4/09/2023

O serão (Conto), de Juvenal Galeno


O SERÃO

Que linda cena nos oferece o serão de uma pobre família dos campos, em noites calmas do estio — nos dias felizes em que ela não sente as flagelações da enfermidade, a penúria do necessário à vida!

Quem, ao menos uma vez, não contemplou comovido, esse quadro de tanto conchego e singeleza, de tão franco e sincero amor e de uma candura quase infantil?

Quem, ao menos na infância, não ouviu enlevado aquelas curtas e interessantes histórias, ora molhadas de sentidas lágrimas, ora misturadas de espontâneos risos; às vezes inspiradas pela superstição, outra ditadas pela verdade; já a recordação de um episódio da vida íntima, já a comemoração de uma guerra, de uma seca ou de outro acontecimento qualquer?

Tudo então é de uma simplicidade tocante, a começar pelo cenário.

E o cenário não é mais do que o alpendre ou saleta da rude casinha de palmas, que modestamente se oculta entre o verdoso arvoredo, aqui no dorso do monte, ali em frente ao oceano, além nas orlas da campina, muitas vezes a mirar-se faceira na lagoa da várzea, com seus cortinados e de ramagens e trepadeiras e seu jardinzinho de flores silvestres ou cultivadas.

Se é no sertão, como se conversa alegremente sobre as vaquejadas, a coragem do moço na rápida carreira pelos precipícios, a emboscada da traiçoeira onça, a vitória alcançada contra o mocambeiro e bravo novilho, e outros casos dessa vida aventurosa do vaqueiro do norte, igual em temeridades e heroísmos à do gaúcho das savanas do sul!

Nas serras, fala-se sobre as grandes enxurradas, as colheitas e as caçadas na floresta virgem; assim como nas praias, trata-se da pesca das tormentas e outros assuntos marítimos.

O sertão tem seus contos especiais, como a praia e a montanha os têm, extremando-os a diferença da natureza, do modo de viver e dos costumes. Iguais, porém, todos são, quando comemoram a vida íntima, quando são páginas do livro d’alma; pois que o sentimento é sempre o mesmo em toda a parte, e a sua linguagem uma somente.

Mas, deixemos essas considerações, e com o leitor assistamos ao serão que nas trevas da noite nos indica, lá muito ao longe, a chama vivace e alegre da fogueira do lar, na choça do povo.

Sem que nos vejam, contemplemos o quadro.

No copiar da casinha ardem três ou quatro achas de lenha; e junto conversa a pobre família, acabando de cear e de agradecer a Deus o pão daquele dia.

Maria da Conceição, velha de sessenta anos, contempla prazenteira ao redor de si, seu filho José, sua nora Antônia e quatro netos, que constituem a sua felicidade neste mundo.

Dos netos, dois são quase moços — Tomás e Ana —, e dois, crianças — Marcelino e Simão.

Todos têm no pescoço um rosário, e neste, a medalha milagrosa, o bentinho, ou a medida do santo de sua devoção. Os homens vestem camisa e calça de algodão grosso; as mulheres, saia de chita e cabeção de madapolão; e os meninos, camisas remendadas e encardidas.

Estes interrogam de vez em quando a avozinha, calam-se para ouvi-la, remexem-se e dão mostras de grande curiosidade.

— Dá-me o divertimento, José —, diz a velha pedindo o cachimbo, que o povo assim denomina muitas vezes.

— Está, minha mãe... Marcelino, vai ver ser ainda tem fumo no saquinho...

— Queira Deus tenha, homem — diz Antônia —, hoje dei ao Inácio da tia Rosa dois vinténs para comprá-lo na vila, e ele até estas santas horas...

— Ora... como passarei sem fumo, gente! Antes quero não comer do que deixar de fumar...

— Mas, o Inácio não pode tardar homem.

Marcelino acha ainda algumas peles de fumo, a velha enche o cachimbo, encosta-lhe o tição e satisfeita puxa a fumaça.

Os meninos continuam a brincar e Antônia, torcendo o seu fuso, como que se engolfa no contentamento de suas travessuras.

— Minha mãe, veja o Simão, que me está empurrando — queixa-se um.

— É mentira, mamãe, é ele que me beliscou — responde o outro.

— Meninos! — ralha brandamente José — estes meninos não têm criação... Tomara ouvir...

— Deixa-os, José — diz a avó —, coitadinhos... pois em que idade devem eles brincar?

Ao mesmo tempo os outros dois filhos do casal, estranhos já aos folgares da meninice, mergulham nos sonhos encantados da adolescência.

Tomás, um pouco retirado, afina a sua viola, o instrumento querido de sua alma, e Aninha, consertando uma saia, como que suspira enamorada, ouvindo os sons que se ensaiam nas douradas cordas.

O rafeiro do lar — o velho e dedicado Fiel — deitado sobre as patas, à entrada da casa, contempla a família com afetuoso olhar, e como que tomando parte em suas conversas e entretimentos. E então? Não é ele o amigo e guarda de toda aquela gente? Não é ele que à noite vela, enquanto todos dormem, afastando as feras e intimidando os malfeitores? Quem mais do que ele ama e respeita a seus velhos amos, cuja mocidade testemunhou, acompanhando-os sempre, tão dedicado nas horas da abundância como nas da penúria? Quem mais carinhoso afaga aquelas crianças que ele viu crescer, que tantas vezes carregou, servindo de ginete, no meio de animadas folias? E agora, velho e enfermo, e por isso quase inútil, como não amará aqueles que o não desprezam, que o não deixam morrer à fome, que não lhe pagam com a ingratidão a sua amizade e os serviços doutrora? Com a ingratidão... com essa moeda infernal, com que às vezes o homem paga o benefício, assim tornando-se pior que o mais vil irracional e pois indigno da semelhança com o seu Criador!

Mas, eis que o velho Fiel, abandonando a cena, ergue-se e rosnando vai em direção à estrada. Quem despertaria a atenção do veterano guarda, da vigilante e experiente sentinela do lar? Ouve-se a voz de Inácio, e Fiel, reconhecendo um amigo de seus amos, festeja-o contente, em vez de agredi-lo como faria com qualquer estranho que se aproximasse àquelas horas.

— Deus lhes dê boas-noites — diz Inácio, aparecendo na porta.

— A nós todos, Inácio; então já está de volta?

— Sim, senhor: venho chegando a casa, e passei aqui para dar o fumo que a senhora Antônia me encomendou.

— Deus lhe pague... É do bom?

— É do melhor que achei na vila. Os vinténs são pequenos, mas disseram-me que faz cinza muito branca.

— Então há de ser bom. Entre e abanque-se, Inácio.

— Já é tarde... e a mulher me espera.

— Ora, ainda é cedo, descanse um pouquinho.

— Pois bem, eu me sento, mas o Tomás e Aninha hão de cantar aquela cantiga da Louca de amor... Gosto tanto de ouvi-la, senhora Antônia, que suponho que nunca me fartarei! — diz Inácio sentando-se e pondo ao chão uma trouxa, amarrada à ponta do cacete.

— É muito bonita, Inácio, é... dizem que foram feitos estes versos por um poeta da cidade... Anda, Tomás, vem cantar e acompanhar a Aninha — acrescenta a velha.

— Ora, vovó, eu nem estava com vontade de cantar agora!

— murmurou Aninha preparando-se entretanto para satisfazer a vontade do vizinho.

Tomaz preludia suavemente na viola a toada, e instantes depois, ele e sua irmã, cantam entoados as seguintes coplas, que todos, sem excetuar o velho Fiel, escutam calados e enternecidos.

Louca de Amor

Cabelos soltos ao vento,
Ao vento solto o vestido,
Os pés descalços n’areia,
 Ai passeia
Maria em sonho querido!

Pobre menina das selvas,
Das selvas mimosa flor,
Por que estremeces chorosa,
 Qual a rosa
Na sua aurora d’amor?

Bem cedo ainda na vida,
A vida dera a José,
Votara seus treze anos
 Aos arcanos
De uns quinze anos de fé.

E, como as rolas no prado,
No prado — amantes e castos,
Em casinhas de palmeiras,
 Entre ateiras
Cercadas de matapastos...

Quando acordavam n’aurora,
N’aurora em meio de flores,
À rude porta assomavam,
 E coravam...
Ai, que divinos rubores!

De inveja o sol desmaiava,
Desmaiava a natureza,
Calavam-se os passarinhos
 Nos galhinhos
Por tanto amor e beleza.

Mas, é tão mau este mundo!
O mundo os viu e invejou;
Fez de José um soldado,
 Desgraçado...
Maria em prantos deixou!

— Soluças, Mariazinha? —
Mariazinha a chorar!
— Tu vais, José, desta terra? —
 Para a guerra
José chorando a marchar!

E as ondas quebram na praia,
Na praia o vento a gemer,
No vento a areia passando,
 E voando
O tempo sem mais volver.

E José, sob as bandeiras,
Bandeiras desta nação,
Como gigante lutava,
 E cantava
Nas horas do coração.

‘‘Ai mocidade sem risos...
Sem risos é o meu viver!
Até me foge ora a morte...
 Oh, que sorte!
Antes quisera morrer!’’

Enquanto saudosa e triste...
Triste penava Maria,
E noite e dia cismando,
 Soluçando,
Os seus encantos perdia...

O passarinho os carpidos,
Carpidos dela, aprendia...
Suspiros levava a aragem...
 E na vargem
De pranto o arroio se enchia...


E as ondas quebram na praia,
Na praia o vento a gemer,
No vento a areia passando,
 E voando
O tempo sem mais volver...

Eis se não quando uma tarde...
Tarde saudosa de abril,
Vê-se um navio nos mares...
 Logo aos ares
Voam foguetes a mil...

Que venceram brasileiros...
Brasileiros, exultai!
Findou-se o pleito tremendo,
 E gemendo
Morde o chão o Paraguai.

Mas, entre a hoste briosa,
Que briosa volve ao lar,
Aonde, José, aonde?
 Pois s’esconde?
José morrera a lutar!

— José morrera em combate,
Combate de vida e morte! —
Conta um soldado chorando,
 Lamentando
Aquela tirana sorte.

E logo dorido grito...
Grito d’alma se escutou!
Ai era a infeliz Maria...
 Doudecia...
Quem foi qu’então não chorou?

Quem não chorou quando triste,
Triste canto ela cantava...
A face sua enrugada...
 E rasgada
A saia que lhe restava?!

Quem não chorou quando a louca,
Louca de mágoa e paixão...
A sua sorte carpia,
 E gemia
Depois da amarga canção?

Oh basta, basta, viola!
Viola, estás a chorar?...
Ai, cala a terna toada,
 Magoada,
Ai, basta de soluçar.

Calaram-se os juvenis cantores, continuando Tomás ainda por alguns instantes a arrancar de sua viola, como que gemidos banhados em sentidos prantos.

E como as letras da triste cantiga, aquelas notas transpondo a porta do lar, iam expirar lentamente ao longe na deserta selva, misturando-se com os soluços do arroio, e brandos suspiros da aragem.

A natureza que circundava a casinha, era então queda e silenciosa; nem sequer a ramagem balouçando-se, interrompia a misteriosa mudez da noite.

E a família, ao findar o canto, ainda comovida, pôs-se a comentá-lo em singelas frases, ao passo que as mulheres enxugavam as lágrimas que lhes corriam dos olhos.

Depois despediu-se Inácio, e como era tarde, todos se ajoelharam, rezaram devotamente o terço, os pais abençoaram os filhos e cada um procurou a sua rede.

Mais alguns momentos, e a pobre família repousava sossegadamente, enquanto o velho Fiel velava na defesa do lar, correspondendo plenamente assim à confiança que depositavam seus amos.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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