O ROMANCE DE UM CÉTICO DE ALDEIA
De
tantos contos, que ouvi ao tio Joaquim, foi o seguinte, que maior impressão me
produziu.
Tinha
morrido nos sítios um fazendeiro, que não gozava de boa fama, e ao lembrarem-se
dele começaram os homens do trabalho a cortar-lhe um pouco na pele.
O
tio Joaquim desde que se falara no finado, fora gradualmente entristecendo; e
pela primeira vez na sua vida caiu-lhe a colher da mão, quando ia começar a
comer.
Os
malteses, que estimavam deveras o velho narrador começaram a preocupar-se com semelhante
tristeza, e, antes de acabar a ceia, já estavam todos em roda dele, a
perguntar-lhe o que tinha.
—
A morte do Manuel Simões fez lembrar um caso, a que assisti, há tempos, quem
sabe se o Manuel padeceria tanto como o outro, que eu vi morrer.
—
Conta-nos isso, tio Joaquim?
—
Contarei, apesar de não me sentir muito para contos. Entretanto servir-lhes-á de
lição para deixarem em paz, quem já deu contas de si.
Calaram-se
todos e o narrador começou por estas palavras:
Há
de haver dez anos a esta parte, que sucedeu o caso, que lhes vou contar.
Defronte da igreja estava nesse tempo uma loja de barbeiro, afreguesada como
poucas, e concorrida por toda a gente dos arredores. Era o pasmatório do lugar
e o covil da maledicência: o mestre Inácio sabia do seu oficio como poucos, e
cortava nas vidas alheias, como nos cabelos e barbas dos fregueses.
Também
a loja estava sempre cheia: uns que lhe acudiam à obra, asseada na verdade;
outros, que para ali iam dar à taramela e saber o que se passava pelos sítios.
Nem
uns nem outros deixavam de ser servidos: os primeiros saiam com a pele, que nem
um cetim; os outros levavam medida rasa de novidades e não poucas vezes
acogulada de mentiras.
De
todos os que por ali iam, um freguês havia a quem o mestre não gostava muito de
ver na loja. Ninguém o diria, porém, ao ver as barretadas do velho Inácio e as
mesurinhas com que o acatava. Havia de ter que ver, que o não fizesse! Se era o
Sr. padre prior, o padre mais santo, que tenho conhecido e a melhor alma que
Deus tem deitado a este mundo de Cristo.
E
sabem porque o mestre não engraçava com o padre prior, e até mesmo ardia por vê-lo
pelas costas? Era porque, o único talvez dos fregueses todos, não fazia a sua
perna à má língua, nem deixava deitar-lhe muito os braços de fora, quando
estava presente.
—
Cala-te lá, homem, lhe dizia muitas vezes, sabes por ventura quantos anos de
trabalho leva uma reputação a criar, quantos cuidados e lidas custa o ser
honrado, para assim deitares essa obra toda por terra sem tir-te nem
guar-te? Se fosses fazendeiro e se gastasses cabedal e vida a fazer a tua propriedade
e a amanhar as terras; se todos os dias regando-as com o suor do teu rosto, e ajeitando-as
com o teu trabalho, conseguisses criar as árvores de um pomarsito, por bem
pequeno que fosse, gostavas, que um alma danada te deitasse fogo à casa; ou que
te sucedesse dar o mal nas searas e o peco no pomar? Pois olha, pomar, casa, e
terras são coisas todas, que, uma vez perdidas, se podem tornar a ganhar; mas o
credito e a fama, esses é que não.
O
mestre barbeiro, que se temia do bom pobre ficava sem saber da sua freguesia, e
este então, que não era de reserva, nem homem, que gostasse de por as uvas em
pisa a outro por muito tempo, tornava-lhe logo mudando de modo de falar. — Ora
vamos, sô mestre, não desmanche créditos dos outros, pois que não pode ver
entrar o mal por sua casa; que a fama de má língua ninguém lha dá nem lha tira,
e em quanto a obra, ninguém lha desfaz, por que não a tem feita.
Era
num domingo de manhã e a loja do mestre Inácio estava a deitar por fora. O dono
da casa tinha acabado de talhar umas poucas de carapuças e encaixava-as nas
cabeças para que as talhara, quando entrou o padre prior. Calou-se logo o velho
e deu um ponto na boca; porém o padre, que lhe sabia da balda, e que desconfiou
da alhada, começou a fazer-lhe a cama, quase do feitio que acabei de lhes
contar, e por modos tais, que deixou o pobre do homem em lençóis de vinho.
Os
que por ali estavam, que não eram muito afetos ao dono da casa, e que por vezes
tinham apanhado também a sua maquia, começaram a rir, e aos ditos, mais
ajudando ainda para o deixar em talas.
Ele
já dizia mal à sua vida: para mostrar que não ia muito do vivo ao pintado, já
tinha assente um formidável lanho na cara dum pobre trabalhador, que lhe
caíra nas unhas, e prometia continuar quando um novo freguês, que entrou na
loja o veio tirar do aperto em que se via, pondo ao mesmo tempo uma rolha na boca
de todos.
Nem
mais um abriu bico. Parecia uma mó de crianças, que estando a fazer grande algaraviada
em casa de escola, vêem chegar o mestre armado de palmatória e com modos de dar
a torto e a direito. Ficam logo caladinhos, que nem ratos; mas ainda bem o
mestre não tem dado costas, tornam à mesma, ou ainda a pior, fazendo uma
ingresia infernal.
Assim
foram os nossos amigos. Alguns deles até pareceram que viam lobo, e tanto se
lhes puseram os cabelos em pé, que o mestre teve de dar mais vezes novo fio às navalhas,
porque já não queriam cortar nem por um Cristo: ele mesmo, apesar de pouco
medroso, sentiu seus calafrios, quando deu de rosto com o recém-chegado.
Este
não era nenhuma cara de meter medo, mas também não mostrava ser de muitos
amigos. Entre os trinta e os trinta e cinco, os cabelos já se lhe começavam a
encher de brancas, e a cara de rugas. Parecia triste; e sem dar nem uma palavra
esteve na loja até que lhe chegou a sua vez, barbeou-se e saiu, cumprimentando
todos à saída como o tinha feito à entrada.
Levou
consigo a calada. Apenas voltou para a azinhaga mais próxima começaram todos a
desenferrujar a língua, como se tivessem medo de que lhes ficasse lesa com o
tempo, que estivera sem bulir. E como de razão, foi o mestre Inácio, quem
atirou primeiro a sua bola.
—
Excomungado duma figa! Cruzes demônio, e embirrou com a minha loja o maldito.
—
Parece que anda em pecado mortal!
—
Pudera não, se ele desde que veio para estes sítios não foi ainda à missa.
—
E que olhos que deita para a gente? Pai do céu! É capaz de nos dar quebranto!
—
Sim, que o não deu outro dia a uma jumenta da Felícia, que desde que ele a viu
não teve uma hora de saúde.
—
Quem a Felícia?
—
Não a jumenta; se ele é lobisomem!
—
Calem-se lá, leva de má língua, parece-me que já é de mais; estarão vocês tão
limpos de consciência, para assim poderem entrar pela terra alheia, como se fosse
roupa de franceses?
Era
a voz do bom prior. Apenas tinha começado a ladainha, procurara logo pôr-lhe
cobro, mas foi trabalho de malhar em ferro frio. Era um dize tu, direi eu, que
prometia não ter fim. Todos queriam molhar a sua sopa; porém quando um carreiro
velho, que era pessoa acreditada na loja, afiançou que o tal estrangeiro tinha
embruxado a burra da tia Felícia e que era lobisomem, ficaram todos passados em
pontos de admiração por um instante, e nessa ocasião mesmo, é que o prior pôde sossegar
aquela algaravia.
Ninguém
se atreveu a retrucar. Todos tinham os seus podresitos mais ou menos, que o pároco
sabia; e por isso todos meteram a viola no saco, quando lhes foi com as mãos à cara,
falando lhes nas suas culpas. Porém o mestre Inácio, que não era homem de se
atrapalhar com qualquer coisa, quis ver se fazia frente ainda, e se podia
continuar amolando o caso.
—
Mas perdoe a sua palavra honrada, sua reverendíssima bem sabe que desde que
veio para aqui este homem ainda nem apareceu na igreja, nem em lugar de reza,
ou em festas da freguesia.
—
O que tem o mestre com isso? Todos falam, falam sem saberem o que dizem, o caso
é dar à língua. Esse homem não é nenhum herege, eu sei quem é. Se não vai à igreja,
talvez que a igreja vá ter com ele. O mestre bem sabe que não é esta a primeira
pessoa de quem se duvida; outros havia que nem por muito irem à igreja,
passavam por cristãos de lei.
O
padre tinha dado no vinte. O barbeiro ficou sem tugir nem mugir, porque se
lembrava da fama de judeu que por aqueles sítios tivera, e que lhe ia
acarretando mais de uma carga de pau; os outros, que viram as barbas do vizinho
a arder, foram deitando as suas de molho, esgueirando-se à formiga, apenas
acabaram de fazer a barba.
O
remédio do pároco não produziu efeito; por que, dias depois, já tornavam à mesma:
agora se tinham razão julguem-no lá pela história do tal homem, que mais tarde
vim a saber.
O
freguês com que tanto se estomagara o mestre Inácio, tinha vindo para aqueles lugares
havia dez anos pelos tempos das vindimas. Alugara uma casita pequena, que fica
mesmo defronte da igreja, onde está agora o Manoel Ferrador, e que tem vai por
meia dúzia de jeiras de pertenças: para ali se metera com mulher e filhita que
trazia consigo.
Parecia
gente morta, não saiam nunca, salvo a mulher, que de manhã cedo ia aos seus
arranjos: e não procuravam dar-se com pessoa alguma da vizinhança. E lá nisso
faziam bem, que a maior parte das vezes estas velhas onzeneiras e vizinhas
palradoras vão às casas dos outros para darem fé do que lá se passa, e para
depois à porta da rua, à tarde ou pela manhã, cortarem pelas vidas alheias como
ferro de arado por terra mexida de fresco.
O
que é verdade porém, é que este seu sistema, não lhe tinha criado amigos, nem
levantado uma reputação de encher as medidas. Todos murmuravam daquele modo de
viver, e estavam de alcateia sempre para ver se achavam fio à meada.
Tinham
reparado por vezes que a pobre mulher, que parecia boa pessoa, saía quase
sempre com os olhos inchados e como quem acabava de chorar; mas por mais
que se pusessem à escuta não tinham topado nunca sinais de ralhos ou rezingas:
antes se poderia dizer, se o dono da casa não tivesse tão má fama, que viviam
como Deus com os anjos.
Uma
noite, alta noite, já tinham cantado os galos, morava eu então ao pé da freguesia,
ouvi tocar a Nosso Pai fora, levantei-me e fui acompanhar o viático. Era para
casa do mesmo homem, que tinha visto, pela primeira vez, na loja do mestre Inácio,
e que estava para dar a alma a Deus.
Como
o caso não era para se estar com panos mornos, o pároco tratou de começar a
confissão, e nós quisemos sair do quarto, para deixar o doente mais à sua
vontade, como é costume. Ele porém não o consentiu, e, fazendo-nos sinal para
ficar, disse-nos com modos que me não passaram ainda:
—
Grandes foram os meus pecados, se esta história lhes poder aproveitar, que a ouçam
todos; porque só assim servirei a alguém.
Não
havia que dizer, e de mais a mais o demo da curiosidade apertava conosco. Ficamos,
e na verdade disse coisas para se ouvirem.
O
quarto estava alumiado por uma lamparina a tremelicar e a dizer adeus. A luz,
que espalhava pela casa tinha um tanto de soturna e de aterradora. Á cabeceira
estava o padre, a alvejarem-lhe as roupas e cercado por um não sei que, mais do
céu do que da terra; a seu lado, o moribundo, estendido na cama, e
estorcendo-se na agonia.
Têm
visto lá para o Minho, ao pé dos castanheiros, uma videira que levou um corte
na cepa, e que em vez de enleada aos troncos da árvore, se lhe roja pelo chão, quase
a morrer, como uma cobra, que leva com uma pedra na cabeça? Pois assim me
parecia aquela vista, bem triste que ela era!
Mas
o que me cortou o coração foi ver a triste senhora lavada em lágrimas aos pés
da cama, de joelhos, abraçada a uma criança que teria quando muito três anos,
e que, adivinhando o que ali se passava, também carpia, gritando quase sem
parar:
—
Não quero que o pai morra, não quero que o pai vá para o céu!
Era
uma dor d'alma, e tanto me impressionou aquele espetáculo, que, palavra a
palavra, me lembra do que ouvi naquela casa.
—
Meu padre, dizia o moribundo com voz sumida, conheço que a minha hora chegou, e
preciso partir para essa jornada tremenda, limpo de culpas e cheio de
arrependimento. Grande me vai esta empresa, mas com o perdão de Deus e vosso auxílio,
espero levá-la ao cabo.
—
Descanse: a misericórdia do Senhor é infinita, e se os meus socorros lhe
poderem servir, aqui estou d'alma e coração, como é meu dever, para lhos
ministrar.
—
Ouça-me pois, meu padre, e na história da minha vida veja a razão da minha
desgraça.
—
Para todo o pecado há remédio na igreja; fale, e não se arreceie.
O
moribundo começou assim:
—
De ruim semente fraco fruto poderia sair, e meu pai, Deus lhe fale na alma,
andou neste mundo, mais cuidando da vida em que vivia, do que da outra em que
devia durar eternamente.
No
seu tempo, de envolta com os livros bons, havia misturadas, como o joio com o
trigo, essas más obras vindas de França, e algumas mesmo daqui, que pregavam a
falta de religião e o desprezo pela Divindade.
Pelo
menos ele assim o acreditava, e esse efeito lhe tinham produzido. Mais tarde
vim a saber que valiam muito, mas que não era para gente rude, que não as
percebia, que só lhes apanhava o mau, mais fácil de colher, deixando de parte o
bom, que andava mais escondido.
O
mesmo acontece ao podador novato, que deita fora a vara do vinho, deixando em
vez dela as outras que devia cortar.
Mas
lá diz o rifão: quem não sabe é como quem não vê; e meu pai, andava tanto às escuras,
que fugia da luz da graça, como lobo do povoado.
Assim
me criei, e assim vivi também até agora, e Deus sabe quantos desgostos me tem
custado esta minha triste cegueira!
Pobre
de mim! Não me lembrava de que o homem anda cá neste mundo como o arado em
terra de semeadura. Se o lavrador não tem mão na rabiça ou se descuida do
trabalho, ei-lo aí vai corrido com os bois, como o homem com as paixões por
terras e ribanceiras, enterrando-se aqui a mais não poder andar, resvalando
além a não deixar rego.
Assim
me ensinara meu pai, com mágoa bastante de minha mãe, que se finava e padecia;
e assim ia criando meus filhos, se o lavrador sagrado, que lá de cima nos vê,
me não encaminhasse, lançando mão do arado, que ameaçava partir-se de encontro
aos barrancos deste mundo.
Ainda
em criança, os rapazes do sítio fugiam, quando procurava brincar com eles.
Chamavam-me o diabo pequeno, e temiam-se de mim como do fogo. Eu em
paga escarnecia-os por irem à igreja, ou dava-lhes pancada de cego quando
fugiam de brincar comigo.
Todavia
sofria imenso por me ver sozinho.
Os
entretenimentos de criança, que tanto agradam nas primeiras idades, não eram
para mim, que vivia como o espargo no monte, à ventura e ao desamparo.
É
voz do povo: só se veja quem só se deseja, e rifão bem verdadeiro. Também o é
que a solidão nos dá maus conselhos e causa os maus pensamentos.
A
planta lançada à terra sem cultura e sem cuidados, vegetando em mau torrão,
crestada das geadas e dos soes, e sacudida dos ventos; se cria vigor e
robustez, também ganha espinhos para os troncos e amargo para os frutos.
Entregue
só a mim, conhecia que o coração se empedernia e apertava, ficando de rija
tempera, sem se dobrar à compaixão nem ao amor do próximo. Se eu era assim, a
culpa não era minha de todo; mas o castigo, esse aguentei-o em cheio.
Muito
em criança me faltou minha mãe. E a triste consolação de a acompanhar à sepultura,
de rezar por ela na igreja, de lhe derramar lágrimas e água benta sobre a cova,
foram coisas que a minha má sina me proibiu.
Entrar
na igreja, eu, e provar fraquezas dobrando-me a pedir ao Senhor! Não o podia,
era de vil, e não de um espírito forte e desamparado de credulidades de velhas.
Ir sobre uma pouca de terra, onde alguns ossos ficavam e a carne se apodrecia,
recitar orações, em que não acreditava, era loucura que não devia praticar!
E
assim, padre, com a morte de minha mãe perdia eu muito mais do que outros a
quem semelhante desgraça sucede. Esses ao menos esperam tornar a vê-la na outra
vida, e a morte somente lhes é como separação de pouco tempo.
Para
mim era o apartamento eterno. Aquela cova roubava-me minha mãe para sempre.
Nada ali me podia falar e a terra ficava muda, como os céus já de há muito o
eram para mim.
O
que senti então, Deus o sabe, que eu nem o posso dizer nem mesmo sei o que foi.
Era como a planta enfezada, que se lhe vê partir o extremo esteio, sem
encontrar mão amiga que a ampare, e que desde então receia a menor aragem que a
faça encurvar, ou o menor encontro que a derrube.
Cresci,
cresci, e a descrença continuou a crescer em mim. Semelhava-se aos animais na
dureza; a muitos na ferocidade, a todos no embrutecimento.
Por
estes tempos ainda se me apresentou ocasião de emenda; mas regato que de
principio erra o caminho, não é quando se lhe engrossa a corrente com as cheias
que pode tornar ao leito; nem planta que de pequena vai torcida, pode, quando
cria maior tronco, ganhar a direitura que perdeu.
Uma
mulher daqueles sítios, que vivia recatada em companhia de sua mãe e
resguardada por ela, como o fruto pelas folhas, reparou em mim uma vez e
tomou-se de amores por quem não a merecia.
Estas
coisas não se explicam. Porque há de a violeta dar-se e florescer escondida,
quando outras flores por aí, que menos merecem ser vistas, não se querem senão
nos jardins a bom recato e bem cuidadas?
Porque
há de aquele pedaço de ferro dos relógios de sol aqui do campo voltar-se sempre
para o mesmo lado; ou porque há de a flor das boas noites abrir-se ao por do
sol e cerrar-se quando ele nasce?
Porque
há de a mulher perder-se de amores pelo homem que vê pela primeira vez, e que
muitas vezes a esquece depois?
São
mistérios da natureza, que ninguém pode devassar, mas que nem por isso deixam
de existir.
Joana,
é o nome dessa infeliz que aí me chora aos pés da cama, amou sem que lho
merecesse, e o seu amor, em vez de me abrir os olhos, mais mos cerrou ainda.
Comecei
a querer-lhe também. Como foi não o sei: mas desde esse momento todas as tardes
nos procurávamos, e todas as tardes repetíamos juras de um amor eterno.
Começaram
a estreitar-se as nossas relações como duas plantas que uma à outra ligadas
mais se apertam com o crescer. Já na aldeia se murmurava, e já se espalhavam
rumores contra a pobre Joana, que se amofinava e entristecia.
Um
modo fácil de remediarmos tudo era o casamento; porém eu que não
acreditava na santidade daquela ligação, não queria, nem por sombras, cair em
semelhante fraqueza.
Ela
acreditava em mim como num livro aberto. Convenci-a da loucura de seus desejos,
e da fé que me prestava, nasceu a descrença na fé em que se criara. A minha
maldade crestou a inocência daquela virgem, como o mau vento cresta a relva: e
a apaixonada donzela conheceu que era mulher, e envergonhou-se de o ser.
Como
a flor que perde as folhas e as belezas quando se lhe desenvolve o fruto, também
ela perdeu as rosas nas faces e as canduras da alma, quando conheceu que ia ser
mãe: e de pejo do que sofrera, encerrou-se na sua mágoa, como certos vermezinhos
se envolvem no casulo que lhe serve de proteção.
Para
ninguém podia já ser mistério o seu estado: a pobre mãe, que via a perdição da
filha, deixou-se finar de magoa.
E
nem uma flor desfolhamos sobre a sua sepultura; nem uma queixa soltou a
infeliz, porque dores daquelas, não há palavras que as expressem, como não há cores
que possam representar o negrume da tormenta.
Nossas
mães, que hoje estão no céu, quantas lágrimas não carpiriam juntas, ao atentar
nos desventurados erros de seus filhos; mas por mais que sobre nós elas caíssem,
de nada poderiam servir, como nenhuma chuva pode fertilizar o terreno maninho,
ou a charneca estéril.
Desde
então, padre, a minha vida tem sido um penar continuado, um sofrimento sem
cessar.
O
remorso rala-me a alma: a lembrança daquelas santas atormenta-me de dia e de
noite: a vista da mulher, que perdi, desvaira-me; e a ideia da minha filha, a
filha querida da minha alma, a quem não posso dar nome perante Deus, porque não
foi ainda purificada pela água santa do batismo dos pecados de seus pais, nem
perante os homens, porque seu pai e mãe não se podem assim chamar à face de
mundo, quase que me enlouquece.
E
a dúvida a perseguir-me como um demônio agachado em lugar santo, e eu a
abrir-lhe os braços como a seara ao fogo que a vai consumir, e a cerrar os
olhos à fé, como a toupeira à luz do sol.
A
natureza com as suas grandezas todas, a flor com o seu aroma e cores, a ave com
o seu cantar, o céu com as suas estrelas, e o mar com as suas ondas de prata,
tem sido harmonias perdidas, que só me falam do acaso e que nada mais me fazem
lembrar. Tenho cerrado os olhos à luz e a alma à razão. Não tenho procurado
coisa alguma no passado nem esperado do futuro.
Tenho
sido o navio sem rumo e sem norte, que navega à tona d'água; o viajante
perdido, que não encontra fim ao caminho, nem trilho para voltar a donde
partira.
Para
que viera a este mundo, quando por acaso mo perguntava a mim mesmo, era o que
não sabia dizer; e cansado de o perguntar sem resposta, mudo de pensamento como
o mendigo de porta a que tem batido debalde. Tenho-me suposto feliz e tenho
vivido como as feras; tenho-me julgado senhor de mim porque não tenho conhecido
o Senhor de todos.
Mas
há dias tudo se mudou em mim. Minha pobre filha saíra de manhã, e esteve lá por
fora mais do que o costume. Perguntei-lhe o que fizera, porque se demorara: e a
sua resposta foi como a luz da madrugada rompendo em descampado para o viajante
perdido.
"Meu
pai, me disse, quando sai, ouvi ali defronte uma musica tão linda, tão linda
como ainda não ouvira em minha vida outra semelhante. Vi uma porta aberta e
entrei para ouvir melhor. Era uma casa muito grande, muito grande, e onde
estava muita gente de joelhos.
"A
musica vinha de uma janela de grades, donde saiam também vozes de
senhoras; e os que ali estavam pareciam tão entretidos, que nem deram pela
minha entrada. Com medo que me repreendessem por ter entrado sem licença,
perguntei a uma mulher, que me parecia boa pessoa, quem eram os donos daquela
casa tão grande e que tão ricos deviam ser.
"Admirou-se
da pergunta e disse-me se lhe falava deveras.
"Deveras,
minha senhora, eu não conheço ninguém desta terra; vim há pouco tempo para aqui
com meu pai e minha mãe, e nunca saio de casa.
"Pois
olhe, minha filha, esta casa é uma igreja, e seus donos são aqueles que além
estão, pai e mãe dos homens e do céu.
"Olhei
e vi uma senhora e um homem, que me pareceram tão bons, tão tristes, que
desatei a chorar.
"Ele
estava de braços abertos, como o papá quando me chama para o seu colo, e ela
parecia-me minha mãe, mais bonita ainda, quando está ao pé da cama olhando para
mim com os olhos arrasados em lágrimas, enquanto não adormeço.
"Eu
queria-lhes falar, meu pai, conheço que me haviam de dizer muitas coisas boas,
mas como me tem dito que não quer que converse com pessoa nenhuma de fora, tive
medo que ralhasse comigo, fui-me embora; mas com tanta pena! Por minha vontade
estava ali sempre a olhar para eles até que olhassem para mim, e me falassem também."
Como
ela chorara, chorei eu então. Aquela voz infantil veio despertar-me a fé
adormecida, como à mãe extremosa, quando a dormir, os choros do filho querido.
Desde
esse momento um raio de luz alumiou-me as trevas, em que vivia. A flor, a
terra, o mar e o céu, tiveram vozes que me falavam e que eu percebia.
A
flor erguendo-se para as alturas; a terra levantando ao romper do sol os
vapores tênues da madrugada como rolos de incenso à Divindade; o mar eriçando
o seu dorso de vagas ao sinal da tormenta e coroando-se de espumas; o céu
recamado de estrelas, recordavam-me a existência de Deus, criador de tudo que
me cercava, e que em tudo tinha estampado o selo de suas mãos como o artífice
nas suas obras.
Também
o Senhor, que se parecia ter esquecido de mim, ao ver-me arrependido lembrou-se
de que existia: quer me chamar à sua presença, como o pastor, que ao ver
melhorias na rês contaminada, que lançou a monte, procura, pelos cuidados e desvelos,
livrá-la das enfermidades e males.
Hoje,
padre, que avisto a imensidade da morte sem receio, e a eternidade sem pavor,
hoje que tenho fé no meu Deus e esperança na salvação, peço-vos, padre, a
benção para o contrito, e absolvição para o pecador.
—
Eu te absolvo, disse o padre com voz solene, que por muito tempo me estrugiu
aos ouvidos, e o Senhor de caridade vos perdoa por minha boca.
Neste
momento em lágrimas chegou-se a pobre Joana ao leito do moribundo: e a
filhinha, que a acompanhava, ficou debaixo dos jorros d'água que corriam em fio
dos olhos de seus pais.
O
pároco atentou naquela vista, e como levado por ideia do céu, disse, abençoando
a criança:
Eu
te batizo em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo; as lágrimas de teu pai
e as de tua mãe, pecadores mas arrependidos, essas lágrimas de contrição, tão
gratas a Deus, te sirvam de água de batismo. Vai em paz, és cristã.
Logo
em seguida tratou de casar aqueles dois, que pela alma e pelo amor já estavam
casados; e acabada a cerimônia, a alma do agonizante, que nada mais tinha que a
prendesse à terra, começou a soltar-se do corpo para voar à morada eterna.
Ele
conheceu-o, e com voz dificultada pela agonia disse ao sacerdote:
—
Abri-me essa janela meu padre, vou morrer, quero adorar ainda o Criador na sua
obra.
Um
de nós correu a satisfazer-lhe a vontade. Já era manhã, e o sol vinha aparecendo
fronteiro a romper por entre labaredas de fogo; o padre estava de costas para a
janela; o vulto recortava-se-lhe sobre a luz, e os seus raios pareciam
formar-lhe um resplendor de santo. — E se o era!
Desviou-se
para o lado, e um raio de sol veio bater de chapa na face do agonizante;
parecia um sinal mandado por Deus em prova de perdão.
Foi
ele quem chamou de novo à vida o que parecia já um cadáver, e lhe deixou
proferir com grande esforço estas últimas palavras:
—
Iluminai minha alma com a vossa divina graça, como me alumia agora o sol, que
desponta no firmamento, perdoai-me Senhor!
Passados
momentos, o padre rezava sobre o cadáver as rezas de defuntos, e no dia
seguinte nós todos íamos com os olhos arrasados de lágrimas, conduzir à sepultura
o cadáver daquele a cuja morte tínhamos assistido.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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