O SEXTO MANDAMENTO
O
padre prior, que os nossos leitores conhecem já, era um modelo de virtude e um
exemplo vivo de caridade cristã.
Apenas
começara pastoreando aquele pequeno rebanho, não houvera cuidados nem desvelos,
que lhe parecessem de mais para encaminhar nos trilhos escabrosos do bom porte
e da honra as suas ovelhas de monte, que, quando se apartavam do bom do pároco,
era mais por ignorância do que por maldade.
Conhecera-o
ele também desde logo, e empenhara as forças do seu corpo e o poder da sua inteligência
em esconjurar os piores de todos os demônios, a que a natureza humana pode dar
albergue; a ignorância e a rudeza.
Não
abria mão destes piedosos exorcismos: qualquer lugar, qualquer ocasião lhe
pareciam próprias para travar combate; e aparelhado, como sempre andava para
a luta com as armas da crença e da boa vontade, raramente deixava de contar da
vitória.
Não
quero dizer, todavia, que o meu pároco fosse um segundo Vieira, ou outro Macedo
Polígrafo.
Bem
pelo contrário, Deus perdoe à sua alma, e mais ainda à alma dos governos (se é
que os governos tem alma), que tão pouco têm cuidado na educação do clero, o
bom do padre muitas vezes, brigava com armas iguais contra a ignorância dos
seus paroquianos; e, quando vencia, era substituindo preconceito por
preconceito, absurdo por absurdo.
Procediam
porém de tão boa origem os erros do velho, fundavam-se em tão verdadeira
bondade: e tão piedosa unção revestia os seus disparatados conceitos, que por
amor da singela majestade, e boa tenção da mentira, quase se malqueria à verdade.
Era
falso o arrazoado, bem o sabiam alguns: mas deliciava a alma e comovia o
coração, encaminhava para o bem, posto que por transviado caminho. E o padre
dizia-o tão de dentro, tão convencido, que chegava a parecer impossível que não
fosse assim.
Mas
não era, verdade verdade, não era; que a ciência fugia espavorida diante das
legiões barbaras, que apoiavam algumas considerações do velho.
Não
era, porque o pobre homem, que sem maldade nem recalcitramento, mas por
simpleza e costume antigo, encomendava a missa pro rege nostro Michaele,
resumia a sua instrução à leitura, um tanto embaraçada, seja dito aqui
particularmente, da Bíblia, dos Evangelhos, do breviário e da Nação,
cujo assinante era desde o principio.
Não
aprendia porém do seu periódico senão a doutrina tradicional e monarquico-absoluta
em que fora criado. Lia o jornal para saber notícias do seu rei e do mais que
ia por o mundo: e a maior parte das vezes no meio de um façanhoso artigo ou de
uma ateada polêmica, no ponto mesmo em que as iras do jornalista trovejavam
mais crebas, e os rancores partidários se desatavam em maiores diatribes; o
jornal, como para contrastar com tão ardidas fúrias, escorregava brandamente
das mãos do desatento leitor, e ia voejar por terra com outras folhas suas
irmãs, que tendo sido verdes e esperançosas como ela, tinham caído da árvore,
como ela também caíra das mãos do pároco, e haviam secado no esquecimento,
como, triste sorte do jornalismo diário, ela havia de secar em breve ao
abandono no chão e esquecida também.
Ao
cabo de meia hora o padre acordava admirado por ter adormecido, apanhava o
jornal e recomeçava o mesmo artigo.
Já
se vê, pois, que não podia ser larga a instrução colhida em fontes tão pouco
variadas e demais ainda tão mal seguidas.
Mas
onde não chegava a cabeça alcançava o coração, e onde não acudia a inteligência
sobejava o sentimento.
Não
lhe tomemos conta da sua ignorância, nem lhe malqueiramos por pecado que não
era seu.
A
revolução social estabeleceu entre a geração, que findava, e a que ia aparecendo
um largo espaço que não soube ou não pôde fazer desaparecer.
Uma
ficou, símbolo do passado; outra caminhou, anuncio do futuro. A primeira
estacionando, conservou os abusos, os erros do seu tempo; mas também a poesia,
a fé sincera, o culto de suas tradições, o respeito pelas suas crenças: a outra
caminhou sobre ruínas, e caminha ainda, sorrindo, lutando, descrendo,
esperando, progredindo sempre, conquistando por fim, mas deixando, quantas
vezes, a fé pelo caminho, a esperança na estrada!
Se
ambos se tivessem querido compreender, se mutuamente se tivessem desculpado ou
os ardores impacientes, ou as rabugices pertinazes; se não quisessem cavar
fossos e levantar trincheiras entre uma e outra; mas, bem pelo contrário,
nivelar o terreno, e apagar ódios, rancores e desinteligências, não seria para
nós o presente tão cheio de incertezas, de hesitações, de duvidas, de
desconfortos e desalentos.
O
padre, esse, ia seu caminho, combatendo como sabia a falta de educação, e de
conhecimento da sua grei.
Além
das lições de moral que espalhava a esmo, conforme se lhe ofereciam as ocasiões,
costumava ele, sempre que podia e que o tempo o deixava, reunir os do lugar, de
tarde perto da igreja, para lhes fazer alguma leitura da bíblia e interpretar
em seguida, a seu modo e como melhor lhe parecia, o texto que lhes lera.
Por
vezes assisti a estas leituras, por vezes ouvi as suas explicações, e se mais
tarde as comentava tirando desagradáveis conclusões a respeito da ilustração e inteligência
do velho, não deixava sempre de me sentir comovido, quando fazia parte daquela
piedosa reunião.
Sigam-me
também os meus leitores, que, conforme sei, e segundo me recordo, vou procurar
descrever-lhes, como se apresentava a cena, na última vez em que, pouco antes
de regressar a Lisboa, assisti à prédica do ingênuo pároco.
Estamos
no adro da igreja: a paróquia é de trezentas almas quando muito. O dia vai
declinando e está próximo o sol posto.
A
igreja não tem o aspecto suntuoso dum grande templo; nem a majestade altiva de
uma catedral do século XIII.
É
de ontem apenas.
Uma
frontaria sem ornatos, uma torre próxima sem enfeites.
É
simples e pobre como o presépio do Redentor.
Sobre
o adro espaçoso e plano um velho plátano à esquerda braceja largos ramos
envolvendo na sua sombra uma cruz musgosa, que se levanta defronte da
porta da igreja e que deixa perceber em profundas cicatrizes, rudes combates
com o tempo ou com a impiedade dos homens; perto do plátano um pequeno regato
corre por baixo do parapeito do adro e depois de passar sob uma ponte de pedra
que dá serventia à estrada, vai espraiar-se ao longe numa pequena baía, onde as
lavadeiras do lugar vem bater a roupa ao pé dos choupos e olmeiros, que se
debruçam para a corrente.
De
um dos lados sobe a encosta de um pequeno outeiro atapetado de vinhas e
oliveiras, coroado de moinhos que desprendem as velas a favor da viração da
tarde; do outro a vista divaga por meio dos pomares e terras de vinha, no meio
das quais alvejam as casinhas do lugar, e se recortam no puro azul dos céus as oliveiras
verde-negras.
Os
rumores do campo começam a esmorecer com o largar do trabalho indicando a proximidade
da noite.
A
tarde tem corrido serena e a natureza sorri na flor do prado, como na árvore do
bosque.
Sentado
num banco de pedra mal afeiçoado pela mão de rude artista está o pároco, junto
a si os evangelhos depostos e ainda abertos: as mãos pousadas sobre os joelhos,
a cabeça um pouco inclinada pelos anos; o corpo alquebrado pelos trabalhos. A
seus pés, sentadas no chão, em rancho, as criancinhas da terra, em roda as
raparigas e as mulheres; mais ao largo, os homens fechando o círculo e
encostados aos varapaus.
Um
pouco mais afastado do grupo, sentado num dos poiais do adro, e cismando, ao
que parece, está o tio Joaquim, comentador e companheiro das homilias da tarde.
De quando em quando, em pontos mais subidos da exposição do pastor levanta a
cabeça, fita o narrador com gesto expressivo, e com os olhos iluminados por
aqueles doces clarões da simpatia e da atenção, segue o fio do
discurso para descair breve nas habituais meditações.
O
padre tem acabado a leitura de um dos sagrados capítulos, e de acordo com a inteligência
dos ouvintes explica-lhes o texto procurando comparações no campo, na lavoura,
nos trabalhos que melhor conhecem, nos instrumentos com que mais de perto
lidam.
Todos
o escutam em religioso silêncio e a palavra sagrada recebe maior unção na boca
do venerando velho.
Tem
apenas acabado de falar quando no sino próximo começam a bater as melancólicas
Avé-Marias. O som vai chorando, como uma saudade do dia que finda, pelas
quebradas do monte e pelos arvoredos dos bosques, para voltar amortecido e
triste, como recordação de felicidade.
É
um momento solene.
O
padre ergue-se, a boa gente do campo ajoelha a seus pés. Por momentos as
orações murmuram como o esvaecer do som no bronze sagrado e a oração ergue-se
como um coro de harmonias dos lábios dos fieis, do murmúrio do regato, do
ciciar da aragem, do bulir do arvoredo, do tinir dos chocalhos, dos balidos do
rebanho que ao longe recolhe da pastagem para o abrigo do curral.
Depois
o padre abençoa seus filhos com as mãos tremulas estendidas e a fronte
encanecida iluminada pelos reflexos derradeiros do sol já escondido:
despedindo-se do pároco, retiram pouco a pouco os aldeões guiados, como os israelitas
no deserto, pela espiral de fumo, que se enovela sobre os tetos de suas casas,
o ruído vai pouco a pouco diminuindo, recolhe o rebanho ao curral, os pastores
deixam de cantar, a voz dos últimos camponeses perde-se na volta da estrada.
Mas o rio ainda murmura, o vento ainda suspira na rama das árvores, e o padre sozinho,
com os olhos fitos na pálida lua, que começa a assomar no céu, não limpa
uma lágrima de saudade e de esperança, que lhe escorrega pela face cavada pelos
anos, envelhecida pelas mágoas. Saudade da terra e dos homens, que vai deixar,
esperança na vida eterna, que entrevê tranquilo, crente na misericórdia do
Senhor, confiado na sua infinita bondade.
Hoje
a boa gente do campo volta ao adro a procurar o padre, o plátano e a cruz. Tudo
tem desaparecido após o homem a planta, após a planta a pedra, tudo volveu ao
nada donde veio. Sobre o cadáver do velho caiu a pedra do cruzeiro, um
arrebento do plátano deu sombra à sepultura; mas a natureza prosseguiu guiada
pela civilização e pelo progresso desfolhando uma saudade sobre a campa e
colhendo do novo arbusto a planta sempre viçosa da árvore da liberdade.
A
poesia do passado tem-se perdido. Mas o homem, que ficou meditando sobre aquela
lapide, desperta das suas meditações ao grito da locomotiva do caminho de
ferro, ao retinir da campainha do telegrafo elétrico, ao resfolegar das
caldeiras da fabrica próxima, ao estrondo majestoso das novas eras, que nas
azas do pensamento correm a cumprir a sua missão.
Naquela
tarde fora a história de José o texto escolhido; e o velho descrevendo o quanto
padecera o patriarca hebreu por amor dos seus irmãos, e seus compatriotas, falara
tão de leve no sacrifício, prestado à honestidade; como, perdoem-nos a
comparação, a raposa discorrera a propósito das uvas que não eram para seu
dente.
Muitas
virtudes encontrava ele no casto José, mas a de resistir com tanto denodo à mulher
de Putifar, não foi das que mais encareceu. Nem por isso lhe parecia grande
façanha. Para o bom do velho nada havia mais natural.
Não
assim para grande parte de seus ouvintes. Aquele rasgo foi o que maior
impressão deixou na inteligência sensual de muitos. No serão dessa noite não
faltaram comentários e choveram ditos, alguns dos quais, posto que bastante
grosseiros na forma, não deixavam de ter bom sal, e grande finura no alcance.
Terminada
por fim a discussão foi votado por maioria, que tal caso era impossível; ou
pelo menos, se o não era, fora um grande disparate do patriarca hebreu.
Protestou
o tio Joaquim contra a decisão da assembleia, e para fundamentar o seu protesto
pediu a palavra, que lhe foi concedida com o maior prazer.
—
Todos, quantos aqui estão, conhecem ou tem ouvido nomear o Luís Tibúrcio, que
traz de renda ao Morgado dos Cachorros o Olival grande do Brejo, no alto da
estrada da Carrejosa. É um homem de bem e lavrador abastado; tem hoje um bom
par de vinténs e uma das melhores lavouras dos sítios. Pois vai vinte anos não
tinha onde cair morto, nem esperanças de mudar de sorte. Um caso bem parecido
com o que hoje ouviram ao Sr. padre prior foi o começo da sua fortuna.
Luís
Tibúrcio é do Minho. Veio por aí abaixo procurar vida e trabalho, quando por
morte do pai e da mãe, ficou sozinho na terra, sem ter quem lhe valesse, nem
casa que lhe abrisse a porta. Era pelo tempo da guerra, andava também a moléstia,
e cada um cuidava principalmente de si, ou dos seus, e não tinha vagar para
saber do mal dos outros.
Curtiu
fomes e frios pelo caminho, não poucas vezes estendeu a mão à caridade, e não
poucos dias pediu esmola a chorar, perdido de fraqueza, e sem esperanças de ter
um bocado de pão. Ninguém cuidava em dar trabalho e era tal a desconfiança, que
ninguém queria tomar para casa um rapaz, coberto de farrapos e com cara de
padecente.
Tinha
uns quinze anos, pouco mais, e já começava a saber o que era mundo. Entrava na
vida pela porta da[163] desgraça e principiava a amargar a existência sem
lhe ter provado ainda as doçuras.
Um
dia, já sem forças, caiu à porta de uma fazenda, donde saíra descoroçoado de
todo, porque depois de ter passado um dia sem comer, acabava de ser despedido
pelo caseiro, dizendo-lhe, que a fazenda do seu patrão não era couto de vadios.
Luís
Tibúrcio pôde, envergonhado e saltando-lhe as lágrimas pelos olhos, andar a
alameda e sair o portão que do pátio conduzia à estrada; mas, ao voltar para o
caminho, sentiu-se tão quebrado, tão sem ânimo, que atirou consigo para o chão,
resolvido a não se levantar mais dali.
Encomendou-se
a Deus e esperou a morte resignado.
O
Sr. José Mateus, o dono da quinta, que assim se chamava por sinal, andava por fora,
quando Luís fora pedir trabalho a Vale de Figueiras. De certo, se tivesse visto
a lazeira do rapaz o recolheria por alguns dias ao menos, e lhe mandara dar de
comer, pois era homem rasgado e de bom coração; mas só tarde voltou de uma
outra fazenda, onde fora, e era já muito escuro, quando se aproximou de casa.
Luís
estava estirado no caminho. José Mateus entretido com os seus pensamentos não
deu por semelhante cousa e recolheu passando junto do pobre moço.
Caía
geada, como não havia memória, e o frio era de estalar.
De
manhã cedo os primeiros, que saíram encontraram-no sem apresentar sinal de vida
e acudiram à fazenda a dar rebate.
O
Sr. José Mateus foi o primeiro, que correu junto da pobre criança, viu-a naquele
mísero estado e teve dó de tão grande desgraça em tão verdes anos. Ele também
havia provado do pão que o demônio amassou, e antes de chegar a ser
independente fora um pobre de Cristo.
Mandou
carregar com o Luís para uma cama, e cuidou em ver se lhe dava vida nova.
O
rapaz estava enregelado e hirto, os beiços arroxados, os olhos metidos numas
covas negras, as mãos inteiriçadas, o coração quase sem bater.
Dir-se-ia
morto.
Ao
passo, porém, que ia aquecendo e que o esfregavam com panos quentes e espírito
de vinho tornava pouco a pouco a si: e depois de um caldo bem forte e bastante
substancial parecia outro.
O
Sr. José Mateus indagou-lhe da vida e soube que a fome e o desamparo tinham
sido a causa daquela doença. Compadeceu-se por vê-lo órfão tão moço e sozinho
no mundo: era casado havia muito tempo, e não tivera filhos nunca, engraçou com
a cara do rapaz, que era de boa feição, e adotou-o para si.
Desde
esse dia começou para o Luís, a quem dentro em pouco já todos tratavam por Sr. Luís;
e a quem o Sr. José Mateus chamava— o meu Luisinho— uma vida de príncipe.
Não
lhe faltava nada, aprendia, estudava, trabalhava e desenvolvia-se de dia para
dia.
Em
poucos tempos fez-se uma flor. Parecia que medrava a olhos vistos e que cada
vez ganhava maiores perfeições.
Perfeito
no corpo, e mais perfeito talvez na alma, não havia para ele sol nem lua que
valessem o Sr. Mateus, nem palavras ou ações que lhe parecessem demais para lhe
agradecer o bem que lhe devia. Luís tinha coração de pomba.
Mas
o demônio, que sempre as arma, e que parecia ter tomado o rapaz à sua conta,
encarregou-se de entornar o caldo, e de deitar por terra aquelas felicidades
todas.
A
esposa do Sr. José Mateus, apesar dos seus quarenta puxados, era ainda mulher
de primor.
Desenxovalhada
naquele tempo, devia ter sido linda quando andasse ali pelos vinte anos.
Tinha dado brado na terra, e mais de um lhe tinha arrastado a asa, sem que ela
lhe desejasse as pernas quebradas.
Casara-se
pela razão, porque se casa a maior parte das mulheres, para mudar de estado; e não
conhecera nunca que cousa fosse amor. Extremosa pelo marido, não constava que o
tivesse sido: e, segundo se rosnava pelos sítios, se tivesse pé faria pegada.
Se
a amizade de Mateus pelo Luisinho era verdadeira amizade de pai, a de Genoveva
não se parecia em nada com o amor de mãe. Por mais de uma vez lhe havia deitado
uns olhos, que queriam dizer muito, mas que no rapaz eram tempo perdido. Não
por inocência, mas porque não queria acreditar, que fossem o que lhe pareciam.
Genoveva
desesperava-se por não ser compreendida, e tinha jurado que: ou Luís se chegava
à razão, ou havia de por os quartos no meio da rua.
Uma
noite, chovia a cântaros, e o Sr. José Mateus não recolhera de uma feira a que
fora comprar quatro juntas de bois.
Tinha-se
armado uma trovoada de arrancar pinheiros e uma ventania de levar tudo pelos
ares. Genoveva estava cosendo junto à mesa de jantar e Luís próximo dela lia
alto um livro de romances. Era a história dos amores derrancados de dois
amantes infelizes, que depois de passarem as passas do Algarve, depois do
apaixonado ter andado as sete partidas do mundo e corrido perigos de todas as
castas, se reuniam por fim; mas quando iam para gozar de um dedicado afeto, o
marido da heroína aparecia tanto a propósito, que matava o sedutor, se o era, e
fazia endoidecer a mulher com a vista do ensanguentado cadáver.
Era
uma história de arrepiar defuntos, e que por isso mesmo tinha tido tanta voga
que chegara até Vale de Figueiras.
De
repente Genoveva, que seguia a leitura com verdadeiro interesse, e que por
mais de uma vez sentira calafrios ao ouvir aquela enfiada de horrores,
interrompeu o leitor, quando entusiasmado lia o passo do encontro dos dois num
casal deserto no meio das serras entre alcateias de lobos, ao fuzilar dos relâmpagos,
ao estalar dos trovões.
—
Gostas dessa história, Luís?
—
É triste, senhora Genoveva, gosto muito.
—
Andas sempre triste!
—
Não é por ser mal agradecido ao bem que me fazem. É gênio meu, não está mais na
minha mão.
—
Volta de amores talvez?
E
os olhos acompanhavam a pergunta, procurando seguir o pensamento do moço, como
o galgo segue a lebre por meio dos campos.
—
Não, minha senhora, não são amores. Também quem me havia de querer, órfão, sem
fortuna, e só devendo o pão de cada dia à caridade de meus benfeitores?
—
Não digas isso, Luís, bem sabes que o trabalho que fazes, vale o pão que comes.
Tu és bom rapaz e mereces quanto te fazem.
—
Não mereço, não, minha senhora, e eu bem conheço as coisas, e sei agradecer
tanto favor.
—
Criança!
E
acompanhando esta palavra, que pelo modo porque fora proferida, já queria dizer
muito, Genoveva correu mão protetora pela cara do Luisito.
Porque
é preciso que saibam, rapazes: nós os homens muitas vezes chamamos criança a
uma mulher, sem ser por mal, nem com ideia alguma; mas em a mulher
chamando criança a um homem, e de um certo feitio, é o mesmo
que se lhe dissesse: tu ainda não percebeste, que eu gosto muito de ti, e tu és
muito estúpido, porque não entendes o que eu te estou dando bem a conhecer.
Pela
primeira vez, havia tanto tempo, desconfiou Luís deveras do caso, e àquela
carícia fez-se vermelho como um pimentão.
—
Então fazes-te vermelho, tens talvez vergonha de mim? Pois já não devias ter razão
para isso, tenho idade bastante; não é verdade que pareço muito velha, meu Luís,
anda, dize?
E
cada vez se aproximava mais dele a ponto de o bafejar com o seu hálito inflamado;
e de sorte, que se confundiam os olhos dela ardentes, significativos, cobiçosos,
com os dele tímidos, assustados, quase envergonhados.
—
Não, senhora Genoveva, não tenho vergonha. Desculpe fazer-me corado...
—
Dize-me, atalhou violentamente Genoveva, cujo temperamento nervoso e sanguíneo
estava efervescente, querias estar como Paulo (era o herói do romance), assim
comigo num casal deserto...
—
Como estamos hoje...
—
Como estamos hoje, sim Luís, e depois...
Era
impossível deixar de perceber tudo. Genoveva parecia ter a cabeça perdida, tudo
denotava um desejo desenfreado, e furioso.
Não
se riam, rapazes, se vissem uma mulher alucinada pelo amor, arrojar-se como uma
leoa, feroz, enraivecida, terrível até, compreenderiam bem quanta foi a virtude
do Luisito.
Levantou-se
a tremer, e cheio senão de medo, ao menos de pudor...
—
Senhora Genoveva, eu não sei se compreendi; perdoe-me se a vaidade me ilude;
mas, não me posso esquecer de quanto devo ao Sr. José Mateus.
E
saiu, sem olhar para traz.
No
dia seguinte, de madrugada, com o seu alforje arranjadinho, ia pela estrada fora,
sem saber ainda para onde se encaminhava.
Ia
começar de novo a vida, mas era indispensável. Se cedesse, seria o ingrato mais
vil deste mundo; se resistisse, a fúria de Genoveva não o deixaria descansado
por muito tempo.
A
poucos passos de distancia encontrou a José Mateus, que, tendo feito o seu negócio
mais breve do que pensava, recolhia cantarolando, como quem vinha nas horas do
Senhor.
Luís
não esperava semelhante encontro. José Mateus já o tinha visto, e não havia remédio.
Demais foi o lavrador que encetou a conversação.
—
Olá, Luís, tão cedo, há por lá alguma novidade?
—
Nada, não, Sr. José Mateus, não há novidade nenhuma; eu é que...
—
Tu é que... embatucaste? Tens alguma cousa, viste bicho? — Tu não estás em ti,
desembucha.
—
Eu... vou-me embora.
—
Bom, homem, e por isso ficaste assim atarantado, bem te entendo; vai, rapaz, vai,
eu sei o que são essas cousas. Quando voltas?
—
Eu... vou de vez.
—
Hein, endoideceste?
—
Não endoideci, não, Sr. José Mateus, preciso ir-me embora, deixe-me ir embora,
deixa?...
E
o rapaz estendia as mãos, convulso como se pedisse a salvação.
—
Deixo, deixo. Por onde eu te pegar, te peguem os lobos. Entendo, desinquietaram-te,
apanhaste-te ensinado; mas anda que também me ensinaste, ingrato!
—
Ingrato!... Serei, sou, mas deixe-me ir embora quanto antes.
José
Mateus não era de hoje, nem de ontem; desconfiou do caso, e chegando-se mais
para o rapaz, deitou-lhe a unha.
—
Por mais que me digam, acrescentou ele, tendo-o já seguro, aqui há o que quer
que seja, para tu estares assim tão apressado. Deixo-te ir, mas não sem me
dizeres primeiro porque. Que demônio, parece que tens morte de homem!
Vendo-se
agarrado, Luís entrou a clamar para que o deixasse, pedindo-lho por quantos
santos havia no Paraíso. Por mais que buscasse, não lhe ocorria nem meia
mentira. Não admira, a falta de costume...
Por
fim conseguiu escorregar-se-lhe das mãos como uma enguia, e deitou a correr
mais leve que um pássaro.
José
Mateus voltou ainda o cavalo, para lho deitar para cima; depois, como se lhe acudisse
a reflexão, exclamou:
—
A cheia o trouxe, a cheia o levou. Que vá por onde não faça perca!...
E
entestou para Vale de Figueiras, cismando no acontecido.
Ainda
bem Luís lhe não tinha saído a porta, Genoveva, percebendo que era desprezada,
e incendida pelos lumes do desejo, caía por terra espumando como um danado, e
bracejando como um possesso. Estava com um acidente de raiva.
Acudiram
ao motim, que fez, e levaram-na para a cama já sem dar acordo de si, tinha-lhe
subido o sangue à cabeça, estava com uma febre cerebral.
Luís,
escusado é dizer, não soubera de coisa alguma. Recolhera a entrouxar o pouco
fato, que havia comprado, pois deixou ficar tudo que lhe deram; e embebido nos
seus pensamentos, poderiam voltar a casa debaixo para cima, que não era ele que
dava por semelhante coisa.
Demais
morava num quarto no extremo oposto da casa, com porta que deitava para a
estrada, e pode sair por conseguinte, sem saber nada do que se passava no resto
da habitação.
Pouco
depois da chegada de José Mateus apareceu o facultativo do sítio, que tinham
mandado chamar a toda a pressa. Sangrou-a logo, mas já era tarde. O ataque
tinha sido tão forte, que a sangria abrandou-lhe um pouco as fúrias e nada
mais. Dali a pouco tornava à mesma, ou a pior ainda, porque desta vez dizia
coisas estranhas em palavras soltas.
Estava
tresvariada.
José
Mateus percebeu logo que as coisas que a mulher ia dizer, não eram para ser
ouvidas por toda a gente; mandou sair os que estavam no quarto, e apenas ficou sozinho
com ela, deu volta à chave e escutou-a.
Soube
tudo.
No
meio dos seus excessos, Genoveva chamava por Luís, acusava-o de frieza, de indiferença,
de ingratidão. Dizia-lhe que pensasse no seu marido, porque esse não saberia
nada, e depois... haviam de ser tão felizes!
E
um poder de coisas que tiraram todas as cataratas dos olhos do marido.
Este
sentou-se numa cadeira, e, abatido, limpou uma lágrima. Ninguém soube nunca por
quem fora, se por Luís, se por Genoveva.
Genoveva
durou três dias. Disse o facultativo, que se lhe tinha rompido uma veia na
cabeça; rompesse ou não, nos dois últimos não deu acordo de vida.
José
apenas se certificou de que sua mulher não diria mais nada, recolheu-se ao seu
quarto, donde não saiu senão para a sepultura. Não queria saber de coisa
nenhuma, não dava palavra a ninguém, e se insistiam, punha todos fora,
fechando-lhes a porta na cara.
Na
véspera de morrer, mandou chamar um tabelião e duas testemunhas. Lá esteve com
todos três, por espaço de meia hora.
No
dia seguinte abria-se o testamento sobre o cadáver de José Mateus, e Luís
Tibúrcio ficava sendo seu herdeiro universal.
—
Acabou, tio Joaquim, atalhou dali o João Carriço, que dera provas de impaciência
durante a narração, não tem mais nada que dizer?
—
Eu não, e tu? Perguntou o narrador.
—
Eu, perdoará a sua palavra honrada, parece me que a história não vem ao caso do
que a gente dizia; pois se o rapaz não fosse tão arisco, ficava com tudo do
mesmo feitio; porque eram dois a deixar-lhe... E daí não morria, nem a mulher,
nem o homem.
—
E parecia-te bonito pagar desse feitio os benefícios, que tivesses recebido de
José Mateus?
—
Olhe, tio Joaquim, lá o lê, lá o entende, mas daquele mal não morreu ninguém; o
José Mateus não havia de passar pior por isso.
—
Eu te contarei uma história um dia, e verás se se morre ou não. Sabes que mais,
João Carriço, tens ainda a cabeça muito levantada, hás de assentar.
—
Então sim, tio Joaquim, quando for lá para a idade, o que não poder haver, dá-lo-ei
por amor de Deus.
E
como todos soltassem uma gargalhada, o velho suspendeu a sessão, porque
percebeu, que por aquele lado não fazia farinha.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...