O TOMÁS DOS PASSARINHOS
Acabavam
de dar dez horas; e ouvia-se ainda o som dos sinos de São Vicente, o que
mostrava que o vento estava da barra a prometer mais chuva.
Em
todo o santo dia não descontinuara de cair água, e ao cerrar da noite, carregou
tanto que parecia vir tudo abaixo. Em casa dormiam todos, e na malta vigiava
apenas, junto da candeia quase a apagar-se, o tio Joaquim, que estava fumando
embevecido no que quer que era, que parecia preocupá-lo.
Os
malteses dormiam cada um para seu canto, embrulhados em gabões, ou cobertos com
as mantas em cima das esteiras. Debaixo da cinza ainda faiscavam alguns restos
de vides, na chaminé, e a meio da tarimba ainda se via um baralho em desordem,
como a provar que havia pouco descansava duma bisca de quatro. As cartas
poderiam figurar com bastante razão no gabinete dum antiquário, e tinham
direito ao asilo de Runa pelas multiplicadas cicatrizes ganhas no combate.
Mas
como o jogo era de boa fé, e só para matar tempo, pouco importava, que fossem
mais conhecidas ainda pelas costas do que pela frente.
Pela
minha parte tinha ficado também por ali mais um bocado, e preparava-me para
recolher, quando me pareceu ouvir, por entre o ruído da chuva que caía sem
cessar, e do vento que não parava, o som da campainha do portão.
—
Não ouviu tocar à campainha, tio Joaquim?
Este
levantou a cabeça e como despertando, respondeu-me:
—
A estas horas, não pode ser, foi engano seu, já estão todos recolhidos.
N’isto
o cão do pátio começou a ladrar.
—
Tocaram, tocaram, repeti eu, e tanto que lá está o Alfageme a dar sinal. Ora
escute, lá tornam.
E
efetivamente um segundo toque se fez ouvir, mas tão brando, tanto a medo, que
mal se ouvia, apesar de escutarmos ambos com toda a atenção.
—
É toque de desgraçado, de quem receia incomodar; pobre homem, com este tempo!
Eu vou ver, disse-me o tio Joaquim levantando-se e pondo o chapéu. Daí a pouco
senti-o chamar o cão, que se enfurecia a ladrar cada vez com mais força, em
seguida abrir o portão, e logo depois entrar na casa da malta já acompanhado.
O
recém-vindo entrou tímido e denunciando o extremo acanhamento da pobreza
envergonhada.
Caía-lhe
a água a fio do chapéu, que trazia derrubado para a cara, e ensopava-lhe um
capote esfrangalhado, que bem a custo lhe resguardava o corpo. Ficou à porta mesmo,
e como mal se atrevendo a prosseguir.
—
Entre, patrão, bradou-lhe o tio Joaquim, não está tempo para cerimônias, se
isto continua lá se vão todas as sementes com a cheia. Parece um dilúvio.
Largue o capote e o chapéu que traz numa sopa, embrulhe-se aí numa manta, e
chegue-se para o lume, que eu vou deitar-lhe um punhado de vides para o
espertar.
E
seguindo conforme dissera, separou umas poucas de vides dum molho, que estava
perto da chaminé, quebrou-as umas poucas de vezes sobre o joelho, deitou-as no
brasido, e entrou a assoprar até que pegou labareda.
—
Deus lhe pague, tanto incomodo, tio Joaquim, exclamou o desconhecido, seguindo
à risca as indicações do hospedeiro.
Este,
admirado por ouvir o seu nome, atentou no recém-chegado, e como procurando
avivar recordações:
—
Espera, eu já ouvi esta voz, mas não me lembro aonde; olha bem para mim: eu
conheço-te, já vi a tua cara, isso vi.
—
Tão mudado estou que já se não lembra de mim, do Tomás...
—
Do Tomás da tia Anica, se lembro! Mas quem tal havia de dizer, que mudança!
Pareces um velho, homem, e eu que te fazia a arrebentar de dinheiro, que
pensava que estavas podre de rico, lá por esses Brasis!
—
Podre ia estando, ia; mas era de doenças e de fome...
—
Então nem tudo que se diz?...
—
Ora uma coisa é dizer, outra é ver, nem o tio Joaquim faz uma ideia!
—
Faço, faço, basta olhar para a tua cara e para o teu fato. Mas não se trata só
de dar à língua. Que tal de barriga, nem por isso vem muito quente não é
verdade?
O
silêncio de Tomás supriu bem uma eloquente resposta. O tio Joaquim prosseguiu:
—
Para grandes banquetes não haverá, mas para uma assorda ainda chega o pão;
fazem-se umas migas de bacalhau, deita-se-lhe um tomate e uma cebola, e
verás depois se, comida com boa vontade, não vale o melhor petisco do mundo.
—
Vem quebrar-me o jejum.
—
Que dizes, homem?
—
Que salvo os meus pecados, ainda podia comungar, porque até a esta hora não
entrou hoje comer na minha boca.
—
Pobre Tomás!
E
sem perder mais tempo em conversações, o tio Joaquim principiou a temperar as
migas.
Entretanto
tive eu tempo para examinar bem à minha vontade o Tomás da tia Anica.
Teria
uns trinta anos quando muito, o que só com muita dificuldade se percebia pela
viveza do olhar. No resto da fisionomia e no quebrado do corpo liam-se sessenta
puxados. Não se podia dizer qual fora a cor do rosto. Os sóis, os trabalhos e
as febres, tinham-lhe retinto a cara dum castanho esverdeado, que mais simulava
medalha antiga que parecer de gente.
A
barba crescida, as sobrancelhas espessas, e o cabelo basto e grenho eram ou
arruivados pelo sol, ou embranquecidos pelos trabalhos; as rugas abriam-lhe
talhos profundos na pele, e algumas cicatrizes imprimiam-lhe extravagantes
relevos. Até mesmo o branco dos olhos estava amarelecido, e os dentes, quando
descerrava os beiços roxos e gretados, pareciam prezas de javali aguçadas e enegrecidas.
O
fato eram farrapos, sem forma, nem cor possível, restos sobrecosidos, retalhos
justapostos. Não se lhe percebia camisa.
Fazia
horror tão grande miséria.
O
tio Joaquim tinha desenvolvido uma atividade pasmosa. Num abrir e fechar de olhos
tinha migado o bacalhau e a cebola, tinha cortado o tomate, tinha posto tudo a
ferver numa pouca d'água, sem lhe esquecer um fio de azeite para melhor
tempero; depois, quando começava a fervura a levantar, entrou a partir o
pão, e a deitá-lo no tacho com aqueles ares de satisfação, que deve manifestar
um artista, quando tem a certeza de estar a concluir um primor de arte.
Tomás,
esse ingerido com frio e extenuado de fome, não tinha forças para se mexer do
banco para onde caíra.
No
dia seguinte ouvi da boca do tio Joaquim a história do Tomás da tia Anica.
Tomás
nascera por aqueles sítios mais rico de preguiça do que de amor ao trabalho;
parecia feito para morgado, o demônio do rapaz, não queria saber de lavoura,
nem de estudo. Fugia da escola, fugia do trabalho, e ia deitar-se debaixo de
uma árvore a olhar para o céu, ou a acompanhar com a vista as nuvens irradias.
Muitas
vezes dizia ele quando lhe deitavam na cara o não fazer nada:
—
Deus entregou o espaço aos passarinhos, e lançou a semente à terra, para que se
nutrisse, soltou os animais no campo, e mandou à erva que crescesse para que se
alimentassem; deu azas às borboletas, e polvilhou as flores para que
encontrassem sustento sem se afadigarem. A mão que impele o sol, que sacode as
nuvens, que arroja a chuva, que dá vigor à planta, ramagem ao arvoredo,
frescura à terra, e nutrição a todos há de amparar-me também, e dar-me de comer
quando me falte.
E,
a não ser esta preguiça invencível, não havia que se lhe dizer: era comedido no
porte e civilizado nas palavras. Não escandalizava ninguém, nem procurava
descaminho; deixassem-no vaguear e estava contente.
Depois
de muitas tentativas descoroçoaram os pais de o fazerem tomar rumo. Deixaram-no
à lei da natureza, e assim se foi criando, aprendendo pelo que via, e
desenvolvendo-se com o descanso.
Não
era mau rapaz, nem dado a companhias. Bom de coração na verdade, mas
incapaz de servir para nada. Havia muito tempo, que se não via um paz d'alma daqueles.
Enquanto
o pai foi vivo, bem ia o caso. Ele dava ordem à sua vida, e quando lhe
perguntavam pelo filho respondia tristemente: deixem-me, foi erro da natureza,
nasceu para mulher, não tem jeito para cousa nenhuma. Um dia porém, o pai amanheceu
morto na cama, e a mãe achou-se de repente com todo o peso da casa, e com um
filho que não tinha préstimo que se visse.
Tomás
chorou muito nos primeiros dias, e fez mil protestos de trabalhar. Assim foi de
principio, mas depois... parece que se partiram os braços e tornava à mesma.
Pasmava ao meio do trabalho, varria-se-lhe de memória o que estava fazendo, e
deitava a correr para debaixo de uma árvore, namorar as nuvens e ouvir os pássaros.
—
O que te prende tanto, para não fazeres nada e passares todo um dia assim a
olhar para o céu, lhe perguntou um dia um velho fazendeiro dos melhores amigos,
que o pai tinha?
—
O tio Simões vai rir-se...
—
Dize sempre, anda.
—
Olhe, tio Simões, quando ouço os passarinhos, parece-me escutar estas palavras
que o Sr. padre prior disse um dia num sermão de festa:
"Portanto
vos digo, não andeis cuidadosos da vossa vida, que comereis, nem do vosso
corpo, que vestireis. Não é mais a alma, que a comida: e o corpo mais que o
vestido?
"Olhai
para as aves do céu, que não semeiam, nem segam, nem fazem provimento nos celeiros;
e contudo vosso Pai celestial as sustenta. Por ventura não sois vós muito mais
do que elas?"
—
Mas isso não quer dizer, que se não deve trabalhar, homem, pelo menos eu assim
o entendo, quer dizer que por amor do dinheiro se não devem praticar ações
ruins, e que a confiança em Deus nos não deve desamparar nunca.
—
Ora, tio Simões, o Sr. padre prior ainda disse mais:
"E
porque andais vós solícitos pelo vestido? Considerai como crescem os lirios no
campo; eles não trabalham, nem fiam.
"Pois
se ao feno do campo que hoje é, e amanhã é lançado ao forno, Deus veste assim;
quanto mais a vós homens de pouca fé!
"Não
vos aflijais pois, dizendo: que comeremos ou que beberemos, ou com que nos
cobriremos?
"Porque
os Gentios é que se cansam por estas coisas. Por quanto vosso Pai sabe, que
tendes necessidade de todas elas.
"Buscai
pois primeiramente o Reino de Deus e a sua justiça: e todas estas coisas se vos
acrescentarão.
"E
assim não andeis inquietos pelo dia de amanhã. Porque o dia de amanhã a si
mesmo trará seu cuidado, ao dia basta a sua própria aflição."
—
Como aprendeste tanta coisa?
—
Olhe, tio Simões, na véspera tinha assistido ao pagamento da feria, o que meu pai,
que Deus haja, fazia todos os sábados à noite, e ao ver seguirem-se uns após
outros os trabalhadores da fazenda, disse com Deus e comigo: — porque não hei
de eu trabalhar? Porque não hei de ganhar também a minha feria? Eu também sou
homem.
—
E disseste bem, Tomás, era uma boa palavra essa. Mas depois?...
—
Depois, fui deitar-me resolvido a pedir também que fazer na segunda feira
seguinte a meu pai; mas no domingo era dia de festa; fui à Igreja ouvir a
missa, e fiquei para o sermão.
—
E...
—
Começou o Sr. prior a dizer o que eu lhe repeti, há pouco...
—
E como tu não ias de vontade para o trabalho, quadrou-te o sermão, não é
assim?...
—
Não diga tal, tio Simões, sabe Deus se eu tinha ou não feito propósito de mudar
de vida: tanto que, ao principio, fiquei sobressaltado, e como não querendo
acreditar... Mas vi a cara do bom padre, dizia tanto, tinha uma tal expressão
de bondade, um tal não sei quê na fisionomia... Era impossível, tio Simões, que
não fosse alumiado pelo céu.
—
Mas como aprendeste tudo isso?
—
No dia seguinte fui ter com o Sr. padre prior para que me ensinasse aquelas
palavras, disse-me que estavam num livro, e daí eu... pedi-lhe que me
explicasse como as havia de ler...
—
E ele?
—
Ele ensinou me, e eu aprendi.
—
Então tens lido muito?...
—
Nada, não senhor, apenas soube de cor aquelas palavras, esqueci me logo de ler.
—
Ora essa!
—
As aves do céu e os lírios dos campos não sabem ler, e o nosso Pai celestial as
sustenta e as veste. Eu também não preciso saber ler.
—
Mas teu pai morreu, tua mãe não pode com o encargo da casa, e assim sem homem,
que tome tento no arranjo, vai tudo por água abaixo.
—
Que hei de eu fazer?
—
Homem, és capaz de fazer perder a paciência a um santo! Que tomes a direção do
governo, que ocupes o lugar de teu pai.
—
O tio Simões pode dizer o que quiser, eu estou à conta do Senhor.
E
não havia tirá-lo deste dizer, por mais que fizessem, por mais que lhe pregassem.
Era pregar aos peixinhos.
A
pobre da mãe ia dando ordem à vida, conforme podia, mas casa governada por
mulher, raro toma caminho: o negócio cada vez ia de mal a pior.
Tomás,
esse, parecia não dar por semelhante cousa, chegava a casa, falava à mãe; comia
do que lhe apresentavam, porque tudo lhe sabia bem, e quando a tia Anica
começava em pé de conversa a querer-lhe dar conta do que se passava:
—
Faça o que quiser, minha mãe, eu não tenho nada com isso.
E
deitava a correr, se insistiam com ele, para debaixo da sua querida árvore.
Um
dia, quando mais embebido estava em seu cismar, ouviu perto dele voz de mulher,
que pedia socorro. Ergueu-se e acudiu. Era uma rapariga de uns dezoito anos,
quando muito, que vinha correndo de uma vaca que a perseguia.
Já
quase não podia dar passo, e a vaca ia alcançá-la, quando Tomás erguendo-se de
um pulo, e tomando um cajadito, que trazia consigo, atirou de lado uma paulada
ao focinho do animal, que cego com a dor, mudou de carreira e seguiu aos pulos
e aos mugidos pelos campos fora.
Águeda,
assim se chamava a perseguida, parou, tomou a respiração, que lhe ia faltando,
e, volvendo um olhar reconhecido ao seu salvador, disse lhe:
—
Obrigado, Tomás!
—
Agradece ao Senhor, Águeda, e não a mim; a gente anda cá neste mundo à conta de
Deus.
Águeda
era feia e grosseira de feições como grande parte das raparigas do campo. Muito
trigueira e mais queimada ainda, crivada de bexigas, os beiços grossos, o nariz
achatado e largo, as orelhas grandes e mais repuxadas ainda por umas enormes
arrecadas de ouro, o cabelo crestado e carapinho. Tinha os olhos pretos
rasgados e ramudos como quase todas as saloias e era nova.
Como
de uso, trazia cores, que mais destoavam com o semblante. Umas roupinhas
encarnadas, e uma saia de chita cor de rosa sobre outra de baeta verde salsa.
Explicado estava pois o furor da vaca.
Entretanto
era por extremo vaidosa, e tão presumida como o são todas as moças feias; mal
tornou a si do susto começou correndo-lhe a mão, a alisar o cabelo, e quando
lhe pareceu ter-se bem composto, prosseguiu na encetada conversação.
—
Quem havia de dizer que a vaca da Angélica!... Parecia tão sossegada!...
—
Não admira, tornou-lhe Tomás, que já se deitara debaixo da sua árvore e parecia
distraído a olhar para o céu.
—
Não admira, porquê?
—
Ora, tu apareceste-lhe assim, tão assanhada!
—
Tão assanhada!
—
Sim, pareces-me uma papoula vermelha, já com as sementes pretas, no meio dum
campo de verde.
—
Sempre tens lembranças!
Tomás
não lhe respondeu. Estava entregue às suas contemplações.
—
Tomás! Tomás! Que tens tu, estás sempre a cismar?
—
E tu que tens com isso? Importa-te a minha vida?
—
Lá isso é verdade, não me importa, mas faz-me pena, ver-te assim, aí a monte,
sempre sozinho.
—
Faz te pena deveras?
—
Faz.
—
Ora dize-me, tu tens bom coração?
—
Nunca fiz mal a ninguém: nem o desejo.
—
Pois bem, um dia te direi em que cismo.
E
por mais que a sua companheira lhe puxasse pela língua, não deu mais palavra.
Parecia de pedra.
Por
fim Águeda perdeu as esperanças de fazer com que falasse, e ao despedir-se dele
disse-lhe:
—
Adeus, Tomás, até outra ocasião em que estejas de melhores humores. Olha que me
não esqueço do favor, que te devo. Adeus!
Ou
fosse curiosidade ou interesse, ou mesmo amor próprio ofendido, no dia
seguinte, pelas mesmas horas, fazia a rapariga caminho pelo sítio onde na véspera
se encontrara com Tomás.
Este
estava no mesmo lugar, e na mesma posição da véspera, parecia que não arredara
pé. Águeda aproximou-se-lhe, quase sem ele dar pela sua presença.
—
Adeus Tomás!
—
Adeus Águeda!
—
Ainda continuas a estar triste?
—
Quem te disse que eu estava triste?
—
Não falas, não cantas, não te meches daí!
—
Também as flores do campo não falam, não cantam e não se mechem. Entretanto ninguém
diz que elas são tristes.
—
Em que pensas tantas horas a fio, Tomás?
—
Olha, Águeda, tens bom coração?
—
Já ontem me fizeste essa mesma pergunta, e o que ontem te respondi, te respondo
hoje:
—
Não fiz nunca mal a ninguém, nem o desejo.
—
Pois um dia te direi em que eu penso.
—
E porque não há de ser hoje?
—
Ainda não tenho confiança em ti.
Repetiram-se
os encontros. Todos os dias, pelas mesmas horas, Águeda se encaminhava para
aqueles sítios, e quando a sombra lhe dizia que ela estava para chegar, Tomás
esperava a com a vista, fitando os olhos no atalho por onde havia de aparecer.
Pouco
a pouco a indiferença apática de Tomás foi desaparecendo. Falava mais, e
contava histórias de avezinhas e de flores a Águeda maravilhada.
E
havia uma tal ingenuidade, o que quer que era de boa e pura simpleza nas
suas histórias, nas suas exclamações, na explicação que lhe dava dos enlaces
dos animais e dos amores das plantas, que a pobre rapariga parecia levada a
mundos novos, e quase estranhava tudo que não era o falar e a companhia de Tomás.
Um
dia, eram passados três meses, depois do primeiro colóquio, voltou-se ele
repentinamente para a sua companheira depois dalguns momentos de abstração, e
disse-lhe:
—
És feia Águeda, muito feia.
—
Se o sentes, para que mo havias de dizer? tornou lhe tristemente a rapariga.
—
Porque digo sempre o que sinto. Mas o teu coração é formoso e a tua alma é boa.
—
Obrigado, Tomás.
—
Não me agradeças, porque falo verdade. O teu coração é bom, e a beleza do corpo
acaba, enquanto a formosura da alma se conserva. Eu gosto de ti, Águeda.
—
Também eu gosto de ti, e por isso sempre me pareceste formoso.
Era
uma espécie de recriminação, que Tomás não percebeu.
—
Eu queria casar contigo.
—
Tu!
—
Eu, sim, porque te admiras?
—
Não cuidei que pensasses em casamento.
—
Não casam as árvores, as flores, os animais da terra, as avezinhas dos ares, os
peixes do mar; não casam as águas dos rios com as torrentes dos mares?
—
Mas...
—
Porque não hei de eu casar também?
—
Tu bem sabes, Tomás, que eu nada tenho; tu também és pobre, como haveríamos de
viver?
—
Não me tens perguntado tanta vez em que penso durante as horas em que estou sozinho?
—
Tenho.
—
Pois, amanhã to direi; de hoje até amanhã pensa tu também, e dir-me-ás depois,
se queres ou não casar comigo.
—
E porque não dizes agora?
—
Agora... preciso estar só.
E
calou-se. Águeda já sabia que era tempo perdido teimar. Retirou-se, olhando
muitas vezes para o seu extraordinário apaixonado.
Este
não deu por semelhantes finezas. Com os olhos fitos num ponto afastado, parecia
embevecido em doces contemplações.
No
dia seguinte pelas mesmas horas dobrava Águeda o atalho, quando Tomás, que de
longe a avistou, se ergueu para a ir esperar.
Estranho
era aquele procedimento, e tanto mais estranho, quanto a pobre da rapariga, à força
de se querer aprimorar, mais feia parecia ainda. Tomás, porém, nem percebeu a
mudança.
Ao
aproximar-se da árvore, pediu lhe que se sentasse ao seu lado, e com tais modos
e tal delicadeza, que ela quase o desconheceu.
—
Que tens, Tomás, pareces me outro?
—
Tenho que te falar muito serio. Pensaste?
—
Pensei.
—
Queres?
—
Quero, Tomás, conheci que te amava. E tu?
—
Eu, não sei. Olha, Águeda, parece-me que nasci para casar contigo. Tenho te
visto há muitos dias, e sempre me tens parecido boa rapariga.
—
Tu é que és um santo, meu Tomás...
—
Não digas isso, e ouve-me. Vou contar-te o meu segredo.
—
Pois tu tens segredo?
—
Não to disse ontem?
—
Disseste, mas pensei que estavas gracejando.
—
Não sei gracejar.
—
E dele depende a nossa fortuna?
—
Depende.
—
Então conta, Tomás, conta depressa.
E
a rapariga quisera ser toda ouvidos para satisfazer assim a curiosidade que a
devorava.
—
Olha, Águeda, olha além para o céu.
—
Olho.
—
Não vês nada?
—
Vejo uma nuvenzinha transparente e branca, que parece voejar como um veuzinho
de cambraia.
—
E nada mais?
—
Mais nada!
—
Pois eu vejo mais do que tu.
—
Como assim?
—
Há uns poucos danos, que passo manhãs e tardes, deitado debaixo desta mesma árvore,
com os olhos pregados naquele mesmo sítio do céu.
—
E vês?
—
Espera. Não ouves o chilrear dos passarinhos, que andam saltitando de ramo em
ramo?
—
Ouço.
—
E não percebes o que eles dizem?
—
Ora essa!
—
Pois desde que aqui descanso, as aves falam comigo, e eu entendo o que elas
dizem.
—
Tomás!
—
Bem sei que desconfias de mim, Águeda, que talvez me julgais doido, pateta,
como muitos dizem. Não me admira, estou condenado, e rio-me disso.
—
Não chamo, não, meu Tomás; continua.
—
Tens espalhado os olhos por esses tapetes de verde, por essas vagas de pão, que
ondulam e marejam à feição do vento como as águas dos rios?
—
Se tenho!
—
Mas não escutaste ainda os colóquios que segredam as plantas umas às outras, as
espigas às suas vizinhas, quando o vento as encurva, e parece aproximá-las tão
de perto, como se fossem a beijar-se?
—
Valha me Deus, Tomás, que coisas me estás perguntando!
—
Tenho dó de ti, Águeda!
—
Porquê?
—
Porque nem lês no céu, nem aprendes com as aves, nem escutas as plantas. Como
hás de ser infeliz. Tudo pois, que mais significação tem, nada quer dizer para
ti. Mas descansa, minha Águeda, quando casares comigo, hás de saber o que eu
sei.
—
E tu sabes?
Tomás
fez-lhe sinal para que se calasse por um momento, e pareceu cair em extática
contemplação com os olhos fitos no céu.
Seria
passado um quarto de hora, quando pareceu voltar a si, dirigiu-se a Águeda, e
disse-lhe:
—
Ouve-me agora. Quando meus pais quiseram que eu estudasse, quando tentaram que
eu aprendesse ou trabalhasse, senti em mim uma voz que me dizia: não trabalhes,
não é preciso, hás de ser rico, muito rico, espera, confia e descansa.
—
E tu?
—
Sempre que me aproximava do trabalho sempre esta voz me falava; se eu insistia
tornava se mais áspera, repreendia-me, acusava-me de não ter fé. Por fim... não
estava mais na minha mão, fugi ao trabalho, não pude resistir às palavras, que
ouvia a todo o momento.
—
Pobre Tomás!
—
Quando comecei a abandonar a casa, para vir deitar-me para debaixo desta árvore,
parecia-me que as flores e as plantas se debruçavam para mim e diziam umas às outras:
é mais um irmão que chega, bem-vindo seja entre nós.
E
eu sorria-me para as ervinhas e para as árvores e a umas e outras dizia: Eis
me, queridas irmãs, que saudades eu tinha vossas, como me batia o coração com
pena! Eis-me, oh irmãs, e não vos deixarei mais.
Depois
de pensar muito, quis numa ocasião da minha vida mudar o modo de viver. Um caso
fez, porém, com que eu continuasse a seguir os conselhos da voz, que cá bem
dentro me dizia: Descansa e tem fé.
—
Um caso?
—
Sim.
E
Tomás contou-lhe como entrara na igreja e o que aí ouvira ao prior, bem como a
maneira, porque instando com ele para que lhe ensinasse aquelas palavras, chegara
a aprender a ler.
—
E sabes ler, Tomás?
—
Soube, esqueceu-me.
—
Pois nem conheces as letras?
—
Não.
—
E se eu quisesse aprender?
—
Talvez me recordasse.
—
Hás de recordar-te, sou eu que to peço, mas continua.
—
Embrenhado nestes pensamentos, um dia que alargava a vista pelos campos, e que
pretendia mergulhar os olhares no céu, lá bem longe, naquele afastado ponto, em
que tu divisaste há pouco uma nuvenzinha, vi avultar uma figura branca, tão
transparente, tão formosa porém, ai tão formosa! que arrebatava olhar para ela...
Mas porque estás tão triste, borbulham-te as lágrimas nos olhos!
—
Lembro-me do que me disseste, Tomás, que me achaste feia, e tenho pena de o
ser.
—
Não penses em tal. Formosuras daquelas não as há na terra, nem sei mesmo, minha
Águeda, se as haverá no céu. Entretanto eu via todas as tardes aquele vulto iluminado
no meio de resplendores de fogo, e dos raios cintilantes do sol poente. Depois
ao cair da noite ia-se sumindo pouco a pouco na escuridão até que uma só estrela
a substituía no céu.
Se
visses que melancólica luz espalhava aquela estrela! Acreditei que o meu anjo
da guarda me aparecia, e que a estrela, que de noite cintilava, mais resplandecente
do que todas as outras, fora cravada nos céus pela mão do Senhor para me animar
quando desanimasse, para me esclarecer quando as trevas envolvessem a terra.
—
Mas dizias, que te falara!
—
Pouco a pouco comecei a compreender, que me fazia gestos, como indicando me um
ponto muito afastado dos céus. Parecia que lá muito longe estava a felicidade,
que eu almejava. Um dia ajoelhei e pedi-lhe, que me falasse, que me dissesse o
que significava aquele gesto constante a mostrar-me a imensidão.
—
E respondeu-te?
—
Não é mais harmonioso o som do órgão, quando, depois de tocado, parece gemer
saudoso na igreja, não é mais suave o canto da viração da tarde rumorejando
pelo arvoredo, nem o lamentar ao longe do rouxinol em madrugadas de maio.
—
E disse-te...
—
"Pobre de ti, que procuras a felicidade na terra. Está bem longe e tão
longe que nem teus olhos a alcançam nem tua mente a imagina. Queres ser rico,
queres ser feliz! Louco! Não há de ser aí que encontrarás nem riqueza nem
felicidade. Chegará um dia em que me sigas, e então verás patentes tesouros,
que nem supões, felicidades que nem as sonhas."
—
Era a tua cabeça que desvairava meu Tomás!
—
Não era, Águeda, não era. Levantei-me para seguir direito o caminho que me
apontava; mas ao calcar as primeiras ervinhas senti entre seus gemidos, que me
chamavam: ambicioso! louco!
—
As ervas?
—
Sim as ervas, voltavam-se para mim e apontando-me para os campos onde viviam
censuravam-me por as deixar: para que partes? Não tens o pão que te alimenta, o
sol, que te dá calor, o ar, que te nutre a respiração, não vês como vivemos
contentes no mesmo lugar, amando-nos umas às outras, bebendo a água dos
ares, e aquecendo-nos o sol?
—
E pensaste então em amar?
—
Pensei! Depois quando volvia para debaixo da minha árvore as avezinhas
brincando umas com as outras, diziam: "Não é preciso ir longe para se ser
feliz. Este pobre rapaz quer deixar-nos, e nós podíamos-lhe ensinar como se
encontra a felicidade. Uma árvore nos abriga, um ninho serve de berço aos
nossos amores, uma folha nos resguarda do sol, a semente que cai no chão nos
sustenta, a água, que as covazinhas conservam, nos mata a sede. Sabemos amar e
viver, amamos e somos felizes.
—
Seguiste o conselho das aves?
—
Segui. No dia imediato a visão sorria menos melancólica, e ao perguntar-lhe se
devia partir, respondeu-me: Não ouviste as ervinhas do campo e as avezinhas do
bosque. Sê humilde como elas são, contenta-te com o que as satisfaz e serás
então como elas feliz.
—
Mas como havemos de viver assim, meu Tomás, não podemos habitar num ninho, nem
numa leira dos campos.
—
Ouve-me até ao fim. Quis amar para ser feliz, mas todas me voltavam a cara, ou
me apontavam dizendo: olha o Tomás idiota, o Tomás dos passarinhos.
Só
a minha visão me sorria boa nos céus, enquanto todos na terra se riam de mim
como uns maus. Perdi as esperanças de encontrar quem me tivesse amor, e
procurei amar aquela que me queria. E sempre a via, sempre lhe falava no meu
querer, e ela sempre se curvava para mim e tristemente me dizia: estamos longe,
muito longe!
E
entretanto as aves e as plantas contavam-me os seus amores, e animavam-me também.
Vi-te,
Águeda, e ao passo, que mais a miúdo me apareceste mais fui querendo à tua
presença. Por fim não podia já passar sem ti e nas horas em que devias
chegar, mais me palpitava o coração.
—
Querer-me-ias, por ventura?
—
Não sei. Se o amor é um sentimento, que nos prende a ideia ao ente amado, se o
amor é o sacrifício da nossa vida à que se ama, se amor é ser todo duma só
mulher, e só dela, eu não te amo, porque bequero àquela imagem, e a sua
lembrança corta-me os pensamentos, que te consagro. Olha, não sei como te
explique o que sinto. Quando quero compreender-me julgo-me também idiota, como
me chamam todos. Não há mulher para mim que te valha, mais rica ou mais formosa
que fosse; mas também nada ha, que seja em mim superior à ideia daquela imagem.
Quando vou levado pelo pensamento para ti, surpreendo-me a meio caminho,
arrependo me de me esquecer dela, e fico em doce contemplação a adorá-la.
Quando ela se some, apareces-me tu. Sabes?... Creio que amo a ambas, a ela com
o amor do céu, a ti com o amor da terra.
Águeda
suspirou e limpou uma lágrima, que lhe escorregava pelas faces.
—
Porque suspiras?
—
Tenho ciúmes da tua visão; e depois, bem vês, não poderemos casar nunca.
—
Sabes que lá bem longe há terras, em que as riquezas não faltam?
—
Sei.
—
Sabes que é para bem longe que o meu bom anjo me chama?
—
Assim mo disseste.
—
Pois se tu quiseres casar comigo, irei após a minha querida visão, seguirei o
seu gesto, e tenho por fé que ao voltar serei rico, que o esperei sempre; serei
feliz, que mo assegurou ela.
—
Enlouqueceste, Tomás?
—
Nunca estive mais em meu juízo.
—
Pois queres sozinho, sem meios, sem conhecimentos ir por esse mundo
de Cristo, atravessar os mares, fazer uma viagem tão grande! Dizem que daqui ao
Brasil é um por aí além de léguas!
—
Sei, que importa isso! Tenho pensado muito, comigo, aqui, e com aquela boa
imagem além. Não tenho palavras para dizer o que vai cá por dentro aí a
qualquer. Pode ser que eu seja idiota, mas parece-me que mais são os que me
chamam por não lhes falar, nem lhes dar satisfações da minha vida.
Humildes
são as plantas, mais atrevidas as aves, mais atrevidas ainda as nuvens dos ares
e as estrelas dos céus. Quanto maior é o seu atrevimento, mais longe se levam.
O
homem que vive cá neste mundo extremo de todos, sem querer deixar rasto de si,
nem cousa alguma que o lembre, passada a sua hora, é como a planta, lançada à terra
pela mão de Deus. Nasce, medra e morre; deitam-lhe a foice e fica por terra.
Assim
era eu. Não tinha para quem o fosse, não queria ser rico. Espera, dizia-me a
voz; está muito longe a felicidade, repetia-me a visão, e eu ia esperando sem
tentar os longes.
Mas
quando ama, não chegam para o homem alguns torrões apenas, como para o pé de
trigo: vai longe buscar com que fazer seu ninho, percorre os ares como as aves:
e, enquanto a esposa o espera cuidando dos filhinhos, trabalha ele para
sustentar os outros.
Assim
poderia eu ser; mas não bastava.
Para
ti, Águeda, que vais repartir comigo a tua vida, que te vais enlaçar comigo,
como a videira se enlaça no carvalho, que vais ser minha mulher, sabes o que
isto quer dizer, minha mulher?... não basta o bago de trigo, que sustenta o
pardal, nem o bichinho que nutre a cotovia. Quero ir longe, mas tão longe como
vão as nuvens e não como as aves; quero correr mundo, como correm as estrelas
que hoje espalham aqui a sua claridade, depois alumiam outras terras:
e mais tarde, ao voltar com dinheiro para ambos, com o descanso para
os que hão de ser nossos, dizer-te:
—
Vês? É assim que um homem sabe amar.
E
Tomás transfigurara-se ao dizer estas palavras; a sua beleza varonil assumira o
que quer que era extraordinário, parecia inspirado. Chispavam-lhe centelhas dos
olhos, aspirava com as ventas dilatadas os aromas da tarde, soltava os cabelos
bastos à feição do vento. Erguera-se enquanto falava, a sua figura parecia mais
crescida. Cercava-o uma aureola de majestade, destacava-se do fundo escuro do
tronco a que estivera encostado, recortava-se sobre o azul carregado do céu,
como um daqueles sacerdotes das florestas gaulesas, quando colhido o agárico
sagrado erguiam os olhos, pediam a inspiração aos numes e rasgavam o ar com o
gesto alargando os braços sobre as multidões curvadas.
Águeda
desconhecia-o e pasmava.
—
Como és formoso assim, meu Tomás, e como eu te avaliava tão mal, exclamou a
pobre rapariga cedendo ao impulso da admiração.
Tomás
caiu em si, e tornou-lhe tristemente:
—
Todos me têm julgado como eu não merecia. A solidão tem-me feito amadurecer
muito, e se não falo, penso. Dizem que o mocho é prudente e assisado, e
entretanto nem trina como o rouxinol, nem canta como a toutinegra, nem se veste
de cores brilhantes como o pintassilgo. Enquanto todos dormem vigia ele, enquanto
folgam e brincam à luz do sol mergulha-se no escuro e recata-se no seu souto.
As horas de solidão valem meses de viver em companhia, e os dias de abandono
ensinam mais do que os anos de carinhos e meiguices. Eu, Águeda, tenho vivido
sempre desamparado, só e triste. Tenho pensado muito, assim eu tivesse
palavras, como tenho ideias; mas vou a falar, não sei, e fico-me...
—
Apesar disso dizes coisas que não compreendo.
—
Que queres, os frutos quando veem ao chão, ou pedram-se e fazem-se ruins; ou
amadurecem mais depressa. Não tinha queda para ruim, deitaram-me por terra,
amadureci. Já foste à cova das raposas?
—
Deus me livre! Aparecem por lá as almas dos defuntos. O João da Josefa do tio
Domingos, foi lá ter atrás de uma ovelha e viu uma avantesma surdir-lhe de um daqueles
buracos. Pois tu já lá foste, Tomás!?...
—
Fui! Tudo quanto é fora do comum tem agrados para mim. Procurei saber o que
era. Entrei, e vi uma cousa que não esperava.
Do
teto da cova desciam pinhas de pedras preciosas até ao chão e formavam colunas,
como as do altar-mor da igreja; mas quanto bem mais formosas! Pareciam feitas
de bocadinhos de espelho. A luz que entrava pela boca da cova e a que eu levava
do archote, saltavam de coluna para coluna, brincavam naquelas laminazinhas,
faziam ziguezagues, voltas, revira-voltas, como se fossem um cardume de luzilumes.
E eram luzes de todas as cores, azuis, vermelhas, verdes, cor de rosa; como naquele
fogo de vista que deitaram os homens de Lisboa. Estonteava a vista olhar,
andava a cabeça à roda.
—
Bem dizia eu, Tomás, era obra de feitiço, para que foste lá? — E apareceu-te
algum fantasma?
—
Não. Perguntei uma tarde ao Sr. padre prior o que eram aquelas colunas, e como
estavam ali em pilha tantas pedras preciosas, sem que tomassem conta delas?
—
E ele o que te disse?
—
Que o que eu julgava serem pedras preciosas era a água da chuva e nada mais.
—
Ora!
—
Era sim. Gota a gota ia filtrando pela rocha e pendurando-se da pedra, como o
pingo da fonte no casal das Cortiças, que se balouça antes de cair custando-lhe tanto
a despegar-se. Mal uma não caía ainda, vinha outra abraçar-se com ela, e prendê-la
mais. As que iam ao chão secavam devagarinho e deixavam a fazer altura as
terras que traziam consigo. Debaixo foram subindo, de cima foram descendo; e
quando se uniram, estava a coluna pronta. Vieram novas gotas, foram baixando
pela coluna: e parando aqui, detendo-se além, arrendaram-lhe o feitio, e
recortaram-lhe as formas...
—
Pois isso pode ser!
—
Pode! E este milagre é obra da solidão, do sossego, e da meditação bem
escondida do mundo.
A
água da chuva que cai nas ruas faz-se lama, a que cai nos campos seca-a o
vento, ou encaminham-na os homens para as regueiras e levadas, a que cai com
força faz cheia e arrasta tudo, a que cai de manso perde-se; mas a que livre do
vento, e dos homens, goteja escondida, e escorre devagar entregue só a si,
forma colunas maravilhosas, e faz-se em pedras de valor. Aqui tens como eu
tenho aprendido também. Fujo de tudo e de todos, escondo me, penso, medito, e
aprendo.
Ficaram
ambos silenciosos por algum tempo. Águeda não compreendia mas adivinhava; Tomás,
esse que havia muito tempo não falara tanto, parecia seguir calado o fio do
discurso conversando consigo. Foi a rapariga, que renovou o dialogo.
—
Pois sempre queres partir?
—
Quero. É tenção feita e não mudo. Espera-me três meses, como eu tenho esperado
anos. Ceifaram os campos há pouco; por aí não há senão restevas. Calaram-se os
passarinhos, acabaram-se-lhes os amores, e somem-se para outros lugares. Vou
partir, Águeda, de dia seguirei o meu anjo, de noite a minha estrela; e, quando
a relva vestir esses prados, quando as aves cantarem de novo, ver-me-ás
regressar dessas terras, e nesta árvore onde temos passado tantas horas de
felicidade, contar-te quanto passei por amor de ti.
Debalde
procurou a rapariga despersuadi-lo. O caráter de Tomás, como o de todos os espíritos
concentrados, era teimoso. Pensava muito em qualquer resolução, que devesse
tomar; uma vez porém que a adotasse, havia de segui-la por força. Poucos dias
depois abandonava a aldeia. Águeda, soluçando, acompanhava-o até duas léguas fora
do lugar.
Longo
e triste fora relatar a peregrinação do pobre rapaz. Pedia esmola para comer,
quando tinha fome; deitava-se pelo caminho, quando se sentia cansado, ou
abrigava-se em qualquer pousada, onde o deixavam dormir. Ia porém seguindo na
mesma direção e para onde lhe parecia acenar a figura, que se lhe representava
em suas alucinações.
Houve
quem, ouvindo-lhe dizer que queria ir longe tentar fortuna, o aliciasse para o Brasil.
Tomás perguntou para que lado ficava o Brasil, deram-lhe uma direção. Errada ou
verdadeira esta direção era a mesma que trouxera sempre. Aceitou.
Os
que já conhecem Tomás podem avaliar bem que desgraçado colono havia de ser e
por quantos tormentos passaria. Entretanto nem doenças, nem fomes nem maus
tratos, nem trabalhos superiores às suas forças o desanimavam. Uma coisa só o
trazia apaixonado. Não via naqueles céus a sua estrela. Nos horizontes afogueados
não descortinava a sua visão.
Passaram
anos e Tomás, apesar de tanto padecer, conservava ainda recatada na alma a
santidade das suas aspirações. Há temperas desta ordem, que como as perolas se
conservam límpidas, e puras, no meio das correntes e das tempestades.
Houve
quem se condoesse da sua sorte e lhe proporcionasse passagem para Portugal. Aceitou-a
reconhecido; perdera todas as esperanças de ganhar fortuna, voltava quebrado, doente,
incapaz de trabalhar, mas vinha de novo para terras, onde lhe aparecia o
bom anjo, e a boa estrela, onde conhecia o cantar dos pássaros e o falar das
plantas, e onde tornaria a ver a sua Águeda.
—
E a rapariga, perguntei ao tio Joaquim, quando rematou a sua narração, ainda
está à espera dele?
—
Olha quem! Daí a dois meses fugia da terra em companhia de um soldado do
destacamento, o Tomás vem achar-lhe o lugar.
—
E já sabia disso, ontem à noite, quando lhe contou a sua vida?
—
Ainda não, vinha a caminho, quando a chuva o não deixou prosseguir e nos pediu
agasalho. Hoje é que deve saber a verdade toda.
—
O tio Joaquim não lhe disse nada?
—
Não tive ânimo para lhe dar a notícia. Pobre homem, fugiu-lhe a noiva,
morreu-lhe a mãe, está só!
Fora
depois do jantar que o tio Joaquim me contara esta história, a tarde estava
muito amena, e o descair do dia ganhava os doces encantos da tristeza.
O
que ouvira harmonizava-se com o que estava vendo: e a melancolia começou a
tomar conta de mim. Propus ao tio Joaquim um passeio até ao lugar para
espairecer. Saímos.
À
porta do boticário estava junta quase toda a povoação; grande novidade ia pela
botica. As velhas entravam, saiam, segredavam umas com as outras, levantavam os
braços ao ar e voltavam para saber e contar novas coisas.
Conseguimos
entrar e ver o que tanto atraía as atenções. O pobre Tomás jazia banhado em
sangue. Fora encontrado caído no fundo de uma trincheira, que andavam abrindo
para o caminho de ferro, e quebrara a cabeça e os braços de encontro às pedras
que estavam em baixo. Restava-lhe pouco tempo de vida.
O
tio Joaquim aproximou-se do moribundo, ele reconheceu-o logo e sorriu-lhe
tristemente.
—
O que foi isso, homem? perguntou-lhe o velho narrador.
—
Acertei finalmente com a felicidade, não tarda; em pouco vou ser muito rico.
Pensaram
que já estava tresvariado. O tio Joaquim, disse-lhe que sossegasse.
—
Bem sossegado estou, acabou-se-me para sempre a lida. Águeda, tinha-se cansado
de esperar, nem todos têm paciência como eu tive... Corri à minha árvore, já a
não encontrei... tinham-na derrubado... Os campos estavam cortados pela
estrada, as ervas calcadas pelo pisar dos trabalhadores do caminho, as aves
tinham fugido espavoridas com os tiros das minas na pedreira... Aqui, como lá
bem longe, estava só de todo... De repente, pôde ver, com os olhos arrasados de
lágrimas o meu anjo no mesmo lugar a olhar para mim como dantes, a chamar-me
como dantes, mas mais triste do que nunca... Caminhei direito a ele, fitando-o
sempre... Faltaram me os pés... Caí... Mas sei que me hei de levantar em breve,
e desta vez hei de aproximar-me dele para não mais o deixar... Até que em
fim... compreendi-o... Dizia-me que estava longe... bem longe...
E
estava!... Conchegou-nos a morte: a felicidade... a riqueza... debalde as
procurei na terra;... mas agora... sei que as vou encontrar... no céu.
Passada
meia hora o Tomás da tia Anica, o Tomás dos passarinhos, como por ali lhe
chamavam, era cadáver.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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