DIA DE FEIRA
CAPÍTULO 1
Era ao alvorecer de um domingo, na
vila da Pacatuba...
Agrícola e florescente, a Pacatuba
é uma linda dona, que sabe distribuir as horas de seu domingo com as preces, os
seus arranjos caseiros, e as teteias de seus enfeites. Cristã, ouve devotamente
a sua missa, com os olhos fitos na imagem sacrossanta e o coração elevado ao
bom Deus; mãe de família, ei-la depois no mercado com o seu distrito e os
vizinhos, a vender os frutos do trabalho, e a comprar o pedaço de pano para a
camisinha do filho, o purgante para o doente, a farinha, a carne, os temperos e
tudo o mais de que precisa a despensa de uma previdente dona de casa; e
rapariga, procura amor, enfeites e perfumes, não esquecendo as doces práticas
d’amizade, as visitas à comadre e outros entretimentos da vida aldeã.
E como as horas correm ligeiras, no
meio do contentamente, aproximando o momento saudoso da despedida, de um adeus
até a feira do seguinte domingo!
Raiava, pois, um desses alegres
dias; e eu passeava a cavalo nas estradas da vila, aspirando o perfume das flores
e contemplando enlevado a natureza, que então ostentava ufana seus imensos
primores.
As balças, osculadas pela aragem
matutina, deixavam cair no capinal os orvalhos de suas ramagens, e os
passarinhos gorjeavam os hinos d’alvorada, enquanto o riachinho soluçava entre
as pedrinhas de vale, como a criança quando acorda longe dos mimos maternos. E
ao mesmo tempo, criaturas de todas as idades passavam na estrada, ora
conversando, ora cantando, e sempre sorrindo.
Que pitoresco quadro!
Aqui, uma família inteira — homem,
mulher e crianças — a pé, com suas roupas domingueiras, dirige-se à missa finda
a qual será batizado o recém-nascido, que vai choramingando no seio da pobre
mãe, que docemente o acalenta dizendo: ‘‘Não chores, filhinho, que hoje
receberás as águas do batismo e a bênção de teus padrinhos. Não chores, para
que não te aborreçam, e não te achem feio, meu bonitinho...’’ — O pai ri-se
fitando o novo mimo de seu amor, e os outros filhos correm adiante brincando na
viagem.
Ali, o lavrador tangendo prazenteiro o seu cavalinho, que conduz o alqueire de milho, ou arroz, ou as arrobas de algodão, colheita de seu roçado — daqueles duzentos passos de lavoura, que tanto suor lhe arrancara do rosto no meio de penosas fadigas. Além, duas moças com seus lencinhos de cambraia amarrados na cabeças, suas argolas douradas nas orelhas, e suas voltas de aljôfar ao pescoço, passam conversando jubilosas, talvez em procura do mancebo de seus afetuosos sonhares.
— Olha, Madalena, esta noite tive
um sonho... tão bonito que me fez chorar de contentamento...
— Com quem sonhaste, ó Luzia? Sou
capaz de jurar que foi com o José Coelho...
— Não conto, não, mulher; se contar
não se realiza... Ai, quem dera que hoje o encontrasse...
Perto ouve-se a voz saudosa do violeiro
que vai cantando e tocando, talvez convidado para uma função:
‘‘Vou me embora, vou me embora,
Senhores, não canto mais!
Vou armar a minha rede Entre
suspiros e ais...’’
Em seguida caminha tropeçando o
enfermo e indigente velho que, arrimado ao seu bordão, espera colher nas ondas
de povo o vintém da caridade, por entre os vinténs dos prazeres vãos.
E logo após o guarda nacional
fardado, levando economicamente os coturnos pendurados ao dedo, dirige-se ao
ponto da revista.
Entretanto despontara o sol, e
sorrindo-se ao ver os sorrisos dos singelos campônios, mandara alguns de seus
brilhantes raios iluminar as casas do mercado, enxugar os alpendres úmidos das
lágrimas da madrugada, e avisar os mercadores:
— Preparem-se, que hoje a feira
será muito concorrida.
— Armem as balanças... muito
algodão... muito algodão...
— O povo vem alegre conversando e
quem alegre conversa vai pagar suas dívidas...
— Alvíssaras, senhores, alvíssaras,
que não faltará a farinha e muito menos a rapadura...
E certa de uma boa feira, a
Pacatuba varre as suas lojas, banha-se em suas vertentes, alisa os longos
cabelos, e veste-se do melhor modo para receber os fregueses, os obreiros de
seu engrandecimento.
CAPÍTULO 2
Quase ao entrar nas ruas da vila,
encontrei João e Marcolina, tangendo possuídos da maior alegria o seu castanho
carregado de algodão; e cumprimentei-os comovido, porque sabia a causa daquele
contentamento, que brilhava em seus negros olhos como as estrelinhas do céu em
serenas madrugadas.
Era o sorriso após os prantos — o
dia de sol que espanca as trevas do mais proceloso inverno.
Ah! e como é enternecedora e ao
mesmo tempo formosa a convalescença das amarguras! Como a felicidade radia no
rosto daquele que ainda há pouco se estorcia nos aguilhões do infortúnio! João
trajava umas calças de riscado americano, camisa de algodãozinho muito alva, e
chapéu de palha de carnaúba en- feitado de fita azul; e Marcolina, uma saia de
chita de palmas amarelas e cabeção de cassa arrendado, em que descansava seu
rosário de cruz dourada, não lhe faltando as argolas de ouro, e
o lençol de largos babados.
De vez em quando Marcolina olhava
com orgulho para a asseada roupa de João; e João com orgulho também olhava para
a saia bonita de Marcolina e os sacos que o castanho conduzia.
Depois, Marcolina reparando em sua
saia, fitava com reconhecimento seus negros e rasgados olhos em João; e João
reparando em sua alva roupa, do mesmo modo fitava os seus em Marcolina. Um
terceiro olhar completava a manifestação do sentimento que os dominava, e esse
pertencia ao céu — era a gratidão pelas mercês recebidas do bom Deus.
Até o castanho parecia partilhar o
bom humor de seus donos. Tendo recebido integralmente, antes da partida, a sua
ração de milho, marchava então garboso com oito arrobas de algodão herbáceo
como se mais leve fora a carga.
E qual a causa de tamanho
contentamento?
É uma história muito singela e
dolorida que lhes ouvi uma noite, por entre lágrimas, e que não sei contar.
Todavia, para que fique ao menos registrada nestas memórias, vou resumi-la do
melhor modo possível.
— João trabalhava a jornal em
terras do Rio Formoso, onde residia há mais de ano. Duas patacas por dia e à
sua custa! Por muita economia que Marcolina fizesse, esse dinheiro apenas
chegava para carne e farinha — se era tão pouco!
Mas, no meio de tão minguados recursos, doce esperança lhes acenava no futuro, prometendo-lhes dias melhores. João conseguira de seu patrão um taco de terra para roçado, e desde logo meteu mãos ao serviço, nele empregando-se quando lho permitiam o patrão e a necessidade de ganhar o pão como jornaleiro. Era o seu primeiro roçado naquela terra, que preferia às praias em que nascera, porque nestas faltava-lhe o trabalho que ali encontrara abundante, e portanto, os meios de realizar para sua família os gozos de uma vida independente, embora à custa de muitas fadigas e suores.
Animado, pois, de tão nobres
sentimentos, João trabalhava com entusiasmo, sem descanso, sem um esmorecimento
sequer, com o ardor febril do poeta que inspirado escreve o poema, em que
antevê o monumento de seu renome.
Desse modo em pouco tempo, com
admiração geral, brocou e derrubou o seu roçado; e alguns dias depois,
preparados os aceiros, convidou a mulher e alguns vizinhos para auxiliá-lo na
queima, a fim de que esta fosse completa e não ficassem muitas coivaras.
É um dia de festa a queima do
roçado, mas somente para os homens do campo, acostumados a tão penoso
espetáculo; e que apenas pensam no resultado pecuniário, como os que se ocupam
na matança das reses.
Mas, para o poeta, o filósofo, o
homem sensível e amante da natureza, é um quadro de luto e de profunda
angústia.
A floresta estorce-se dolorida num
leito de chamas. Os galhos gemem, soluçam, gritam, agonizam, como que pedindo
socorro; os reptis silvam e correm no meio do fogo; as aves voam piando
medrosas, e abandonando seus ninhos à destruição; e as labaredas avançando
sempre, rugidoras, horríveis, implacáveis como os demônios da ruína!
Horas depois... está tudo
consumado! Resta a cinza, o pó do luto da morte, em troco de virentes ramagens,
de tão lindos festões, de tanta seiva e vida!
Então, como que a natureza ergue-se
ante a penosa desolação e exclama qual mãe amargurada: ‘‘Homens cruéis! o que
fizestes do filho de minhas entranhas — de meu arvoredo frondoso
—, dos ninhos de minhas aves, da
frescura de minhas relvas e ribeiros? Pois quê! não sabíeis que aquelas árvores
me custaram anos... que me custaram séculos de não interrompido labor?! E
todavia sem dó, tudo reduzistes a cinzas em poucos dias; tudo trocastes por
meia dúzia de alqueires de arroz, que não durarão tanto como os frutos da minha
floresta! Deus! Meu Deus! é certo, pois, que me condenastes eternamente a esta
luta penosa — a criar, a construir com afã, sem trégua, sem repouso, para que
os homens destruam em caprichosos momentos, sem compaixão, sem necessidade às
vezes, a minha obra de muitos séculos?!"
Perdoe-me o leitor este desvio.
Parece-me que se a senhora Natureza
tivesse imprensa e jornal, alcançaria mais escrevendo artigos contra o governo
que não facilita ao pobre povo da lavoura o ensino e os meios de arar e adubar
o terreno, aproveitando assim o mesmo chão para as plantações de todos os anos,
sem destruir portanto as matas; e contra os homens abastados e instruídos, que
se associam, como na América do Norte, para realizar melhoramentos de tamanha
importância, que o governo esquece em sua inércia e desamor aos interesses
nacionais. Nos referidos artigos, podia a publicista lembrar que não podemos
dispensar madeiras de construção e lenha; que ambas estas cousas vão
progressiva e espantosamente se extinguindo; e que nesta marcha chegaremos ao
estado de importar lenha do estrangeiro, como já importamos palitos, tábuas,
arroz e toucinho. Lembraria mais que muitos ribeiros têm secado, e as águas de
outros diminuído consideravelmente, tudo devido à destruição das matas; e que o
solo exposto aos raios caniculares torna-se-á seco e estéril, e difíceis
consequentemente as chuvas, na opinião dos professores da matéria. E abundando
nestas e noutras considerações a propósito, a senhora Natureza conseguiria
melhores resultados efetivamente, do que com sentidas exclamações, ou nênias da
mais profunda tristeza.
Mas, volto à história.
CAPÍTULO 3
Queimado e encoivarado o roçado, dispunha-se
João a cercá-lo, e a confiar-lhe as sementes ao cair das primeiras chuvas,
quando o acaso, ou o destino embargou-lhe os passos, interrompendo-lhe
cruelmente os seus lidares agrícolas.
Deu-se o fato assim. Voltando do
serviço uma tarde, encontrou João em sua palhoça um comboieiro vindo das
praias, e este contou-lhe que deixara seu irmão Anastácio morre-não-morre de
uma doença, que mais parecia feitiço do que outra cousa — acrescentando que o
enfermo falava sempre no irmão ausente, com ânsia de vê-lo antes da viagem para
a outra vida.
Ora, o que havia de fazer o pobre
João?
Pediu cinco mil réis emprestados ao
patrão, e entregando dois à mulher, para com eles arremediar-se em sua
ausência, cuidou em seguir com os três que restavam, em auxílio do irmão de sua
alma.
Marcolina, apesar do transtorno que
lhe causava tão inopinada viagem, foi a primeira a aconselhá-la.
— Vá, João, que o Anastácio pode
precisar de você; e se lhe não der remédio, dará ao menos a consolação de vê-lo
ao punho da rede nos últimos instantes.
— E você, mulher e o nosso filho...
Quem suprirá a casa se eu demorar-me?
— Nós nos arremediaremos como Deus
for servido. João calou-se, e acrescentou depois:
— Se eu não voltar logo, é porque o
Anastácio está ruim. Neste caso, se lhe faltar o mantimento, fale com o patrão;
e se ele não der o preciso, você empenhe aquele par de cadeados...
Feita a arrumação, isto é, botando
uma camisa e umas ceroulas dentro da rede, João amarrou-a e pô-la a tiracolo; e
de alpargatas e cacete partiu, volvendo olhos saudoso à esposa e filho, e para
o lado do seu roçado.
No fim de quinze dias voltou João;
mas, em que estado, meu Deus! Deixara seu irmão enterrado, e ele, o desgraçado,
tendo apanhado umas maleitas, a custo poderá vencer o caminho e alcançar o seio
de sua família, tão fraco e enfermo se achava.
A doença prolongou-se, e
exaurindo-lhe as forças impossibilitou-o do trabalho, prendendo-o ao leito das
dores.
Avalie agora quem puder as
privações e amarguras da pobre família. Acostumada ao salário de João para as
despesas quotidianas, este lhe faltara completamente. Bens não possuía, e bastantes
vezes importunara o patrão pedindo dinheiro emprestado.
Tornou-se depressa completa a sua
indigência. O filhinho já não tinha um molambo para cobrir o descarnado corpo;
Marcolina possuía apenas uma saia, que mesmo em si enxugava, quando a lavava; e
João tudo isto contemplava, gemendo enfermo, e partilhando os sofrimentos da
família.
Em tamanha miséria, porém, em vez
de se entregarem ao desespero, eles tudo encaravam com a mais completa
resignação, sempre com a oração nos lábios, a fé no coração e os olhos no céu.
— Os maus tempos passarão — dizia
muitas vezes Marcolina consolando o marido —; o pai castiga o filho para
corrigi-lo de suas faltas, mas depois compensa-o de suas dores com afetuosos
extremos. E Deus é o misericordioso Pai. Pequeno é o castigo, homem, à vista de
nossos grandes pecados; e por isso rendamos graças ao Pai que nos poupa, e
arrependidos de nossas culpas imploremos o seu perdão.
— É assim, gente, é assim — tornava
João —; mas, custa muito a um homem ver sua mulher e filho em penúria, desejar supri-los
de um tudo, e não poder levantar-se e dar um passo! Ah, dói-me somente vê-los
padecer, que, quanto a mim estou conformado com a vontade do Altíssimo.
— Não exagere, João, as nossas
precisões. O que nos falta e mais desejamos é a sua saúde. Sim, e tenho fé em
S. Francisco das Chagas que em pouco tempo você estará perfeitamente bom. Já
hoje não lhe deram as malditas, e espero que não voltarão mais. E Marcolina
alegrava o semblante para animar o marido, e muitas vezes ria-se procurando
ocultar as mágoas, ria-se quando a fome lhe devorava as entranhas, para que
João não se afligisse; ria-se quando apunhalada pela dor desejava chorar; e
reunindo
as forças quase exaustas,
trabalhava sem descanso a fim de poder comprar o remédio para o enfermo, e o
comer da família.
Neste empenho, todo o tempo que lhe
sobrava do tratamento do esposo, empregava ela na colheita do arroz ou algodão,
ou nas farinhadas dos vizinhos, procurando assim ganhar alguns vinténs,
enquanto uma piedosa velha, que morava perto, se encarregava de seu filho. E
mais fazia ainda. Nas horas, ou momentos que podia furtar a essas lidas, corria
ao roçado — àquele roçado que João começara tão animado e prazenteiro, e em que
ela, sem que lho dissesse, continuava ocultamente a trabalhar, planeando uma
surpresa ao querido de sua alma, no dia em que lhe voltasse a saúde. Era este
um segredo, que ela pedia a todos que lho guardassem, e a premeditada surpresa
um relâmpago de felicidade, que longe brilhava por entre as trevas de seus
dias.
Que dedicação extrema!
Quantas vezes, vencendo as doenças
e cansaços, não se entregava Marcolina às lidas com ânimo varonil, como que galvanizada
pela necessidade imperiosa de sustentar o marido e o filho, de quem era então o
único arrimo, alimentando-os com o fruto de suas fadigas, com os suores que lhe
corriam do rosto! E o que seria deles, se lhes faltasse ela, se esmorecesse um dia
naquele labutar penoso e incessante?
Entretanto se João, reparando em
seu afanoso lidar, repreendia-a docemente, e lhe pedia que poupasse as forças
para não arruinar a saúde, com que singeleza, mimo de modéstia e estremecido
amor ela lhe respondia:
— Hoje por mim e amanhã por ti — é
ditado dos antigos, meu João. Ora escute, muito mais não fazia você por mim?
Não trabalhava todo o santo dia, ao sol e à chuva, para dar-me o necessário, e
satisfazer os meus menores desejos, enquanto preguiçosa eu descansava em casa?
É justo, pois, que ao menos um pouquinho lhe dê em pagamento de tão grande
dívida. E, responda — assim como as alegrias, não devemos repartir as lidas e
os dissabores?
— Mas, gente, você se atira demais
ao serviço...
— Ora... quem não vê é como quem
não sabe. Sou mais preguiçosa do que pensa, João... Não faço nem a quarta parte
do que devera fazer, acredite...
Quem poderia vencer tamanho
heroísmo? E quem ao contemplá-lo deixaria de crer na virtude e na existência de
um Deus infinitamente grande e misericordioso?!
Vinde, ó céticos, e admirai nesta
pobre mulher o símbolo da esposa cristã — da criatura que espera, crê e ama,
com os olhos em Deus —, da flor da virtude, enfim, que resistindo aos vendavais
das paixões, às seduções do ermo, e às tentações do infortúnio, brota, viça e
cresce, forte pela crença, e derrama os seus divinos eflúvios! E entretanto
vós, embrutecidos pelos vícios, passais indiferentes no meio da multidão, ou
gemeis no leito das dores sempre isolados e infelizes, porque vos falta a
religião, essa consoladora mãe que nos embala em seu colo, entoando os hinos
dos puros afetos.
Mulheres! Por que vos desviais
tantas vezes dos santos deveres de esposa e mãe? Por que, como Marcolina, não
vos tornais todas heroínas de amor e dedicação?... Por que desprezaste tu, ó
perdida, o lar da família pela lama dos prostíbulos?... Por que abandonas tu, ó
leviana, os mimos de amor do esposo e filho, pelas loucuras da valsa e
vanglórias dos salões?... Por que esqueces tu, ó descuidada, as obrigações
domésticas, para te empregares na maledicência, ou em distrações pueris em casa
da ociosa vizinha? Não vês que o esposo enfermo reclama os teus cuidados; que o
filho pede-te amparo e carinho; que o fogo do lar se apaga; que a poeira cobre
os móveis; que o cupim assenhoreia-se da casa, e que esta desabará com a
felicidade possível neste mundo?... Oh, apartai-vos dos maus caminhos, vós
todas, e enquanto é tempo, retomai a senda da virtude, realizando a missão sublime
que na terra vos confiou o bom Deus!
CAPÍTULO 4
Aliviado das maleitas, João sentia
pouco a pouco as forças lhe voltarem, e com estas o desejo ardente de trabalhar
e desonerar a sua virtuosa mulher do penoso encargo de sustentar a família. E
Marcolina, apesar de magra e alquebrada, opunha-se à vontade do marido,
rogando-lhe que completasse a convalescença, evitasse uma recaída que lhe podia
ser funesta.
— É cedo, João... Você ainda não
cumpriu todo o resguardo. Não se agonie, homem, que tempo não lhe faltará
depois para labutar ao cabo da foice e da enxada.
João escutava-a, com olhares de
terno reconhecimento, e depois murmurava tristemente:
— Quem viu-a... e quem a vê... Não
sei qual de nós, mulher, estará mais fraco... precisará de mais repouso... Onde
as carnes que lhe enchiam o seio e as faces, e aquela mocidade que brilhava em
seu rosto como a estrela d’alva no azul do céu? Tudo se acabou! Tudo calcou
impiedoso o tufão da miséria... de tão longo infortúnio! Ei-la agora mais
doente do que eu, caindo de cansaço... e todavia lidando sempre, sem
consentir-me ao menos que a ajude a carregar a cruz!...
— Deixe-se desses flatos, homem —
replicava docemente Marcolina —; a doença enfraqueceu-lhe o juízo. É preciso
tomar sustância para pensar melhor, e trabalhar como dantes. E quanto a mim,
não há razão para cuidados. Tenho saúde, Deus louvado, e hoje que o vejo
restabelecido, sinto-me a mulher mais feliz deste mundo.
E sorrindo-se botava um pano na
cabeça e despedia-se do marido, entregando-lhe o filho e dizendo:
— Converse agora com este mocinho,
que eu vou conversar com a enxada, que me espera para acabar uma empreitada de limpa;
mas, não lhe conte, João, aquelas histórias tristes que me estava contando,
senão ele chora...
Raiou finalmente o dia tão
fervorosamente desejado por João, em que Marcolina permitiu-lhe um passeio nos
campos, para, como dizia ela, endurecer-lhe o corpo e prepará-lo às lidas. Era
uma manhã de maio, e tão perfumosa e alegre como quase todas as desse mês de
flores, consagrado à adoração da Virgem.
Marcolina, com o filho ao colo,
caminhava risonha ao lado do marido, estremecendo de contente, e respondendo às
perguntas como mãe extremosa.
E que deliciosos enlevos, que
suaves comoções não sentia João, fitando aqueles campos verdosos, de que o
privara a doença por tantos meses? Como tudo lhe parecia novo, emanando
fragrâncias e harmonias, que ele desconhecia, e julgava do céu? Ataviara-se
acaso a natureza para receber-lhe a visita? Em sua longa e penosa ausência,
estudariam acaso os passarinhos aqueles melodiosos gorjeios, que o arroubavam;
destilariam as flores aqueles olores, que lhe inebriavam a alma; e
enfeitar-se-iam as plantas com aquela roupagem verde-escuro, que o embevecia? E
como o sol brilhava esplêndido, difundindo ondas de luz, de calor e vida! E
como os arroios do vale murmuravam misteriosamente por entre as algas de sua
margem! E como as flores balouçavam graciosas, ao suspirar dos euros matutinos!
Não seria tudo isto um sonho... um delírio de sua imaginação fraca e febril?
Que avalie as comoções do pobre
João, aquele que, convalescente de prolongada enfermidade, e possuindo uma alma
de poeta, passeou nos campos em manhã de maio — tempo de nossa primavera.
Marcolina cumprimentava sorrindo a
todos que encontrava, acordando o marido de seus êxtases para responder as
felicitações dos vizinhos e conhecidos.
— Ora, Deus louvado — dizia um —,
voltaram os dias da saúde a quem dela bem necessitava.
— Parabéns, Marcolina — dizia outro
—, agora pode descansar um pouco; e era já tempo, mulher...
Passados os primeiros arroubos,
João começou a reparar nos roçados que encontrava, apreciando os serviços
feitos e o estado das plantas.
— Bem limpo está este roçado do
Alexandre, e o legume promete recompensá-lo. Que mandiocal bonito!
— Aquele não é o do João Nogueira!
Olha, o preguiçoso vai deixando o pai Luiz (mato) tomar-lhe a roça...
E entristecendo, acrescentava:
— Quem sabe, mulher, se a doença
não é causa deste abandono?... Quantos, ao passar pelo meu roçado, e
desconhecendo o que me sucedeu, não zombarão também chamando-me preguiçoso?
Marcolina sorriu-se e seus olhos
faiscaram de alegria. Chegava o momento da surpresa que ela com pertinácia in-
crível planeara, e conseguira
preparar. Ia auferir o prêmio de
suas fadigas, no júbilo, que
causaria àquele que em sua mocidade adorara como o mancebo de seus sonhos, e
então amava duplamente como esposo e pai de seu filho.
E, pois, disfarçando o sentimento
que a dominava, disse ao marido:
— Se não receasse, João, entristecê-lo
neste primeiro passeio... Mas, não... Seria magoá-lo sem necessidade...
— Queria ver aquele infeliz roçado,
não é, Marcolina? Pois vamos... Não me vê tão resignado? O que me resta senão
consolar-me com a minha sorte? Deus assim o quis — e quem sabe, mulher, se para
poupar-me maiores dissabores?
— É assim mesmo, João: Deus escreve
certo por linhas tortas...
E caminhando para o roçado,
acrescentou momentos depois com ingenuidade infantil:
— Agora, João, se nós achamos o
roçado plantado e limpo... Quem sabe? Não contam por aí tantas histórias de
fadas, e encantamentos? Que diria você se, em vez de moitas e garranchos,
encontrasse algodoeiros, milho, arroz e mandioca. Hein?
João rindo-se afetuoso, respondeu:
— Que sonho extravagante, gente...
Você tem lembranças de menina... Fadas e encantamentos? Quem acredita hoje em
semelhantes mentiras?
Momentos depois, soltando um grito
de assombro, trepava-se João na cerca do roçado, e via realizado aquilo que
julgara um sonho extravagante.
Era esta a surpresa que lhe
preparara a laboriosa esposa. Descrever o que então passou-se seria tentar o
impossível.
Há cenas que não se descrevem; e
sentimentos cuja expressão eloquente é o silêncio.
Marcolina, quando me contou esta
história, disse-me apenas, sobre a surpresa o seguinte, por entre os mais
espontâneos risos:
— Ia-me custando caro tal
brincadeira; e eu me arrependi deveras de não ter prevenido ao João... Coitado
do homem; quase endoidece de alegria, e contudo chorava como uma criança, a
beijar-me e a abraçar-me, a olhar sempre para mim e para as plantações, sem
dizer palavra...
— E desde esse dia — concluiu ela
depois de curto silêncio —, Deus se compadeceu de nós e nos fez esquecer os
sofrimentos e angústias. João tomou conta do roçado, e este nos deu com que
pagar as nossas dívidas, e trouxe-nos a fartura à casa. Pareceu um milagre!
Nunca se viu em duzentos passos de terra tanto arroz e tão bonito herbáceo.
Mas, nada é impossível a Deus, e sua misericórdia não tem limites.
Foi esta a história que eu ouvira à
Marcolina; e foi por sabê-la e recordá-la, que enterneci-me quando encontrei-a
com o marido, ambos tão asseados e amigos, a caminhar para a feira, tangendo o
castanho carregado de algodão ainda do poético roçado.
— Então, dirigem-se à feira para
vender o seu algodão, não é assim? — perguntei-lhes eu depois de
cumprimentá-los.
— Sim, senhor; e ouvir a santa
missa para agradecer a Deus os imensos benefícios que, por sua infinita
misericórdia, nos envia a todos os momentos, apesar de nossos pecados — respondeu-me
Marcolina —, volvendo-me seus negros e rasgados olhos nadando em singela e
inocente felicidade.
E conversando mais um pouco,
entramos na vila, ouvindo do sino a primeira chamada da missa, e na praça o
rumor do povo, que já se aglomerava.
CAPÍTULO 5
Enchia-se gradualmente a casa do
mercado, recebendo de vez em quando ondas de povo pelas três estradas que ali
terminam
— três artérias que comunicam ao
coração da vida o sangue, o calor e a vida.
Era a hora da enchente; ao meio-dia
seria a preamar, e das três da tarde em diante a vazante. Os adeuses de
despedida dos lavradores substituiriam os primeiros cumprimentos. Todos
voltariam aos seus campos — àquelas serranias cobertas de viçosos cafezais, e
àqueles vales ricos de algodoeiros e cereais diversos; e a Pacatuba, a donosa
vila, ficaria como sempre deitada indolentemente aos pés de sua mãe, a serra
d’Aratanha, ora a espreguiçar-se em seu leito de canas e relvas, ora a
banhar-se no cristal de seus ribeiros, embalada pelas harmonias da natureza e
das máquinas industriais, e saudosa, esperando a feira seguinte.
Naquela ocasião, porém, a formosa
vila, com seu vestido bonito, seu cabelo penteado e salpicado de flores, e seus
atavios de moça, estremecia de contente, corada e risonha como a noiva que
espera o bem-amado; e o bem-amado era o seu distrito, que com os vizinhos e
amigos pressuroso convergia para seu seio, trazendo os produtos de suas lidas.
Efetivamente grupos e grupos de
lavradores, de pessoas de ambos os sexos e de todas as idades, já povoavam o
mercado, e no pátio deste confundiam-se, baralhavam-se, como as vagas no oceano
movediços — inconstantes e variando em cores.
E que animação no comércio, que
entusiasmo e júbilo em todos!
Salve, ó festim industrial; e a
vós, ó filho do trabalho, eu vos aperto a calejada mão, e neste dias vos desejo
os melhores negócios e os mais puros contentamentos!
Contemplemos agora o quadro.
Sacos, malas e caçuás de rapaduras,
farinha, frutas, louça de cozinha, fumo, cereais — de produtos enfim do lugar e
das vizinhanças da serra, praias e alagadiças — enchem metade dos alpendres e
pátio. Noutra metade, a carne fresca e estaleiros da salgada; e no meio de tudo
isso os tabuleiros de arroz-doce, de broas e bolos, e os potes de garapa e aluá
com suas taças prontas para combaterem os ardores do sol.
No centro do largo, os animais
descarregados repousam e observam tudo, mergulhados em profunda meditação como
verdadeiros filósofos.
E o povo entra, sai, compra, vende,
conversa, ri-se, questiona, abraça-se e por entre esses rumores a nota soluçosa
e gemebunda da cantiga e rabeca do cego mendigante; e os brados dos vendedores:
— Laranjas doces! Quem me compra
estas laranjas?
— À pataca... à pataca... farinha
muito alva e torrada!
— Chega, gente, que o fumo bom está
se acabando!
— Carne gorda!... Estou queimando;
estou entregando por todo preço...
— Mangabas... mangabinhas e muricis
das praias!
Aqui dirige-se um cargueiro ao rico
lavrador que passa:
— Patrão, quem tem farinha barata
sou eu... Já estou dando a quatorze.
— Homem, não é isto farinha dormida
na prensa?
— Não senhor; se vosmecê quer,
prove e verá que não está azeda...
— Pois bem, meça lá meia quarta
neste saco. Adiante o dono do fumo encarece a bondade deste:
— Veja que corte macio! Cheire
lá... Isto faz cinza alva, que é um gosto...
— Sim, senhor; este fuminho não
parece mau: será bom de tabaco?
— Não só de tabaco como de
cachimbo. Se comprá-lo há de voltar por ele, como muitos têm voltado.
— Tomara eu, que já vivo atordoado
com fumo ruim! Corte lá meia vara, homem...
Perto o cargueiro da louça, batendo
com os dedos na jarra, exclama:
— Isto é de barro muito bom,
patrão; esfria água demais e não reve...
Enquanto o dono das rapaduras as
elogia, afiançando que adoçam facilmente o café, pois são de canas maduras; e o
mesmo fazem os demais oferecendo os seus gêneros.
Nas lojas a animação não é menor...
O povo enche as calçadas, passando de balcão a balcão, e os caixeiros e patrões,
medindo a chita, o madapolão, e o algodãozinho, e mostrando os objetos
procurados, de vez em quando levam à gaveta a importância do vendido — os
vinténs do lavrador ou jornaleiro.
— Olhe, esta chita não larga... É
percales... Minha mulher fez vestido dela. Isto a cruzado é dado! É só para
apurar dinheiro...
— Venha cá... Pegue na fazenda...
Ofereça ao menos! Não cuide que é salgada. É francesa e da melhor.
— Quer ver o madapolão de camisa?
Ainda ontem recebi-o da cidade.
— Veja se lembra-se de mais alguma
cousa. Não quer um lenço de chita para amarrar a fazenda?...
Estas e outras práticas se escutam;
e ouvindo-as, esta menina compra um frasco d’água de colônia e pede agulhas;
outra se agrada de uma chita de flores encarnadas para vestido, ao passo que a
velha escolhe a roxa para sua saia e conta quatro vinténs por um rosário;
aquele rapaz examina as facas, experimentando-lhes a têmpera com a unha; e
outro resinga procurando tirar por menos o chapéu de feltro, com que espera
deslumbrar a sua namorada. Ao mesmo tempo esta, volvendo os lânguidos olhos de
morena, noutra loja compra um vidro de macassar para perfumar os cachos, e com
eles atraí-lo às núpcias.
Cenas iguais por toda a parte — por
toda a parte os ardores da vida comercial da formosa vila.
E viessem então os senhores poetas
exclamar em sentidas estrofes no meio daquela multidão: — Viver é amar!
Talvez lhe respondessem assim os
honrados negociantes, os homens práticos ou ralados do mundo, como diz o vulgo:
— Ora, qual! Deixe-se de
cantigas... Viver é enganar! Desde que acorda até que adormece, o que faz a
criatura humana se não enganar uma à outra? E quando o consegue, por que se
alegra tanto, e se julga ditosa? para que se enfeita a mulher; e procura se
distinguir o homem? Ora, diga lá: em que se ocupam presentemente todos neste
mercado? O comércio o que é senão um pobre diabo esfregando os olhos para ver,
e um espertalhão a sacudir-lhe cinza para que não veja? E no meio de semelhante
jogo, não é que vivem as artes, as indústrias, e todos os produtos do engenho
humano? E a política, e tudo o mais, enfim...
Deus me livre de entrar em tal
labirinto. Que aceite, ou condene estes princípios quem puder examiná-los, que
eu, sem cortejá-los, ao menos, esgueiro-me por entre os transeuntes, receando
que me averbem de suspeito como vassalo de Apolo.
CAPÍTULO 6
Nos alpendres e lojas encontram-se
os amigos e não são raros os diálogos do mais cordial afeto.
— Olá, Antônio! Então já não
conhece a gente? Venha cá, homem, venha dar-me notícias suas!
— Ah, senhora Joaquina, não lhe
tinha visto... Perdoe... Como vai de saúde, e o senhor Thomaz e a obrigação?...
— Vamos vivendo, Deus louvado... E
você, Antônio, cada vez mais gordo e bonito, hein?
— Não caçoe com a gente, senhora
Joaquina... Não pode engordar quem labuta como eu, de sol a sol.
— Homem, antes que me esqueça,
contaram-me que você ia casar-se com a filha da Maria Pinto. Não me encubra...
Diga lá: quando é a festa?
— Vim hoje falar com o senhor
vigário para correr os banhos. Não sei quando será, senhora Joaquina, mas tenho
vontade que isto se faça até meados do mês que entra.
— Obra com juízo, Antônio; é uma
rapariga pobre, mas trabalhadeira e bem criadinha...
Perto, uma mulher moça e triste
conversa baixinho com outra mais idosa, e furtivamente enxuga os olhos, que
malgrado seu nadam em sentidas lágrimas.
É o livro de um coração que se
desfolha, a página dolorida de um romance de amor que se relê por entre
suspiros.
— Foi isto, minha tia, que eles
fizeram — diz ela concluindo a sua confidência —, intrigaram-no e conseguiram
vê-lo embarcado para a guerra do Paraguai... Mas, Deus é justo!... Eu fiquei a
lidar sozinha, quase abandonada e chorando, quando esperava casar-me e ser
feliz com ele. Ainda, contudo, não perdi a esperança... Tenho fé em Maria
Santíssima, que hei de vê-lo voltar para estancar-me as lágrimas à vista de
nossos perseguidores... O que é certo, é que não terão o gosto de ver-me por aí
derramada, como desejam... Deus me perdoe se minto. Coragem não me falta para
ganhar com meus braços o bocado... Nossa Senhora há de compadecer-se de mim...
E mais não pude ouvir, por causa de
um gordo e rico lavrador, que ralha a dez passos com um de seus trabalhadores,
que faltara ao compromisso — ou letras do contrato...
— Ora, isto também é demais! Pois
vosmecê, senhor Eusébio, achou-me pronto para servi-lo em seus vexames; tomou o
meu dinheiro para pagar-me em serviço na serra, e lá não tem aparecido! Não se
lembra que ainda não acabei o batimento dos cafeeiros, e já começou a
apanha?...
— E aqueles dias que eu dei na
limpa das capoeiras novas, o patrão já botou na conta?
— E então? já não fizemos conta
depois disto? Resta-me vosmecê quinze mil e quinhentos, e quanto antes suba à
serra e vá trabalhar-me... Basta de mangar comigo...
— Não se zangue, patrão; a semana
que entra não lhe prometo; mas, na outra espere por mim, querendo Deus. Eu
mesmo tenho vontade de acabar com estes biquinhos; e para andar mais depressa
irá a mulher apanhar café.
Conversamos agora um pouco com um
inteligente e instruído velho, que além descansa, e que extasiado admira a
prosperidade da formosa vila, que ele viu nascer à sombra da majestosa serra
d’Aratanha.
— Diga-se alguma cousa, senhor
Batista, sobre o passado de nossa Pacatuba, deste abençoado torrão, que o velho
sábio Agassis afiança ter sido nos primitivos tempos uma geleira... Ora, uma
geleira! — um monstruoso sorvete!... E dizem contudo que é cálida a filha de um
sorvete!...
— A Pacatuba — respondeu
pausadamente o velho — é uma lágrima que se transformou em um sorriso! Que me
importam opiniões de sábios? Eles mesmos não sabem às vezes a quantas andam.
Dizem e se contradizem, e nesse turbilhão de ideias escrevem livros, ou
reproduzem os antigos, e vestindo-os a seu modo iludem os tolos e dão que fazer
à imprensa... Se um publica trezentas páginas a provar que não existe inferno
—, outro responde-lhe com quatrocentas a descrever as caldeiras de Pedro
Botelho. Se são escritores da moda, as tais publicações tornam-se novidade —
compra-se e fala-se naquilo por algum tempo, para depois inventariar-se
constituindo herdeiras as traças e baratas. Quanto a livros, meu amigo, só leio
um, que para mim vale mais que todos — a Bíblia... o livro da verdade — que
passará intacto por entre as gerações até a consumação dos séculos...
O velho estava em seu elemento...
Naquele terreno ninguém lhe resistiria a palestra; e pois, em vez de
contrariá-lo, procurei volvê-lo ao ponto da partida — as recordações históricas
da vila.
— Mas, não deixando uma cousa pela
outra, por que, senhor Batista, disse que a Pacatuba era uma lágrima
transformada em um sorriso?
— Porque nasceu da desoladora seca
de 1845, de mendigantes que choravam no desespero da fome. Serviu-lhe de aia,
ou ama de leite a serra d’Aratanha; e com tamanho carinho amamentou-a, que ela
depressa tornou-se galante menina, e hoje, graças aos mesmos desvelos, ei-la
moça, risonha e rica, brincando aos pés daquela a quem tanto deve.
— Tem razão, meu amigo, comparou
bem. Agora conte-me o que sabe da história d’Aratanha e Pacatuba, pois mãe e
filha acham-se tão ligadas, que não pode-se falar numa esquecendo a outra.
Ninguém melhor sabe aqui destas cousas do que vosmecê...
— Seria impossível o contrário;
nesta terra criei-me, cresci, gozei os melhores anos da vida... e vou roendo os
mais desenxabidos... Mas, quer saber-lhe a história, não é? Pois escute-a, que
não se enfadará, tão curta é ela!
CAPÍTULO 1
Principio pela Aratanha, como mais
velha.
Até 1790 esta serra — cujo nome
talvez se originasse da abundância do camarão aratanha em seus rios — pertenceu
às terras devolutas, que se denominavam realengas, isto é, propriedade de
El-rei nosso senhor.
Nesse ano, porém, o governador
interino da capitania, capitão-mor Antônio de Castro Viana, passando o governo
ao efetivo, requereu como recompensa de serviços uma sesmaria em dita serra; e
sendo deferido, veio no mesmo ano apossar-se, o que efetuou fazendo casa e
roçado no lugar hoje conhecido por Limão. No ano seguinte, julgando
desvantajosa esta situação, abandonou-a, e veio estabelecer-se pouco distante,
ali no sítio Aratanha-velha. Não sei a razão de tão repentina mudança, meu
amigo, pois o primeiro lugar situado não é inferior ao segundo
— mas, lá diz o adágio, que mais
sabe o tolo no seu, do que o avisado no alheio.
O que é certo, é que Viana tanto
gostou da segunda situação, que fez muitos roçados e encheu-os de legumes,
canas, jaqueiras, jambeiros, laranjeiras, bananeiras e outras fruteiras, e
construiu uma espaçosa morada, que veio a passar então pela melhor casa de
campo da capitania.
Entretanto o capitão-mor não se
mudou da vila da Fortaleza; mas passava uma parte do ano no sítio, onde, sob a
administração ativa de um feitor, trabalhavam muitos cativos e índios, que,
fazendo prosperar a lavoura, tomavam também o doce encargo de comer-lhe os
produtos, dispensando para o dono poucas cargas de frutas e legumes.
Onze anos depois — em 1801 —
lembrou-se o capitão-mor que era tempo de morrer e como isto fizesse, apesar de
dever grande quantia à Fazenda real, esta, na ausência de outros bens,
sequestrou sem demora a bela Aratanha com todas as suas pertenças, não
esquecendo os negros comedores de seus produtos; e mandou pôr tudo em praça
logo no seguinte ano.
Cousas daquele tempo! Ninguém
compareceu para licitar, ao passo que agora atrás do mais miserável imposto
aparecem dezenas de cidadãos de gravata limpa!
Então o atual governador mandou
chamar seu avô, meu amigo — o tenente de ordenanças Albano da Costa dos Anjos —
e pediu-lhe encarecidamente que se apresentasse como arrematante, pois que era
ele rico e tinha filhos para dotar com aquela propriedade, formandos-lhe assim
um excelente patrimônio.
Seu avô morava em Arronches, onde à
sua custa construiu aquela igreja, que hoje vai sendo reparada e acrescentada
por esforços de um dos netos — o senhor Manoel Albano — tão empenhado agora
pela prosperidade daquele povoado, como outrora o velho tenente Albano.
— É verdade, senhor Batista; e
diga-me, não é na porta principal dessa igreja que foram sepultados os meus
avós?
— Sim; e alguns de seus tios. Essa
sepultura pertencia à família Albano, cujo chefe construíra a igreja. Mas, ouça
o resto: Tais razões expendeu o governador, que o velho seu avô apresentou-se
e, fazendo favor arrematou a sesmaria d’Aratanha, que era de três léguas e compreendia
a serra, a casa e benfeitorias — tudo enfim pela quantia de quatrocentos e
setenta mil
réis, pouco mais ou menos!
No mesmo ano mudou-se seu avô para
a situação arrematada, trazendo a família e quarenta escravos, que então
possuía; e deu maior impulso ao trabalho, ocupando-se, especialmente, pouco
depois, da plantação de algodão em grandes roçados, que para esse fim derrubou
nas faldas da serra. E para transporte de seus gêneros, em 1803 mandou abrir
uma estrada daqui para a Fortaleza, cujo único caminho até então compunha-se de
tortuosas veredas que prendiam os arraiais. É a estrada velha — que ainda hoje
serve, apesar de nova, aberta em 1863 por ordem do presidente José Bento.
— E aquelas grandes cruzes de
madeira nos lugares Munguba, Pavuna, Genipabu, Tapiri e Taperoaba?
— São testemunhos do fervor
religioso de seu avô. Foi ele que fê-las erguer, não só para que servissem de
marcos, como também de lugares de oração aos viandantes e moradores.
Tão acertada julgou a direção dessa
estrada em 1813, ou 1814, o governador Manoel Inácio de Sampaio, que aproveitou
a toda quando nesse ano ordenou a abertura da primeira via de comunicação para
a vila de Montemor-novo, hoje cidade de Baturité.
Nestas condições, seu avô conseguiu
safras maiores de duas mil arrobas, e a ser por isso considerado o primeiro
agricultor da capitania.
O preço do algodão regulava naquele
tempo de quatro a cinco patacas a arroba — moeda forte, constante de pesos de
setecentos e oitocentos réis, que atualmente chamamos patacões.
Vê, pois, meu amigo, em que maré de
felicidade se achava seu avô. Para aproveitá-la o velho alargou tanto as
plantações nas faldas da serras e planície, que em 1810 viu-se obrigado a fazer
aquela casa, que agora abandonada desaba ali embaixo na fazenda e logo para ela
mudou-se, colocando-se, pois, no centro dos algodoais e facilitando a colheita,
preparo e remessa de seus produtos ao mercado.
Esse estado próspero continuou até
1822 ano em que seu avô deixou de existir. E passando serra e benfeitorias ao
domínio de sua avó, a quem tudo coube em inventário feito em 1823, por se terem
os filhos inteirado em outros bens do casal, começou desde logo a marchar
aquela propriedade agrícola para sua extinção. Não era o mau destino que
persegue quase sempre os casais quando lhes morre o dono; e nem falta de
cuidados e aptidão da viúva e seus filhos. Causas naturais e invencíveis
atuavam para aquele atraso.
Ventos nocivos talavam impiedosos a
indústria algodoeira. Chegara a hora de sua adversidade, porque neste mundo,
meu amigo, tudo, até as plantas da lavoura, têm dias prósperos e dias adversos.
Nesse nefasto ano de 1822, baixou
consideravelmente o preço do algodão nos mercados europeus, e tornando-se
permanente apreciação desse gênero, o desânimo difundiu-se entre os produtores.
E logo aumentou-se, porque no mesmo ano, os algodoeiros que até então viçavam
frondosos foram atacados de duas moléstias, sendo uma no tronco e a outra nas
maçãs. A primeira é a que ainda hoje existe com o nome de mofo, ou piolho.
Então chamavam-na cinza. A segunda era apelidada seca-maçãs, porque o seu
resultado era secar e derrubar as maçãs do algodoeiro. Para mais agravar essa
situação, minguavam as matas nas proximidades das fábricas, dificultando-se
pela distância a abertura de roçados, colheita e transporte.
Eram, pois, males sobre males. A
lavoura, que navegava em mares de rosa, combatida então por tão contrários
ventos, começou a retrogradar espantosamente, apesar dos esforços de seus
operários.
E entretanto, meu amigo, novos
tropeços aguardavam-na, para embargar-lhes aqui os já cansados passos.
Os movimentos políticos da
independência, e logo depois os da República do Equador, envolveram seu pai e
tios, que eram os proprietários principais d’Aratanha e Pacatuba, e obrigaram
não só a eles como aos demais homens do campo, a trocar a enxada pela
espingarda, e outros a ocultar-se nas grutas da serra, fugindo ao patíbulo e
aos cárceres. Assim, pois, as lidas agrícolas foram imediatamente trocadas por
lutas sanguinosas, e as canções do trabalho esquecidas pelos hinos ardentes
que, no delírio da febre revolucionária, os patriotas entoavam em torno das
árvores da liberdade
E quando, mais calmos os ânimos
pela firmeza da independência pátria, e fim das lutas civis, se preparavam os
homens do campo a voltar aos seus labores, eis que rebentou a desoladora seca
de 1825, debandando-os em procura dos meios de subsistência.
Era o golpe mortal do destino sobre
a nossa lavoura, que já perigava desalentada.
E, pois, o excelente estabelecimento
agrícola que seu avô aqui fizera, e a riqueza que este deixara a seus
herdeiros, quase extinguiram-se, restando somente a todos a propriedade das
terras, cujo valor então era diminuto.
— E não havia — perguntei eu —
algum povoado aqui, nas proximidades da serra?
— Existia aquela velha Guaiúba, que
além procura esquecer as amarguras de seu longo passado nos mexericos e
intrigas do presente; e que nesse tempo tendo prosperado com a indústria
algodoeira, com esta caíra para não mais erguer-se.
Aqui na Pacatuba apenas moravam
alguns índios, e a família Albano.
Mas, ouça o resto da história.
Findos os horrores da grande seca, seu pai e tios, inteiramente desanimados na
lavoura do algodão, e desejando ardentemente reconstruírem suas fortunas,
hesitavam, cogitando dos meios de mudar de plantação, auferindo assim de suas
terras lucros mais crescidos.
Sonhava-se com a lavoura de café,
que já se ensaiava no sul do império, e este sonho especialmente os preocupava,
sugerido sem dúvida pelo fato que lhe vou contar. Nos movimentos políticos de
1824, de que falei há pouco, tendo ido à serra de Baturité, por amor desses
mesmos movimentos, seu tio Domingos da Costa, ali viu no sítio Mucaípe,
propriedade do capitão Antônio Pereira de Queiroz, alguns cafeeiros ao redor da
casa — nascidos de sementes vindas do Cariri, para onde tinham ido de
Pernambuco, conduzidas por comerciantes sertanejos. Não só neste como naquele
lugar, essas plantas não passavam de objetos de mera curiosidade — o uso do café
era estranho na província e ninguém se decidira a estendê-lo e aproveitá-lo.
Seu tio Domingos obteve então oito
libras pouco mais ou menos de sementes, e voltando plantou-as em canteiros na
serra, e aqui em baixo na Serrinha, onde nesse tempo morava.
Logo depois, pretendendo mudar-se
para o Pará — mudança que não efetuou —, Domingos deu esses canteiros a seu
irmão João da Costa, e este aproveitando-os fez mudar em 1826 as plantas para o
sítio Boaçu, em cima da serra, mais como ensaio do que com intenção firme de
constituir um novo ramo de lavoura para si.
Pouco tempo depois, seu pai, meu
amigo, resolvendo desprezar a lavoura da planície e mudar-se para a serra, com o
fim de empregar-se na cultura do café, que lhe parecia de próspero futuro, e
consultando os irmãos a respeito, estes o desanimaram completamente,
qualificando de loucura semelhante lembrança.
Todavia seu pai, que era homem
empreendedor e de vontade forte — desprezando as observações de seus irmãos,
embrenhou-se na serra e cuidou sem descanso em realizar o plano que elaborara
sua fértil imaginação.
Você há de saber, por lhe ter
ouvido sem dúvida, a interessante história do sítio da Boa Vista! Quanto não
sofreu ele, trabalhando ao sol e à chuva, com poucos braços, dormindo nas
grutas, sem recursos pecuniários — vencendo em suma obstáculos de toda a
natureza para sair-se bem do que empreendera, e confundir assim os irmãos que
lhes tinham augurado maus resultados!
Derrubados os matos e preparados os
roçados em 1839, seu pai encheu alguns de cafeeiros e outros de canas; preparou
engenho para a moagem destas; e auferindo algum lucro, adquiriu forças para
alargar as plantações de café, e remover os tropeços que lhe embargavam os
passos.
Como que a Providência condoeu-se
de seus esforços e quis compensá-lo de tamanhas fadigas. O que é certo é que
seu pai, meu amigo, prosperou depressa, e em poucos anos pôde começar aquele
bonito sobrado, que ali demora ufano entre coqueiros nas faldas d’Aratanha, e
teve a satisfação de mandar as primeiras sacas de bom café ao mercado da
Capital.
Foi, pois, aquele inteligente e
laborioso José Antônio da Costa e Silva — quem primeiro vendeu café nesta
província, iniciando assim esse importante ramo de nossa indústria, no que
desde logo o secundaram seus irmãos e os agricultores de Maranguape e Baturité.
E, cousa interessante! Baturité que
nos dera os primeiros caroços de café, não teve depois semente para começar sua
cultura, e veio pedi-la à Aratanha, arrancando-lhe muitos milhares de plantas
ou mudas!
CAPÍTULO 7
— Agora, a história da Pacatuba —
disse Batista, tomando uma pitada de cheiroso caco.
Como lhe disse, a Guaiúba era o
único povoado destas paragens e dava nome ao distrito, de que era sede, e que
fora criado em 1834.
Além de alguns índios, somente
parentes seus aqui residiam, disseminados em três ou quatro casas.
Veio então a terrível seca de 1845,
com seu cortejo de horrores, assolar a província inteira. Você era bem criança
nesse tempo, e por isso pouco se há de lembrar das cenas horripilantes desse
lutuoso ano. Pois saiba que ainda hoje sinto calafrios ao recordá-las. Bandos e
bandos de mendigos desciam do sertão procurando meios de salvação, e quantos
não caíam e expiravam nas estradas; quantas donzelas não entregavam aos desalmados
o tesouro da honra por um punhado de farinha; quantas mães desnaturadas não
vendiam seus filhos por um bocado que lhes aliviasse as agonias da fome — enfim
quanta nudez, e crimes, e calamidades!
As criancinhas expiravam coladas
aos peitos maternos, procurando debalde extrair uma gota de leite daqueles
cálices secos crestados.
Até as avezinhas, extenuadas e
alucinadas pelos raios ardentíssimos do sol, caíam batendo nos troncos despidos
de toda a folhagem.
Somente os urubus encontravam pasto
abundante por toda parte! Esquálidos coveiros — em bandos também, eles acompanhavam
os mendigantes e sepultavam em si os trapos de carne que sobejavam da miséria.
Os indigentes eram apelidados de
retirantes e a plebe, essa plebe cruel que ri e dança e folga, e tresanda de
cinismo e impiedade em todas as grandes desolações, entre as agonias da peste,
da guerra e da fome — os recebia nas ruas da cidade com chufas, e cantigas da
mais torpe irrissão!
Reproduziam-se os horrores da seca
de 1825.
Por toda a província as cenas da
mais consternadora devastação, os brados de misericórdia! as preces entoadas
por entre soluços... e as convulsões da morte!
Grandes, bem grandes eram as culpas
do povo, para que a Justiça suprema o condenasse a tamanhas flagelações.
Pois foi nesse amargurado ano, meu
amigo, e por isso no meio dos prantos da orfandade, que nasceu a Pacatuba.
Algumas famílias de retirantes,
encontrando auxílios caridosos em nossas casas rurais, imploraram e obtiveram
trabalho, e aqui ficaram — apegando-se à verdura d’Aratanha, verdadeiro oásis
então no meio dos desfolhados e estorricados campos do sertão.
Em breve construíram choupanas
neste lugar, preferindo-o à Guaiúba por serem mais importantes os sítios deste
lado da serra.
Assim formou-se o povoado —
começando por uma colônia de emigrados do infortúnio.
E como tivesse exercido a caridade,
acolhendo os desgraçados em seu seio, Deus compensou-o desde logo, com a mais
rápida prosperidade. Acrescia que seus novos operários, acossados pela indigência
— resultado do ócio e imprevidência do passado
—, compreendiam então a necessidade
de trabalhar, não só para manterem-se no presente, como para prevenirem-se ou
escaparem a novas calamidades que porventura sobreviessem.
Em poucos anos, pois, os tetos de
palmeira transformaram-se em telhados — construiu-se aquela capelinha que você
ainda viu ali no largo, e surgiu o comércio para ativar o progresso da nova
povoação.
E tão ligeiro foi o seu
crescimento, que já em 1848, na administração do Dr. Fausto de Aguiar,
apresentou-se a Pacatuba provando superioridade à velha Guaiúba, não só na
edificação como na indústria e comércio, e requerendo para si a sede do
distrito, o que lhe foi facilmente concedido com grande desgosto da sobredita
velha.
Nesse mesmo tempo estendia-se a
lavoura do café na serra d’Aratanha.
E de 1850 em diante, tendo prosperado muito
esse ramo agrícola, tornou-se fonte de intensa riqueza para a povoação. A
serra, coberta de frondosos cafezais, exigia centenas de braços para a colheita,
e os habitantes das praias e arraiais circunvizinhos procuravam-na atraídos
pelo lucro, e parte deles construía choças e aqui ficava residindo.
Imensas vantagens auferiram os
lavradores d’Aratanha nesse decênio, construindo os bonitos sobrados de seus
sítios — e algumas fortunas se criaram —, apesar das demandas e hostilidades de
aventureiros que, comprando pequenas partes da serra, ainda não demarcada,
pretendiam apossar-se de muito — alucinados pela cobiça e cegos de ambição,
sugerida pela importância e riqueza da nova indústria.
Em 1862, atacados de uma moléstia
cruel, enfraqueceram os cafeeiros e diminuíram consideravelmente as suas
safras.
Era a política cafeeira que caía,
dando lugar a outra facção. O Poder Moderador chamou logo ao ministério o
algodão — esse chefe que jazia quase desprezado e esquecido, desde a sua
queda fatal de 1822.
Então o velho Bismark da lavoura,
fazendo roçar e queimar as suas capoeiras, reclamou o auxílio dos agricultores,
mudando da serra e alistando em suas fileiras os mais ambiciosos; e pouco
depois conseguia grandes safras e preços fabulosos, e elevar a Pacatuba à
altura em que a admiramos — nisto ajudado pelos canaviais, indústria da
borracha, e outros auxiliares de menor importância.
Finalmente, ei-la agora orgulhosa,
a Pacatuba, com suas cento e tantas casas de tijolo e cinco sobrados, afora os
da montanha e casas de taipa dos arredores; suas trinta lojas formando o quadro
de seu animado mercado; além das tabernas, dispersas; seus dois rios, que
deslizam à sombra de viçosos canaviais e coqueiros; sua Aratanha coberta de
cafeeiros e pomares de variadas frutas, circulando graciosos edifícios; ouvindo
alegre o hino do trabalho no som de seis máquinas a vapor, que servem de
motores à sua indústria; olhando ufana para a estrada normal da província, que
lhe corta as ruas em direção aos mais importantes centros produtores;
pavoneando-se com seu diploma de vila e freguesia obtido em 1869, enquanto não
lhe vem o de cidade pela via férrea que breve espera: e fazendo figas ao
ciumento Maranguape, que ela aborrece, como formosa e rica pupila ao velho,
besuntão e tolo, tutor que enamorado a persegue.’’
E rindo-se concluiu Batista deste
modo a sua história, enquanto eu cismava impressionado pelo que lhe ouvira,
como que vendo em sonho desfilarem as sombras de meus ascendentes — desses
honrados e antigos lavradores, patriotas denodados e homens de crenças
inabaláveis; e como que lhes ouvindo bradar-me na toada gemedora da montanha e
no rumorejar da florescente vila: — Filho, trabalhai, que o trabalho enobrece e
é preceito divino. Não dissipeis vossos suores, para que possais socorrer os
pobres e adquirir a independência e tesouros de bênçãos para vossos
descendentes. Sede honrado e crede em Deus, porque na desonra e descrença não
brota a flor da ventura. Jamais esqueçais que a pátria é mais que o berço da
infância — é a mãe carinhosa que nos embala em seu colo. E assim, tendo por
farol os nossos exemplos, podereis passar a vossos filhos o nome que vos
legamos
—, enobrecido pelo trabalho, pelo
patriotismo e pela virtude...
E apertando a mão de Batista,
continuei a observar a feira em seus agitados e pitorescos movimentos
comerciais.
Quadro indescritível!
A palavra triste da viúva, que ao
parente ou amigo contava o passamento do esposo, era sufocada pela frase
estridente do vendilhão, ou pelos prazenteiros cumprimentos dos que se encontravam
após longa ausência, enquanto as práticas dos lavradores confundiam-se com as
suspirosas queixas ou insolências do ébrio infeliz que caminhava ao cárcere; e
o grito de alegria da criança, a brincar no pátio, misturava-se com a voz
plangente do mendigante a recordar seus males!
Quem poderia, pois, descrever assim
reunidos e baralhados em um quadro de instantes, todos os sentimentos humanos,
e as notas que os exprimiam, em diferente escalas, nessa variada e grande
orquestra?
CAPÍTULO 9
Houve uma hora em que diminuiu
consideravelmente a agitação do mercado — a hora da missa conventual.
Grande parte da população correra
ao templo, ao escutar a terceira chamada do sino — outra ficara por ter ouvido
já a missa da manhã — e poucos, felizmente poucos, por tatearem cegos nas
trevas do indiferentismo, desconhecendo as doces emoções da fé.
Depressa enchera-se a igreja, em
cujos altares recendiam frescas e fragrantes flores colhidas ao amanhecer.
E depois de pronunciar em alta voz
os atos de fé, esperança, caridade e contrição, que o povo ouviu e repetiu
fervoroso, o vigário paramentou-se e começou o santo sacrifício da missa, por
entre cânticos repassados de unção, que entoavam os fiéis.
Que encantadora singeleza!
Quem não sente as mais suaves
comoções, assistindo à missa na aldeia, e ouvindo aqueles benditos tão ingênuos
e melífluos, coados no sentimento religioso, e repassados da eloquência da fé?
Os santos benditos que aquelas donzelinhas, de joelhos e com os olhos fitos na
Virgem, cantam com acentos da maior devoção, acompanhadas dos velhos, e com
eles formando uma harmonia mais tocante e agradável ao Menino do presépio de
Belém, do que as músicas voluptuosas que ressoam nos luxuosos templos?...
Sim, mais agradável a Jesus, disse,
porque foi assim que o adoraram os pastores no presépio, e depois o povo em sua
peregrinação na terra, até o dia cruento do calvário; porque a voz sincera e
cândida do coração do povo, lhe soa mais doce do que a dos cânticos comprados a
mercenários músicos; e finalmente porque a simplicidade e singeleza são mais
consentâneas ao espírito do cristianismo, do que os esplendores do luxo — os ouropéis
da vaidade.
E que recordações gratas não nos
despertam esses benditos inocentes; como brandamente nos transportam aos dias
límpidos de nossa infância?
Finda a leitura do evangelho, o
sacerdote começou a explicá-lo em linguagem chã e ao mesmo tempo eloquente; e
exortando os seus paroquianos para que resistissem às tentações do anjo
maldito, recordou-lhes as que sofrera Jesus, após o batismo:
— Recebendo as águas do batismo,
deixou Jesus as margens do Jordão, e cheio do Espírito Santo, esteve no deserto
sem comer nem beber durante quarenta dias e quarenta noites.
Depois de tamanho jejum, permitiu o
Espírito Santo que Jesus sentisse fome e que por isso o demônio tivesse ocasião
de o tentar.
Veio o demônio e disse a Jesus:
— Tens fome, e se és Filho de Deus,
dizei a estas pedras que se convertam em pão.
— Nem só o homem vive de pão —
respondeu Jesus —, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.
Logo o demônio, tomando Jesus,
levou-o a Jerusalém e colocando-o no pináculo do templo, disse-lhe:
— Se és o Filho de Deus, lança-te
daqui abaixo, porque está escrito que Deus mandou aos seus anjos que tivessem
cuidado de ti e que te guardassem, e que te sustivessem em seus braços, para
não magoares talvez o teu pé em alguma pedra.
Jesus respondeu com outra citação
da Escritura:
— Dito está: Não tentarás ao Senhor
teu Deus.
Insistindo ainda, o demônio
transportou Jesus a um alto monte, e mostrando-lhe em um momento todas as
nações do mundo, falsamente lhe disse:
— Dar-te-ei todo este poder, e a
glória destas nações, porque elas me foram dadas, e eu as dou a quem bem me
parece. Tudo isto te darei, se me adorares prostrado na minha presença.
Então Jesus tornou-lhe com ar
soberano e divino:
— Retira-te, Satanás, porque está
escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele servirás.
Vendo deste modo frustrados os seus
ardis, retirou-se o demônio e os Anjos serviram a Jesus com comida e refeição
corporal. Recordando esta passagem dos santos Evangelhos, o vigário ampliou-a
com graciosa e enternecedora simplicidade, servindo-se de exemplos tirados da
vida agrícola e dos costumes de seus paroquianos — desprezando portanto os
argumentos intrincados e as citações empoladas do abade Fulano, do doutor
Sicrano, e do cardeal Beltrano, com que tolos pregadores fatigam às vezes a
atenção de seus ouvintes, dos rústicos campônios, que não podem compreendê-los,
e que entretanto veem com pena estragar-se assim as sementes da parábola.
Gostei, pois, do sermão, porque
fora apropriado ao lugar e ao auditório, e tivera por modelo o Evangelho, esse
Tesouro inesgotável de simplicidade e eloquência religiosa.
E permita-se-me que aqui o diga.
Entendo que a prédica d'aldeia devia ser objeto de mais aturado estudo nos
seminários; que devia-se preparar cuidadosamente os jovens pregadores, que
depois se espalham pelos povoados do sertão, ensinando-lhes a linguagem chã e a
maneira de se fazerem compreendidos do auditório do campo, a fim de conseguirem
grandes vantagens na propaganda das santas doutrinas do cristianismo. Convinha,
pois, que o catequista tivesse sempre em vista o modo por que Jesus falava às
massas populares, e, como o divino Mestre, enunciasse os mais profundos
princípios teológicos, pregasse toda a doutrina de seu ministério, em singelas
parábolas, na linguagem dos ouvintes, de sorte que estes pudessem contar em
casa a seus filhos o que ouviram na igreja, o que lhes ficou gravado n’alma.
Aquele que para tanto não tivesse a necessária inteligência, melhor seria
limitar-se a ler simplesmente no púlpito um capítulo do Evangelho em cada
domingo; e destarte efetivamente alcançaria mais do que os pedantes que com os
olhos arregatados para o analfabeto caboclo, apenas conhecedor do manejo da
enxada, falam-lhe do abade Gaume, como se ele o conhecesse, e emaranham-se em
seguida numa intrincada argumentação que decoraram, e em que se perdem, fugindo
e procurando salvar-se logo nas exclamações plangentes.
E qual o resultado de semelhantes
sermões indigestos, e mesmo dos excelentes sermões que Monte-Alverne escrevera
para a Corte, e que o capelão de boa memória decora e repete no púlpito
d’aldeia?...
Nenhum, certamente.
— Mulher, diz a aldeã à sua
companheira, o sermão esteve bonito, mas eu não entendi nada.
— Nem eu, criatura; aquilo era
grego, ou a tal língua do inglês...
— E que bicho será aquele Goume, de
que ele falou, ó gente?
— pergunta o caboclo velho à
mulher.
— Eu sei lá, homem! Há de ser
animal das outras terras... E enquanto assim o apreciam seus ouvintes, o pobre
prega-
dor em casa cuida que muito
conseguiu na prédica, e prepara
outra estirada igual para o
seguinte domingo.
Basta e perdoe-me Deus este reparo
— ditado unicamente pelo amor que no fundo d’alma consagro à religião cristã.
Concluindo o sermão, o vigário
passou a ler os proclamas; e então, que olhares furtivos entre os moços; que
atenção nos velhos, e quantos lampejos de contentamento no rosto dos interessados!
Talvez interiormente, lá no mais
recôndito do coração, murmurasse a donzela: "Quando chegará a minha vez?
Tomara que o Serafim acabe o roçado e a casa para pedir-me... Não pensei que a
Rita casasse primeiro que eu... Enfim o Antônio resolveu-se a reparar o mal que
fez à Rosa..."
E todos os outros talvez
apreciassem do mesmo modo as anunciadas bodas, recordando precedentes e tirando
as necessárias consequências.
Depois da missa teve lugar a cena
dos batizados na sacristia. Dois ou três padrinhos matutos, com seus paletós
muito engomados e tesos, gravatas intrigadas com os colarinhos — coletes mal
abotoados e recordando os antigos quartinhos —, seguravam velas acesas, juntos
de outros da vila, e por isso vestidos com mais elegância. As madrinhas, com
seus xales e vestidos de chita ou cambraia, dispensavam atenções aos afilhados,
que esperneavam chorando zangados com o gosto do sal e frieza d’água; enquanto
cintilava o contentamento nos olhos das meninas que os apresentavam, ufanas de
tamanha honra, e dispostas a sustentar direitos de comadre quando lhos
contestassem.
Completava a cena o júbilo dos
pais; e a sincera gravidade do pároco.
E concluiu-a depois a satisfação do
sacristão, quando teve de fazer os lançamentos e entrar na messe dos
emolumentos e das generosidades dos padrinhos.
CAPÍTULO 10
Dirigindo-me de novo à feira,
encontrei na rua João e Marcolina, que voltavam da missa.
— Como lhe pareceu o sermão,
senhora Marcolina — perguntei-lhe baixinho —; gostou muito, não?
— Ah, fez-me chorar... Parece que o
senhor vigário lê no coração da gente... Disse tantas verdades... Tudo aquilo
que ele contou, acontece, e vê-se todos os dias entre nós...
— Tem razão... E quer saber de uma
cousa? Em todo o tempo daquele excelente sermão, lembrei-me da senhora... Não
duvide... Recordei-me da história de seus últimos sofrimentos; da coragem com
que trabalhava ao sol e à chuva, sem descanso, vencendo a fome e muitas vezes a
doença, para ganhar o vintém necessário ao bocado e remédio do marido enfermo,
e de seu filhinho. E então dizia comigo: — Com que vigor não lutou aquela
mulher, moça e bonita, contra as tentações infernais, a fim de conservar
intacto o tesouro de sua honra, e apresentar-se fiel e pura a seu esposo,
quando este voltasse à saúde?... Quantas vezes no empenho de perdê-la, não
procurou-a o demônio na pessoa do moço devasso e rico, e não lhe ofereceu pão,
quando ela quase agonizava de fome; e não lhe ofereceu vestido, quando ela
tiritava de frio; e não lhe ofereceu dinheiro, quando ela soluçava por não ter
um vintém para prover as necessidades mais imperiosas?... E entretanto,
repelindo os gozos do ócio na hora das fadigas, e o ouro no instante da
penúria, ela resistiu a tudo heroicamente, e vencendo espinhos e agruras,
continuou a trilhar a senda da virtude...
— É verdade — disse ela trêmula e
enternecida —, mas ajudou-me Maria Santíssima dando-me forças, e cobrindo-me
com seu divino manto. Implorava a graça de Deus, e esta não falta a quem de
joelhos e fervorosamente a implora. E rezando os atos de fé e de esperança,
como que ouvia a voz do céu prometer-me muita abundância e alegrias, em
recompensa dos meus sofrimentos, se eu não me arredasse do bom caminho... E não
aconteceu tudo isso? A fartura e contentamentos, que me vieram depois, não são
aquele pão corporal que os anjos serviram a Jesus depois das tentações, como
nos contou o senhor vigário?... Ah, é bem certo o ditado: — Quem com Deus anda,
com Deus acaba... Nossa Senhora, interceda por mim, para que eu sempre possa
resistir às tentações do maldito e fugir dos maus caminhos...
E despediu-se, para concluir os
seus arranjos e voltar a casa.
Duas horas depois concluía-se a
feira — começava a vazante do mercado.
Como viera, retirava-se o povo em
bandos, tangendo as cargas de mantimentos, ou os conduzindo às costas.
Os animais, interrompidos em suas
meditações, e recebendo as malas e caçuás, volviam aos seus campos, como que
dizendo:
— Enfim! Enfim acabaram os tais
senhores com a maçada!
Gradualmente desmanchava-se o
quadro, como morro d’areia movediça, nas inundações. De vez em quando
destacava-se uma porção e desaparecia. Do mesmo modo calavam-se as notas da
grande orquestra.
Agora os adeuses da despedida.
Muitas ilusões desfeitas em corações juvenis e outras a despontarem vivaces. Em
todos — as saudades. Saudades dos comerciantes, a verem partir seus fregueses —
e destes, largando as folias do mercado.
As medidas pedindo repouso e as
gavetas que as aliviassem...
— Adeus, ó filhos do trabalho!
Sorrindo volvei aos campos da lavoura, e sorrindo vinde no domingo animar o
nosso comércio. Às três horas da tarde, despovoara-se de todo o mercado.
Restava apenas nos alpendres muito
serviço para as vassouras e nada mais.
E a formosa Pacatuba, a graciosa
filha d’Aratanha, tendo apertado a mão de seu querido distrito e dos vizinhos,
fechou suas lojas, endireitou os vestidos, e com seus caixeiros saiu e foi
assistir à revista de seus guardas-nacionais ou passear e conversar nas
calçadas sobre os acontecimentos do dia.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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