na enseada para a pescaria e prendendo neles dois graças que trouxera...

— Gentes, que fim levou o Bastião?

— Pois não foi pra lenha, mamãe?

— Há que tempo! Essas horas anda pelo matos atrás de mapirungas e de ninhos de nambus...

— Ele disse que ia ver se as arapucas tinham pegado juriti...

— Mamãe, veja, a Raimundinha pegou no sono...

— Coitadinha da minha filha... Deixa ela dormir, que não anda boa desde ontem.

Chega o Sebastião com o feixe de lenha, e duas juritis que apanhara nas arapucas.

— Ai! — exclama o Manoel — pegou duas... deixa eu ver, Bastião...

— Que demora... Há que tempo tu saíste, Bastião?!

— E a mamãe não disse que eu passasse em casa da tia Rosa?...

— E como vai ela, menino?...

— Ela mandou dizer que ontem, depois que a mamãe saiu, apareceu-lhe a dor no ouvido e nas fontes; mas, ela amarrou na cabeça uma medida de Nossa Senhora dos Remédios e amanheceu hoje muito aliviada, Deus louvado...

— Coitada da comadre Rosa; Deus a amezinhe...

— Bota sentido à casa, Bastião, que eu vou enxaguar aquela roupinha que está no quarador...

E pondo um pano na cabeça sai a mãe de família para o riacho, passando por entre diversas crianças, que brincando cuidavam assim também de seus afazeres.

Como? — me perguntarão talvez — Pois o brinquedo é um trabalho? — É sim, para as crianças... Pois não é necessário que o menino corra e pule para desenvolver os seus membros, para dar forças aos músculos, para crescer alentado e ágil? Não trabalha o pai para com o alimento alcançar esse fim? E, pois, não trabalha também o filho, auxiliando-o no alcance do mesmo fim? E que trabalho insano e mortificante, quando o jovem operário luta com um defeito de organização, ou com o entorpecimento, ou outra enfermidade!

Mas, tal não acontece a nenhum dos que agora neste pequeno maceió, exercitam-se na vida de jangadeiro e na arte de nadar.

É um grupo de seis.

Joaquim e Marcos botam sua jangadinhas n’água e os outros nadam brincando, tendo enterradas as camisas para não carregá-las o vento.

Joaquim é gordo, tem olhos negros, a pele morena cor de pitomba e tostada pelo sol, e não pode contar mais do que cinco a seis anos. Marcos é mais delgado e esperto ou, como dizem seus pais, é sequinho e vivo. E as jangadinhas são de palmo, feitas de pedacinhos de piúba, e suas velas de retalhos de pano que a irmãzinha cosera depois de receber a zabelê ou o periquito que eles lhe deram em paga.

Ao impulso da brisa, as jangadinhas saem; atravessam o maceió e vão encalhar na margem oposta.

— Olha, a minha jangadinha como vai bonita!

— Mas, não é tão boa de vela como a Faceira...

— Pois, sim... vamos botá-las ao mesmo tempo para ver qual é a que vence a outra...

— Pois vamos...

— Faceira!... mais depressa... não deixa a Duvidosa passar...

— Que é isso, Duvidosa, queres virar? Meninos, não bulam n’água...

— Ganhei... ganhei! A Faceira passou...

— É porque aqueles meninos buliram n’água...

— Olha, um corozinho que eu peguei!

— Onde estava, Marcolino?

— Ali, naquele poço se aquentando ao sol...

E assim conversando os outros jogam cangapé, nadam e banham-se — todos risonhos e ditosos como os brinquedos da infância. Não longe, os pescadores que não tinham seguido para o mar, concertavam as jangadas, torciam as linhas ao longo da praia, reparando às vezes nos peixes que perto se aglomeravam à tona d’água, e indiferentes aos humildes grauçás que por entre eles  passavam, do buraquinho para a praia, dizendo, talvez:

— Podemos passear livremente agora, que os nossos inimigos lá brincam nos maceiós, e os pescadores não fazem caso de nós...

— Como? Pois não lhes servimos de resolventes nos tumores, e não lhes ajudamos a limpar a praia?

— Conosco — acrescentam as moscas — são mais ingratos; insultam-nos e entretanto dizem que somos remédio para as doenças de olhos e das...

— Pois não me acontece o mesmo — interrompe o guajá no colo de uma onda; — comem e muito apreciam a minha carne, e guardam o meu casco para curar o fluxo de suas mulheres...

— Também me procuram para comer — acrescenta de lado o panan —, e com os meus grandes beiços extinguem os formigueiros...

— O que é certo — concluem os grauçás — é que não há nada neste mundo que não tenha um préstimo!

E os pobres grauçás disseram uma verdade.


CAPÍTULO 7
 

À porta de uma casinha descansava Luiz, o pescador mais velho daquelas praias.

Era ali que ele passava seus dias, a contemplar os mares — onde já não passeava por causa da velhice e doenças; e observando ao mesmo tempo com olhos de mestre a marcha e governo das jangadas, a mudança do tempo e os cardumes de peixe.

Interessante Luiz! E com que saudades não fitava aquelas vagas, de cujo seio se alimentara, em cujo colo passara a mor parte de sua vida — onde se embalara em tantas noites veladas, tantos perigos vencera e tanto mistérios surpreendera à luz das estrelas! E com que inveja não via partirem de manhã os jovens pescadores, em suas bem aparelhadas jangadas, cantando alegres como outrora ele cantava e voltarem à tarde ou no outro dia, com o samburá cheio, a relatar os casos da viagem como ele outrora os relatava!

Muitas vezes, como por encanto se transportava a esses tempos ditosos, e então... com que prazer empurrava a jangada para as ondas; salvava-a da ressaca; bolinava de mar adentro; via pouco a pouco fugirem as casinhas, desaparecer a terra, nivelarem-se as montanhas; deixava descer ao fundo o tauaçu; botava o anzol n’água, e puxando-o incessantemente enchia o samburá! E com que prazer também desafiava os companheiros e os vencia na carreira com o seu veleiro paquete! E com que orgulho na volta recebia os louvores dos velhos, os parabéns dos moços, os olhares fagueiros das mulheres e os afagos dos meninos! Mas, tudo era sonho — era um devaneio de sua imaginação, que cessava logo para dar lugar às tristezas da realidade.

Uma consolação, porém, lhe restava. Era que os jovens pescadores sempre o ouviam, sempre tomavam seus conselhos nos lances mais difíceis. E quem poderia guiá-los melhor do que ele, que conhecia, como as palmas de suas mãos, todos os bancos, arrecifes e voltas da costa; que sabia de cor e salteado os costumes dos peixes, o melhor modo de aguentar a jangada, de pescar a cavala, a sioba e o pargo, e de evitar os tubarões e baleias; e que, numa palavra, familiarizara-se tanto com as vagas como com aquela casinha, que ele fizera quando rapaz e em que morava na velhice?

Então, se o consultavam, ele dizia ufano e prazenteiro:

— Vocês não sabem nada, ó rapazes; não conhecem ainda as cousas do mar. Pois foi ali que se embranqueceram estes cabelos, e gastou-se a luz destes olhos... Hoje, sim, é que já não sirvo nem para calço de remo...

E depois como mestre, como a experiência em pessoa, desfazia os obstáculos, indicando meios que levassem ao fim desejado.

Sentei-me junto de Luís e puxei conversa.

— Já não pode com as fadigas da pesca, meu velho, e por isso descansa?

— É verdade, senhor, aos moços cabe agora trabalhar e sustentar-me... A mim, restam-me apenas... saudades quando os vejo partir para essas lidas tão queridas, e a consolação de conversar deste batente com o mar, com aquele amigo velho, até a hora da grande viagem, que não há de tardar.

— E com que pena, senhor Luiz, não separou-se vosmecê de seu velho amigo e daquela lida, que, tornando-se um hábito, já constituía a sua felicidade?...

— Oh! não pode imaginar... só Deus...

E a comoção embargou-lhe a voz, enquanto duas grossas e pesadas lágrimas lhe desciam pelas rugas do rosto.

Mais tarde contou-me o seguinte:

— Meu pai, Deus o tenha no céu, era jangadeiro desta praia, e aqui mesmo nasceu e deu a alma ao Criador. Ainda muito menino me acostumou ele à vida do mar... Apenas com doze anos de idade já o acompanhava, porque ninguém mais feliz do que eu para segurar a linha do anzol... Não duvide, senhor! Parece busão... mas, há pessoas tão felizes que, basta segurar na linha para que o peixe venha sem demora ao anzol; e entretanto outras... nada ou pouco fazem!

Fui-me acostumando desde então ao balanço das ondas, aprendendo a ciência da mareagem e benquerendo a vida de pescador; e tão depressa me acostumei, que meu padrinho querendo mandar ensinar-me a ler no povoado, não conseguiu arredar-me do objeto de meus amores — o mar.

Quando ajustei dezessete anos, meu pai chamou-me e disse-me — o mesmo que há dois anos repeti ao meu filho Pedro: ‘‘Luiz, estou velho e quebrantado; e por isso preciso de quem faça minhas vezes no trabalho. Toma conta da jangada; é tua; e encarrega-te do sustento da família, que eu já não sirvo senão para rezar! E dia e noite rezarei, meu filho, rogando a Nossa Senhora que te proteja sempre’.

Fiquei alvoroçado, senhor, como se me tivesse caído maná do céu! — "Meu pai — lhe respondi — descanse que, ajudado por Deus, suprirei a casa de um tudo!" — E corri para a praia, onde a jangada estava encalhada, e, com um contentamento que não sei contar, olhei-a, examinei-a, abracei-a mesmo; e tratei logo de limpá-la, concertá-la e aprontá-la...

Era a primeira cousa que eu possuía.... Minha... minha aquela jangada? Como era doce dizer isto! Olhei para as outras e não vi nenhuma mais bonita e nem melhor... E então, para me convencer mais de que ela pertencia-me, mudei-lhe o nome de Veleira pelo de Faceira, e no entusiasmo de criança falei-lhe assim: "Olha, Faceira, já és minha; não sabes? Amanhã iremos ao mar, no fundo de trinta e seis... Voltarás carregada de pargos, garoupas e serigados... E, moços e velhos, todos na praia, dirão: "Olhem lá a Faceira e o seu novo mestre e dono!" — E eu te zelarei com todo o carinho, porque és a minha companheira dos mares, o meu afeto e esperança!

O resto do dia passei a concertar a vela, a reformar a tapinambaba, a endireitar tudo; satisfeito como o mais ditoso do mundo.

E na manhã seguinte eu empurrava a Faceira para as ondas, contente e orgulhoso, olhando os camaradas por cima dos ombros, pelo que ficaram rindo a dizer: "Vejam o Luiz, nem cabe em si de contente! Deus o conserve, e lhe dê sempre ânimo para sustentar a família." — E eu comigo mesmo ia dizendo: "Estão decerto admirados, porque nunca viram bolinar melhor, e aguentar a jangada com tanto saber...

Desde então, senhor, entreguei-me à vida de pescador, como mestre jangadeiro, e Deus louvado, com uma felicidade que a todos encantava! Eu mesmo tinha jeito para aquilo... uma vocação tão decidida, um gosto que... dois iguais não havia nesta praia...

— E por isso inveja agora, os que partem para o mar, sentindo não poder acompanhá-los?

— Não é só isto... Todas as manhãs — é devoção que não posso largar — sento-me aqui para ver a saída e manobra dos pescadores. E então, se o rapaz é bom, se sabe tomar um bordo, salvar a jangada de uma onda que ameaça tragá-la, aguentá-la bem quando o vento sopra rijo e ela está vira-não-vira, eu levanto-mecomo se não tivesse dores e de cá dou vivas de entusiasmo! Mas, se o rapaz é ruim, eu sinto mais raiva do que se me houvesse magoado estes pés inchados! E há ocasiões, senhor, em que desejo lançar-me às ondas, nadar até a jangada, empurrar para fora o desazado e tomar-lhe o governo! Não está em mim conservar-me calmo à vista destas cousas, não... é gênio, é uma propensão que não posso vencer...

 

CAPÍTULO 8

— Nessa longa vida dos mares — disse eu a Luiz — viu sem dúvida muitas vezes cousas extraordinárias?... Os pescadores contam que durante a noite, nos ermos do oceano, espantosas visões surgem das águas e cenas surpreendentes se desenrolam a seus olhos.

— Sim, senhor, e eu acredito. Não que visse cousa de maior importância... mas, como não acreditar em homens sérios que não sabem mentir? E demais, é preciso dom para ver certas visagens... e nem todos o possuem.

— E o que viu de mais assombroso, senhor Luiz?

— Em muitas noites, senhor, eu ouvia toques de caixas e cornetas, e músicas deliciosas como as das festas da cidade. Via tochas acesas no meio das águas como fogueira no campo. Porém, o que me admirou foi o seguinte: — uma madrugada, tendo enchido o samburá da Faceira, suspendi o tauaçu, botei-o nos espeques e fiz-me à vela para as praias. A lua quase a pôr-se mal clareava, mas a estrela d’alva já pardejava no céu para despontar. Então reparei que uma grande jangada de vela muito alva me acompanhava, procurando emparelhar-se com a Faceira para vencê-la. — "Não tem nada — disse eu ao meu companheiro — quer nos passar e zombar de nós, mas não conseguirá o seu intento." — E mais que depressa puxamos a escota para encher a vela de vento, e fizemos tudo o que era preciso. Nesse tempo se emparelhara a desconhecida contrária! Mas, a Faceira, como o vento rasteiro à tona d’água, escorregava tão veloz que não pude deixar de gritar entusiasmado: "Camaradas, cuidem dos papéis, que a Faceira não está acostumada a deixar-se vencer!"

— E nada de respostas! — "Não tem dúvida — pensei então — eles não querem falar para não perder tempo." — E redobrando de esforços continuei do mesmo modo até que. foi clareando o

dia. E quem disse que vimos mais a tal jangada? Tinha desaparecido, senhor!

— Ou ficou atrás?

— Qual! Nem ficou, nem passou, e nem velejou para os lados! De qualquer maneira nós a teríamos visto; pois, vosmecê sabe que no mar se enxerga a grande distância, e pouco tempo fazia que ela nos acompanhava. Tinha desaparecido num abrir e fechar de olhos! E tanto amedrontou-se o meu companheiro, que benzeu-se e me foi dizendo: "Luiz, aquilo era encantado ou almas de pescadores a recordarem as lidas do mar!" — "Homem — respondi-lhe —, é melhor não falarmos nisso, aguenta a jangada que vamos encalhar. "

— E não seria um sonho?

— Nós estávamos de olhos abertos e ambos vimos a tal jangada...

— Mas, há ocasiões, depois de longas fadigas e noites veladas, em que sonhamos em pé e de olhos abertos e a isto vosmecês aqui pelos matos chamam flato.

— Diga o que quiser, senhor; mas, aquilo, se não foi visagem do outro mundo, era cousa encantada!

— Ou miragem: assim como os desertos de areia, deve tê-las os desertos d’água...

— Ah! se vosmecê ouvisse o João Gomes!

— É algum pescador daqui?

— Foi, mas já se mudou. Era um velho que muitas cousas via nos mares, e as contava a quem queria ouvi-las.

— E o que ele contava? Não se lembra de alguma?

— Entre outras, escute vosmecê esta. Sempre que João ia ao mar, voltava com a jangada tão carregada de peixe, que as memburas, os bordos e os meios de piúba vinham debaixo d’água, tamanho era o peso. Só vendo-se, podia-se acreditar. E se lhe pedíamos a razão, ele contava que ao passar daqueles arrecifes, ouvia uma voz de mulher que lhe perguntava: "Já vais para o mar, João?" — A primeira vez ele não respondeu, e por isso voltou sem peixe! Mas, cismando no caso, voltou no dia seguinte, e no mesmo lugar ouviu a voz: "Já vais para o mar, João?"

— Ele respondeu: "Já." — E tanto foi o peixe que lhe apareceu, que João com quatro linhas, duas amarradas nas pernas e duas nas mãos, não o podia vencer! Era preciso puxá-las ao mesmo tempo. E desde esse dia não deixou mais de responder e voltar com a jangada carregada...

— E de quem seria a voz?

— Ora... e de quem havia de ser? De uma mãe-d’água, senhor, que estava por ele apaixonada!

— E acredita, senhor Luiz, nas mães-d’águas, nessas fadas formosas que possuem ricos palácios no fundo dos mares e lagos?

— E por que não, se elas existem? Se têm aparecido a muitos pescadores, funestas a uns e boas para os outros? O que é certo, senhor, é que há mistérios nestes mares e florestas virgens das montanhas — cousas maravilhosas — que os homens da cidade desconhecem e que nós vemos e não sabemos explicar... Mas, vosmecê ouça agora a cantiga do amor fatal, que vem inteiramente a propósito...

— E prestando atenção, ouvi, de um rapazinho que na praia trançava cordas de embiratanha para as jangadas, esta lenda ou balada que Luiz denominara

O Amor Fatal

Maria, a filha das ondas,
Manoel, filho do mar;
Ela tão formosa e triste
Como a onda a soluçar;
E ele brando ou valeroso,
E gentil qual vê-se o mar;
Ai, se amaram nesta vida...
Era seu destino amar!
E onde amantes mais ferventes
Para agora os comparar?
Se Maria suspirava,
Manoel a suspirar...
Se ela um riso desfolhava,
Ele um riso a desfolhar!
Mas, um dia o moço amante,
Cuja vida era no mar,
Chega à praia demudado;
Sem Maria procurar...
Que tristezas no semblante!
Que tristezas no falar...
— Manoel, o que tu sentes? —
Maria pôs-se a exclamar
— Por que me foges agora...
Por que gemes a cuidar?
Não foste assim para as ondas...
Quem te fez assim voltar?
Manoel, tenho ciúmes
Lá dos abismos do mar! —
E Manoel em silêncio
Gemia, triste a cismar!
E porque triste cismava
Manoel, o pescador?
É que fora um dia às vagas,
De terra levando amor,
E nas vagas o perdera
Com pesar, com dissabor...
Que vira um rosto de fada...
Lindo rosto encantador...
E também ouvira um canto,
Nenhum mais fascinador,
Que lhe falava dos gozos
Do mais terno e doce amor:
— Meus palácios cristalinos,
Meus jardins de bela flor,
Meus olhares, meus sorrisos,
Cada qual de mais ardor,
Os meus beijos deleitosos,
De meu seio o puro odor...
Tudo dou-te e sete dias
Para voltando dispor... —
E os sete dias passavam...
Ai, triste do pescador!
Devia deixar as praias
Para sempre... oh, quanta dor!
Mas, que fazer se viera
Das ondas louco de amor?!
E Manoel se prepara
Para a viagem do mar,
Sempre triste e suspirando
Como quem sente um pesar...
Maria chorando exclama:
— Manoel, não vá pescar!
— Que não vá por que me pedes?
E Maria a soluçar...
— Eu não sei, mas tenho medo
De não ver-te mais voltar... —
Manoel não lhe responde;
Quanta pena em seu olhar...
E suspirando mais triste,
Mais depressa sai pra o mar!
E Maria? Que amargura!
Quem n'a pudera arrancar
Da branca areia da praia,
Onde sentou-se a chorar?
Veio um dia e depois outro,
Como as ondas vêm do mar...
E não vê a vela amada,
Sempre o horizonte a fitar...
— Verdes ondas, verdes ondas,
Inda estava ele a pescar?
Ai, dizei-me, tende pena
De quem chora a definhar! —
E gemendo as verdes ondas
Os seus pés vinham beijar,
E depois também chorosas
Voltavam rolando ao mar...
E o tempo passando sempre,
E Maria a soluçar... 

Eis que em noite de tormenta,
Numa noite de terror...
Houve quem visse nos mares
Sepultar-se aquela dor!
Os gemidos se calaram
Do fatal e firme amor...
Que Manoel não voltara
Do palácio encantador!
Mas, se a noite é de tormenta,
Quando a noite é de terror,
Quanto soluço na praia
Não escuta o pescador,
Dizendo com seus filhinhos,
No meio de seu pavor:
Ai que destino cruento!
Que fatal e firme amor!


— E então, senhor — disse-lhe Luiz — , em que está pensando?

— No amor fatal... É uma bonita lenda!

— E não pensa na mãe-d’água, naquela formosa fada que roubou o coração de Manoel à infeliz Maria? Assim mesmo há pouco vosmecê como que duvidava destas cousas...

— E em que tempo aconteceu aquilo, e em que lugar?

— Nesta praia, e quanto à era não sei... Mas, se não me engano, meu avô contava que conhecera os desgraçados amantes, e que o caso fora tão falado, que tornou-se a cantiga dos poetas e logo mais de toda a gente.

— E onde soluçava Maria?

— Acolá embaixo, defronte daquele morro que vosmecê está vendo. É dali também que saem penosos soluços em noites de tormenta, como afiançam os que moram perto e como reza a cantiga:

Quando a noite é de terror, Quanto soluço na praia Não escuta o pescador...

et cetera... Dizem que é assim mesmo.

Meia hora depois eu passeava, em mago enlevo, no lugar indicado, adivinhando na movediça areia as pegadas da infeliz Maria, e pedindo às verdes ondas que me revelassem todos os mistérios daquele extremoso e funesto amor, cuja lenda tanto me impressionara.

CAPÍTULO 9

O sol descambava no ocidente.

Salve, ó melancólicas tardes da praia!

Cantavam os passarinhos em despedida, e para escutá-los calara-se o vento nas palmas.

Os pescadores já enrolavam as linhas e velas, e interrompendo o concerto dos barcos, juntavam a ferramenta pelo chão dispersa. Outros, rodeando as jangadas que encalhavam, entre-tinham-se no exame da pesca.

E como tudo ouvindo e observando, o velho oceano abafara os seus roucos soluços e preguiçoso rolava na areia.

Ao mesmo tempo algumas crianças o importunavam pulando e sorrindo em sua margem.

— Saiam, meninos, retirem-se — dizia o oceano —; não me importunem na hora do meu repouso.

— Tem paciência, bom velho; espera que vou primeiro mergulhar naquela onda...

— Escuta, meu velho, ralha com esta vaga que me derrubou agora...

— Ao menos, senhores, calem-se, que eu quero ouvir aqueles pescadores.

Retirados, outros meninos de pé na praia, mergulhavam a vista no horizonte, procurando ver na risca surgir a vela da jangada do pai querido, ou irmão adorado.

E as mulheres, agora à sombra dos alpendres, concluíam as tarefas ou conversavam, também fitando os mares.

Entre as crianças encontrei os filhos de André.

— Então — lhes disse —, onde está a mamãe?

— Está fazendo renda no terreiro a conversar com o tio Anselmo.

— E quem é o tio Anselmo?

— É um velho pobre e aleijado, que algumas vezes vai jantar lá em casa...

— E vocês vieram aqui esperar o papai, não foi?

— Foi... Ele nunca volta no mesmo dia, mas virá hoje por sua causa...

— E quem lhe contou?

— Eu ouvi a mamãe dizer...

— Você é muito sabido, Antoninho!

— Olha, Antônio! — grita o Joaquim.

— Onde, menino?

— Aquela, homem, aquela que vem adiante das outras!

— Ai... sim... já vi! Quem sabe se não é ela mesmo...

Reparei também e vi na linha dos mares quatro ou cinco velas.

Eram pontos brancos, como garças a pairarem sobre as águas, que lentamente cresciam, brilhando aos últimos raios do sol.

Entretanto, nas areias da praia, quantos olhos os não contemplavam cheios do mais carinhoso amor! É que em breve, transformados em jangadas aqueles pontinhos brancos, trariam às pobres famílias, além do pão quotidiano, o seu arrimo, o objeto constante de seus afetos e mimos. E então, quanta saudade a extinguir-se em corações extremosos; quanta alegria a renascer vivace!

Oh, vinde, pois, nas asas do vento, barquinhos da ventura! Que vos guiem os anjos do céu às areias onde vos aguarda o repouso. Vinde sem demora, que extinto o fogo do lar, vos espera para acender-se animado. Pois não sentis no seio estremecer ansiosa a vossa equipagem, fitando as casinhas do coqueiral? Das casinhas vos contempla risonha a mimosa consorte com seu filhinho ao colo. O menino mergulha a mãozinha nos cabelos soltos da jovem mãe, e ela mergulha os olhos nas vagas pedindo-lhes o seu bem amado. E na praia, muitas crianças vos firam com seus olhinhos verdes e brilhantes como as ondas ao meio-dia. Vinde, pois, sem demora, ó barquinhos da ventura.

As crianças me interromperam, batendo palmas, e gritando:

— Eu bem dizia que era ela... eu bem dizia...

— É ela mesmo... Lá está a cruz encarnada na vela...

— Homem, tomara que o papai traga uma soia — exclama Chiquinha com muita graça.

— Para que você quer uma soia, ó Chiquinha?

— Para perguntar-lhe se a maré vaza ou enche...

— Por que, benzinho?

— Pois você ainda não viu como a soia tem a boca torta?

— Sim? Ainda não reparei...

— Pois tem... Tomara que o papai traga uma, para eu lhe mostrar...

— Por que a soia tem a boca torta?

— Ora, por quê? Quem não sabe da história?

— Conte, Chiquinha, que eu não sei...

— Pois foi assim. Um dia Nossa Senhora passou no mar e perguntou a soia: "Soia, a maré vaza ou enche?" — E a soia não quis responder e fanhosa arremedou Nossa Senhora, dizendo: "Soia, a maré vaza ou enche?"— E por isso ficou com a boca torta...

— Bem feito! — gritou Joãozinho — quem mandou ela arremedar Nossa Senhora?

E ainda eu me ria da inocente história da Chiquinha, quando encalhou na praia a jangada de André.

Corremos logo todos e ajudamos a empurrá-la para o lugar do costume.

André não tinha feito má pescaria, apesar da sua pouca demora nos mares; e por isso, conversando primeiro alguns instantes comigo, começou alegre a esvaziar o samburá, sacudindo o peixe na areia e respondendo aos companheiros que o interpelavam.

Um velho, à vista do monte de peixe, disse:

— Sempre é verdade, ó André, que — mais vale quem Deus ajuda, do que quem cedo madruga.

— É sim, meu amigo — respondeu André —, porque Deus é a felicidade, e quem sem Ele anda não pode contar venturas... E por isso rogo-lhe a todo o momento que não me abandone nas tormentas da vida.

— Deus te conserve sempre assim, André — concluiu o velho

—, tirando o chapéu ao falar em Deus, no que o acompanharam todos com fervoroso respeito.

Mudando a conversa de assunto, perguntei a André:

— Não trouxe alguma soia, meu amigo?

— Para que vosmecê queria uma soia?

— Para uma encomenda — respondi com os olhos em Chiquinha.

— Pois infelizmente não quiseram vir... Talvez não acertasse com a isca, o que quase sempre acontece aos bocas tortas...

Rimo-nos, achando graça na resposta e eu disse a Chiquinha:

— Não se desconsole; fica para outra vez.

E acabada a arrumação da jangada, isto é, pago o dizimeiro, dados alguns peixes aos camaradas, e vendidos outros aos fregueses, carregamos o resto para a casinha — eu, os meninos e a boa Joana, que viera ao encontro do marido.

André conduziu às costas os acessórios da jangada.
 

CAPÍTULO 10

Sentado à porta e fumando sossegado em seu cachimbo, encontramos Anselmo, o pobre e aleijado velho, hóspede da caridade de André e Joana.

— Boas noites — lhe dissemos todos ao entrarmos.

— Deus lhe dê as mesmas — respondeu o velho.

E levamos o peixe à cozinha, onde Joana tratou logo de escamar e cozinhar o necessário para jantar e de escalar e salgar o resto. André ao mesmo tempo arrumou os objetos que trouxera, e depois de mudar a roupa, afagar os filhos e conversar um instante com a mulher, acendeu o cachimbo, saiu para o alpendre e sentou-se perto de mim e do velho aleijado.

— Anselmo — disse André apresentando-me ao velho —, este senhor arranchou-se em nossa casa e, já lhe demos rancho no coração...

— Pois o amigo de meu amigo é meu também...

— E eu aceito com o maior prazer a sua amizade, senhor Anselmo.

— Então, nada de cerimônias, conversemos como amigos velhos... Eu cá não gosto de meias palavras, e nem de semblantes carrancudos... Talvez, não acredite, senhor, mas tenho sono quando não estou à minha vontade...

— Encanta-me esta franqueza — respondi eu —: também sou assim.

— Pois topou um bom camarada — disse André —; este Anselmo, apesar de pobre, velho e enfermo, está sempre contente e satisfeito.

— Estou sempre bem, porque estou bem comigo...

— Tem razão, senhor Anselmo — disse-lhe eu —, o homem que não sofre n’alma o espinho do remorso, que nunca fez mal aos seus semelhantes e cuja vida foi sempre regida pelos santos preceitos da religião, está bem consigo, com a sua consciência — com este juiz severo que Deus colocou dentro de nós, e por isso vive tranquilo... sem temor, porque quem não deve, não teme. E que importam as asperezas do caminho a quem vai para uma festa? E, pois, que importam os contratempos e as enfermidades a quem, descarregado de culpas, se dirige àquele céu estrelado, mansão das eternas delícias?

— É assim mesmo, senhor; não deve ter cuidados quem marcha para um tribunal com seus papéis em ordem, e confiado não só na justiça de seu julgador, como também na sua misericórdia. Mas... não deixando uma cousa pela outra... não posso ver passar sem reparo uma palavra que ali o André me aplicou...

— Qual foi essa palavra, ó Anselmo?

— Chamaste-me pobre... pobre a mim, o homem mais rico destas praias! E estás rindo, André? Pois dize lá: "Não me pertencem estes mares e aqueles matos? Não disponho desta casa e de todas as outras para descansar e resguardar-me dos rigores do sol e da chuva? E não é meu o peixe que há pouco trouxeste? E não é meu também o que pesca o Bernardo, o Marcelino, o João Mareta e todos os outros? Não tenho sempre a mesa posta ao almoço e ao jantar, a roupa lavada, o cachimbo cheio de fumo, o fogo aceso para me aquentar, e tudo o mais que preciso? Já não trabalho, não é? Mas, não deu-me o bom Deus em ti e nos outros, tantos braços para trabalharem para mim? E tudo isto possuindo, me chamaste pobre! E para que maior riqueza neste mundo?

— É como vê — disse-me André —, ninguém mais satisfeito com a sua sorte. Quando podia trabalhar, não perdia instante, e todos os seus teres dividia com os necessitados; e hoje que está velho e enfermo, e que nada possui, divide-se a si próprio por todos nós. Grande seria o meu contentamento, senhor, se Anselmo de mim tudo aceitasse... porém, qual! Eu e Joana nos cansamos de pedir... E sabe o que ele respondia? — "Não queiram tudo para si... é preciso também contentar os outros... Irei lá jantar algumas vezes e comerei muito... e não digam mais nada... que não lhes toca pequeno quinhão!" — E eu e Joana nos calamos... Que remédio senão contentarmo-nos com tão pouco?

— E então? — acrescentou Anselmo. — Pois havia de privar aos outros de serem caridosos para comigo? Não gostava eu, quando trabalhava e possuía alguma cousa, de ter à minha mesa sempre um necessitado, e com ele repartir os meus suores, como agora o fazeis com este velho e com alguns outros? Não corria outro dia a tua mulher para socorrer a Madalena, que doente gemia numa rede? Não voavas tu nos mares ainda há pouco tempo para salvar o Vicente que atacado de cãibras estava a afogar-se? E por que corria a tua mulher, e por que tu voavas? Não era para gozar da grande delícia da caridade? Pois assim como gostas desse manjar do céu, os outros gostam, e por isso deve ser ele repartido por todos.

Eu estava encantado com o que ouvia e presenciava. Tudo para mim era novo! Acostumado a ver nas ruas da cidade, despedir-se grosseiramente ao pobrezinho cego, que um vintém pedia pelo amor de Deus — e isto por aqueles que acabavam de assinar avultadas quantias para jantares, bailes e outros festins da vaidade — parecia-me impossível aquele quadro da mais angélica caridade, e ao mesmo tempo da felicidade na indigência! Não era ali o mendigo um importuno, e sim um amigo: não era também uma criatura gemente e desconfiada, e sim alegre e risonha, porque estendia a mão àqueles que consideravam a prática do bem, a divina caridade, não só uma obrigação, como também mercê e contentamento que a Bondade suprema lhes concedia!

Oh, e tudo isso não era encantador! E se não fosse uma realidade... que sonho delicioso!

Interrompendo minhas meditações, ergui-me e acompanhei André e Anselmo, que os meninos reclamavam impacientes para o jantar, ou ceia que nos esperava na mesa.

Reproduziu-se então a cena do almoço.

Sentamo-nos, e cada qual como que procurava vencer ao seu vizinho, tamanho era o apetite e a ligeireza com que desciam e subiam as colheres.

Joana estava contentíssima! E não era para menos, porque a disposição e prazer que em todos via, provavam que não se houvera ela mal no tempero da comida. E por isso os acompanhava gostosamente, atendendo mais complacente que nunca, aos filhinhos, que de vez em quando protestavam com os pratos vazios.

— Ora, a mamãe botou tão pouco...

— E ainda quer mais, ó Joãozinho? Você já comeu muito...

— E tem razão, Joana, que o comer está excelente! — observa André.

— É que a sioba estava gorda, homem... Há tempos que você não traz do mar um peixe assim.

— Ó papai! — grita a Mariquinhas — você não sabe de uma cousa?

— De que, filhinha?

— O Joãozinho hoje buliu na sua tarrafa...

— É mentira, papai... nem pendi para as bandas dela...

— Foi, papai... Papai, me dê aquela espinha para eu chupar.

— Eu logo vi que o que ela queria era isso...

— Ah Mariquinhas — diz-lhe Anselmo —, você primeiro agrada o papai para depois lhe fazer o pedido, hein? Como é sabida! E nessas inocentes práticas decorreu suavemente a hora da mesa, concluindo-se pela fervorosa prece — a hora daquela refeição abençoada, porque na pessoa do pobre e aleijado Anselmo, partilhara Aquele, que julgando dirá aos ricos e orgulhosos: "Eu tive fome e não me destes de comer... Eu tive sede e não me destes de beber... Eu estive nu e não me destes de vestir..."


CAPÍTULO 11

Concluído o jantar e ceia, Joana tratou de arrumar os pratos e agasalhar os filhos, para voltar à nossa companhia, e eu, André e Anselmo — todos fumando — reatamos o fio da conversação.

— De que idade casou-se, senhor André? — perguntei-lhe eu.

— Ainda muito rapaz... Desde criancinhas, eu e Joana nos queríamos, e por isso nossos pais entenderam que não deviam demorar o casamento. E fizeram bem; porque, em tão boa hora o diga, ainda não me arrependi. Acredite, senhor: até hoje, Deus louvado, não tive um desgosto, e nunca o dei também à minha mulher. E passamos a conversar sobre outras cousas — sobre a pesca, as jangadas, as estações e alguns incidentes da vida das praias. Depois, tomando por tema a felicidade, e comparando o homem dos ermos ao das cidades, borboleteamos nos campos da fantasia, às vezes abandonando a coerência e nos embrenhando afoutos no melindroso assunto.

— Encontrei — disse eu a Anselmo —, encontrei a felicidade quando já a não esperava...

— Onde encontrou-a vosmecê?

— Nesta rude casinha, no meio desta praia quase deserta. E não se riam, não... debalde procurei-a nas cidade... E o que encontrei? O avarento guardando, como um cão morto à fome, o cofre de suas joias; o usuário arrancando sem dó os farrapos da penúria, e especulando com a angústia; o ambicioso urdindo intrigas, mentindo e caluniando para alcançar seus fins; a inveja enlameando a virtude; o vício envenenando a inocência; o luxo e vaidade desolando as família; o patronato vendando os olhos da justiça; o forte esmagando o fraco; o oprimido odiando o opressor; a impostura dominando audaz; a hipocrisia substituindo a fé nas preces; as aras do tempo profanadas pelos comícios políticos... enfim, a luta incessante das paixões, do homem com o homem, do bem com o mal, do inferno com o céu! — "E Deus?"

— me perguntareis vós. — Deus é a felicidade... e a felicidade vim encontrar nesta choça, tão humilde como o presépio de Belém... E se Ele hoje, como outrora, na pessoa de Jesus, abandonasse o presépio, onde o adoravam reverentes os pastores, e fosse às cidades, sabeis o que aconteceria? Levá-lo-iam sem pena à guilhotina! Todos sorriram, trocando entre si um olhar de inteligência,

que talvez dissesse: "Ora, história da Carochinha... as cousas lá não são tão feias como ele as pinta..."

— É certo — acrescentou Anselmo — que a vida da multidão torna os homens maus, assim como a do retiro os torna bons. É como lá diz o outro: — Muita gente junta não se salva...

— Pelo seu falar, parece-me — disse-me André — que vosmecê ainda acaba mudando-se para aqui...

— Venha, senhor — exclamou a boa Joana —, venha morar descansado entre nós, fora desses barulhos lá da cidade.

— É tarde, senhora Joana; eu devera ter nascimento aqui, ou vindo na idade da inocência e ignorância... A cidade é um pântano, cujos miasmas nos envenenam a alma, matando-lhe a flor da ventura. E pois, como poderia à cândida florinha volver o viço, se envenenada mirrou-se, se o vendaval das paixões e desenganos arrancou-as d'haste e as turbas calcaram-na aos pés sem dó em seu tripudiar insano? O que traria para entre vós, senão descrença e cruéis amarguras?

— Mas, não sabe que essas amarguras encontrariam muitas consolações? — disse-me André com o acento da mais cordial amizade.

— Sim... mas, o passado? Quem mo varreria da mente? Quem me restituiria a crença... a confiança... as ilusões da inocência, que a perfídia e crueldade dos homens, as lições amargas do infortúnio, as contrariedades e dissabores me roubaram d’alma? E não viriam o veneno de tão profundas chagas, a recordação dolorosa das decepções, turbar-me a todos os instantes o presente, privá-lo da tranquilidade, como ao lago da praia o vagalhão dos mares? Além disso, e os hábitos... essas necessidades que se adquire na civilização, que se tornam condições de vida, e que entretanto não caberiam nos ermos?

— Tem razão — disse Anselmo — ; a planta dos alagadiços não pode crescer nos altos.

— O infeliz — acrescentei —, não pode quebrar as cadeias que o prendem à desventura...

Houve uma pausa e depois prossegui:

— Que motivos tem o habitante destas praias para não ser feliz? Nascido e criado nos ermos, sob quatro palmas dos coqueirais que o cercam, tendo ante os olhos sempre o majestoso quadro do oceano e das florestas, e sob a cabeça aquele céu azul e estrelado, não vive sossegado e ditoso, embalado pela fé no seio da inocência e da ignorância?... E como não ser assim, se não vê as grandezas dos ricos para invejá-las; se não conhece as maldades dos homens para odiá-las, e seus vícios para contaminar-se; se o não atordoa o zumbido da mentira e das intrigas; se não ferem-no constantemente as calúnias, as injúrias e deslealdades; se o não escravizam e torturam os caprichos extravagantes da sociedade; se, finalmente, não respira aqueles miasmas que nas cidades nos atrofiam e matam? Pouco precisa trabalhar, porque de pouco precisa para viver... No seio da natureza vive, e a natureza só lhe fala em Deus, nesse Deus em cuja misericórdia ele crê e confia — que é o seu médico nas doenças, seu consolador nas tristezas d’alma, seu santelmo nas tormentas... o desvelado Pai que dia e noite lhe vigia os passos.

— E ai do que despreza aquele bondadoso Pai! — interrompeu-me André apontando o céu. — É verdade, senhor; a religião é a fonte das consolações; e por isso, só em seu seio pode o homem encontrar a felicidade que é possível neste mundo...

— Que a felicidade perfeita — acrescentou Anselmo — somente existe na mansão divina... é a recompensa dos justos...

E continuamos... e continuamos assim, até que chegou a ocasião de nos darmos as boas noites, e de procurarmos no brando ninho do repouso, as forças indispensáveis às novas lidas.

No outro dia pela manhã, despedi-me da pobre e venturosa família, abraçando-a apressadamente, para que ela não visse duas lágrimas, que teimosas me assomavam aos olhos em desafogo da mais sincera saudade.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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