4/09/2023

O tio Joaquim (Conto), de Rodrigo Paganino


O TIO JOAQUIM

Há de haver dez anos proximamente, fui passar o inverno a uma quinta, pouco distante de Lisboa; porque, segundo diziam, corria perigo de vida, se não mudasse de ares quanto antes.

O campo é sempre belo. Cada idade do ano imprime-lhe uma feição, diferente embora, mas formosa sempre: e o inverno, apesar da sua fria nudez, tem atrativos, como os que nos fazem amar muitas estátuas antigas, em que a falta de roupas mais realça a majestade.

A uma légua apenas, parecia-me estar muito mais afastado de Lisboa. As noticias só repercutiam ali com eco bem tardio; o apartamento do sítio, mais aumentado ainda pela quadra do ano em que se estava, parecia cortar de todo as relações com a capital: e se a vida latente que girava naquelas plantas entorpecidas pelo frio, não se deixasse transparecer de quando em quando, supor-se-ia, que um largo sarcófago nos encerrava: tão silenciosa, tão muda, tão melancólica era aquela solidão.

Os dias passavam-se facilmente; mas as horas do crepúsculo, essas, é que pareciam imensas, insuportáveis. Quando a noite, começando a escurecer os campos, nos escurecia a alma com eles; quando as trevas desciam sobre a terra, e afastando diante de si alguma vida, que ainda por ali havia, nos entristeciam o coração: quando as oliveiras verde-negras, que ao longe limitavam o horizonte avultavam com as sombras, estreitando-se, e parecendo encerrar-nos num círculo sinistro, como deveria ser o das bruxas de Macbeth: então partia-se-nos a alma de saudades enlevada no viver folgazão e agitado, que nesses momentos costuma oferecer a cidade. Tem-se dito, que nada há mais triste, do que ver cerrar-se o horizonte em mar alto à chegada da noite; mas dizem-no talvez os que não experimentaram ainda o angustiado negrume, que em semelhantes momentos, no campo, nos confrange muitas vezes. Parece que tudo esmorece, e morre em redor: e nessa hora, se no bater do pulso não encontrássemos provas da nossa existência, chegar-nos-íamos a convencer mesmo, de que a vida se nos esvaecia também, como se esvaece em tudo, que nos cerca.

Mas, ainda assim, havia compensação para nós na chegada da noite. Havia, porque de antemão contávamos passar essas horas, não muitas, que no campo precedem o deitar, numa conversa singela, e inocente; mas que dessa singeleza e inocência tirava os encantos que lhe sentíamos.

Á boca da noite recolhiam os trabalhadores, os malteses como ali lhe chamam, do trabalho e entravam para uma dessas cozinhas do campo, tão nossas, tão conhecidas de todos: e que não faltam em quinta alguma de certa ordem. 

Esperava-os um bom lume e uma boa ceia, e sobretudo esperava-os, que era o que eles mais queriam, as histórias do tio Joaquim, e as suas narrações cheias de verdade e de moral.

Quem era o tio Joaquim, o que fora, que papel representava, são perguntas, que naturalmente hão de vir à boca dos nossos leitores, se os tivermos, e a que não poderemos responder como desejamos. Tinha aparecido depois de uma das nossas guerras civis, e tinha pedido trabalho a um dos fazendeiros mais ricos do lugar. De onde viera, se alguém lho perguntava podia contar com a seguinte resposta, que não poucas vezes lhe ouvimos repetir: importem-se com a sua vida e deixem-me, que nada tenho que lhes contar; baste-lhes saber o que sou hoje, e não o que fui; agrada-lhes o meu trabalho; estão contentes comigo, que têm com o resto. Sempre ouvi dizer, que homem que muito se ocupa dos outros, é porque se não pode ocupar de si.

Todos voltavam sabendo talvez menos do que até então sabiam; mas curados da sua curiosidade indiscreta.

E depois, o tio Joaquim era velho, tinha sido honrado sempre, ninguém como ele sabia guiar uma junta de bois, conduzir a rabiça dum arado, ou falar do tempo, olhando para as estrelas; na poda e na empa ninguém se lhe punha ao lado, e quando era necessário fazer um pé de lagar, ou erguer uma meda de pão, já era sabido que sempre o escutavam e lhe seguiam sempre os conselhos. No contar de histórias não falemos. O tio Joaquim era um livro aberto, como por ali diziam: e dava sota e az ao barbeiro do lugar e ao mestre de meninos.

Este, contra as leis constitucionais do país, às quais, aqui para nós, não era muito afeiçoado, acumulava ao seu mister de educador da mocidade, além dos empregos de escrivão de juiz de paz, escanhoador, tendeiro, agiota e outros encargos nem por isso muito compatíveis, uma maledicência sem igual. Pois cuidam que se atrevia a boquejar do tio Joaquim? Nem por sombras. Verdade é também, que lhe não fazia elogios, mas quando se tratava dele mudava logo de conversa, fazendo um trejeito desaprovador.

Diziam as velhas daqueles sítios, que eu não o sei ao certo pois nunca tratei de o averiguar, que o mestre Francisco, tal era o nome do professor, tinha tido noutros tempos seus dares e tomares com o tio Joaquim, dos quais tinha saído de cara a uma banda. Entretanto o silêncio do mestre de meninos não influía pouco para a reputação favorável do nosso bom velho, porque se dizia: — é tão boa pessoa, que o mestre Francisco não diz mal dele.

Pobre tio Joaquim! Assisti-lhe aos últimos momentos e pôde fazer ideia do que era a morte do justo. Sorria ainda, e já era cadáver. A hora do passamento foi para ele tão suave como o desprender da folha seca em manhã de outono. Momentos antes de falecer voltou-se para o meu lado, e disse-me afável e bondoso como sempre: agora acabaram-se os contos. Lembre-se de mim, quando se lembrar deles, é a herança que lhe deixo. Levou a mão ao peito, apertou um saquinho, que trazia pendente de um cordão, e que mostrava conter uma relíquia, voltou os olhos para o céu, pareceu procurar o rumo que a alma ia seguir em breve cortando o espaço, e expirou.

Foram as primeiras lagrimas, que derramei na minha vida; até então não sabia o que era morrer.

Guardei a herança. Bem ou mal administrada ela aí vai em parte, tal como a memória a conserva; mas não como me foi doada.

Havia um cunho tal de ingenuidade naquelas narrações, uma tal poesia e mimo de imagem, uma fluência de dicção e uma propriedade de termos, que embora as procuremos imitar, não o conseguiremos nunca.

E não suponham, entretanto, que fosse buscar a figura ou a comparação a coisas de grande altura; às ciências, ou à história: que ornamentasse o período com flores de retórica, ou que procurasse guindar e alambicar a frase, como tanta gente que por aí vemos. Nada disso. Mais prudente e mais feliz, pois não cometia barbaridades, o tio Joaquim não saía dos limites das inteligências dos seus ouvintes e ia buscar aos campos, às flores, à agricultura, à mesma casa, (quantas vezes!) os similes de que se servia. Tudo era comezinho e humilde, sem ser rasteiro, e muitas vezes alcançava ele o que não conseguem muitos literatos de polpa depois de terem trabalhado deveras-o sublime na simplicidade.

Mas nem só o estilo tornava recomendáveis os seus contos: se assim fora, não ousaríamos nunca encetar semelhante tarefa. A ideia moral, que deles se depreendia facilmente, a simplicidade dos episódios, e as curtas dimensões, que ele lhes dava, faziam com que fossem por mais dum respeito dignos de publicidade. Confiados nisto mesmo também é que começamos esta coleção, de que somos meros reprodutores, cabendo toda a glória se a houver, ao tio Joaquim, e o desdouro todo àqueles, que estragando-a talvez, a vêem agora dar ao público.

Entre nós, nestes últimos tempos sobretudo, a literatura tem desprezado um tanto o gosto popular.

Não acontece, porém, o mesmo em França, em Alemanha e nos demais países, em que, segundo nos consta, se cura destas coisas e se lhes atendem os resultados. Muitos homens de vulto, inteligências eminentemente superiores, tem-se aproximado das turbas, e as obras, que se tem publicado com este intuito, não são as que menos contribuem para a sua glória.

Dois exemplos bastarão: Lamartine e Emile Souvestre: o autor da Genoveva e Canteiro de Saint-Point, e o autor de Coin du feu e do Philosofe sous les toits. Ambos tem vindo por vezes conversar, como amigos e parceiros, com as classes rudes; ambos se têm por vezes esforçado para lhes fazer compreender as suas ideias, e, tem conseguido verem-as admitidas e benquistas na oficina do operário, e na água furtada do infeliz.

Sacrossanta missão da imprensa, como é admirável e veneranda, quando evangeliza as turbas, dando consolação ao desgraçado e conforto ao que desanima! Como nos sentimos enlevar de respeito perante essa instituição maravilhosa, quando vemos os seus frutos sem vicio e sem defeito, alimentarem o que pede o pão do espírito, e darem refrigério ao peregrino ressequido deste grande Saara em que vivemos! É então, e não quando a vemos maculada pelas viltas e polêmicas indecorosas, que devemos bendizer os seus inventores, e pagar o devido tributo ao gênio que semelhante dádiva nos legou.

Mas não é esta a melhor ocasião para semelhantes dissertações; perdoem-nos o divagar intempestivo, e, se no-lo permitem, iremos ligar o nosso interrompido assunto, no ponto em que o deixamos, há pouco.

Os contos do tio Joaquim pertencem ao gênero das obras de Emile Souvestre e deveriam tomar lugar, pela natureza e não pelo mérito, próximo daquela mimosa coleção que ele intitula — Au Coin du feu. Dir-se-ia mesmo, que inspirado por este belo livro, se não cometia um plagiato, ressentia-se muito da leitura do autor francês; porém o tio Joaquim nunca soube ler e por isso nem de longe pôde cair em tão feio pecado.

Não é a primeira vez que a ignorância se apresenta como pretexto para a originalidade de muito escritor público. Não é para admirar, que este nosso que se estreia, comece no mesmo ponto, donde muitos, que já são veteranos, não têm podido passar.

As histórias que lhe ouvimos são em grande número. Não apresentaremos neste livro senão as que mais notáveis nos pareceram e que mais profunda impressão nos deixaram, procurando, quanto nos for possível, aproximar-nos daquela engraçada ingenuidade, que tanto nos encantava, quando lhe ouvimos a palavra fácil e singela.

Não conseguiremos de certo imprimir-lhes aquele cunho de originalidade, que o narrador lhes dava. Oxalá que possamos ao menos, fazer com que os nossos leitores passem algumas horas entretidas nesta leitura: e que, esquecendo-se embora da pessoa que lhas apresenta, não se esqueçam de todo do velho tio Joaquim.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

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