4/08/2023

Folhas secas (Conto), de Juvenal Galeno


FOLHAS SECAS

Os rapazes, fábricas da fazenda das Queimadas e de outras vizinhas, em torno da fogueira do alpendre, escutavam admirados a José Bernardo — o fama dos vaqueiros.

Era uma das noites de mais animada conversa, como sempre que o velho vaqueiro dispunha-se a dar à língua.

Velho, disse, porque José Bernardo já tinha mais de quarenta ferras como vaqueiro daqueles sertões. Poldros que amansara nos tempos de moço, já os urubus haviam comido e a terra lambido os ossos. E como testemunhas estavam aí os brancos cabelos, que lhe cobriam a testa como as crinas de seu ruço campeão.

Mas, voltemos ao caso. José Bernardo deitado em um couro fumava em seu cachimbo aparelhado de prata, presente de um cavalariano amigo, e respondia com toda a fleugma aos rapazes; e estes, uns de cócoras, outros sentados em cangas, couros e cangalhas, não se fartavam de interrogá-lo.

— Oh, rapazes, vocês me parecem reses atrás d’água nas ipueiras secas! Ainda não abri cacimba; tenham paciência e peçam chuvas a Nosso Senhor.

— Mas, tio José Bernardo, vosmecê ainda não contou um caso dos bons que sabe...

— Qual caso, nem meio caso! Casado fui duas vezes, e se mais não fui a culpa é de tua tia Francisquinha, que meninas não me faltavam pelos arredores.

— Já tu pegas com tuas graças, Zezinho — murmurou de dentro a velhinha —, isto é homem encartado...

— Estava ouvindo, minha velha? Pois vou contar a estes meninos o nosso casamento — disse José Bernardo com ar prazenteiro e meio ufano, olhando de esguelha a sua querida metade.

— Erra só o que faltava, homem; para que vais remexer nessas folhas secas?...

— Para eles aprenderem como se casava em nosso tempo. Aquilo, sim, é que era casamento! O rapaz agradava a dona por meio da valentia, furtava-a da casa dos pais, brigava no caminho com oito cabras cangaceiros, casava... e depois, olha lá que festas!... Dançava-se três dias com três noites e queimava-se pólvora até arrebentarem os bacamartes...

— Este homem não toma juízo, não... E vai contar estas histórias?...

— Ora, tia Francisquinha — disseram os rapazes —, deixe ele contar. Que mal faz? Conte, tio José Bernardo, conte...

— Então, gente, o que responde?

— Assanhou os meninos e descarta-se comigo? Arranja-te como puderes, homem, que eu vou fiar o meu algodão.

Os rapazes riam-se baixinho; José Bernardo também, e Francisquinha não deixava de sorrir-se.

E tinham razão, porque mais unido casal ninguém conhecia naqueles sertões: era uma alma em dois corpos, dois riachos reunindo-se, formando um rio que sereno desliza pela várzea. Os faladores, que em toda a parte os há, somente diziam: — que o tio José Bernardo, das Queimadas, ainda namorava a tia Francisquinha, sua mulher. O velho quando isto sabia, ria-se a não poder mais —; e se a consorte dava cavaco, ele a consolava dizendo: "Deixe-os falar, minha velha; antes digam isto, do que inventem que vivemos à custa do alheio, ou que deixamos de nos confessar na quaresma..."

E ainda tinha razão, porque falsos destes é que, se não queimam como o carvão, tisnam muitas vezes as boas reputações.

— Estão ansiosos pela história, como o gado em outubro pela rama, meus rapazes? — disse logo José Bernardo.

— Quem é que não gosta de ouvir o tio José Bernardo, meu Deus! Vosmecê fala de maneira que amarra a gente...

— Pior vai esta não me encha de vento: olhe que em surrão

velho não soca-se o legume. Pois bem, escutem.

E o velho vaqueiro, enchendo e acendendo de novo o cachimbo, principiou sua história.

— No meu tempo fui um dos rapazes mais temeros destes gerais, e a fama de minhas proezas em serviço de gados corria pelo sertão. Quem tinha seu touro brabo, ou animal arisco e amontado, mandava logo chamar-me, porque só eu sabia dar voltas ao bicho, por mais mocambeiro que fosse. Restam-me hoje somente os sinais, que as valentias foram-se com os anos, como folhas do mufumbo nas águas do riacho. Agora qualquer novilhote me faz correr e trepar até entre os espinhos do surucucu...

— Ora, qual, tio José Bernardo, poucos ainda se pegam com vosmecê.

— Não é tanto, que já não passo de um couro velho, que nem para alpargatas serve. Mas é certo que assim mesmo, não me troco ainda por umas figurinhas que andam aqui entrosando de valentões...

— Olhe lá... bem eu dizia...

— É que os tais valentões nunca viram bichos bravos, como os havia no tempo do Rabicho, do Orelhudo, do Bargado e de outros novilhos afamados. Então sim é que eu quisera vê-los aparelhados em campo. Mas, a raça daqueles acabou-se, meninos, acabou-se. Os novilhos d’agora são mais mansos que as vacas, e as vacas piores do que os cordeiros.

Os meus documentos são estas esfoladuras, que estão vendo. Esta, apanhei-a correndo na caatinga atrás do Orelhudo, num dia de sexta-feira quase de noite; esta outra foi no caminho de Pedra-de-fogo numa junta de gado. Tangia eu um magote, quando arranca uma rês e enfia deveras pelo mato. Então cheguei os ferros ao ginete sem lembrar-me que ele era melado claro, e o maldito não só faltou-me como despejou-se comigo na garganta dum serrote!

— E caiu, tio José Bernardo?

— Em pé, mas o terreno era despenhado, e por isso escorreguei e papoquei a cabeça no tronco d’uma ingazeira, que não sei como a não arrebentei.

Dos outros se eu fosse falar não acabaria hoje, que o tempo é pouco e os casos muitos. Vamos, porém, à história do casamento...

— Sim, a história do casamento do tio José Bernardo com a tia Francisquinha.

— Havia um ano que para sempre me deixara a Jardilina, que Deus haja, com uma filhinha nos braços, que é hoje mulher do Chico Leitão, do Poço-fundo. E o ano para mim passara triste e esmorecido, e não admira, porque acostumado aos invernos, verdura e flores do casado, via-me reduzido à seca, solidão e calamidades do solteiro. Eu estava como a rês em pasto estranho, e como a rês volta-se gemendo para o lado de seus pastos, eu suspirava recordando o passado; e não tenho vergonha de dizer, meninos, muitas vezes corriam-me as lágrimas de quatro em quatro pela cara abaixo, como a resina do cedro.

E assim devia ser, que a Jardilina fora um anjo que Nosso Senhor me emprestara e a vida que me deu uma aurora de junho. A minha vontade era a sua, e ela me queria tanto, que parecíamos galhos de um só tronco, ou um casal de rolinhas.

De manhã cedo acordávamos, rezávamos e cuidávamos em nossas obrigações, contentes e satisfeitos como quem nada deve. Se era pelo inverno, tirávamos o leite, almoçávamos, e enquanto ela fazia os queijos, eu saía para trabalhar com os gados, pedir campo, ou dá-lo aos vaqueiros vizinhos: procurar e conduzir ao curral a vaca que eu vira amojada e que por isso devia estar parida, ou para a junta dos bois de açougue. E se era tempo de seca, ela tratava das criações miúdas e dos bezerros enjeitados ou caruaras, e eu saía para as cacimbas ou logradores onde fazia as retiradas, curava o gado doente, e cortava rama para o mais fraco. De volta, ela ao ver-me sorria feliz. Jantávamos conversando alegres e assim depois, sentado no meio de sola eu fazia peias e cabrestos e ela trazendo seu balainho de algodão punha-se a fiar. Contava-lhe então os sucessos do campo; ora a carreira por altos e baixos a todo pano, na espinhosa caatinga que me rasgara a véstia e o guarda-peito, e ferira-me o ginete; ora o arremeter do noviho, o encontro da cascavel ou da onça, etc. Escutando-me, ela estremecia aflita e rogava-me que não me atirasse a tantos perigos; mas não deixava de alegrar-se dentro d’alma, porque todas as mulheres, meus rapazes, gostam dos homens valentes. E têm razão, porque a força do marido é uma garantia de sua fraqueza, e ao lado dum maricas viveriam sempre tremendo de medo como varas verdes!

E como chorava a Jardilina, quando eu me ausentava, acompanhando a boiada para a feira! E como chorava e perdia noites de sono, quando eu gemia doente! O dia em que eu voltava a casa, à saúde, ou era um dia de festa e contentamento que nos recompensava das saudades e das dores.

Outra grande festa era o dia da ferra. Ela vinha assistir no curral a divisão dos bezerros, e entre os que me tocava de sorte escolhia o mais gordinho para a filha.

Eu lhes conto estas cousas para vocês fazerem ideia do estado em que fiquei, perdendo a minha querida mulher.

Na verdade, é preciso ser doutor, e doutor dos mais letrados, para explicar o que me consumia na minha viuvez. Perdi o gosto do trabalho e passava o tempo malucando! E como não havia de ser assim se me faltavam aquelas carícias, se não tinha a quem contar as minhas proezas, se a minha casa era um deserto!

Era-me necessária outra Jardilina, para poder dar conta não só dos gados de meu amo da terra, como também da vida, que me dera a guarda o Amo do céu. E, Deus louvado, encontrei outra igual, porque a Francisquinha, justiça lhe seja feita, não fica atrás: é uma esposa de mão cheia como a Jardilina, e tão sua amiga que, longe de zangar-se se a elogio, ajuda-me a recordá-la com saudade.

Muitas vezes, observando a Francisquinha, assento de pedra e cal, e ninguém me tira disso, que vendo a minha tristeza, Jardilina pôs-se aos ouvidos de Nosso Senhor a rogar-lhe que me desse uma esposa igual a ela, e tanto pediu, tanto pediu que Ele para descansar atendeu-a logo, concendendo-me a Francisquinha.

Mas, deixemos os arrodeios e vamos pelo caminho direito. Eu andava banzeiro na viuvez, e os meus vizinhos e amigos com medo que eu variasse — pois o juízo da criatura é tão fino que não precisa muito para o perdermos —, me aconselhavam que procurasse mulher; que aquela vida não ia boa; que a fazenda assim não prosperava.

Convenci-me disto e botei o sentido e os olhos por planos e tombadores, com o ouvido alerta, procurando o mel da abelha. Principiei por arrumar o meu corpo, que o desgosto desarranjara tanto que mais parecia um rancho de comboieiros do que outra cousa. Chico Paes, que entende desses negócios de cabelo, endireitou-me o topete e fez-me a barba; e o Antônio Maria Gomes, que trabalha bem em couros, aprontou-me uma véstia, perneiras e guarda-peito de capoeiro, que o couro de bode não é para quem sabe correr na caatinga. Fiquei mesmo um Deus-nos-acuda, e comparando mal um S. Jorge no caminho das batalhas. Assim, arreei o meu ruço de fama, avô do ruço pedrês e montando-o saí, andei e corri até que dei com o rasto que eu procurava, que era o da Francisquinha. Avistei-a, botei-lhe o

cavalo e sem mais nem menos engracei-me dela.

A Francisquinha voltava de uma festa e vinha bonita que era um gosto. Sapatos de marroquim encarnado, vestido de chita de pataca, que naquele tempo era a mais fina, um colar demais de vara, umas arrecadas de estrelinhas, e uns sorrisos, uns olhares... e um jeitinho que endoideciam a gente. Ao vê-la, senti uns frios cá por dentro, que pareciam de maleitas e mal pude falar com seu pai, o senhor Feliciano de Queiroz.

— Deus o salve, senhor Feliciano de Queiroz, e a sua obrigação.

— A nós todos, senhor José Bernardo. Para onde se bota, que mal pergunto?

— Pergunta muito bem; saí para dar umas voltas no campo e vigiar os gados de meu amo.

— É bom zelar o que se lhe entrega. Então, como vão de crias este ano?

— Vamos bem e não indo, senhor Queiroz... vamos bem, porque apresentei oitenta e cinco bezerros à ferra, afora os de quatro vacas mocambeiras; e não indo, porque apareceu nestes últimos tempos uma gafeira nos bezerros, que os vai matando: inda ontem perdi três!t

— Homem, lá por casa tem sido o mesmo. Eu cuido que isto é alguma erva ruim que o gado está comendo.

— O que é verdade é que o inverno foi bastante rigoroso: lavou o pasto e o enfraqueceu demais.

— Todavia, antes assim, do que a seca.

— Mas, senhor Queiroz, o melhor é um inverno moderado, porque o pasto cresce e fica com sustância; e depois uma chuvinha em outubro para fazer a rama.

— Lá isso é verdade; mas, o que quer? As cousas vêm determinadas de cima...

Disse ele apontando o céu, enquanto eu não tirava os olhos da Francisquinha. Emparelhara o meu cavalo com o de seu pai, e estirava a conversa para melhor observá-la. Francisquinha vinha à garupa segurando-se com uma mão na cintura do pai, a outra descida, e os olhos baixos. E sua mãe vinha ao lado num castanho escuro. Os cavalos caminhavam a passo.

— Então, já sabe que os chimangos caíram?

— Ouvi dizer, senhor Queiroz; ontem passou lá por casa um portador do capitão Pereira e levava esta notícia.

— Enfim caíram estes judeus, que tantas desgraças nos trouxeram.

— Não penso assim, porque, como vosmecê sabe, nasci chimango e se ando torto — quem torto nasce, torto morre.

— Ah, é verdade, não me lembrava que vosmecê era do tal partido. Não falemos mais nisto. O tempo mostrará quem anda errado. Tive pena, rapazes, daquele caranguejo ser pai da Francisquinha; porque se não fosse, a resposta estava pronta. Eu o escalava de cima abaixo, e havia de mostrar-lhe quem eram os judeus, que crucificaram a Nosso Senhor Jesus Cristo; e lembrar-lhe que o primeiro caranguejo que houve no mundo, como me afiançou o vigário, foi Judas Iscariotes, que por sinal

vendeu o divino Mestre por trinta dinheiros!

Mas engoli a palavra, olhando para a Francisquinha, e conversei noutras cousas até que chegamos a casa, que era perto, e nos separamos.

— Adeus, senhor Queiroz; perdoe a má companhia.

— Ora, vosmecê é que tem a perdoar alguma falta de minha parte.

— Nenhuma, senhor Queiroz; adeus. Adeus, senhoras donas.

Até logo.

Francisquinha corou, respondendo-me baixinho; e os velhos disseram:

— Se Deus quiser...

Cheguei então os ferros à barriga do cavalo, e saí correndo como quem corre atrás de boi na vargem. E desde aquele momento assentei que devia casar-me com a Francisquinha, desse no que desse.       

— Com uma carangueja, tio José Bernardo — murmuraram os rapazes.

— Qual carangueja, meninos; caranguejos tinha-os ela de sobra em casa e o que lhe faltava era um chimango: quem é que deseja o que possui? Por isso ou não, o que é verdade é que mulheres... ninguém as entende! Francisquinha era chimanga de chapa; é o que queriam saber, não é?

— Está ouvindo, tia Francisquinha? — gritou um dos rapazes.

— Deixa-me lá, menino, que tenho mais que fazer! respondeu ela de dentro da casa.

O velho sorriu-se, puxou e tragou duas fumaças e continuou:

— Eu andava deveras apaixonado e procurando veredas para o namoro. Todas as tardes, baralhando no meu ruço de fama, fazia-o riscar no terreiro da casa do senhor Queiroz; e dava saída às minhas visitas, ora perguntando por uma vaca que por aqueles campos pastava, ora dando novas de uma rês catingueira, ou pedindo campo, ou água, etc. Algumas vezes via a Francisquinha, e pelos ares com que me aparecia conheci que estava também mordida pelo amor.

O senhor Queiroz continuava a tratar-me bem; e se desconfiava do caso não dava mostras e nem me fazia cara feia; e nem podia, pois se éramos da mesma a cor, éramos também dos mesmos possuídos e até parentes por parte do defunto meu pai. Mas, havia uma diferença entre nós e grande — a de partido; e como vocês sabem aqui pelo sertão é mais fácil faltar chuvas em abril do que mudarmos de ideia. Não somos como os homens lá da cidade, que viram e reviram todos os dias, segundo as suas conveniências.

Voltemos, porém, à história. Em idas e vindas, em passeios e olhares, já quatro meses rolava eu com o meu namoro, sem atrever-me a falar ao senhor Queiroz, até que um dia dispus-me, e puxando conversa dei-lhe a entender as minhas intenções. Coçando a cabeça, pôs-se ele a considerar e depois me disse:

— Vou cuidar para lhe dar a resposta. Como vosmecê não ignora, estes negócios não se decidem assim aos pés juntos.

— Sei, senhor Queiroz, e espero, mas lembre-se que vai decidir da minha vida. Não é por me gabar, mas aqui não vejo quem trabalhe mais do que eu e possa dar a uma dona o trato que ela merece.

— Pois, sim, homem; falaremos depois a respeito.

E retirei-me cheio de esperança, porque o Queiroz me devia muitos favores em serviços de gados, e não recebera mal a minha proposta. Todo o sertão sabia do negócio e todo o sertão já dava-me os parabéns e convidava-se para a festa.

Mas, o demônio da política veio meter-se no meio, e desmantelar tudo!

Havia uma eleição e o povo foi chamado para dar votos na vila. Queiroz recebeu uma carta do delegado, que era um caranguejão dos quatro costados, que lhe pedia a gente toda da terra; e eu recebi também uma de meu amo, que era chimango às direitas, dizendo-me que não faltasse com os amigos.

— Ai, ai, ai! — resmungaram os rapazes por essa não esperava vosmecê, tio José Bernardo!

— É certo, meninos: mas o maldito mete-se sempre no que anda direito, para rir-se nas profundas...

O senhor Queiroz pôs-se em campo e não tirou mais a sela do cavalo. Não parecia o mesmo, tão demudado estava pela paixão da política: convidava a todos e brigava com todos que não prometiam acompanhá-lo! E eu pelo manso ia-me arranjando como podia, fugindo de encontrar-me com ele, por causa da Francisquinha.

Porém, como lá diz o outro, saiu-me o ano bissexto. Um dia, passando no terreiro do senhor Queiroz, topei-o no copiá, deitado numa rede. Salvei-o incontinenti, e ele sem responder-me, arremeteu e cresceu para cima de mim com estas palavras:

— Então, senhor José Bernardo, já sei que tem cabalado muito, e que leva a gente toda deste sertão! A mim é que vosmecê não leva... fique logo certo disto.

— Diga-me por favor, senhor Queiroz, quem é o habilidoso que anda lhe contando estas histórias para nos intrigar? — tornei-lhe com a prudência de um santo.

— Não são histórias... não, senhor. O Menezes não vai comigo, porque vosmecê o chamou... Antônio da Lagoa-de-dentro, o mesmo... Chico da Tapera, já se sabe... Manoel de Vargem-alegre, nem falemos... Mas, vosmecê está muito enganado comigo, e é porque quer... Havemos de ver no fim quem sai vitorioso... e fique certo que gastarei até a última cabecinha de gado! E continuou com um rosário de razões, que eu respondia com prudência; entretanto, encarnado como casca de croá, ele arremetia mais do que novilho nos mocambos.

Ah, se não fosse a Francisquinha, meus rapazes, aquele dia era o da minha desgraça! Já me saía fogo das orelhas e escurecia-me a vista...

Mas, por causa dela aguentei tudo, e sem faltar o respeito a seu pai, retirei-me quando me disse que dali em diante não daria em sua casa nem fogo e água a chimango!

— É: "Adeus, sombra das flores".

— Ah, sim... pois ouçam:

 

Adeus, luz da bela aurora,
Adeus, fresca da manhã,
Adeus, esperança vã
De quem triste geme e chora;
Adeus, que vi-me fora
De teus mimosos amores...
Adeus, pois os teus primores
Para mim tiveram fim,
Adeus, florido jardim,
Adeus, sombra das flores!

— E a segunda?

— É: "Do jardim da primazia".

— Pois ouçam:

Já se ausentou o meu siso,
Já lá se vai meu prazer,
Perdendo teu bem-querer,
Perdendo meu paraíso!
O que serei sem juízo...
Ai, rosa d’Alexandria?
Da vida foge-me o dia,
Como foge o meu sentido...
Adeus, ó cravo escolhido
Do jardim da primazia!

— Muito bem, muito bem, tio José Bernardo; agora as outras:

— Não me recordo mais, rapazes... A terceira principiava...

Adeus, meu galante sol,
Adeus, planeta brilhante,
Adeus, fino diamante,
E risca lá do teu rol
Este amor...
Este amor...

Não acerto com o resto, meninos; já se acabou a minha memória...

— Ora, tio José Bernardo, como vosmecê se esqueceu de uma obra destas...

— A poeira dos anos, meus rapazes, estragou-me o entendimento: já não presto para essas cousas. Naquele tempo, sim, eu não tinha inveja de quem soubesse obras, e dançasse um baião e um coco inchado... Mas hoje, só sei rezar o meu rosário e isto mal.

— E a tia Francisquinha, não gostou da obra?

— Ao cabo de três dias, o rapaz voltou e me contou que a Francisquinha chorou quando leu a obra e depois lhe dissera: "Diga a ele que meu pai está ainda zangado e que ele foi a causa... que nunca me esquecerei dele... e que estou me acabando de saudades..." — E outras palavrinhas, meninos, que me refrescaram cá por dentro, como chuvas de janeiro ao campo esturricado.

Não havia dúvida, não, a Francisquinha me queria bem, e era o que me faltava saber. Dali em diante o rapaz não descansou, levando e trazendo recados, obras em verso, e mimosinho de quem se estima. Às vezes era um lencinho com um Cupido bordado no meio e corações e setas; e outras vezes um coraçãozinho de queijo... e iguais finezas.

Cada vez mais enfeitiçado, e farto de esperar, pedi ao Manoel Leitão que fosse à casa do senhor Queiroz, e na conversa o apalpasse sobre o meu casamento com sua filha, a fim de conhecer as suas tenções a meu respeito. Manoel Leitão foi, e deu uns toques sobre este tanto; e a resposta do velho não podia ser mais cruel: despachou-o, declarando debaixo do sério que não casaria sua filha com chimango, que no seu entender era pior que o carrapato!

À vista de semelhante despacho, decidi-me a furtar a Francisquinha, e mandei-lhe no mesmo dia um recado. Ela respondeu-me que muito lhe custava abandonar pai e mãe, porém que por mim daria até a própria vida, e que me procuraria no canto do curral, junto do chiqueiro dos bezerros, à primeira cantada do galo.

Arranjei o necessário, e dando boas rações de milho aos cavalos e preparando as armas, fui buscá-la na hora aprazada, acompanhado de seis camaradas dos mais valerosos. Tomamos chegada devagar e com toda a cautela, e nos escondemos num capão de mato, que perto havia, donde via-se o curral e toda a casa do senhor Queiroz. E ali estávamos de espreita, quando vi um vulto branco sair da casa, e caminhar para o curral. Não havia dúvida, era ela... Deixei no mato os camaradas, e aproximando-me para tomá-la à garupa, topei... ah, não sei como não mordi o chão de raiva!

— Quem era então, tio José Bernardo?

— A mãe de Francisquinha, que desconfiando dos modos da filha, viera espiar à roda da casa!

— Ih!... Por essa não esperava vosmecê! E o que fez ela?

— Foi um barulho, que parecia o fim do mundo! A velha pôs-se a gritar; os cachorros avançaram, e o velho acudiu logo furioso como um trovão... E eu, chegando esporas ao cavalo, reuni-me aos companheiros, e com eles sai fumando, e desesperado de minha vida, porque mais nada podíamos fazer naquela noite.

No outro dia soube, por contar-me o rapaz, que a Francisquinha estava trancada na camarinha e chorava lágrimas a punhados; e que a razão do sucedido fora ter a velha encontrado a filha a entrouxar a melhor roupa; e como andava já com a orelha em pé, adivinhara o resto.

— Oh tirana sorte — exclamei fora de mim! — E as lágrimas vieram-me aos olhos como reses à porteira quando se abre.

Na mesma ocasião mandei à Francisquinha uma obra, que assim principiava:

Romper ferros, romper brenhas
Não acho ser valentia,
Para roubar-te, açucena,
Do poder da tirania.

No dia seguinte voltou o rapazinho, o mensageiro da minha açucena, e disse-me que ela continuava encarcerada, mas que me mandara esta embaixada: "Diga-lhe que a janela da camarinha está pregada, porém vou trabalhar a fim de arrancar os pregos; que venha receber-me à meia-noite debaixo da janela, pois, aconteça o que acontecer, estou determinada a acompanhá-lo, seja para onde for!

— Homem, a tia Francisquinha era dura! Sim, senhor; não tinha medo de nada! — exclamaram os ouvintes.

— Ainda vocês não viram nada, rapazes; ouçam o resto. Tomei as informações todas a esse tanto, e botei portadores para os camaradas, e milho aos cavalos.

À meia-noite lá me achei disposto a derramar até a última pinga de sangue em defesa da rosa dos meus pensamentos. Matar-me, era o mais que podiam fazer; e que me importava viver sem ela?

Como na primeira vez, arrumei os camaradas e, só, cheguei-me com todas as cautelas ao lugar do ajuste.

Francisquinha abriu a janela, e quando saltava à garupa do ruço, os cachorros arrancaram e a gente da casa pressentiu o caso. Mas, já era tarde. Ela agarrou-se à minha cintura, e eu abarcando com as pernas a barriga do cavalo, prantei-lhe as rosetas e ele fechou carreira, veloz como o vento. Os camaradas acompanharam-me na mesma conformidade, dizendo-me o Chico de Barros: "Depressa que o velho mandou chegar os cavalos e vem na batida."

Ainda não tínhamos caminhado muitas léguas, quando ouvimos o tropel da cavalhada do Queiroz. As barras vinham quebrando... E então, ao chegarmos à cocuruta de um alto, botei os olhos para baixo e vi lá na entrada duma varjota porção de cabras do Queiroz. Corriam como uns danados, e por isso nós apertamos a carreira, para ver se ganhávamos a situação do Menezes, onde eu queria depositar a Francisquinha.

Mas, o meu ruço já pouco esticava, e certamente os cabras nos alcançariam em pouco tempo. Portanto, combinando a respeito, preparamos os bacamartes, e esperamos no meio da estrada, em posição conveniente; e não custaram os cabras, porque estavam quase em cima de nós.

Chegados que fosse, disse Manoel Gomes, como chefe do bando:

— Senhora dona, viemos buscá-la por mandado do senhor seu pai.

— Não vai daqui enquanto não morrermos todos! — disse eu sem detença, olhando para o cabra.

— Eu lhe mostro se ela vai ou não...

— Havemos de ver, senhor Manoel Gomes! Vosmecê não me conhece ainda, apesar de ver-me todos os dias; mas, hoje se desengana...

— Não gastemos o tempo com razões, senhor José Bernardo...

Dona, apeie-se e vamos...

— Diga a meu pai que não há forças humanas que me façam voltar! — tornou-lhe a Francisquinha.

O cabra vendo-a assim determinada disse:

— Mas, dona, seu pai morrerá de desgosto e sua mãe, coitada... ficou em termos de perder o juízo.

— É minha sina acompanhar o senhor José Bernardo; cumpro a minha sina: Deus Nosso Senhor fará o que for de sua santa vontade! — respondeu Francisquinha.

— Tem razão, senhora dona; porém seu pai mandou-lhe dizer que dá consentimento para o casamento, se a dona voltar...

— O cabra era ladino! — murmuraram os rapazes queria ensebá-los, não é, tio Bernardo?

— Era, e todos nós conhecemos a lábia e lhe furtamos o corpo. A Francisquinha continuou a sustentar aos pés juntos que não voltaria, e então o cabra depois de algumas razões, mudou outra vez de tom, declarando:

— Pois, dona, quer queria quer não, há de acompanhar-me, que é ordem de seu pai...

— Só depois de morta... Morro, e não me entrego, senhor Manoel Gomes; fique certo disto!

— A tia Francisquinha era temera! — exclamaram os ouvintes.

E eu acrescentei:

— Morreremos todos com mil diabos, senhor Manoel Gomes.

Camaradas, escarnemos as armas!

E dito e feito: escarnamos os bacamartes e cada qual estava mais determinado. E pondo-nos em franquia, gritei:

— No primeiro que der um passo para diante, papoco fogo... Os cabras não fizeram ação; e como nos vissem dispostos, e tivessem recomendações ou medo, deram de rédea aos cavalos

e voltaram, declarando antes o Manoel Gomes:

— Não é por medo, meus senhores, que voltamos. Estimamos a dona e não queremos desgraças. — Dona, adeus: antes tudo, que vê-la morta. Ajudei a criá-la; carreguei-a nos meus braços; e por isso não tenho coração para maltratá-la. Não quer voltar? Pois não volte. Eu contarei a seu pai a sua resolução e farei por consolá-lo. Adeus.

Francisquinha derramou uma lágrima, ouvindo o Gomes; mas respondeu-lhe como no princípio:

— É sina, cumpro.

Desembaraçados então, continuamos a marcha e depressa ganhamos a casa do Menezes. Aí depositei a Francisquinha e cuidei logo nos arranjos para o casamento.

O Menezes era amigo do vigário, e por isso dentro de três dias casei-me, meus rapazes, vencendo assim esta batalha, e ganhando a aposta que eu fizera com meu vizinho Antônio de Brito, sobre esse tanto.

— E não houve festa, tio José Bernardo?

— Nem é bom falar nisso! Queimou-se pólvora que fazia medo, dançou-se três dias com três noites encarriadas. O aluá e a branca já corriam no terreiro; e os tocadores da viola e da rabeca ficaram afrontados por muito tempo. E não foi só isto. Eu e a Francisquinha, a pedido do Menezes, saímos a campo para nos tirarem o chapéu, e então os camaradas viram-se doidos, meninos. Eu no ruço, e ela num castanho corredor, empurramo-os na vargem, velozes como o pensamento; e a outra gente atrás pega-não-pega, e sem poderem pegar-nos. Depois, quando estávamos cansados da brincadeira, deixa-mo-nos agarrar...

— Quem tirou o chapéu da noiva?

— Foi o Menezes; e o meu, o João da Baixa-d’areia. Nunca me ri tanto em dias da vida.

— E depois a tia Francisquinha não foi pedir a bênção ao pai?

— Foi em companhia do Menezes e do vigário. O velho não quis a princípio vê-la; pôs-se duro e renitente; porém o vigário e o Menezes deram-lhe as dedicas e tanto rogaram, e tais cousas disseram, que o velho rendeu-se, declarando que abençoaria a filha, mas que não queria ver-me nem o rasto! A Francisquinha entrou e ajoelhando-se pediu a bênção ao pai e à mãe.

— Deus Nosso Senhor te abençoe, filha desnaturada! — exclamou o pai.

— Abençoada sejas de Deus e da Virgem Maria! — exclamou a mãe, e chorando soluçava com a Francisquinha.

Depois desta cerimônia, a Francisquinha voltou, e no outro dia mandaram-lhe a roupa, o ourinho que ela possuía, e três cabeças de gado, crias de uma bezerra que sua madrinha lhe dera no dia do batizado.

— E o velho ficou espinhado com vosmecê por muito tempo?

— Dois anos e quatro meses e cinco dias rolamos assim...

— E como fizeram pazes?

— Quem foi, rapazes, que não fez pazes aqui no sertão, durante as missões do senhor frei João? Querem agora saber de uma cousa?

— O que é, tio José Bernardo?

— Entrou por uma porta e saiu pela outra: manda o rei, meu senhor, que me conte outra. Adeus, que é tarde e vou ver se agarro o sono.

— Ora, tio José Bernardo; podia contar-nos ainda outros casos...

E como o velho vaqueiro se levantasse, todos fizeram o mesmo, que o galo já cantava, e a tia Francisquinha, acabando de fiar o algodão, esperava o velho para o terço.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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