FOLHAS SECAS
Os rapazes, fábricas da fazenda das Queimadas e de outras vizinhas, em torno da fogueira do alpendre, escutavam admirados a José Bernardo — o fama dos vaqueiros.
Era uma das noites de mais animada
conversa, como sempre que o velho vaqueiro dispunha-se a dar à língua.
Velho, disse, porque José Bernardo
já tinha mais de quarenta ferras como vaqueiro daqueles sertões. Poldros que
amansara nos tempos de moço, já os urubus haviam comido e a terra lambido os
ossos. E como testemunhas estavam aí os brancos cabelos, que lhe cobriam a
testa como as crinas de seu ruço campeão.
Mas, voltemos ao caso. José
Bernardo deitado em um couro fumava em seu cachimbo aparelhado de prata,
presente de um cavalariano amigo, e respondia com toda a fleugma aos rapazes; e
estes, uns de cócoras, outros sentados em cangas, couros e cangalhas, não se
fartavam de interrogá-lo.
— Oh, rapazes, vocês me parecem
reses atrás d’água nas ipueiras secas! Ainda não abri cacimba; tenham paciência
e peçam chuvas a Nosso Senhor.
— Mas, tio José Bernardo, vosmecê
ainda não contou um caso dos bons que sabe...
— Qual caso, nem meio caso! Casado
fui duas vezes, e se mais não fui a culpa é de tua tia Francisquinha, que
meninas não me faltavam pelos arredores.
— Já tu pegas com tuas graças,
Zezinho — murmurou de dentro a velhinha —, isto é homem encartado...
— Estava ouvindo, minha velha? Pois
vou contar a estes meninos o nosso casamento — disse José Bernardo com ar
prazenteiro e meio ufano, olhando de esguelha a sua querida metade.
— Erra só o que faltava, homem;
para que vais remexer nessas folhas secas?...
— Para eles aprenderem como se
casava em nosso tempo. Aquilo, sim, é que era casamento! O rapaz agradava a
dona por meio da valentia, furtava-a da casa dos pais, brigava no caminho com
oito cabras cangaceiros, casava... e depois, olha lá que festas!... Dançava-se
três dias com três noites e queimava-se pólvora até arrebentarem os
bacamartes...
— Este homem não toma juízo, não...
E vai contar estas histórias?...
— Ora, tia Francisquinha — disseram
os rapazes —, deixe ele contar. Que mal faz? Conte, tio José Bernardo, conte...
— Então, gente, o que responde?
— Assanhou os meninos e descarta-se
comigo? Arranja-te como puderes, homem, que eu vou fiar o meu algodão.
Os rapazes riam-se baixinho; José
Bernardo também, e Francisquinha não deixava de sorrir-se.
E tinham razão, porque mais unido
casal ninguém conhecia naqueles sertões: era uma alma em dois corpos, dois
riachos reunindo-se, formando um rio que sereno desliza pela várzea. Os
faladores, que em toda a parte os há, somente diziam: — que o tio José
Bernardo, das Queimadas, ainda namorava a tia Francisquinha, sua mulher. O
velho quando isto sabia, ria-se a não poder mais —; e se a consorte dava
cavaco, ele a consolava dizendo: "Deixe-os falar, minha velha; antes digam
isto, do que inventem que vivemos à custa do alheio, ou que deixamos de nos
confessar na quaresma..."
E ainda tinha razão, porque falsos
destes é que, se não queimam como o carvão, tisnam muitas vezes as boas
reputações.
— Estão ansiosos pela história,
como o gado em outubro pela rama, meus rapazes? — disse logo José Bernardo.
— Quem é que não gosta de ouvir o
tio José Bernardo, meu Deus! Vosmecê fala de maneira que amarra a gente...
— Pior vai esta não me encha de
vento: olhe que em surrão
velho não soca-se o legume. Pois
bem, escutem.
E o velho vaqueiro, enchendo e
acendendo de novo o cachimbo, principiou sua história.
— No meu tempo fui um dos rapazes
mais temeros destes gerais, e a fama de minhas proezas em serviço de gados
corria pelo sertão. Quem tinha seu touro brabo, ou animal arisco e amontado,
mandava logo chamar-me, porque só eu sabia dar voltas ao bicho, por mais
mocambeiro que fosse. Restam-me hoje somente os sinais, que as valentias
foram-se com os anos, como folhas do mufumbo nas águas do riacho. Agora
qualquer novilhote me faz correr e trepar até entre os espinhos do surucucu...
— Ora, qual, tio José Bernardo,
poucos ainda se pegam com vosmecê.
— Não é tanto, que já não passo de
um couro velho, que nem para alpargatas serve. Mas é certo que assim mesmo, não
me troco ainda por umas figurinhas que andam aqui entrosando de valentões...
— Olhe lá... bem eu dizia...
— É que os tais valentões nunca
viram bichos bravos, como os havia no tempo do Rabicho, do Orelhudo, do Bargado
e de outros novilhos afamados. Então sim é que eu quisera vê-los aparelhados em
campo. Mas, a raça daqueles acabou-se, meninos, acabou-se. Os novilhos d’agora
são mais mansos que as vacas, e as vacas piores do que os cordeiros.
Os meus documentos são estas esfoladuras,
que estão vendo. Esta, apanhei-a correndo na caatinga atrás do Orelhudo, num
dia de sexta-feira quase de noite; esta outra foi no caminho de Pedra-de-fogo
numa junta de gado. Tangia eu um magote, quando arranca uma rês e enfia deveras
pelo mato. Então cheguei os ferros ao ginete sem lembrar-me que ele era melado
claro, e o maldito não só faltou-me como despejou-se comigo na garganta dum
serrote!
— E caiu, tio José Bernardo?
— Em pé, mas o terreno era
despenhado, e por isso escorreguei e papoquei a cabeça no tronco d’uma
ingazeira, que não sei como a não arrebentei.
Dos outros se eu fosse falar não
acabaria hoje, que o tempo é pouco e os casos muitos. Vamos, porém, à história
do casamento...
— Sim, a história do casamento do
tio José Bernardo com a tia Francisquinha.
— Havia um ano que para sempre me
deixara a Jardilina, que Deus haja, com uma filhinha nos braços, que é hoje
mulher do Chico Leitão, do Poço-fundo. E o ano para mim passara triste e
esmorecido, e não admira, porque acostumado aos invernos, verdura e flores do
casado, via-me reduzido à seca, solidão e calamidades do solteiro. Eu estava
como a rês em pasto estranho, e como a rês volta-se gemendo para o lado de seus
pastos, eu suspirava recordando o passado; e não tenho vergonha de dizer,
meninos, muitas vezes corriam-me as lágrimas de quatro em quatro pela cara
abaixo, como a resina do cedro.
E assim devia ser, que a Jardilina
fora um anjo que Nosso Senhor me emprestara e a vida que me deu uma aurora de
junho. A minha vontade era a sua, e ela me queria tanto, que parecíamos galhos
de um só tronco, ou um casal de rolinhas.
De manhã cedo acordávamos,
rezávamos e cuidávamos em nossas obrigações, contentes e satisfeitos como quem
nada deve. Se era pelo inverno, tirávamos o leite, almoçávamos, e enquanto ela
fazia os queijos, eu saía para trabalhar com os gados, pedir campo, ou dá-lo
aos vaqueiros vizinhos: procurar e conduzir ao curral a vaca que eu vira
amojada e que por isso devia estar parida, ou para a junta dos bois de açougue.
E se era tempo de seca, ela tratava das criações miúdas e dos bezerros
enjeitados ou caruaras, e eu saía para as cacimbas ou logradores onde fazia as
retiradas, curava o gado doente, e cortava rama para o mais fraco. De volta,
ela ao ver-me sorria feliz. Jantávamos conversando alegres e assim depois,
sentado no meio de sola eu fazia peias e cabrestos e ela trazendo seu balainho
de algodão punha-se a fiar. Contava-lhe então os sucessos do campo; ora a
carreira por altos e baixos a todo pano, na espinhosa caatinga que me rasgara a
véstia e o guarda-peito, e ferira-me o ginete; ora o arremeter do noviho, o
encontro da cascavel ou da onça, etc. Escutando-me, ela estremecia aflita e
rogava-me que não me atirasse a tantos perigos; mas não deixava de alegrar-se
dentro d’alma, porque todas as mulheres, meus rapazes, gostam dos homens
valentes. E têm razão, porque a força do marido é uma garantia de sua fraqueza,
e ao lado dum maricas viveriam sempre tremendo de medo como varas verdes!
E como chorava a Jardilina, quando
eu me ausentava, acompanhando a boiada para a feira! E como chorava e perdia
noites de sono, quando eu gemia doente! O dia em que eu voltava a casa, à
saúde, ou era um dia de festa e contentamento que nos recompensava das saudades
e das dores.
Outra grande festa era o dia da
ferra. Ela vinha assistir no curral a divisão dos bezerros, e entre os que me
tocava de sorte escolhia o mais gordinho para a filha.
Eu lhes conto estas cousas para vocês
fazerem ideia do estado em que fiquei, perdendo a minha querida mulher.
Na verdade, é preciso ser doutor, e
doutor dos mais letrados, para explicar o que me consumia na minha viuvez.
Perdi o gosto do trabalho e passava o tempo malucando! E como não havia de ser
assim se me faltavam aquelas carícias, se não tinha a quem contar as minhas
proezas, se a minha casa era um deserto!
Era-me necessária outra Jardilina,
para poder dar conta não só dos gados de meu amo da terra, como também da vida,
que me dera a guarda o Amo do céu. E, Deus louvado, encontrei outra igual,
porque a Francisquinha, justiça lhe seja feita, não fica atrás: é uma esposa de
mão cheia como a Jardilina, e tão sua amiga que, longe de zangar-se se a
elogio, ajuda-me a recordá-la com saudade.
Muitas vezes, observando a
Francisquinha, assento de pedra e cal, e ninguém me tira disso, que vendo a
minha tristeza, Jardilina pôs-se aos ouvidos de Nosso Senhor a rogar-lhe que me
desse uma esposa igual a ela, e tanto pediu, tanto pediu que Ele para descansar
atendeu-a logo, concendendo-me a Francisquinha.
Mas, deixemos os arrodeios e vamos
pelo caminho direito. Eu andava banzeiro na viuvez, e os meus vizinhos e amigos
com medo que eu variasse — pois o juízo da criatura é tão fino que não precisa
muito para o perdermos —, me aconselhavam que procurasse mulher; que aquela
vida não ia boa; que a fazenda assim não prosperava.
Convenci-me disto e botei o sentido
e os olhos por planos e tombadores, com o ouvido alerta, procurando o mel da
abelha. Principiei por arrumar o meu corpo, que o desgosto desarranjara tanto
que mais parecia um rancho de comboieiros do que outra cousa. Chico Paes, que
entende desses negócios de cabelo, endireitou-me o topete e fez-me a barba; e o
Antônio Maria Gomes, que trabalha bem em couros, aprontou-me uma véstia, perneiras
e guarda-peito de capoeiro, que o couro de bode não é para quem sabe correr na
caatinga. Fiquei mesmo um Deus-nos-acuda, e comparando mal um S. Jorge no
caminho das batalhas. Assim, arreei o meu ruço de fama, avô do ruço pedrês e
montando-o saí, andei e corri até que dei com o rasto que eu procurava, que era
o da Francisquinha. Avistei-a, botei-lhe o
cavalo e sem mais nem menos
engracei-me dela.
A Francisquinha voltava de uma
festa e vinha bonita que era um gosto. Sapatos de marroquim encarnado, vestido
de chita de pataca, que naquele tempo era a mais fina, um colar demais de vara,
umas arrecadas de estrelinhas, e uns sorrisos, uns olhares... e um jeitinho que
endoideciam a gente. Ao vê-la, senti uns frios cá por dentro, que pareciam de
maleitas e mal pude falar com seu pai, o senhor Feliciano de Queiroz.
— Deus o salve, senhor Feliciano de
Queiroz, e a sua obrigação.
— A nós todos, senhor José
Bernardo. Para onde se bota, que mal pergunto?
— Pergunta muito bem; saí para dar
umas voltas no campo e vigiar os gados de meu amo.
— É bom zelar o que se lhe entrega.
Então, como vão de crias este ano?
— Vamos bem e não indo, senhor
Queiroz... vamos bem, porque apresentei oitenta e cinco bezerros à ferra, afora
os de quatro vacas mocambeiras; e não indo, porque apareceu nestes últimos
tempos uma gafeira nos bezerros, que os vai matando: inda ontem perdi três!t
— Homem, lá por casa tem sido o
mesmo. Eu cuido que isto é alguma erva ruim que o gado está comendo.
— O que é verdade é que o inverno
foi bastante rigoroso: lavou o pasto e o enfraqueceu demais.
— Todavia, antes assim, do que a
seca.
— Mas, senhor Queiroz, o melhor é
um inverno moderado, porque o pasto cresce e fica com sustância; e depois uma
chuvinha em outubro para fazer a rama.
— Lá isso é verdade; mas, o que
quer? As cousas vêm determinadas de cima...
Disse ele apontando o céu, enquanto
eu não tirava os olhos da Francisquinha. Emparelhara o meu cavalo com o de seu
pai, e estirava a conversa para melhor observá-la. Francisquinha vinha à garupa
segurando-se com uma mão na cintura do pai, a outra descida, e os olhos baixos.
E sua mãe vinha ao lado num castanho escuro. Os cavalos caminhavam a passo.
— Então, já sabe que os chimangos
caíram?
— Ouvi dizer, senhor Queiroz; ontem
passou lá por casa um portador do capitão Pereira e levava esta notícia.
— Enfim caíram estes judeus, que
tantas desgraças nos trouxeram.
— Não penso assim, porque, como
vosmecê sabe, nasci chimango e se ando torto — quem torto nasce, torto morre.
— Ah, é verdade, não me lembrava
que vosmecê era do tal partido. Não falemos mais nisto. O tempo mostrará quem
anda errado. Tive pena, rapazes, daquele caranguejo ser pai da Francisquinha;
porque se não fosse, a resposta estava pronta. Eu o escalava de cima abaixo, e
havia de mostrar-lhe quem eram os judeus, que crucificaram a Nosso Senhor Jesus
Cristo; e lembrar-lhe que o primeiro caranguejo que houve no mundo, como me
afiançou o vigário, foi Judas Iscariotes, que por sinal
vendeu o divino Mestre por trinta
dinheiros!
Mas engoli a palavra, olhando para
a Francisquinha, e conversei noutras cousas até que chegamos a casa, que era
perto, e nos separamos.
— Adeus, senhor Queiroz; perdoe a
má companhia.
— Ora, vosmecê é que tem a perdoar
alguma falta de minha parte.
— Nenhuma, senhor Queiroz; adeus.
Adeus, senhoras donas.
Até logo.
Francisquinha corou, respondendo-me
baixinho; e os velhos disseram:
— Se Deus quiser...
Cheguei então os ferros à barriga do cavalo, e saí correndo como quem corre atrás de boi na vargem. E desde aquele momento assentei que devia casar-me com a Francisquinha, desse no que desse.
— Com uma carangueja, tio José
Bernardo — murmuraram os rapazes.
— Qual carangueja, meninos;
caranguejos tinha-os ela de sobra em casa e o que lhe faltava era um chimango:
quem é que deseja o que possui? Por isso ou não, o que é verdade é que mulheres...
ninguém as entende! Francisquinha era chimanga de chapa; é o que queriam saber,
não é?
— Está ouvindo, tia Francisquinha?
— gritou um dos rapazes.
— Deixa-me lá, menino, que tenho
mais que fazer! respondeu ela de dentro da casa.
O velho sorriu-se, puxou e tragou
duas fumaças e continuou:
— Eu andava deveras apaixonado e
procurando veredas para o namoro. Todas as tardes, baralhando no meu ruço de fama,
fazia-o riscar no terreiro da casa do senhor Queiroz; e dava saída às minhas
visitas, ora perguntando por uma vaca que por aqueles campos pastava, ora dando
novas de uma rês catingueira, ou pedindo campo, ou água, etc. Algumas vezes via
a Francisquinha, e pelos ares com que me aparecia conheci que estava também
mordida pelo amor.
O senhor Queiroz continuava a
tratar-me bem; e se desconfiava do caso não dava mostras e nem me fazia cara
feia; e nem podia, pois se éramos da mesma a cor, éramos também dos mesmos
possuídos e até parentes por parte do defunto meu pai. Mas, havia uma diferença
entre nós e grande — a de partido; e como vocês sabem aqui pelo sertão é mais
fácil faltar chuvas em abril do que mudarmos de ideia. Não somos como os homens
lá da cidade, que viram e reviram todos os dias, segundo as suas conveniências.
Voltemos, porém, à história. Em
idas e vindas, em passeios e olhares, já quatro meses rolava eu com o meu
namoro, sem atrever-me a falar ao senhor Queiroz, até que um dia dispus-me, e
puxando conversa dei-lhe a entender as minhas intenções. Coçando a cabeça,
pôs-se ele a considerar e depois me disse:
— Vou cuidar para lhe dar a
resposta. Como vosmecê não ignora, estes negócios não se decidem assim aos pés
juntos.
— Sei, senhor Queiroz, e espero,
mas lembre-se que vai decidir da minha vida. Não é por me gabar, mas aqui não
vejo quem trabalhe mais do que eu e possa dar a uma dona o trato que ela
merece.
— Pois, sim, homem; falaremos
depois a respeito.
E retirei-me cheio de esperança,
porque o Queiroz me devia muitos favores em serviços de gados, e não recebera
mal a minha proposta. Todo o sertão sabia do negócio e todo o sertão já dava-me
os parabéns e convidava-se para a festa.
Mas, o demônio da política veio
meter-se no meio, e desmantelar tudo!
Havia uma eleição e o povo foi
chamado para dar votos na vila. Queiroz recebeu uma carta do delegado, que era
um caranguejão dos quatro costados, que lhe pedia a gente toda da terra; e eu
recebi também uma de meu amo, que era chimango às direitas, dizendo-me que não
faltasse com os amigos.
— Ai, ai, ai! — resmungaram os
rapazes por essa não esperava vosmecê, tio José Bernardo!
— É certo, meninos: mas o maldito
mete-se sempre no que anda direito, para rir-se nas profundas...
O senhor Queiroz pôs-se em campo e
não tirou mais a sela do cavalo. Não parecia o mesmo, tão demudado estava pela
paixão da política: convidava a todos e brigava com todos que não prometiam
acompanhá-lo! E eu pelo manso ia-me arranjando como podia, fugindo de
encontrar-me com ele, por causa da Francisquinha.
Porém, como lá diz o outro, saiu-me
o ano bissexto. Um dia, passando no terreiro do senhor Queiroz, topei-o no
copiá, deitado numa rede. Salvei-o incontinenti, e ele sem responder-me, arremeteu
e cresceu para cima de mim com estas palavras:
— Então, senhor José Bernardo, já
sei que tem cabalado muito, e que leva a gente toda deste sertão! A mim é que
vosmecê não leva... fique logo certo disto.
— Diga-me por favor, senhor
Queiroz, quem é o habilidoso que anda lhe contando estas histórias para nos
intrigar? — tornei-lhe com a prudência de um santo.
— Não são histórias... não, senhor.
O Menezes não vai comigo, porque vosmecê o chamou... Antônio da
Lagoa-de-dentro, o mesmo... Chico da Tapera, já se sabe... Manoel de Vargem-alegre,
nem falemos... Mas, vosmecê está muito enganado comigo, e é porque quer...
Havemos de ver no fim quem sai vitorioso... e fique certo que gastarei até a
última cabecinha de gado! E continuou com um rosário de razões, que eu
respondia com prudência; entretanto, encarnado como casca de croá, ele arremetia
mais do que novilho nos mocambos.
Ah, se não fosse a Francisquinha,
meus rapazes, aquele dia era o da minha desgraça! Já me saía fogo das orelhas e
escurecia-me a vista...
Mas, por causa dela aguentei tudo,
e sem faltar o respeito a seu pai, retirei-me quando me disse que dali em
diante não daria em sua casa nem fogo e água a chimango!
— É: "Adeus, sombra das
flores".
— Ah, sim... pois ouçam:
Adeus, luz da bela aurora,
Adeus, fresca da manhã,
Adeus, esperança vã
De quem triste geme e chora;
Adeus, que vi-me fora
De teus mimosos amores...
Adeus, pois os teus primores
Para mim tiveram fim,
Adeus, florido jardim,
Adeus, sombra das flores!
— E a segunda?
— É: "Do jardim da
primazia".
— Pois ouçam:
Já se ausentou o meu siso,
Já lá se vai meu prazer,
Perdendo teu bem-querer,
Perdendo meu paraíso!
O que serei sem juízo...
Ai, rosa d’Alexandria?
Da vida foge-me o dia,
Como foge o meu sentido...
Adeus, ó cravo escolhido
Do jardim da primazia!
— Muito bem, muito bem, tio José
Bernardo; agora as outras:
— Não me recordo mais, rapazes... A
terceira principiava...
Adeus, meu
galante sol,
Adeus, planeta brilhante,
Adeus, fino diamante,
E risca lá do teu rol
Este amor...
Este amor...
Não acerto com o resto, meninos; já
se acabou a minha memória...
— Ora, tio José Bernardo, como
vosmecê se esqueceu de uma obra destas...
— A poeira dos anos, meus rapazes,
estragou-me o entendimento: já não presto para essas cousas. Naquele tempo,
sim, eu não tinha inveja de quem soubesse obras, e dançasse um baião e um coco
inchado... Mas hoje, só sei rezar o meu rosário e isto mal.
— E a tia Francisquinha, não gostou
da obra?
— Ao cabo de três dias, o rapaz
voltou e me contou que a Francisquinha chorou quando leu a obra e depois lhe
dissera: "Diga a ele que meu pai está ainda zangado e que ele foi a
causa... que nunca me esquecerei dele... e que estou me acabando de saudades..."
— E outras palavrinhas, meninos, que me refrescaram cá por dentro, como chuvas
de janeiro ao campo esturricado.
Não havia dúvida, não, a
Francisquinha me queria bem, e era o que me faltava saber. Dali em diante o
rapaz não descansou, levando e trazendo recados, obras em verso, e mimosinho de
quem se estima. Às vezes era um lencinho com um Cupido bordado no meio e
corações e setas; e outras vezes um coraçãozinho de queijo... e iguais finezas.
Cada vez mais enfeitiçado, e farto
de esperar, pedi ao Manoel Leitão que fosse à casa do senhor Queiroz, e na
conversa o apalpasse sobre o meu casamento com sua filha, a fim de conhecer as
suas tenções a meu respeito. Manoel Leitão foi, e deu uns toques sobre este
tanto; e a resposta do velho não podia ser mais cruel: despachou-o, declarando
debaixo do sério que não casaria sua filha com chimango, que no seu entender
era pior que o carrapato!
À vista de semelhante despacho,
decidi-me a furtar a Francisquinha, e mandei-lhe no mesmo dia um recado. Ela
respondeu-me que muito lhe custava abandonar pai e mãe, porém que por mim daria
até a própria vida, e que me procuraria no canto do curral, junto do chiqueiro
dos bezerros, à primeira cantada do galo.
Arranjei o necessário, e dando boas
rações de milho aos cavalos e preparando as armas, fui buscá-la na hora
aprazada, acompanhado de seis camaradas dos mais valerosos. Tomamos chegada
devagar e com toda a cautela, e nos escondemos num capão de mato, que perto
havia, donde via-se o curral e toda a casa do senhor Queiroz. E ali estávamos
de espreita, quando vi um vulto branco sair da casa, e caminhar para o curral.
Não havia dúvida, era ela... Deixei no mato os camaradas, e aproximando-me para
tomá-la à garupa, topei... ah, não sei como não mordi o chão de raiva!
— Quem era então, tio José Bernardo?
— A mãe de Francisquinha, que
desconfiando dos modos da filha, viera espiar à roda da casa!
— Ih!... Por essa não esperava
vosmecê! E o que fez ela?
— Foi um barulho, que parecia o fim
do mundo! A velha pôs-se a gritar; os cachorros avançaram, e o velho acudiu
logo furioso como um trovão... E eu, chegando esporas ao cavalo, reuni-me aos
companheiros, e com eles sai fumando, e desesperado de minha vida, porque mais
nada podíamos fazer naquela noite.
No outro dia soube, por contar-me o
rapaz, que a Francisquinha estava trancada na camarinha e chorava lágrimas a
punhados; e que a razão do sucedido fora ter a velha encontrado a filha a
entrouxar a melhor roupa; e como andava já com a orelha em pé, adivinhara o
resto.
— Oh tirana sorte — exclamei fora
de mim! — E as lágrimas vieram-me aos olhos como reses à porteira quando se
abre.
Na mesma ocasião mandei à
Francisquinha uma obra, que assim principiava:
Romper ferros, romper brenhas
Não acho ser valentia,
Para roubar-te, açucena,
Do poder da tirania.
No dia seguinte voltou o rapazinho,
o mensageiro da minha açucena, e disse-me que ela continuava encarcerada, mas
que me mandara esta embaixada: "Diga-lhe que a janela da camarinha está
pregada, porém vou trabalhar a fim de arrancar os pregos; que venha receber-me
à meia-noite debaixo da janela, pois, aconteça o que acontecer, estou
determinada a acompanhá-lo, seja para onde for!
— Homem, a tia Francisquinha era
dura! Sim, senhor; não tinha medo de nada! — exclamaram os ouvintes.
— Ainda vocês não viram nada,
rapazes; ouçam o resto. Tomei as informações todas a esse tanto, e botei
portadores para os camaradas, e milho aos cavalos.
À meia-noite lá me achei disposto a
derramar até a última pinga de sangue em defesa da rosa dos meus pensamentos.
Matar-me, era o mais que podiam fazer; e que me importava viver sem ela?
Como na primeira vez, arrumei os
camaradas e, só, cheguei-me com todas as cautelas ao lugar do ajuste.
Francisquinha abriu a janela, e
quando saltava à garupa do ruço, os cachorros arrancaram e a gente da casa
pressentiu o caso. Mas, já era tarde. Ela agarrou-se à minha cintura, e eu
abarcando com as pernas a barriga do cavalo, prantei-lhe as rosetas e ele
fechou carreira, veloz como o vento. Os camaradas acompanharam-me na mesma
conformidade, dizendo-me o Chico de Barros: "Depressa que o velho mandou
chegar os cavalos e vem na batida."
Ainda não tínhamos caminhado muitas
léguas, quando ouvimos o tropel da cavalhada do Queiroz. As barras vinham quebrando...
E então, ao chegarmos à cocuruta de um alto, botei os olhos para baixo e vi lá
na entrada duma varjota porção de cabras do Queiroz. Corriam como uns danados,
e por isso nós apertamos a carreira, para ver se ganhávamos a situação do
Menezes, onde eu queria depositar a Francisquinha.
Mas, o meu ruço já pouco esticava,
e certamente os cabras nos alcançariam em pouco tempo. Portanto, combinando a
respeito, preparamos os bacamartes, e esperamos no meio da estrada, em posição
conveniente; e não custaram os cabras, porque estavam quase em cima de nós.
Chegados que fosse, disse Manoel
Gomes, como chefe do bando:
— Senhora dona, viemos buscá-la por
mandado do senhor seu pai.
— Não vai daqui enquanto não
morrermos todos! — disse eu sem detença, olhando para o cabra.
— Eu lhe mostro se ela vai ou
não...
— Havemos de ver, senhor Manoel
Gomes! Vosmecê não me conhece ainda, apesar de ver-me todos os dias; mas, hoje
se desengana...
— Não gastemos o tempo com razões,
senhor José Bernardo...
Dona, apeie-se e vamos...
— Diga a meu pai que não há forças
humanas que me façam voltar! — tornou-lhe a Francisquinha.
O cabra vendo-a assim determinada
disse:
— Mas, dona, seu pai morrerá de
desgosto e sua mãe, coitada... ficou em termos de perder o juízo.
— É minha sina acompanhar o senhor
José Bernardo; cumpro a minha sina: Deus Nosso Senhor fará o que for de sua
santa vontade! — respondeu Francisquinha.
— Tem razão, senhora dona; porém
seu pai mandou-lhe dizer que dá consentimento para o casamento, se a dona
voltar...
— O cabra era ladino! — murmuraram
os rapazes queria ensebá-los, não é, tio Bernardo?
— Era, e todos nós conhecemos a
lábia e lhe furtamos o corpo. A Francisquinha continuou a sustentar aos pés
juntos que não voltaria, e então o cabra depois de algumas razões, mudou outra
vez de tom, declarando:
— Pois, dona, quer queria quer não,
há de acompanhar-me, que é ordem de seu pai...
— Só depois de morta... Morro, e
não me entrego, senhor Manoel Gomes; fique certo disto!
— A tia Francisquinha era temera! —
exclamaram os ouvintes.
E eu acrescentei:
— Morreremos todos com mil diabos,
senhor Manoel Gomes.
Camaradas, escarnemos as armas!
E dito e feito: escarnamos os
bacamartes e cada qual estava mais determinado. E pondo-nos em franquia,
gritei:
— No primeiro que der um passo para
diante, papoco fogo... Os cabras não fizeram ação; e como nos vissem dispostos,
e tivessem recomendações ou medo, deram de rédea aos cavalos
e voltaram, declarando antes o
Manoel Gomes:
— Não é por medo, meus senhores,
que voltamos. Estimamos a dona e não queremos desgraças. — Dona, adeus: antes
tudo, que vê-la morta. Ajudei a criá-la; carreguei-a nos meus braços; e por
isso não tenho coração para maltratá-la. Não quer voltar? Pois não volte. Eu
contarei a seu pai a sua resolução e farei por consolá-lo. Adeus.
Francisquinha derramou uma lágrima,
ouvindo o Gomes; mas respondeu-lhe como no princípio:
— É sina, cumpro.
Desembaraçados então, continuamos a
marcha e depressa ganhamos a casa do Menezes. Aí depositei a Francisquinha e
cuidei logo nos arranjos para o casamento.
O Menezes era amigo do vigário, e
por isso dentro de três dias casei-me, meus rapazes, vencendo assim esta
batalha, e ganhando a aposta que eu fizera com meu vizinho Antônio de Brito,
sobre esse tanto.
— E não houve festa, tio José
Bernardo?
— Nem é bom falar nisso! Queimou-se
pólvora que fazia medo, dançou-se três dias com três noites encarriadas. O aluá
e a branca já corriam no terreiro; e os tocadores da viola e da rabeca ficaram
afrontados por muito tempo. E não foi só isto. Eu e a Francisquinha, a pedido
do Menezes, saímos a campo para nos tirarem o chapéu, e então os camaradas
viram-se doidos, meninos. Eu no ruço, e ela num castanho corredor, empurramo-os
na vargem, velozes como o pensamento; e a outra gente atrás pega-não-pega, e
sem poderem pegar-nos. Depois, quando estávamos cansados da brincadeira,
deixa-mo-nos agarrar...
— Quem tirou o chapéu da noiva?
— Foi o Menezes; e o meu, o João da
Baixa-d’areia. Nunca me ri tanto em dias da vida.
— E depois a tia Francisquinha não
foi pedir a bênção ao pai?
— Foi em companhia do Menezes e do
vigário. O velho não quis a princípio vê-la; pôs-se duro e renitente; porém o
vigário e o Menezes deram-lhe as dedicas e tanto rogaram, e tais cousas
disseram, que o velho rendeu-se, declarando que abençoaria a filha, mas que não
queria ver-me nem o rasto! A Francisquinha entrou e ajoelhando-se pediu a
bênção ao pai e à mãe.
— Deus Nosso Senhor te abençoe,
filha desnaturada! — exclamou o pai.
— Abençoada sejas de Deus e da
Virgem Maria! — exclamou a mãe, e chorando soluçava com a Francisquinha.
Depois desta cerimônia, a
Francisquinha voltou, e no outro dia mandaram-lhe a roupa, o ourinho que ela
possuía, e três cabeças de gado, crias de uma bezerra que sua madrinha lhe dera
no dia do batizado.
— E o velho ficou espinhado com
vosmecê por muito tempo?
— Dois anos e quatro meses e cinco
dias rolamos assim...
— E como fizeram pazes?
— Quem foi, rapazes, que não fez
pazes aqui no sertão, durante as missões do senhor frei João? Querem agora
saber de uma cousa?
— O que é, tio José Bernardo?
— Entrou por uma porta e saiu pela
outra: manda o rei, meu senhor, que me conte outra. Adeus, que é tarde e vou
ver se agarro o sono.
— Ora, tio José Bernardo; podia
contar-nos ainda outros casos...
E como o velho vaqueiro se
levantasse, todos fizeram o mesmo, que o galo já cantava, e a tia
Francisquinha, acabando de fiar o algodão, esperava o velho para o terço.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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