O TIO JOAQUIM
Há
de haver dez anos proximamente, fui passar o inverno a uma quinta, pouco
distante de Lisboa; porque, segundo diziam, corria perigo de vida, se não
mudasse de ares quanto antes.
O
campo é sempre belo. Cada idade do ano imprime-lhe uma feição, diferente
embora, mas formosa sempre: e o inverno, apesar da sua fria nudez, tem atrativos,
como os que nos fazem amar muitas estátuas antigas, em que a falta de roupas
mais realça a majestade.
A
uma légua apenas, parecia-me estar muito mais afastado de Lisboa. As noticias
só repercutiam ali com eco bem tardio; o apartamento do sítio, mais aumentado
ainda pela quadra do ano em que se estava, parecia cortar de todo as relações
com a capital: e se a vida latente que girava naquelas plantas entorpecidas
pelo frio, não se deixasse transparecer de quando em quando, supor-se-ia,
que um largo sarcófago nos encerrava: tão silenciosa, tão muda, tão melancólica
era aquela solidão.
Os
dias passavam-se facilmente; mas as horas do crepúsculo, essas, é que pareciam
imensas, insuportáveis. Quando a noite, começando a escurecer os campos, nos
escurecia a alma com eles; quando as trevas desciam sobre a terra, e afastando
diante de si alguma vida, que ainda por ali havia, nos entristeciam o coração:
quando as oliveiras verde-negras, que ao longe limitavam o horizonte avultavam
com as sombras, estreitando-se, e parecendo encerrar-nos num círculo sinistro,
como deveria ser o das bruxas de Macbeth: então partia-se-nos a alma de saudades
enlevada no viver folgazão e agitado, que nesses momentos costuma oferecer a
cidade. Tem-se dito, que nada há mais triste, do que ver cerrar-se o horizonte
em mar alto à chegada da noite; mas dizem-no talvez os que não experimentaram
ainda o angustiado negrume, que em semelhantes momentos, no campo, nos
confrange muitas vezes. Parece que tudo esmorece, e morre em redor: e nessa
hora, se no bater do pulso não encontrássemos provas da nossa existência,
chegar-nos-íamos a convencer mesmo, de que a vida se nos esvaecia também, como se
esvaece em tudo, que nos cerca.
Mas,
ainda assim, havia compensação para nós na chegada da noite. Havia, porque de antemão
contávamos passar essas horas, não muitas, que no campo precedem o deitar, numa
conversa singela, e inocente; mas que dessa singeleza e inocência tirava os
encantos que lhe sentíamos.
Á boca da noite recolhiam os trabalhadores, os malteses como ali lhe chamam, do trabalho e entravam para uma dessas cozinhas do campo, tão nossas, tão conhecidas de todos: e que não faltam em quinta alguma de certa ordem.
Esperava-os
um bom lume e uma boa ceia, e sobretudo esperava-os, que era o que eles mais
queriam, as histórias do tio Joaquim, e as suas narrações cheias de verdade e
de moral.
Quem
era o tio Joaquim, o que fora, que papel representava, são perguntas, que
naturalmente hão de vir à boca dos nossos leitores, se os tivermos, e a que não
poderemos responder como desejamos. Tinha aparecido depois de uma das nossas
guerras civis, e tinha pedido trabalho a um dos fazendeiros mais ricos do lugar.
De onde viera, se alguém lho perguntava podia contar com a seguinte resposta,
que não poucas vezes lhe ouvimos repetir: importem-se com a sua vida e
deixem-me, que nada tenho que lhes contar; baste-lhes saber o que sou hoje, e
não o que fui; agrada-lhes o meu trabalho; estão contentes comigo, que têm com
o resto. Sempre ouvi dizer, que homem que muito se ocupa dos outros, é porque
se não pode ocupar de si.
Todos
voltavam sabendo talvez menos do que até então sabiam; mas curados da sua
curiosidade indiscreta.
E
depois, o tio Joaquim era velho, tinha sido honrado sempre, ninguém como ele
sabia guiar uma junta de bois, conduzir a rabiça dum arado, ou falar do tempo,
olhando para as estrelas; na poda e na empa ninguém se lhe punha ao lado, e quando
era necessário fazer um pé de lagar, ou erguer uma meda de pão, já era sabido
que sempre o escutavam e lhe seguiam sempre os conselhos. No contar de histórias
não falemos. O tio Joaquim era um livro aberto, como por ali diziam: e dava
sota e az ao barbeiro do lugar e ao mestre de meninos.
Este,
contra as leis constitucionais do país, às quais, aqui para nós, não era muito
afeiçoado, acumulava ao seu mister de educador da mocidade, além dos empregos
de escrivão de juiz de paz, escanhoador, tendeiro, agiota e outros
encargos nem por isso muito compatíveis, uma maledicência sem igual. Pois
cuidam que se atrevia a boquejar do tio Joaquim? Nem por sombras. Verdade é também,
que lhe não fazia elogios, mas quando se tratava dele mudava logo de conversa,
fazendo um trejeito desaprovador.
Diziam
as velhas daqueles sítios, que eu não o sei ao certo pois nunca tratei de o
averiguar, que o mestre Francisco, tal era o nome do professor, tinha tido noutros
tempos seus dares e tomares com o tio Joaquim, dos quais tinha saído de cara a
uma banda. Entretanto o silêncio do mestre de meninos não influía pouco para a
reputação favorável do nosso bom velho, porque se dizia: — é tão boa pessoa,
que o mestre Francisco não diz mal dele.
Pobre
tio Joaquim! Assisti-lhe aos últimos momentos e pôde fazer ideia do que era a
morte do justo. Sorria ainda, e já era cadáver. A hora do passamento foi para ele
tão suave como o desprender da folha seca em manhã de outono. Momentos antes de
falecer voltou-se para o meu lado, e disse-me afável e bondoso como
sempre: agora acabaram-se os contos. Lembre-se de mim, quando se
lembrar deles, é a herança que lhe deixo. Levou a mão ao peito, apertou um
saquinho, que trazia pendente de um cordão, e que mostrava conter uma relíquia,
voltou os olhos para o céu, pareceu procurar o rumo que a alma ia seguir em
breve cortando o espaço, e expirou.
Foram
as primeiras lagrimas, que derramei na minha vida; até então não sabia o que
era morrer.
Guardei
a herança. Bem ou mal administrada ela aí vai em parte, tal como a memória a
conserva; mas não como me foi doada.
Havia
um cunho tal de ingenuidade naquelas narrações, uma tal poesia e mimo de
imagem, uma fluência de dicção e uma propriedade de termos, que embora as
procuremos imitar, não o conseguiremos nunca.
E
não suponham, entretanto, que fosse buscar a figura ou a comparação a coisas de
grande altura; às ciências, ou à história: que ornamentasse o período com
flores de retórica, ou que procurasse guindar e alambicar a frase, como tanta gente
que por aí vemos. Nada disso. Mais prudente e mais feliz, pois não cometia
barbaridades, o tio Joaquim não saía dos limites das inteligências dos seus
ouvintes e ia buscar aos campos, às flores, à agricultura, à mesma casa,
(quantas vezes!) os similes de que se servia. Tudo era comezinho
e humilde, sem ser rasteiro, e muitas vezes alcançava ele o que não conseguem
muitos literatos de polpa depois de terem trabalhado deveras-o sublime na
simplicidade.
Mas
nem só o estilo tornava recomendáveis os seus contos: se assim fora, não ousaríamos
nunca encetar semelhante tarefa. A ideia moral, que deles se depreendia
facilmente, a simplicidade dos episódios, e as curtas dimensões, que ele lhes
dava, faziam com que fossem por mais dum respeito dignos de publicidade.
Confiados nisto mesmo também é que começamos esta coleção, de que somos meros
reprodutores, cabendo toda a glória se a houver, ao tio Joaquim, e o desdouro
todo àqueles, que estragando-a talvez, a vêem agora dar ao público.
Entre
nós, nestes últimos tempos sobretudo, a literatura tem desprezado um tanto o
gosto popular.
Não
acontece, porém, o mesmo em França, em Alemanha e nos demais países, em que,
segundo nos consta, se cura destas coisas e se lhes atendem os resultados.
Muitos homens de vulto, inteligências eminentemente superiores, tem-se aproximado
das turbas, e as obras, que se tem publicado com este intuito, não são as que
menos contribuem para a sua glória.
Dois
exemplos bastarão: Lamartine e Emile Souvestre: o autor da Genoveva e Canteiro
de Saint-Point, e o autor de Coin du feu e do Philosofe
sous les toits. Ambos tem vindo por vezes conversar, como amigos e
parceiros, com as classes rudes; ambos se têm por vezes esforçado para lhes
fazer compreender as suas ideias, e, tem conseguido verem-as admitidas e benquistas
na oficina do operário, e na água furtada do infeliz.
Sacrossanta
missão da imprensa, como é admirável e veneranda, quando evangeliza as turbas,
dando consolação ao desgraçado e conforto ao que desanima! Como nos sentimos
enlevar de respeito perante essa instituição maravilhosa, quando vemos os seus
frutos sem vicio e sem defeito, alimentarem o que pede o pão do espírito, e
darem refrigério ao peregrino ressequido deste grande Saara em que vivemos! É
então, e não quando a vemos maculada pelas viltas e polêmicas indecorosas, que
devemos bendizer os seus inventores, e pagar o devido tributo ao gênio que semelhante
dádiva nos legou.
Mas
não é esta a melhor ocasião para semelhantes dissertações; perdoem-nos o
divagar intempestivo, e, se no-lo permitem, iremos ligar o nosso interrompido assunto,
no ponto em que o deixamos, há pouco.
Os
contos do tio Joaquim pertencem ao gênero das obras de Emile Souvestre e
deveriam tomar lugar, pela natureza e não pelo mérito, próximo daquela mimosa
coleção que ele intitula — Au Coin du feu. Dir-se-ia mesmo, que
inspirado por este belo livro, se não cometia um plagiato, ressentia-se muito
da leitura do autor francês; porém o tio Joaquim nunca soube ler e por isso nem
de longe pôde cair em tão feio pecado.
Não
é a primeira vez que a ignorância se apresenta como pretexto para a
originalidade de muito escritor público. Não é para admirar, que este nosso que
se estreia, comece no mesmo ponto, donde muitos, que já são veteranos, não têm
podido passar.
As
histórias que lhe ouvimos são em grande número. Não apresentaremos neste livro
senão as que mais notáveis nos pareceram e que mais profunda impressão nos
deixaram, procurando, quanto nos for possível, aproximar-nos daquela engraçada
ingenuidade, que tanto nos encantava, quando lhe ouvimos a palavra fácil e
singela.
Não
conseguiremos de certo imprimir-lhes aquele cunho de originalidade, que o
narrador lhes dava. Oxalá que possamos ao menos, fazer com que os nossos
leitores passem algumas horas entretidas nesta leitura: e que, esquecendo-se
embora da pessoa que lhas apresenta, não se esqueçam de todo do velho tio
Joaquim.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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