NOITE DE NÚPCIAS
Era já muito tarde, seguramente dez
horas da noite, e ainda passeávamos ao longo da praia.
Os pescadores dormiam em suas
casinhas.
O Pecém, esse pequeno arraial
marítimo, estava naquela hora submerso em profundo silêncio. De vez em quando,
apenas os choros da criancinha acordada em sua tipoia, ou o latido do cão à
porta de seus amos, denunciavam a existência de uma povoação nessas paragens.
Se isto não fora, diríeis talvez uma aldeia abandonada pelos errantes filhos da
selva.
Eu e Antônio, o pescador que me
acompanhava no passeio noturno, muitas vezes parávamos, nos sentávamos no
morro, e calados contemplávamos o arraial em seu remanso, e o mar em seu
agonizar sem tréguas.
Gosto de passear assim em deserta
praia. Nada mais belo, mais imponente, mais sublime para mim, em todo o
universo, do que o mar nos lugares ermos.
Não me lembro do que senti à
primeira vez que o avistei. Talvez pouco me impressionasse, porque nasci
ouvindo sua gemedora e monótona toada e cedo acostumei-me a vê-lo da calçada de
minha casa.
Depois...
Menino, saltei muitas vezes rindo e
folgando na praia, no meio de alegres companheiros; e então apenas reparava
naquele alvo e macio banco de areia, como que de propósito preparado para os
brinquedos da manja, ou tempo-será: — talvez senti gratidão para com o bom Deus
por tê-lo feito. E moço, passeei em suave meditação.
Encantava-me o mar, admirava sua
grandeza; mas, perto estava a cidade com seus rumores; — aqui os barqueiros, os
pescadores; além os navios, o vapor, a despoetizá-lo, a marear-lhe a beleza e a
sufocar as melancólicas notas de suas vagas.
Um dia, porém, visitei-o no
deserto. Fiz a viagem por campos arredados de sua margem, e procurei-o no lugar
Taíba, naquele pedregulho vermelho que o invade, provocando-lhe as iras.
Era ao descair da tarde. Os
passarinhos voavam ao derredor do pouso. O sol escondia-se longe, atrás das
montanhas. E a gaivota deixara o ranchinho da praia, onde saltitara durante o
dia procurando surpreender os peixinhos.
Atravessei um grande morro de mais
de meia légua de largura, e com um grito de assombro parei ante o mar, ante o
maravilhoso quadro que se descortinava a meus olhos!
As vagas quebravam-se raivosas nas
rochas broncas e furadas do cerro, invadindo os antros e uivando como onça
surpreendida na furna. O vento zunia com força, puxando-me os cabelos e a
roupa, arrancando-me o chapéu; e a seu impulso passava a areia, desfaziam-se
aqui os morros e formavam-se além.
Em frente, as ondas agitadas,
buliçosas, rugidoras — o mar, o infinito d’água; ao redor, o areal sem termo,
despovoado de verdura; em cima, o céu azulado a desmaiar, a escurecer-se: por
toda a parte o deserto.
Fiquei parado por muito tempo —
estúpido, completamente estúpido. Não pensava, não tinha sequer uma ideia a
esvoaçar-me na mente. Olhava para aquilo sem compreender... como que sem vida,
sem sentidos...
Na imensidade de um sentimento
qualquer — dor, alegria ou espanto —, fico sempre assim: para-me talvez o
sangue nas veias e minh’alma adormece. Depois, despertando do êxtase ou torpor,
se a sua causa foi a angústia, corre-me opimo o pranto pelas faces; se a
alegria, brota-me o riso nos lábios; se o espanto, as ideias volvem, o
pensamento trabalha rápido.
Acordando então, senti um terror
indizível: o medo traspassou-me a medula dos ossos. Era quase noite, e eu ali
naquele ermo areial, junto daquele mar bravio, e também deserto! Como me
conheci pequeno em frente daquela grandeza! O que era eu senão miserável
argueiro? Receei que o vendaval me levasse em suas asas, que as ondas crescessem...
crescessem e me arrebatassem da terra para esmigalhar-me nas penedias, que
surgisse daqueles abismos um monstro... uma avantesma, e me levasse para as
grotas do fundo ao mar...
Passado esse terror infantil, filho
da consciência de minha pequenez, veio a reflexão, o raciocínio, a admiração...
Saudei em maviosos hinos do coração
aquele mar sem fim, as carpidoras vagas, o areal branco e móbil, os rochedos
vermelhos, a renda de nevada espuma que enfeitava o verde manto do oceano, a
humilde conchinha da praia, o vento, a solidão... finalmente Deus, o prodigioso
autor daquelas belezas.
E deixando a Taíba, poucas horas
depois eu passeava no Pecém, onde me encontra o leitor, e onde tudo isto eu
recordava, ao lado do pescador Antônio.
Era lindíssimo o luar.
As águas brilhavam e mais ainda o
peixe que pulava brincando de vaga em vaga. E nós conversávamos despertando de
vez em quando o tetéu, nos alagadiços vizinhos.
Ouvindo um de seus assustados
gritos, disse-me Antônio:
— O tetéu não dorme, é a sentinela
do bosque.
— Como é o tetéu, senhor Antônio?
— Pois não o conhece?
— Não; somente o nome.
— Então escute: o tetéu é um
passarinho de cor arroxeada como a da rola, papo preto, encontros brancos; e
tem no alto da cabeça uma pena maior, assim a modo de penacho. Seu biquinho é
comprido e preto cinzento. Põe dois ovos no chão limpo, e apenas come lodo e
bichinhos d’água. Quase não dorme; passa a noite com um pé erguido e as asas
abertas: quando cai o pé ele desperta e o mesmo acontece se fecha as asas, pois
estas têm um ferrãozinho que o fere. Assim não pode pegar no sono e; ao menor
barulho grita, e voa dos alagadiços onde vive.
— E não pousa nas árvores?
— Não, senhor, que ele não pode; tem
os dedos tão curtos, que não se seguram nos galhos...
— Coitado, está sempre velando...
— É isto mesmo — vê anoitecer e
amanhecer quase sem pregar olhos, como o pobre ferido n’alma pela dor, ou
estorcendo-se na agonia da fome.
— Já sentiu alguma vez dor muito
grande, senhor Antônio?
— Já... muito... muito...
— Aqui mesmo?
— Naquela palhoça que ali embaixo o
vento rasga sem pena.
— Faz-me um favor?
— Dois e três... vosmecê manda, não
pede.
— Conte-me a história dessa grande
dor.
— Não é melhor ficar para amanhã?
— Agora. O silêncio convida; e
ninguém nos interromperá a não ser o tetéu, o símbolo do cuidado incessante.
Está com sono?
— Ora, meu senhor... os jangadeiros
acostumam-se a não dormir. Este que vosmecê está vendo seria muito feliz se
tivesse de Padre-Nossos para sua alma, as noites passadas em claro, no meio das
ondas, com o anzol n’água, sem pescar um coró. Há dias de completa infelicidade
para o homem do mar. Os filhinhos choram com fome, a esposa alonga a vista
pelas vagas, ansiosa esperando a jangada; e o pobre, na solidão das águas,
debalde prepara a linha, muda de lugar e suplica a Deus um peixe ao menos...
Nada. Parece que o demônio vira-se em tubarão para perseguir a tudo que se
aproxima do anzol. Ai, e que tristeza e desânimo no pobre, quando com o samburá
vazio e a quimanga limpa, volta à tarde para sua casinha!
— Mas, conte-me a história.
— Vou contar-lhe a do meu infeliz
amor. Escute. Está vendo aquela casinha cercada de coqueiros, acolá na volta da
praia?
— Que tem um jataí ao lado, não é?
— Sim, senhor, aquela mesma; pois
foi lá que sucedeu isto que vou contar-lhe.
E contou-me o seguinte.
CAPÍTULO 2
Eu andava com os meus dezessete
anos, pouco mais ou menos, quando me engracei de Carolina. Era uma moça muito
bonita, senhor, e mais do que todas para os meus olhos. De corpo mimoso e
franzino — parecia-me uma sombra, que pouco a pouco vai desaparecendo, um sonho
da madrugada, uma visão que não sei explicar. Seu olhar era preguiçoso e terno
como a luz do sol no poente; e o sorriso ligeiro e esperançoso como relâmpago
ao longe em tempos secos. Mas, algumas vezes, senhor, esse olhar brilhava
ardente como o areal ao meio-dia; e o sorriso estalava contente como a chuva de
abril, ou igual aos sorrisos de menino. Isto acontecia pouco, pois o natural
dela era a tristeza.
Carolina morava com sua mãe, que
era uma pobre velha muito chegada a Deus e dada com todos. Seu pai morrera de
maleitas, deixando unicamente a pobre casinha e o costume do trabalho. E, Deus
louvado, nada lhes faltava, porque mãe e filha, fazendo rendas, cosendo, ou
fiando, bem sabiam ganhar o bocado com o suor do seu rosto. Demais, a velha era
parteira e entendida em mezinhas, e por isso todos a serviram para tê-la em
suas enfermidades.
Ninguém censurava Carolina quanto à
sua honestidade. Não, senhor. Em suas visagens, em seu viver diferente do das
outras, sim, é que reparava-se e muito! Tinham-na visto em noite de luar,
sozinha pela praia, com os cabelos soltos, ora a soluçar penosa, ora a cantar
umas toadas ternas; e havia até quem afiançasse que a descobrira nas ondas em
uma noite de grande tempestade! Queriam alguns que ela tivesse comunicação com
as almas penadas; e outros, que estivesse com o juízo meio desmantelado! Mas,
tudo isto dizia-se baixinho para que a velha não ouvisse, e zangada se negasse
depois ao curativo dos doentes.
Eu não acreditava nestas cousas,
senhor. Para mim, a Carolina não era mais do que uma menina triste por
natureza, calada e pensativa, que mais gostava de viver só, do que na folia das
outras. Como vosmecê não ignora, basta que uma pessoa se afaste de seus
costumes, não viva a seu jeito, para o povo imaginá-la da maneira mais extravagante.
E não me enganava. Carolina nascera
propensa à tristeza e à solidão, e isto tornava-a formosa como a tarde nos
momentos d’Ave-Maria.
Nesta hora de sombra e saudades, em
que a gente volta-se para o passado, ela largava o trabalho e passeava pela
praia, ou à porta da casinha sentava-se com os olhos fitos nas ondas. E eu a
procurava então, e quase sempre calado sentava-me perto, a mirá-la sem
fartar-me, como o menino à vela da jangadinha de seu pai na linha do mar.
Sem que eu lho dissesse, Carolina
compreendera o amor que me queimava o coração, e se não o correspondia como eu
quisera, senhor, não deixava de tratar-me bem e ouvir-me com toda a atenção.
Mas, quando na conversa eu lhe dava a entender o meu estado e desejos, ela suspirava
sem responde-me, e derramava um dos seus olhares lânguidos em meu rosto e
depois sobre os mares. Tratava-me como se eu fora seu irmão e a velha
chamava-me seu filho.
Não me bastava tão pouco, para
matar a sede que me devorava a alma. Ardente e apaixonado, perto via a
felicidade; e minha vontade, pois, era correr... para não gastar tempo no
caminho. E que me importava a pobreza, os contratempos, o mundo... tudo?...
Possuindo Carolina, eu seria o homem mais venturoso da terra e... não sei dizer
o que sentia, o que se sente nessa idade! Vosmecê passou sem dúvida por tudo
isto, conseguintemente compreende o que não lhe posso explicar.
Entendi-me, pois, com a velha; e
esta sorrindo-se assegurou-me sua aprovação, aconselhando-me todavia que
falasse com franqueza à Carolina, para saber — do sim, ou não.
Falei... Trêmulo e confuso
supliquei a Carolina que decidisse logo de minha sorte... E ela estremecendo
respondeu-me:
— Gosta de ver-me, de acompanhar-me
nos passeios, de conversar comigo?
— Sim, Carolina, sim...
— Pois continuemos como até hoje.
Sejamos irmãos. Talvez mais tarde...
— Carolina! e por que não agora?
— Cale-se... Não diga mais nada...
me obedeça...
E olhou-me com tanta graça, que não
pude continuar. Ela tinha um poder sobre mim, senhor, um poder... que me dominava.
Ao menor de seus desejos eu obedecia, como se fora uma ordem do céu. Até seria
capaz de lançar-me às ondas do furor de uma tormenta, de precipitar-me nas
chamas, e mesmo de esfaquear-me a seus pés se ela mo ordenasse! Não é
exageração, senhor. Ainda hoje não sei como era aquilo... e muitas vezes matinando
o juízo levo horas e horas a procurar uma razão para esse tanto.
Calando-me, fiquei a seu lado algum
tempo, triste e desanimado. Olhávamos ambos para o mar, que perto agonizava sem
esperança. Depois tocando-me levemente com sua delicada mãozinha, riu-se com
inocente alegria, e me disse:
— Está zangado comigo, não é?
Mau!... Por que é mau?
Eu suspirei apenas. Então, mudando
de tom, quase séria, ela acrescentou:
— Ama-me... e não pode esperar! Por
que tão depressa?... Pense primeiro para não se arrepender depois. Olhe, às
vezes a gente procura uma flor... É tão bonita; seu perfume tão doce...
Apanha-se a flor, a pobrezinha emurchece, e no outro dia seca abandonada no
campo...
— Não diga isto, Carolina! Escute:
não há força no mundo que me faça deixar de amá-la! Você me governa. Minha vida
é sua! O que quer que eu faça, Carolina?...
— Ama-me então muito, não é?
— Sim, Carolina, muito, muito!
E ela calou-se, calou-se pensativa,
e se eu deixava escapar algumas palavras, estas caíam na areia e nem ao menos o
eco as respondia.
Contei à velha o resultado da minha
empresa, instando para que me ajudasse. Falou-me assim:
— Não é bom vexá-la, não; Carolina
é meio esquisita e pode aborrecê-lo. Continue como vai, que o tempo fará o
resto.
Tomei este conselho, que outro não
tinha a tomar. E que havia eu de fazer, senhor? Se teimasse em pedir-lhe o sim,
Carolina tomaria desgosto e me fugiria talvez. O melhor partido, pois, era
esperar que aquela mulher diferente das outras se condoesse de mim.
A gente da praia certamente
reparava na demora de nosso casamento e o que dizia não sei. E tinha razão,
porque aqui esses negócios não se demoram: — o rapaz enamora-se da rapariga e
dito e feito, casa-se logo.
Entretanto eu continuava a esperar,
pedindo a Deus que encurtasse o tempo de tamanha delonga.
Como já contei a vosmecê, Carolina
no meio de sua tristeza habitual tinha horas de uma alegria de menino. Corria
então na praia atrás da folha que o vento levava, provocando-me para o mesmo, e
rindo-se da menor cousa. Pobre criança! Com que singeleza e graça ela me dizia:
— Olhe, Antônio, tenho vontade de
descer ao fundo do mar para ver as sereias... Vivem cantando entre as flores de
seus jardins. Seus palácios são de uma beleza que não podemos imaginar, não
são? — Repare como aquela vaga abraça-se com a outra... Ai, desmancharam-se
depois do abraço! O amor... escute: não, não escute... Sou uma doida, não é,
Antônio? — A nambu está marcando as horas. Conte. Uma, duas, três, quatro,
cinco... Cinco sorrisos da nambu são cinco horas. Quem ensinou a nambu a marcar
assim as horas? — Tenho inveja da gaivota que voa de mar adentro... Vai passear
nas outras terras, não é, Antônio? Dizem que as outras terras são tão
formosas...
E falando nas outras terras, ela
recaía em sua meditação, e mandava-me embora.
— Por que já não me quer em sua
companhia, Carolina?
— Nada... não diga nada; faça o que
lhe mando...
E eu me retirava agastado e triste
sem poder compreendê-la.
CAPÍTULO 3
Vivíamos assim, nesta incerteza,
nestas esperanças e desesperanças, quando arribou a esta praia um navio, que
demandava o porto da Capital. Precisava de um pequeno conserto, e por isso
devia demorar-se aqui uma semana.
Os marujos, como costumam, saltaram
logo em terra e percorreram todas as casinhas, procurando bebidas e frutas, e
travando relações com as famílias.
Tornou-se isto a novidade desta
praia.
Todos falavam em tal; no agrado dos
marujos, nos presentes que faziam e recebiam, nas visitas ao navio e no parente
ou antigo conhecido que haviam encontrado.
Cada qual, senhor, tinha a sua
história a contar, a sua opinião a respeito, e um elogio para os marujos que
sem pena gastavam, e mais ainda mandavam encher os copos.
Infelizmente não escapou dessa
revolução a casinha do jataí! Os marujos visitaram-na e um deles, o comandante
ou mestre do navio, moço bem apessoado, puxando conversa com a velha, descobriu
não sei como, que ainda vinha a ser seu parente!
Quando eu soube disto, senhor,
doeu-me o coração como se o tivessem arrochado com uma corda. E desde então,
largando
o trabalho pus-me a rondar aquela
casinha, com medo que me roubassem a felicidade.
E Carolina reparando agastou-se e
ordenou-me que mudasse de vida!
Mas, o que havia de fazer? Diga-me
vosmecê... O que eu havia de fazer se um pressentimento cruel, um ciúme
devorador me alucinavam?...
Todos os dias o tal marujo vinha a
terra e todo tempo passava na casinha do jataí... A velha recebia-o com agrado,
tratando-o por sobrinho, aceitava seus mimos e preparava-lhe o comer; e
Carolina não se fartava de indagar por essas terras desconhecidas... da outra
bando do mar... que o velhaco do primo pintava como se pinta o céu.
E ouvindo-o, ela ficava como que
triste e pensativa.
Uma tarde o comandante as convidou
para um passeio a bordo. A velha não queria ir — tinha receio de enjoar; mas
Carolina instou tanto, que... poucos momentos depois embarcavam, demandando o
navio. Eu estava então pescando numa jangadinha da costa e tão distraído, que
não dei fé do escaler, senão quando poucas braças distava, quando já não me era
possível remar e fugir de um quadro que me trazia o desespero.
Carolina ao ver-me gritou batendo
palmas e sorrindo:
— Antônio... está dormindo,
Antônio! Ande... venha também passear no navio...
Eu não respondi, senhor, que meus
beiços tremiam como no frio das maleitas.
— Ande, Antônio — continuou ela —,
que maluco aquele, nem responde a gente!
— Está dormindo e sonhando com os
peixes — disse o comandante.
E voltando-se para mim,
acrescentou:
— Camarada, acorda e pesca para me venderes
teus peixes!
— Prefiro lançá-los ao mar.
— Que paspalhão!
— Infame! vem dizer isto perto! —
tornei-lhe furioso.
— Não repare no que ele diz, meu
primo... o pobre rapaz anda com a bola virada — acudiu Carolina.
— Coitadinho! — concluiu o
comandante com faceirice.
E riram-se todos da graça,
afastando-se de minha jangada, e eu fiquei soluçando, senhor, e pedindo a Deus
uma tormenta que nos esmagasse a todos... que soltasse raios e ordenasse aos
mais desenfreados ventos que descessem, trouxessem as nuvens mais negras,
remexessem as ondas e nos afogassem todos — a mim com tamanha angústia, àquela
mulher com a sua ingratidão, ao marujo com a sua perversidade e à velha com seu
criminoso descuido! Nosso Senhor me perdoe este e outros pensamentos maus do meu
desespero.
Era noite quando voltaram do navio,
Carolina quase desmaiada, segurando-se no braço do comandante, e a velha do
outro lado, bastante abatida pelo enjoo. A velha dizia:
— Eu bem não queria ir, Carolina!
Agora cairás doente... Isto só pelos meus pecados...
— Não foi nada — tornava o
comandante —, com o descanso isto passa; amanhã Carolina acordará boa...
Eu os escutava escondido e assim
acompanhei-os à casinha. O comandante logo se retirou dizendo:
— É preciso que descansem... não
quero importuná-las.
Amanhã voltarei para conversarmos.
Eu andava, senhor, em termos de
perder o juízo. Já uma semana passara e o navio ainda no porto! E cada vez mais
curtas as visitas do comandante à casinha do jataí e mais estreita a amizade!
Ao mesmo tempo eu procurava
encontrar-me só com o meu rival. Queria provocá-lo... brigar com ele e matá-lo
ou ser morto! Mas, porque ele desconfiasse, ou porque Nossa Senhora do Amparo,
minha madrinha, me socorresse, nunca achei ocasião para tal. Ah, se eu tivesse
podido... Deus me perdoe, o meu ódio àquele homem era tão grande como o meu
amor à Carolina, e maior que o meu amor... nem sei!
Quando voltaram do navio, e logo
que se retirou o comandante, entrei na casinha, mais do que nunca sombrio e
pesaroso.
Nunca viu, senhor, ao aproximar-se
a tormenta, como a costa torna-se escura, triste e horrível? Assim meu coração.
Carolina sentada junto à sua rede,
pensava calada, enxugando, para que a mãe não visse a lágrima que lhe corria
dos olhos e a velha, recomendando-lhe que se deitasse, preparava-se para sair a
visitar uma doente que ela tratava perto.
Assustaram-se quando entrei, vendo
talvez em meu rosto a tempestade que no coração estalava.
Disse-me logo a velha:
— Estou muito zangada com você,
Antônio... Como é que sem razão tratou há pouco daquele modo a meu sobrinho?
— Carolina é a culpada — respondi
estremecendo.
— Eu? — disse Carolina
enraivecendo-se rapidamente — pois tenho culpa de sua malcriação? Que há de
dizer o primo, sabendo que estimamos e damos entrada em nossa casa a um homem
tão grosseiro?
— Tem razão, Carolina; além do que
tem feito... mais o insulto!
— O que é que ela tem feito? —
acudiu a velha. — Tratar bem ao primo? Há nisto algum mal? Pois era para você
andar cheio desses ciúmes? Antônio, o homem ciumento não pode fazer feliz a
mulher com quem se casa, porque do ciúme nascem as maiores loucuras...
Ciúme... cega, que não enxergava o
precipício a seus pés!
— E faça eu o que tenho feito ou
mais ainda, o que é certo é que não lhe devo contas! — continuou Carolina. — O
que lhe prometi? Disse-lhe acaso, que correspondia ao seu amor? Ora... também
muita impertinência aborrece a gente!
Era tremendo o golpe; eu não o
esperava. Desatei a chorar, a soluçar como criança...
Condoída por isso, a velha mudou de
tom e procurou consolar-me.
— Seja homem, Antônio, deixe estas
fraquezas para as mulheres e meninos... Não repare no que disse Carolina; são
arrufos por causa de seu ciúme... Ela não deixou de amá-lo, e Nossa Senhora não
permita que eu morra sem os deixar casados.
E eu sem atender às consolações da
velha, dirigi-me à porta e soluçando ainda disse à Carolina:
— Pois bem, Carolina, não hei de
aborrecê-la mais com as minhas impertinências, e nem você se envergonhará daqui
em diante de meus modos grosseiros. Mas, Deus enxerga até na mais escura noite
e lê nos corações. Ele conhece todo meu amor, quais as minhas intenções... Que
não me perdoe as culpas, se não penso somente em sua felicidade, minha
felicidade também. Um dia, Carolina, você há de arrepender-se; talvez bem
tarde... Adeus... Não saio querendo-lhe mal, porque isto me é impossível... mas
vou chorar longe — onde meus soluços não a importunem.
E saí sem esperar a resposta, e só
Deus sabe o quanto sofri então.
Para encurtar a história, senhor,
não tardou em realizar-se a desgraça que meu coração pressentia. Um dia o navio
anoiteceu e não amanheceu no porto. Saíra à noite, levando Carolina para essas
terras estranhas, terras de seus sonhos, e com ela a vida da imprevidente
velha, que não pôde resistir à ingratidão da filha e minha ventura, o encanto
de minh’alma!
E Antônio interrompeu aqui a sua
história, profundamente comovido, e com os olhos nadando em lágrimas.
Momentos depois, contou-me o resto,
mas de um modo tão singelo, tão original, com tanto suspiro, reticência e unção que, embora me esforçasse, não poderia
reproduzi-lo com fidelidade.
Fá-lo-ei, pois, livremente.
CAPÍTULO 4
Carolina acreditara nos protestos
do marujo. Este, notando a sua fatal inclinação para as viagens, além de
assegurar-lhe o casamento, falava-lhe sem cessar das terras estranhas — dessas
outras terras em que ela pensava dia e noite e que surgiam em seus sonhos de
adolescente como oásis do mais ditoso afeto.
— Sim, Carolina, verás as
cidades... Como são bonitas as cidades! Ruas de palácios deslumbrantes...
músicas... divertimentos por toda a parte! Irás ao teatro...
— E o que é o teatro?
— O teatro é o que há de mais
divertido e lindo neste mundo! Muitas moças de ricos vestuários; uma música
deliciosa que arrebata... enfim, homens e mulheres a representarem acontecimentos
da vida, como se aquilo fosse real! Nem eu sei dizer-te
— só vendo!
— Deve ser muito bonito, não é?
— Muito! E os bailes? Nem é bom
falar nisto...
— Fale, diga como são os bailes...
— Dourados salões, enfeitados de
cheirosas flores, e nestes os moços dançando com as moças. O sangue da gente
ferve nas veias... Luzes sem conta... parece dia... O coração estremece de
entusiasmo ao som dos instrumentos...
Os olhos de Carolina brilhavam
então como estrelas em noites de estio, o seio arfava-lhe e ardente o hálito
entreabria-lhe os lábios trêmulos de comoção.
— Mas, não poderei ir a esses
bailes, pobre como sou!
— Casarei contigo e possuo bastante
para comprar-te sedas e levar-te aos bailes...
— E se me enganar?
— Carolina! Não digas isto nem por graça... Juro-te... juro-te por alma de meu pai...
Carolina acreditou, porque depois
de semelhante juramento, o duvidar seria um crime. Jurar por alma de um finado,
principalmente sendo este pai ou mãe, é convencer de uma vez o povo, porque o
povo considera tal juramento o mais sagrado, a prova mais robusta da verdade.
Mas o embarcadiço era — desabusado
—; conhecia as pessoas que
pretendia iludir e por isso servira-se daquele ardil, apesar de ser ainda vivo
seu pai.
Todavia, Carolina acrescentou:
— E por que não casamos antes de
partirmos?
— Não entendes disto, meu amor! Não
sabes que para casar-se uma pessoa que mora fora do lugar, precisa de muitos
papéis? Carolina, tu não confias em mim.. Pois bem, fica em tua casinha de
palha, na tua pobreza, na solidão desta praia, calcando com os pés a felicidade
que te ofereço... Eu não te aborrecerei mais... Irei longe, embora gemendo de
saudades, abafar no coração o amor que me inspiraste e nunca mais verás o meu
rosto!
— Não... não fale assim! Em sua
companhia quero ir... irei até o fim do mundo! Mas, dói-me deixar minha mãe
sozinha naquela palhoça... O que será dela sabendo que parti... que a filha
ingrata abandonou-a para sempre?
— Chorará a princípio, mas depois,
quando souber que a filha está casada, rica e feliz, sorrir-se-á de alegria. Tu
lhe escreverás e eu virei buscá-la para partilhar de nossas venturas.
Carolina não pôde resistir à
tentação. Além da eloquência do sedutor, da afeição que este lhe implantara
n’alma, uma força invencível a impelia ao abismo — seu gênio romântico, essa
ânsia de luzes, rumores e harmonias —, esse desejo imenso, que sempre nutrira,
de ver as outras terras e essas riquezas que a alucinavam nos devaneios de sua
mente abrasada.
Há organizações assim. Mariposas
que levianas deixam a suave solidão das selvas, de seus lares, onde a natureza
entoa o hino dos brancos e santos amores, e procuram as chamas dos prazeres
veementes; e nelas se precipitam, pondo termo à vida, como o louco infeliz na
violenta voragem do rio.
Convulsa e lagrimosa, Carolina pôs
o pé no escaler que devia conduzi-la ao navio e momentos depois viu pouco a
pouco, entre as sombras da noite, afastar-se a terra onde nascera, o lar de sua
infância, o chão da sepultura de seu pai!
Meu Deus! E não ouviste, Carolina,
os gemidos saudosos daquelas selvas, daquela auras, daquelas vagas, daquela
natureza enfim tão acostumada a ver-te, tão conhecida tua!
— Os homens — diziam as vagas — nos
chamam falsas: maior é a falsidade dos homens! Carolina, Carolina, por que te
fias dos homens?
— Em nosso colo — murmurava o areal
— cresceste brincando; macio leito encontravas em nosso seio: por que o desprezas,
Carolina, pelos espinhos?
— Nós segredávamos em teus ouvidos
— sussurravam as auras — os inocentes mistérios das ramagens; brincávamos sorrindo
nas tranças de teus cabelos: por que nos deixas, Carolina, pelo bafejo funesto
das turbas?
— Enfeitava-te o roupão e os
cabelos — dizia a flor das praias
—, deliciava-te com a fragrância
saudável do meu cálice: por que me trocas, Carolina, pelas venenosas flores da
cidade?
— A pura e cristalina água de
minhas veias — suspirava o rio — não banhava-te o delicado corpo? Por que me
esqueces, Carolina, pelo soro infausto dos tremedais?
De manhã já não via-se no horizonte
a vela do navio. Carolina desaparecera para sempre.
Então, os passarinhos acordando
saltaram nos galhos da ubaia, passaram às palmas do coqueiro e cantando
perguntaram:
— Onde está a Carolina que não vem
passear na praia, para ouvir as nossas cantigas?
E as auras, o rio, as vagas, as
areias, responderam chorando:
— Ai! Carolina fugiu para sempre de
nossos lares.
E as lágrimas da manhã caíram sobre
a folhagem; e os passarinhos descantaram nênias em vez das ledas cantigas que
tinham estudado para Carolina.
Mais tarde um mancebo soluçava em
desespero, rodeado de seus amigos, e na cruz do tabuleiro os coveiros socavam a
terra sobre o cadáver de uma pobre velha.
E as selvas, o rio... toda a praia
cobrira-se de luto e tristeza.
CAPÍTULO 5
A história das perdidas, das
míseras filhas do povo que se deixam fascinar pelas sereias malditas do pecado,
é quase sempre uma só. Todas acreditaram nas chamas de uma paixão constante, na
sinceridade de uma promessa, e viram-se depois, coitadinhas, desprezadas por
aqueles cujos anelos satisfizeram e de quem esperavam a reabilitação ante os
altares.
— Uma manhã — na cidade da
Fortaleza — Carolina recebeu um bilhete de seu amante — um bilhete de
despedida. Partia o marujo em seu navio e grosseiramente declarava à infeliz
que, certo de sua perfídia, abandonava-a a seus venturosos rivais.
Além do repúdio, a injúria e o
escárnio!
Carolina chorou amargamente. Uma
noite e um dia, sem dormir, sem comer, passou entregue à mais penosa
desesperação, indecisa sobre o que fizesse, qual o caminho que devera trilhar.
Como aflige a incerteza!
— Volve, Carolina — lhe dizia ao
ouvido o seu anjo da guarda
—, volve ao seio dos teus. Madalena
pecou, e ninguém mais pura no céu. As lágrimas da contrição apagam as culpas e
divinizam a alma. A virtude é a luta, o esforço... a vitória contra o mal.
Deste o primeiro passo no terreno escorregadio dos vícios; reúne as forças...
ânimo... retrograda e todos nós entoaremos hosanas nos coros celestes!
Purificada pelo arrependimento, volve, Carolina, à mansão dos justos, aos pés
de Jesus!
E no outro ouvido murmurava-lhe o
demônio dos prostíbulos:
— Louca, louca! o que pretendes
fazer? Volver ao seio da família? A estúpida gente da praia fugirá como se
foras satanás! Pedir amparo à sociedade? Ela cerrará os ouvidos às tuas
súplicas; as mães tremerão pelo sossego de seus filhos e paz de seus consortes;
os homens preferir-te-ão nos alcoices para pasto de seus desejos brutais; e
todos, condenando-te previamente, mandar-te-ão embora sob um chuveiro dos mais
ferinos insultos! Refugiar-te nos templos, banhar com prantos contritos a laje
das aras? Lá, acotovelando-se a multidão te apontará motejando, cruel, implacável!
Motejadora, como outrora ela conduziu ao patíbulo aquele Cristo cuja Imagem
plantou agora em seus altares... Cruel, como o açoite, cuspiu, feriu e
crucificou! Implacável, como profana hoje seus templos, despreza seus
mandamentos, desrespeita a sua Imagem! — Por toda a parte a injúria e a miséria,
enquanto aqui a abundância, o luxo e os prazeres! Queres amor? Formosos, ricos
e apaixonados mancebos to oferecem... Queres vingança? Esgota-lhes o ouro,
arruína-os, impele-os ao crime... Queres esquecimento? À festa, às danças, às
orgias!... Carolina, Carolina, que deliciosos dias começam para ti nas alegrias
da cidade!
Passava então pela porta um
pescador do Pecém, que viera vender uma carga de peixe salgado.
Carolina o conheceu e chamou.
— Carolina... aqui! Perdoe-me se a
trato assim, era costume...
— Trata-me como era costume; sou a
mesma para os patrícios e conhecidos...
— Mas, tão chorosa, menina! apesar
de morar numa casa como esta, onde pelo que vejo nada lhe falta!
Carolina não respondeu, e enxugando
as lágrimas disse-lhe depois:
— Chamei-o para pedir-lhe um favor,
senhor Joaquim...
— Fale, Carolina, dou-lhe a minha
palavra... farei o que pedir-me.
— Primeiro, quero que não diga na
praia que me viu, que conversou comigo....
— Custa! mas já lhe prometi!
— Depois que me dê notícias de lá: como deixou aquela
gente, senhor Joaquim?
— Com saúde, Deus louvado; e a
menina como passa?
— Assim. Diga-me mais, senhor Joaquim, a praia está ainda como quando saí?
— Aquilo vai no mesmo, menina... De manhã
muitos pescadores saem para o mar, outros ficam concertando as jangadas, as
redes e a tapinambaba; as mulheres sentam-se à almofada; os velhos olham para
as ondas recordando seus tempos; e as crianças saltam vadiando na areia. De
tarde voltam os pescadores; rodeiam todos a jangada para ver o pescado;
voltam-se a casa, bota-se o peixe no fogo, come-se, reza-se e dorme-se para no
outro dia recomeçar esta lida...
— E as casinhas?...
Carolina queria perguntar por sua
mãe, mas faltava-lhe a coragem. Fazendo, pois, um esforço, continuou:
— E as casinhas... nada há de mais
ou de menos?
— Há de mais a tristeza de Antônio,
que, depois que a menina saiu, tanto geme pesaroso no trabalho como no
descanso. Esteve por um triz... ninguém pensou que escapasse... E de menos,
aquela santa criatura, que Deus haja, que tamanha falta nos tem feito...
— Quem? — tornou Carolina
empalidecendo trêmula.
— Pois a menina ainda não soube?...
— Nada... depois que saí, não vi
mais ninguém das praias.
— Sinto ser eu quem lhe dá esta
notícia... Pois estas cousas... Custa dizer! Porém a menina deve consolar-se
com a vontade do Altíssimo...
— Mas, diga... o que aconteceu?
— Vou dizer-lhe... No dia em que a
menina saiu, sua mãe... não pôde resistir ao desgosto... deu alma ao Criador.
Pálida como o cadáver, com os olhos
secos e ardentes, e os lábios convulsos, Carolina ergueu-se, apertou a mão do
pescador e balbuciando uma desculpa, um adeus, retirou-se à sua camarinha. Quem
poderia descrever a dor imensa que lhe esmagava o coração? O terror que lhe
infundia a voz do remorso, que incessantemente bradava-lhe aos ouvidos:
"Filha, maldita, que fizeste de tua mãe?"
— Meu Deus! uma lágrima ao menos...
Dai, Senhor, que eu chore!
Mas, a fonte das lágrimas tinha-se
esgotado.
Restava um soluçar nervoso,
estridente como o som da catadupa entre os rochedos.
Ao longe gemia o sino anunciando
Ave-Maria.
Carolina então lembrou-se da oração
da infância; daquela singela prece que, inocente e pura, ajoelhada na areia da
praia, e com os olhos fitos na rósea nuvem do ocidente, tantas vezes rezara
junto de sua mãe. E correndo descalça, abriu impetuosamente o baú, tirou uma
Imagem da Virgem, colocou-a sobre uma banca, ajoelhou-se e envolta em seus
longos cabelos, por acaso soltos, procurou repetir essa prece singela.
Diríeis, se a vísseis, a imagem da
pecadora arrependida — dessa formosa Madalena do Evangelho, que banhara com
suas lágrimas os pés de Jesus e os enxugara com seus cabelos.
Mas, faltava-lhe a contrição de
Madalena, e por isso debalde tentou rezar! Confundia as frases, trocava as
palavras, suas ideias baralhavam-se.
Julgou enlouquecer.
E pois, coberta de frio, suor e
cheia de pânico terror, guardou a Imagem, correu para a cama, deitou-se, cobriu
os olhos com as mãos, e recaiu em profunda meditação.
Que tremenda luta em seu espírito!
Triunfou, enfim, o gênio das orgias.
Duas horas depois, Carolina abria a
porta da camarinha e, sem uma lágrima, porém mais pálida, dizia à Rosa, sua
criada:
— Rosa, hoje há baile de Carnaval;
quero ir... ajuda-me a preparar um vestido.
Pronunciava a última palavra quando
já pronta para o baile, entra Esméria, moça desenvolta que a visitava como
vizinha.
— Quero ir ao baile, Esméria, mas
falta-me um vestido.
— Arranja-se depressa, meu bem...
Rosa, vai comprar umas meias cor de carne... Dá-me um vestido para fazer
pregas, pois quero-te de saiote, à fantasia, meu amor...
E, à meia-noite, entre as perdidas,
no meio da crápula e do deboche, Carolina pulava nas danças, bebia cerveja, e
ria-se como se estivesse louca.
Desgraçada! No mal procurava o
remédio do mal; na orgia supunha esquecer seu crime e abafar a foz do remorso
que, ferina como a ponta do punhal, ecoava sempre em seu coração: "Mulher,
que fizeste de tua virgindade? Ingrata, que fizeste do puro e santo amor de
Antônio? Filha maldita, que fizeste de tua mãe?"
CAPÍTULO 6
Carolina celebrizou-se nos
lupanares. Mancebo nenhum pôde jamais compreendê-la.
De uma sensibilidade esquisita,
inconstante, leviana, caprichosa e extremamente romântica, ela impressionou a
todos que infelizmente a conheceram.
Irava-se quando deveria estar
calma; chorava quando se esperava o riso em seus lábios; ria-se quando a
supunham triste e cantava nos momentos de maior amargura.
Viajou muito. Esteve em Pernambuco,
na Bahia, no Rio de Janeiro e em outras províncias. Seu gênio não lhe consentia
a quietação; pedia-lhe luzes, danças, rumores, festas e sobretudo viagens —
essas outras terras que ela sonhara tantas vezes embevecida em sua
adolescência.
Com a mesma facilidade com que
mudava de terra, mudava de amantes e sentimentos. Borboleta volúvel das
campinas, passava de flor a flor, de gozo a gozo, aborrecendo agora o que mais
desejara há pouco, para querer o que então evitara.
Todavia, nem sempre podia vencer o tédio
— esse horrível companheiro da saciedade dos prazeres.
E então, ai daquele que vinha
depor-lhe o coração aos pés! Carolina, com alegria satânica, acendia-lhe
abrasadora paixão n’alma, subjugava-o, arruinava-o, trucidava-o e depois o abandonava
sem pena! O incauto mancebo, por sua causa, tornava-se mau filho, mau cidadão,
um miserável! E entretanto o escárnio e o desprezo eram a recompensa de sua
dedicação, do sacrifício de sua probidade!
Cansada da maldade, volvia depois
Carolina aos afetos; mostrava-se solícita, afável e carinhosa; e muitas vezes
descendo ao tugúrio do pobre, possuída do inefável deleite da caridade,
derramava ouro e recebia bênçãos.
Mas, tudo passava depressa como a
vaga no alto mar; o anjo transformava-se em demônio — mergulhava-se de novo no
charco imundo dos vícios.
Infeliz criatura!
E não te lembravas, Carolina, de
que nem sempre serias moça, terias a formosura — imã que atrai os mancebos — e
o ouro preciso às tuas loucuras?!
Um dia...
Começou a reação. Carolina viu-se abandonada,
esquecida, gasta no vórtice infernal da prostituição.
Muitos que fervorosos a cercavam,
agora evitavam-na com asco; e se casualmente os encontrando na rua a desgraçada
lhes dirigia uma palavra, eles fugiam dando-lhe as costas com desumano desprezo.
Mudou outra vez de terra, mas não
mudou de sorte. Moça nos anos, era velha nos vícios; e estes, como o furacão
desolador que varre os campos, tinham-lhe roubado a beleza das formas, o mino e
graça das feições.
Neste estado voltou à sua província
natal, à cidade da Fortaleza, e foi pedir hospedagem àquela Esméria que a acompanhara
em sua primeira noite de orgia.
Esméria quase a não conheceu.
Além da mudança que se operara no
rosto de Carolina, ela, que a precedera na senda fatal, tocava o extremo da
indigência e vivia por isso constantemente ébria.
Carolina chorou aterrada, antevendo
bem próximo para si o estado de sua amiga.
Escreveu logo a seus antigos
amantes. Alguns apareceram, conversaram pouco tempo com estranha frieza, e
pretextando afazeres retiraram-se, para não voltarem mais.
Entretanto, balda dos meios de
subsistência, Carolina lhes escreveu segunda vez, pedindo pequenas quantias
emprestadas. A resposta foi desanimadora. Alguns não estavam em casa; e outros
devolveram-lhe, sem ler, o seu bilhete.
Então, desvairada pela angústia, a
desgraçada procurou a todo transe esquecer a sua situação.
Embriagou-se.
Rapidamente — sôfrega, volúvel,
caprichosa e leviana — desceu os degraus da miséria, como subira os da
libertinagem. De uma casa asseada passou a uma espelunca; de vinhos finos a
aguardente; de amante de primeira ordem aos da infame ralé.
Completava a sua abjeção.
Faltava a doença e a doença não
tardou; funesta, esmagadora
— com o seu cortejo de dores, sede,
fome, frio, mágoas, solidão e dissabores — abriu-lhe a porta do sofrimento
extremo e apontou-lhe a dura cama do vagabundo, do indigente, do miserável!...
Oh! basta, Deus de justiça e clemência! Suspendei o castigo que pesa sobre
aquela desventurada! Basta! Não ouvias, Senhor, aqueles gemidos penosos, coados
nas chagas de um coração dilacerado? Não vedes, como corre em bagas o suor da
agonia sobre aquele rosto macilento, queimado na chama das orgias, e
sulcado pelo padecimento? Ah!
misericórdia, Senhor! Minorai-lhe a pena, suavizai-lhe a contrição, e chamai-a
logo à mansão dos arrependidos!
Era cedo ainda; longo fora o seu
afinco ao pecado — longa devia ser a sua expiação.
Porque... como escreveu Isaías:
‘‘Porque o Senhor dos exércitos é o
que fulminou este decreto: e quem no poderá invalidar? Também a sua mão está
alçada: e quem na fará apartar?’’
CAPÍTULO 7
Agora, espírito meu, leva-me às
praias do Pecém; voa n’asa da graciosa gaivota dos mares e por entre as palmas
dos coqueiros e os colmos da pobre gente, procuremos Antônio, aquele coração
tão apaixonado quanto desditoso.
Os pescadores voltaram do mar; e já
suas jangadas encalharam n’areia, onde rolam brincando seus filhinhos, como as
vagas quando repousam os ventos e a natureza descai em melancólica cisma.
Que pitoresco quadro te enleva, oh
minh’alma, no singelo e humilde arraial da praia?!
É quase sol posto.
Os velhos, os meninos e os curiosos
rodeiam a jangada e examinam o samburá, interrogando o pescador. Se aquele veio
vazio, todos retiram-se desanimados, enquanto triste e carrancudo o pobre homem
enrola a vela e arruma os demais acessórios do seu barco. Se acontece o
contrário, aperta-se a roda; o jangadeiro tira o peixe e o sacode n’areia,
todos acompanham com os olhos seus movimentos; aparece o dizimeiro e recebe a
importância do imposto; os compradores surgem; e meia hora depois com seus
filhos carrega o marítimo o resto do peixe para sua casa, enquanto novas rodas
se formam nas jangadas que sucessivamente encalham.
Ao mesmo tempo há a narração dos
acontecimentos da lida. Este conta o perigo que afrontara, em alto mar,
lançando-se n’água para não perder o peixe que, desgarrado do arpão, boiava
morto a poucas braças. E aquele que durante a noite, vira um
vulto alvo como a espuma resvalar
sobre as ondas.
— Homem, isto não era senão uma
alma do outro mundo.
Quem sabe se não queria pedir-te um
terço?
— Ou fada que te queria levar aos
seus palácios encantados...
— Ou alma ou fada, o que é certo é
que eu rezei o credo três vezes e ela desapareceu.
— Fez bem, rapaz, podia ser o
demônio.
E nas casinhas, no alpendre
daquelas palhoças cercadas de boas-noites brancas e vermelhas, à sombra dos
coqueiros?
As mulheres guardam as almofadas ou
a roupa que consertavam; escamam o peixe, botam a panela no fogo e preparam a
refeição da família — jantar e ceia ao mesmo tempo. Enquanto os homens, que não
foram ao mar, que ficaram endireitando a jangada, trançando as redes e
tarrafas, ou torcendo ao longo da praia a linha do anzol, terminam seu
trabalho, volvendo ao colmo
— que o sol sumira-se e descem as
sombras da noite.
É de uma tristeza indizível a hora
do crepúsculo na praia! Tudo emudece, mesmo o vento, para que se escute somente
a vaga em seu gemer sem termo.
Até as avezinhas calaram-se,
voltando ao lugar de seu repouso.
— Vamos aos nossos tugúrios, vamos,
que demais já saudamos o pôr do sol; vamos descansar para amanhã recomeçarmos
as nossas lidas.
E as avezinhas, embrenhando-se nas
matas, voam saudosas do areal querido.
Um homem rezava chorando, na tosca
cruz de madeira, enfeitada de raminhos, que no tabuleiro marca o cemitério do
arraial.
— Amante infeliz, como nos
enternecem as tuas lágrimas! Todas as tardes te encontramos assim e rogamos ao
bom Deus que te minore as penas. Adeus, amante desventurado, adeus!
Disseram as avezinhas e passaram. E
o homem era Antônio.
Todos os dias voltava do mar mais
cedo que os outros e vinha àquela hora rezar na sepultura da mãe de Carolina,
desde que recobrara as forças, após a doença que o assaltou, quando abandonado
pela virgem de seu primeiro e único amor.
Quem julgou que ele escapasse?
Certamente ninguém. Oito dias cozeu-se em febre; oito dias passou em delírio,
falando somente em Carolina,
exprobando-lhe sua ingratidão e
chamando-a entre amargurados
soluços.
Morre somente o homem quando tem
cumprido a sua missão na terra.
Escapou; mas, como foi longa a sua
convalescênça! Quantos dias, fraco, cadavérico, tentou sair, saber do destino
de Carolina e acompanhá-la!
A piedosa gente da praia, os
espectadores daquela cena dolorosa, queriam tanto a vítima quanto aborreciam o
algoz. Rodeavam-no, pois, de carinhos, o consolavam incessantemente e receosos
de que fugisse em procura da ingrata, esforçaram-se por convencê-lo de que ela
embarcara para outra província.
À instâncias dos amigos reunia-se a
voz imperiosa do dever. O que seria de seus pais, miserandos velhos, sem o seu
arrimo — o seu Antônio?
Resignou-se portanto o rapaz, e
dispôs-se a ser antes que tudo bom filho.
O que, porém, não conseguiram dele,
foi que tomasse estado de casado, escolhendo mulher entre as virtuosas
raparigas do arraial.
— Não... pelo amor de Deus não me
falem nisso... Seria crueldade roubar essas raparigas às suas alegrias para
uni-las às minhas tristezas — casar o pranto com o sorriso... E não mentiria eu
a Deus, não abusaria da inocência da donzela que me aceitasse por esposo,
prometendo amá-la, quando já não posso amar?
— Antônio — responderiam as velhas
—, quem sabe se uma louca esperança... É preciso tomar juízo, rapaz.
Ele se calava, mas, no íntimo
d’alma murmurava apaixonado:
— Têm razão... não sabem o que é
amar com toda a força do coração... fazer desse amor a sua alegria, sua
esperança, a sua consolação — o sol de seus sonhos e desejos... Quase todos não
são assim: amam facilmente, e facilmente esquecem. Mas, ai de mim! Eu sou
dessas raras criaturas que nascem para amar uma vez... uma única vez... com
febre e dedicação extrema...
E em solitário passeio, ao lugar,
horas havia em que no desespero da saudade, como que alucinado ele bradava
fitando o mar:
— Carolina... Carolina! Amar-te-ei
sempre! Não há poder que me faça deixar de amar-te! Veja-te embora perdida...
desprezada por todos... desfigurada pelo sofrimento, coberta de lepra... no
último degrau da infâmia... Ainda assim! eu abriria para ti meus braços;
apertar-te-ia ao seio; teria palavras consoladoras para teus ouvidos... Que
importa que severo te condene o mundo; que Deus do céu troveje maldições sobre
tua cabeça; que se conspire a natureza inteira? Que me importa a tua
ingratidão, a mágoa ferina que me deixaste? Nada abalará minha constância...
Abandonada por todos, Carolina, me verás a teu lado mais carinhoso... amando...
amando-te sempre!
O tempo não para, não espera, não
descansa; vai passando indiferente aos acontecimentos, às gerações que se
sucedem, e às suas dores e sorrisos. "Demora-te!" — grita-lhe o
feliz. "Apressa teus passos!" — suplica-lhe o desgraçado. E a sua
pêndula a mover-se do mesmo modo, e a areia de sua ampulheta a escorregar com a
mesma placidez. Porque Deus, o supremo Arquiteto, assim ordenou, e sua lei é
imutável; porque desde o argueiro à montanha, do átomo ao homem, foi traçado um
círculo de ferro
— que não poderá transpor — ao
mundo, a esta obra de seis dias, de seis épocas, de um instante talvez...
Mas, aonde tu me levas, ó
imaginação, ó companheira inseparável de minhas noites? Espera o momento das
canções e deixa-me agora, com simplicidade e calma, continuar este episódio da
vida do povo.
Alguns anos passaram-se; algumas
vezes os cajueiros floriram e deram frutos e as águas do inverno umedeceram as
areias da praia.
E nunca as avezinhas que ao sol
posto volviam aos colmos, deixaram de encontrar Antônio ajoelhado à cruz do
tabuleiro — cemitério do arraial. Mais duas sepulturas visitava ali — as de
seus pais, de seus velhos amigos.
Soube-se então da miséria de
Carolina.
Alguém, que viera da cidade, que
vira a enfermidade e indigência da infeliz, horrorizado contava o seu estado.
— Coitada — disseram todos —, coitada
da Carolina! Nosso Senhor se condoa dela...
Mas, depois, recordando suas
culpas, todos disseram também:
— Sofre o castigo de seus pecados.
Mulher cruel, que desprezou amor como o de Antônio; filha ingrata, que
abandonou sua velha mãe e lhe causou a morte Carolina — não podia acabar bem. A
justiça divina é certa: tarda, mas não falta...
Antônio, apesar de lho ocultarem,
tudo soube e sem dizer palavra desapareceu uma noite, levando os vinténs que
pudera ajuntar, o produto de suas economias.
O desventurado corria em auxílio da
mulher de seu único amor. Era seu destino amá-la eternamente: cumpria o seu
destino.
CAPÍTULO 8
Nublada e triste descaía a tarde.
Como eram outrora melancólicas as
tardes de minha cidade natal, tuas tardes, ó linda Fortaleza!
Não possuías nesse tempo calçadas
ruas, não tinhas carruagens nem rumores, nem pianos nem tantas casas e muito
menos esses novos costumes... Mas, melhor do que tudo isto, ó minha querida
cidade, plácido era o teu viver; singelos teus costumes, faceiro; o teu traje
de aldeã; inocentes os teus folgares campestres; macio o teu leito de areias;
doce o teu silêncio; encantadora a tua tristeza; e melodiosa a tua orquestra —
de notas perdidas da canção das vagas, do caminhante, do jangadeiro e das crianças!
A estas notas, muitas vezes
confusas, indefinidas e sempre saudosas, casava-se a da corneta que o soldado
tocava ao longe, em exercício, a do pequeno sino do Rosário e a do pesado carro
do camponês, ou o quebro do passarinho nos ares, ou o canto do galo dos
vizinhos.
Eu era pequeno e morava em casa de
meu avô.
O bom velho, de calça e camisa e
suspensórios cruzados, passeava compassadamente na calçada; eu o acompanhava,
interrogando-o de vez em quando; e se passava a preta quitandeira, recebia o
meu bolo de milho e ia saboreá-lo alegre no batente do lar.
Depois... eis-me a cismar; a cismar
em quê?... Eu sei? Cismava como os meninos — triste porque aquelas vagas harmonias
me enlevavam, me transportavam como que a dias de uma vida anterior, a um mundo
de que eu viera... a uma outra cidade em que eu habitara antes de nascer
nesta... ou me recordavam harmonias que minh’alma escutara outrora, presa
noutro corpo, na mesma rua talvez, em ocasião semelhante...
O sino anunciava Ave-Maria; meu avô
rezava comigo, todos rezavam; e os que passavam nos davam as boas-noites.
E eu volvia às minhas cismas, até
que as sombras desciam à terra.
E agora... onde aquelas
melancólicas harmonias, aqueles passarinhos que voavam cantando, aquelas tardes
tão nossas, ó cidade em que nasci, ó minha linda Fortaleza?
Tudo acabou-se, como acabaram-se os
dias de minha infância, tudo a civilização matou.. resta somente a saudade!
Mas, a que vem esta recordação? Por
que mo perguntas, curioso leitor?
Seria acaso aquela tarde nublada
uma das de outrora?
Não; mas tão semelhante... Como que
a cidade civilizada calou-se um instante para que eu me lembrasse da cidade pequena
e singela de minha meninice.
Dispensa-me, leitor, mais
explicações e ouve o resto da história...
Nublada e triste descaía a tarde.
Aflito chamava o sino aos fiéis,
para acompanharem o Viático; pouco a pouco reuniam-se eles no templo e a
Irmandade tomava as suas opas.
— Vinde, vinde, cristãos, que a
vida foge ao enfermo — gritava o sino.
— Senhor — murmurava o doente em
sua cama —, vinde, vinde a mim que vos espero anelante.
— Como tardam os Irmãos! —
exclamava impaciente o vigário, contando os presentes e mandando apressar os
toques.
— Vinde, vinde, cristãos que o
senhor vigário está cansado de esperar e a vida foge ao enfermo — acrescentava
o sino.
Os devotos encaminhavam-se à
igreja.
Ouçamos estes dois que aqui vão tão
apressados:
— Sabes para quem vai sair nosso
Pai?
— Ouvi dizer que para uma mulher do
Outeiro da Prainha; uma Carolina que há três anos morou ali na rua Amélia.
— Conheci. Era uma rapariga de
gênio diabólico, e que entretanto esteve aqui nos galarins da fama. Depenou
muito franguinho, e fez chorar a muita mulher casada. Mas, não tinha embarcado
para o sul?
— Andou por lá, e volta em lastimoso
estado: indigente, enferma, velha, feia... Coitada, deu até para
embebedar-se!...
— É este o fim das mulheres
perdidas... Loucas! correm pelo caminho dos vícios; cruéis, despedaçam
corações, arruínam fortunas, pervertem a mocidade, perturbam a paz dos
consortes; e depois, ei-las a voltar pelo caminho da miséria; e a pagar no mais
penoso sofrimento a dívida imensa de culpas. E assim deve ser. Ai da humanidade
se também nesta vida não fossem castigados os maus, e premiada a virtude. A
reação é tão necessária quanto infalível. É preceito divino: — Quem com ferro
fere...
Chegaram. A campainha bradava à
porta da igreja:
— Andem, meninos, andem, que eu vou
sair para anunciar nas ruas a passagem do Santíssimo.
— O Senhor vigário tirou do
sacrário o Corpo sacrossanto de Jesus Cristo; corram, pecadores, corram para
acompanhá-lo rezando.
E os sinos repicaram à saída do
Santíssimo, e a campa e os devotos o acompanharam, louvando Aquele que, sendo o
rei dos reis, descia ao albergue do indigente, para consolá-lo em sua angústia
e dar-se em penhor de sua redenção.
CAPÍTULO 9
Carolina, lívida e magra como a
morte, ouvia os sons do sino e ansiosa esperava a comunhão.
Residia no Outeiro, em velha e
arruinada casinha de palhas de carnaúba, que nem sequer a resguardava da vista
dos curiosos. Já nada possuía: suas joias, seus vestidos, seus baús... tudo
vendera para embriagar-se, para comprar o alimento e depois os remédios.
Restavam-lhe somente aqueles panos
sujos e rotos que a cobriam, a rede em que estava deitada, a palhoça que lhe
servia de casa... e nada mais!
Era completa a sua indigência!
E quem diria?! Quem pensaria que
aquela Carolina, formosa, rica, procurada, querida, adorada, que aparecia no
teatro e bailes, como uma rainha, que prodigamente sacudia punhados de ouro na
voragem dos vícios, acabasse assim?
Jovens inexperientes, meninas
incautas! Vede em Carolina a imagem fiel da mulher que transvia-se no caminho
dos seus deveres; daquela que se deixa seduzir pelo demônio da concupiscência;
da prostituta, enfim! E fugi aterrada! E quando o vosso namorado vos pedir uma
entrevista, lembrai-vos de Carolina e respondei: "Só devo falar-vos
perante meu pai e minha mãe." E quando vos escrever, lembrai-vos de
Carolina, e entregai a carta a vosso pai. E quando vos convidar para fugir,
prometendo-vos casamento e expendendo razões que o forçam a dar semelhante
passo — lembrai-vos de Carolina e no seio da carinhosa mãe, ou aos pés da
Virgem Santa, ocultai-vos da tentação. Sim, não vos esqueçais nunca de Carolina,
comparando a sua vida horrorosa, misto infernal de vícios e dores, com a de
Joana, cujos dias escoam-se suavemente como flores em tranquilo arroio, ao lado
do esposo que a adora, entre os filhinhos que afagam-na carinhosos, à sombra do
pacífico lar, na prática das virtudes — admirada dos vizinhos, venerada por
todos e abençoada por
Deus. Seja Carolina um espetro
pavoroso que vos fecha a porta dos lupanares, e Joana o anjo risonho que vos
aponte o éden delicioso da felicidade doméstica, a mansão dos puros afetos.
Fracas sois? Procurai forças na
religião; ajoelhai-vos, pronunciai fervorosas preces, que depois, valorosas
Judites, triunfareis dos ardores de vosso temperamento e do inimigo que vos
quer arrastar ao medonho despenhadeiro das trevas!
Lede agora o resto desta amargurada
história.
Piedosa vizinha, que tratava de
Carolina nos seus últimos dias de expiação, preparara a choça para a visita de
Jesus Cristo. Pouco havia a fazer. Varreu o chão; encostou às palhas uma mesa que
pedira emprestada; amarrou um lençol em duas estacas; e forrando o rústico
altar, colocou sobre ele uma cruz de pau, que frei Vidal benzera, e que ela
possuía como relíquia daquele santo missionário. E depois, como lhe permitiu a
sua pobreza, procurou ocultar a miséria da roupa da enferma.
Entrou o Santíssimo.
— A paz do Senhor seja nesta casa.
— E em todos que nela habitam.
O Padre, descansando o cibório no
altar, aspergiu a todos dizendo o salmo:
"Tu me borrifarás com o
hissope e serei purificado: lavar-me-ás e me tornarei mais branco que a neve.
Tem piedade de mim, ó Deus, segundo
a tua grande misericórdia."
Carolina abriu os olhos, fitou-os
na divina Espécie, e movendo os descorados lábios, balbuciou imperceptivelmente
uma prece.
— Senhor, eu não sou digna que Vós
entreis em minha humilde morada, mas dita a vossa santa palavra, minh'alma será
salva.
Ou, talvez, aqueles salmos que o
rei poeta, em penitência austera, pronunciara inspirado:
"Aparta o teu rosto dos meus
pecados: e apaga todas as minhas maldades.
Cria em mim, ó Deus, um coração
puro e renova nas minhas entranhas um espírito reto.
Não me arremesses da tua presença:
e não tires de mim o teu Espírito Santo."
A esse tempo, um pobre homem que
viera entre os fiéis, e que ajoelhado estava, desatou a soluçar como possuído
de extrema angústia.
Geral foi a surpresa, e maior para
a enferma, que molhando-se de gelado suor, estremeceu convulsa como ferida na
parte mais dolorosa do coração.
Aproximou-se o Padre e lhe disse
baixinho:
— Minha irmã, sente-se melhor?
— Melhor, senhor vigário, melhor; a
voz impiedosa que me acusava incessantemente, calou-se... sinto-me tão
aliviada...
— E depois da confissão, não se
lembrou de mais alguma falta? É tempo de reconciliar-se. A misericórdia de Deus
favorece-a, prolongando-lhe a vida quanto é preciso à purificação de sua alma.
Quer que a escute?
— Sim, senhor vigário; desejo
falar; mas que nos ouça somente aquele que chora — disse ela apontando o homem
que soluçava — o desgraçado Antônio.
Retiraram-se os demais fiéis.
Podes acaso, ó minha pena,
descrever o que se passou então?...
— Senhor vigário — exclamou a
enferma exaltando-se —, eu fui algoz deste homem! Enganei-o prometendo-lhe a
felicidade de seu amor; embalei seu coração sincero em falsa esperança; e
depois, calcando aos pés o seu afeto, zombando de seus sonhos, escarnecendo de
suas doces ilusões, abandonei-o sem dó quando ele já não podia amar a outra,
quando já não podia ser feliz sem mim...
— Carolina! — interrompeu Antônio —
eu lhe perdoo... Nunca condenei-a... Era destino... Resignados nos conformemos
sempre com a vontade do Altíssimo...
— Bem-aventurados — acrescentou o
padre entre lágrimas
— bem-aventurados os que choram
arrependidos, porque serão salvos...
Agora, Carolina — continuou Antônio
— ante Deus do céu que nos escuta, eu lhe peço uma graça... a recompensa do meu
sofrimento... Carolina, seja minha esposa nesta hora suprema... Carolina
estremeceu como quando avistara Antônio, e suas faces, já tão pálidas como os
círios, tornaram-se de uma lividez espantosa e depois coraram. Como que as
últimas gotas de sangue afluíram-lhe ao coração, e dali correram ao rosto...
Seus olhos volveram-se brilhantes... Uma luta tremenda abalava-lhe a alma, um
desses mistérios que não se descrevem... Talvez o pudor... porque o vícios,
porque o crime têm o seu pudor... Talvez a lama tenha pejo de misturar-se com a
linfa cristalina da rocha... Não sei. Como que sinto, que adivinho o que, em
rápido instante, passou-se em Carolina, mas não posso exprimir.
Nesse misterioso instante a
desventurada exclamou:
— Eu?!... Eu, a pecadora das
ruas... a mulher infame da multidão?
— Minha filha! — interrompeu o
Padre — cale-se, não condene sua alma. A contrição expurgou-a de pecados... não
a macule outra vez... Suplique o perdão a Deus, por ter duvidado de sua
clemência...
— Meu Deus — murmurou ela se
acalmando —, meu Deus, pesa-me de vos haver ofendido e vos prometo, Senhor,
nunca mais pecar...
Momentos depois, o Padre chamava os
Irmãos, dava a comunhão à enferma e forçado por tão imperiosas circunstâncias,
casava os desventurados amantes, assumindo embora grave responsabilidade.
Muitos choraram comovidos por
aquele sublime quadro; e mais chorariam se vissem o seguinte.
Carolina expirou, uma hora depois
de casada, apertando a mão do esposo e derramando em seu rosto um olhar tão
saudoso e terno como o último lampejo do sol no ocaso.
Esse olhar consolara Antônio, além
de um certo prazer que acompanha sempre a prática da virtude, a realização de
um desejo santo.
Amortalhado o cadáver, Antônio
sentou-se junto, e, ora recordando embevecido as cenas de seu amor, ora
beijando e molhando de pranto aquela mão regelada... assim passou a noite — a
sua noite de núpcias.
E de manhã, quando o sol surgia dos
mares, encontrou-o no cemitério, cavando a terra e sepultando o corpo de
Carolina, de sua bem-amada consorte, da única mulher que amara neste mundo.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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