CLARA
Eu mesmo não sei por que chorava
Clarinha. Vestida de noiva e com o cabelo enfeitado de flores da laranjeira do
quintal, fugira aos convivas, e fora por alguns instantes ao menos derramar
seus prantos num canto da casinha.
Desgostos não os tinha ela, que
meigamente correspondia ao amor de Luciano, do venturoso noivo, que lá fora
sorria entre os seus amigos. Talvez saudades de sua mocidade, de seu lar, de
seu viver de donzela; sim, e quantas recordações se misturam nessa hora suprema
com os receios dum porvir desconhecido!
— Passarinhos da campina — dizia
talvez — não mais ouvirei naqueles enlevos de virgem os vossos cantos. Vou
casar-me, meus passarinhos: em breve os cuidados do lar não me deixarão
momentos para escutar-vos, em breve a voz do esposo, o pranto dos filhos, em
vez daquelas ilusões suaves que me despertavam à tardinha os vossos gorjeios.
Adeus, meus passarinhos.
— Florinhas do vale, já não preciso
de vós para ornar as minhas tranças. Ao romper d’alva não correrei mais a
dar-vos os bons dias, a beijar-vos, e convosco enfeitar o meu roupão; não procurarei,
ao cair da tarde, conhecer o futuro desfolhando-vos, oh florinhas do camará, e
nem mandar-vos com recados de amor ao moço dos meus sonhos. Adeus, minhas
florinhas.
— Lar da infância, límpidos
ribeiros, minhas florestas, minhas borboletas, meus cismares, e vós, oh minhas
ilusões, adeus... também adeus para sempre!
Não sei se ela dizia lá consigo
tudo isto, mas, ao vê-la chorando, julguei que o dissesse.
Por quê? Me perguntas tu, linda
menina que me lês: eu to digo. Embora realidade de um sonho delicioso, o
casamento tem uma tristeza que dilacera o coração da mulher. É esse adeus à
virgindade d’alma e do corpo; é este adeus às ilusões da juventude que, como as
águas da vertente, fogem e mais não voltam. Eu ainda não vi uma noiva que não
chorasse, assim como a rosa quando de manhã desabrocha, e, estremecendo rubra,
se entrega aos ósculos do beija-flor, aos afagos da brisa, e em breve ao torvelinho
do rio, ou aos ímpetos do furacão...
Mas, deixemos estes cuidados e
procuremos saber porque Clarinha desfazia-se em pranto, uma hora antes de seu
casamento.
— Aqui, Clarinha, e chorando! —
dizia Maria de Jesus, sua amiga de infância.
— Ai, Maria de Jesus, não digas a
ninguém que me viste chorando, que estas lágrimas me envergonham. Chorar quando
vou ser feliz, é loucura, não é? É... eu o sei, eu o sinto... mas...
Cada vez chorava mais a Clarinha.
— Mulher, tu me escondes alguma
cousa — tornou-lhe Maria de Jesus, sentando-se ao seu lado —: conta-me...
anda... reparte comigo tua dor...
— Já não choro... olha, estou me
rindo! — E Clarinha, enxugando o pranto, forcejava por sorrir, mas o pranto lhe
corria ainda abundante pelas faces.
— Eu pensei — disse Jesus já
principiando a chorar —, eu pensei Clarinha, que tu eras minha amiga, mas agora
vejo que me enganei... não te confias em mim... pois, sim... adeus, não quero
mais te incomodar.
— Não me abandones também... olha,
eu mesma não sei... mas lembrei-me de Bernardino e pus-me a chorar. Se ele
voltasse, Maria de Jesus, que diria vendo-me unida a outro?
— Mas... ele já não existe, como
sabes; Clarinha, há seis anos assentou praça e partiu para o sul; e tu sempre
constante o esperaste, até o dia em que, voltando alguns de seus companheiros,
deram-nos a notícia de sua morte. Choraste muito então... mas agora é preciso
sorrir... brincar.
— Escuta, Jesus, não sei o que está
para acontecer-me, sinto apertos no coração como nunca na minha vida senti.
Sofro... sofro muito, e não sei a razão!
— Não te amofines, mulher;
acontecerá o que Deus for servido...
— Eu já rezei um rosário à Virgem
Santa... já implorei a sua misericórdia!
— Estão nos chamando... Vamos,
enxuga os olhos... um sorriso... Nada de tristeza. Confia em Deus, que serás
muito venturosa, minha amiga.
Agora, enquanto Clarinha enxuga as
lágrimas para apresentar-se aos convidados, eu quero dizer ao ouvido dos
leitores duas palavras, uma cousa que ainda não contei.
Luciano, o venturoso noivo de
Clarinha, era irmão de Bernardino, do primeiro amante dessa menina, que agora
sentia apertos de coração.
Ainda crianças, amaram-se, ardentes como o sol do sertão. Se Clara levava o seu potinho à lagoa para enchê-lo d’água, lá encontrava Bernardino para ajudá-la, e carregá-lo mesmo
até uma oiticica que pouco distava
da casinha de Clara. E, caso notável, se esta ia à tarde cortar lenha na mata,
lá encontrava o Bernardino com o feixe de lenha já pronto, com ele se sentava e
punha-se a conversar. E que conversas as suas! Não diziam muitas palavras;
levavam o tempo a dar compridos ais, a fitarem-se de vez em quando, com ternura
e paixão — ela a enrolar e a desenrolar o cordãozinho da saia, e ele a amassar
e a desamassar as beiras do chapéu, e ambos de olhos fitos no chão. Depois, ao
anoitecer, retiravam-se gemendo de amor.
Amavam-se assim, e cresciam,
aproximando-se do venturoso dia em que Bernardino, já de casinha feita, e
roçado, deveria pedir Clarinha a seu pai, o bom Manoel Matias, que o estimava
como se fora ele seu filho.
Mas, o homem propõe e Deus dispõe.
Um dia Bernardino foi recrutado. O subdelegado, homem mau e rancoroso, tendo de
limpar suas plantações, mandou chamá-lo: Bernardino não pôde dar os dias de
serviço que a autoridade exigia, e, cousa muito comum, na ocasião mais
oportuna, foi recrutado.
Manoel Matias envidou todos os seus
esforços para libertar seu futuro genro, correu à casa de seus compadres,
chorou aos pés do vigário e dos juízes, enquanto Clarinha, debulhada em prantos
rezava à Nossa Senhora e fazia-lhe ardentes promessas. Não valeram, porém, os
esforços de Manoel Matias e as promessas de Clarinha: um mês depois, de farda
às costas, e sobre esta o cantil, a mochila e o bornal, embarcava Bernardino
para o Rio de Janeiro.
A despedida foi tocante e o pranto
da família durou longo tempo.
Passaram-se anos e anos, e nada de
Bernardino. Clarinha chorava saudosa, e tinha esperança. Coitadinha, esperava-o
todo o dia e chorando contava seus pesares aos passarinhos, às brisas, às
florestas e aos ribeiros que haviam sido testemunhas de seus amores. Aqui —
dizia ela passeando à tarde no vale —, aqui confessou-me ele o seu amor... Ali,
sentamo-nos nós naquela manhã e então ele contou-me... À sombra desta árvore...
foi que...
E nestas recordações derramava
Clarinha as lágrimas de seus negros e lânguidos olhos.
Eis senão quando um dia aparecem
soldados vindos do sul, e dão-lhe a notícia da morte de Bernardino. Clara
adoeceu, es- teve às portas da morte, tão grande foi sua dor.
Depois...
Este depois aqui me tira a poesia
da história, mas é forçoso dizê-lo, porque não imagino — conto o que aconteceu.
Depois, como as minhas leitoras,
como todos nós, resignou-se Clarinha, e com a resignação apareceu pouco a pouco
a autora de uma nova afeição.
Clara reparou involuntariamente que
o irmão de Bernardino, o Luciano, gostava dela e não era dos mais feios. E
Luciano involuntariamente também notou que Clara reparava nessas cousas. Não
sei bem como se entenderam eles, o que é certo é que alguns meses depois raiou
o dia, em que principiamos: — Clara ia casar-se com Luciano.
Vamos agora ao terreiro.
Lá fora o noivo e os convidados
esperavam a noiva para conduzi-la à igreja. Luciano estava bonito; tinha uns
coturnos que por cinco patacas comprara ao sapateiro do lugar; calça branca;
colete de cor duvidosa; e vestia a casaca com que seu avô casara; casaca que há
muitos anos servia a todos os noivos da povoação e arredores. Os padrinhos
trajavam pouco mais ou menos no mesmo gosto.
Entre os convidados reinava a
liberdade no trajar: o Manoel da Luzia primava com sua camisa de chita riscada,
aberta no peito, e de colarinho à moda dos marinheiros; o José Tapera não lhe
ficava atrás, com seu chapéu de palha enfeitado de fitas encarnadas; Raimundo
do Lagamar estava orgulhoso com seu paletó de cassineta engomada, e assim os
outros.
Apareceu Clarinha, acompanhada das
madrinhas e de suas amigas de infância e todos numa voz gritaram: — Viva a
noiva!
— Todos a aplaudiam, julgando-a a
mais venturosa de todas as donzelas; e Luciano fitava-a com olhos devoradores.
Entretanto Clarinha estava triste, e se a muito custo conseguia desfolhar um
sorriso, lá vinha uma lágrima teimosa cair grossa e pesada em seu colo moreno.
Chegou o momento de saírem para a
igreja. A noiva ao lado das madrinhas caminhava adiante, e logo após o noivo e
os convidados que entusiasticamente gritavam: — Vivam os noivos! Vivam os
noivos!
Chegaram à igreja. Já o vigário os
esperava paramentado à porta principal. Entraram e começou a cerimônia.
E não reparou alguém num forasteiro
que orava perto, e que ao vê-los estremecera como se fora mordido por uma
cascavel? Era um pobre homem mutilado, disforme, de longas barbas, coberto de
andrajos e pós, e revelando em seu cadavérico rosto fundas dores, continuados
sofrimentos. Há meia hora que entrara e se ajoelhara em oração, depondo no chão
o seu bordão de enfermo e caminheiro.
Donde vinha, para onde ia e quem
era, não procuraram sabê-lo o vigário e sacristão, quando o viram entrar: era,
pelo que parecia, um mendigo que passando em viagem, vira aberta a casa do
Senhor, e não esquecera o seu dever de bom cristão.
Por que, porém, estremecera, e
agora erguendo-se, ficara convulso, e com semblante torvo e olhar amargurado,
assistia ao ato que não longe se celebrava? Por que batia-lhe tanto o coração?
Por que tanto interesse, tanta palidez? Seria acaso um louco ou um desgraçado;
um consorte traído ou um amante desprezado?
Eu não respondo, porque agora não o
devo; deixemo-lo com suas amarguras e assistamos ao casamento.
A cerimônia prosseguia. Luciano,
trêmulo de amor e felicidade, via realizado o sonho doirado de sua vida.
— Marido de Clarinha, ele, o
Luciano? Ele que julgava tanta ventura impossível? E já não era um sonho; era
um fato: saindo da igreja já podia dizer: "Clarinha é minha mulher."
— Depois, em sua casinha de palmas de carnaúba... que vida então... como amaria
extremoso a sua Clarinha! De manhã acordaria com ela ao cantar das graúnas...
Como as graúnas cantariam bonito nessas suaves manhãs! Correria ao roçado; e
lá, que saudades de Clarinha!... Voltando diria: "Clarinha, não posso
viver longe de ti!" — Que sorrisos os seus... Talvez o acompanhasse à
tarde... e que amor, que extremos d’amor! Depois os filhos... Quem não deseja
ter um filhinho? — "Parece-se tanto contigo — diria Clarinha, com seu
olhar de ternura. — "Sim, mas estes olhos são os teus, Clarinha." —
Seus pais seriam os padrinhos... e que festas no batizado! Todos viriam
saudá-lo, a ele, ao Luciano... O menino dormiria numa redinha ao lado da sua; e
se acordasse à noite, ele não deixaria Clarinha erguer-se, levantar-se-ia
mesmo, e com todo o jeito o tiraria da rede para levá-lo aos peitos maternos.
Assim pensava Luciano, trêmulo de
amor e de felicidade. Entretanto Clarinha chorava, chegando às vezes a soluçar.
Admirados os convivas perguntavam a si porque tanto chorava a noiva.
Clarinha mesmo não sabia porque
chorava: amava Luciano, casava-se com ele por vontade sua; mas tanto se lhe
apertava o coração, que não podia deixar de chorar.
Acabada a cerimônia, saudavam todos
aos noivos, e já se preparavam para sair quando o ruído de uma queda,
acompanhado de longo gemido, despertou a atenção de todos.
Era o mutilado que, desmaiando,
caíra.
Correram todos e cercaram-no
piedosos, procurando chamá-lo à vida; nesse empenho aproxima-se Clarinha,
fita-o empalidecendo muito, e logo prorrompe em gritos e soluços;
— Bernardino! É ele... meu Deus!
meu Deus! E como louca arrancava os cabelos.
Ao escutá-la, todos emudeceram de
pasmo reconhecendo Bernardino no mísero mutilado e recordando as cenas de amor
de outrora.
Era ele, sim, que, voltando de seu longo cativeiro, vinha cumprir a palavra dada à virgem de seu primeiro e único amor, e que, antes de abraçar seus parentes, indo à igreja, voto que fizera em horas de grande angústia — presenciara o casamento de sua noiva com Luciano, com esse irmão que ele tanto estimava. Tornando a si, ergueu-se Bernardino, e trêmulo e soluçoso, dirigiu-se à Clarinha, segurou-lhe a mão, uniu-a à de Luciano e, abraçando-os, disse-lhes:
— Sejam felizes, meus irmãos, tanto
quanto tenho eu sido desgraçado!
— Perdoai-me... Perdoai-me,
Bernardino! — bradou Clarinha, pondo-se de joelho.
— Irmão, mata-me... sou o culpado!
— gritava Luciano, ajoelhando-se também.
E os circunstantes choravam
dizendo:
— Bernardino, aqui afirmaram que havíeis
morrido no sul. Enquanto o vigário, não podendo também reprimir as lágrimas,
exclamava:
— Meus filhos, não desespereis...
coragem, resignação...
Bernardino então se tornou ardente
e às vezes terrível; já não tinha lágrimas nos olhos; parecia sentir em si
horrível luta entre os sentimentos generosos que a princípio manifestara e os
anelos de vingança e as dores de tão ferino golpe.
Depois falou assim, e falando era
às vezes sarcástico, às vezes doloroso, e às vezes tinha um sorriso gelado nos
lábios:
— Queres, irmão, que te mate... e
tu, Clara, queres que te per- doe? Por quê? Não havia eu morrido no sul, meus
amigos? Quem é fiel ao morto? Quem morre não se vinga, nem mesmo pode voltar ao
lugar em que o atraiçoam, o desprezam... Mas não é sempre assim! Por Deus do
céu que não! Pobre soldado, chorando parti desta terra — onde me ficava a
felicidade em um amor extremoso e santo; mas partindo ouvi um juramento...
diziam-me: "Vai... que se um dia voltares me acharás fiel... sempre,
sempre fiel até a morte!" — Fui-me cheio de esperança. Embarquei. No meu
exílio aliviava-me as dores d’alma saudosa esse divino bálsamo — a esperança.
Eu dizia: "Espera, meu coração, espera, que um dia serás venturoso."
— Esperei muito, e sempre firme, e sempre constante. Se era tarde, eu dizia:
"A esta hora suspira ela recordando-se de minhas palavras, à sombra do
arvoredo do vale." — Se era noite, eu dizia: "Sonha em mim..." —
Se rompia a aurora, eu dizia: "Acordou chorando de saudade..." — E eu
também cismava à tarde, sonhava à noite, e acordava chorando... Ah, ah, ah...
Era um doido, sim... um pobre doido... Tão doido que perguntava à brisa se a escutara...
e fitava a lua, para nela encontrarem-se nossas vistas... Depois morri, não foi
assim? E então minha alma, já liberta, volve aos lares, entra no templo... e vê
a infidelidade, a traição. Oh! mas os mortos também se vingam... também...
Dizendo isto Bernardino avança
terrível; mas de repente, como por encanto, levou desesperado as mãos aos
cabelos e exclamou em soluços:
— Sou muito desgraçado! Meu Deus...
meu Deus! Não receies, Clara; nada receeis, meu irmão... Sede felizes... mas
longe... que eu não posso ver-vos... Não posso... Adeus!
E logo retirou-se, correndo em
direção ao rio que perto passava, sem que lhe sustassem os passos, pois grande
era o pasmo de todos.
Então Clarinha, alucinada, seguiu-o
gritando:
— Bernardino... Espera... Vai morrer... Quem o salva... Bernardino! Bernardino!
Imediatamente correram todos para o
rio, a fim de prevenir um suicídio, mas chegaram tarde: ao longe, levado pela
correnteza, era Bernardino nas ânsias da morte.
Clarinha, vendo morrer Bernardino,
caíra fulminada; levaram-na desmaiada para sua casinha, e ali, algumas horas
depois, despertou... rindo, gritando, e chorando: a desgraçada enlouquecera.
No dia seguinte vi-a furiosa;
haviam-na amarrado, receando que fosse precipitar-se ao rio, e então ela
gritava de um modo tão doloroso, que dilacerava o coração:
— Deixe-me... quero ir ao rio...
Bernardino! É ele mesmo! eu o vi... lá corre... seguem-no... depressa... chega
à ribanceira... oh! é tarde... morreu! morreu o meu Bernardino!
Não pude ouvi-la por mais tempo,
que o pranto me sufocava. E Luciano? — me perguntarão agora.
Por muitos dias ninguém soube notícias
suas; desaparecera o infeliz na hora em que supunha chegar sua ventura.
Algum tempo depois, assistindo eu
ao embarque dos Voluntários, chegou-se a mim um homem pálido e desfigurado,
apertou-me a mão e disse-me:
— Adeus... vou procurar a morte por
entre as balas... Então conheci-o, era o desgraçado do Luciano que, como
Voluntário da Pátria, marchava para a guerra, em demanda do esquecimento eterno de suas desventuras.
— Vai — disse-lhe eu —, vai, que as
dores do coração não se curam na paz dos ermos... Vai, e lutando contra o vil
paraguaio que nos ultraja, procura além do esquecimento e consolações, ganhar
louros para esta terra que nos viu nascer! — Triunfar ou morrer! — seja a tua
divisa, e teu fim a glória da pátria; adeus.
E abracei-o chorando, enquanto os hinos do entusiasmo popular
saudavam, em seu adeus, os Voluntários da Pátria.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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