AMOR-DO-CÉU
Frecheiras! Como és formosa, oh singela virgem das praias do norte!
Como sorrindo despertas ao raiar
d’aurora, ouvindo o melodioso gorjeio de tuas aves e o inocente murmúrio das
auras nas palmas de teus coqueiros.
Na melancólica hora do crepúsculo
da tarde, por que te descai a fronte em misteriosa cisma? Acaso escutas enternecida
a triste endecha de teus mares?
Oh, salve virgem singela das praias
do norte. Tu és o diamante perdido no deserto.
És o oásis que o extenuado
caminheiro depara naquele areal alvíssimo.
És uma ideia, um sonho, a visão da
felicidade naqueles morros sem fim.
Que imenso coqueiral circunda-te e
que bonitas casinhas te enfeitam.
Nas casinhas tuas filhas trabalham
cantando. Na areia brincam as criancinhas.
Perto rugem as vagas e pelas ribas
folgam pulando as gaivotas.
Frecheiras! como és formosa, oh Frecheiras!
Eu te saúdo, singela virgem das
praias do norte.
***
Frecheiras é uma pequena povoação
de pescadores, vinte e seis léguas ao norte da Fortaleza.
À sombra dos coqueiros ocultam-se
suas rudes casinhas de palmas e uma ou duas de telhas. Em frente, o mar, os
currais de pescaria e as jangadas; dos outros lados, um areal imenso e
alvíssimo, sem vegetação e arrumado pelo vento em caprichosos cômoros.
De longe, Frecheiras é um ponto
verde no meio de um grande morro de areia, e nos recorda os oásis do deserto. E
nada mais é do que uma aldeia de gente mui pobre, que pouco ainda difere das
primitivas.
Seu viver não se altera.
Durante o dia os homens pescam até
completarem o necessário ao seu alimento e da família. Isto feito, volvem ao
colmo e deitam-se na tipoia, fitando a mulher, que perto faz rendas em sua
almofada ou os filhinhos que mais longe lançam suas pequeninas jangadas no
maceió da praia.
Durante a noite conversa-se com os
vizinhos, reza-se e dorme-se sob as quatro palhas, sem o menor cuidado,
enquanto lá fora rugem os ventos, as ondas troando os ares.
A ambição, os usos e os prazeres da
cidade são ali desconhecidos. Dois simples vestidos são bastantes e o pão de
hoje: — o d’amanhã a Deus pertence.
Entretanto naquela palhoças, quem sabe?
quantas vezes não se escondem as cenas do mais extremoso afeto! Quantas vezes
não escapam delas gemidos dolorosos para se misturarem com os soluços da vaga!
É que o coração humano é o mesmo em toda parte. Cofre de amor e de amarguras,
ora se assemelha ao lago tranquilo e sereno do vale, ora ao mar revolto, nas
convulsões da procela...
E cheguei a Frecheiras, cortando o
fio destas suaves reflexões que me despertava a vista daquelas casinhas.
Era ao pôr do sol, em linda tarde
de agosto.
Parei à porta de João Gomes, velho
pescador, que eu há muito conhecia.
— Ó de casa!
— Ó de fora! Quem é?
— Um seu criado, senhor João Gomes.
— Ah, é o senhor? Criado seja de
Deus e da Virgem Maria.
Apeie-se. Então, aqui?
— É verdade, amigo; volto de minhas
peregrinações pelas praias e venho como costumo pedir-lhe rancho...
— A casa não é capaz; porém está
sempre às suas ordens.
— É muito capaz, senhor Gomes. Como
sabe, basta-me peixe, rede e pela manhã uma tigela de café.
— Tudo temos, Deus louvado.
Apeei-me, com o que muito se
alegrou o ruço animal que me trouxera, já exausto de tanto caminhar na areia
solta da praia.
O velho armou no alpendre uma rede
para mim e mandou pelo Totonho, seu filho mais velho, arrumar o meu cavalo.
A dona da casa, a senhora Mariana,
veio logo cumprimentar- me, e após ela os filhos, que me cercaram sorrindo,
admirados talvez de me ver naquelas paragens.
Noutras viagens notara que a minha
presença era uma festa para aquela inocente família; mas, nessa ocasião, o riso
servia apenas de véu para ocultar muita angústia e tristeza. Uma infelicidade,
portanto, pesava sobre a pobre gente; restava-me penetrar-lhe o mistério e
misturar minhas lágrimas com as de sua dor.
Encetei a conversa pelos meninos.
— Então, senhora Mariana, quantos?
— Oito... Se eu fora rica não teria
tanto...
— Não sabe por quê?
— Não, senhor...
— É que o filho é o amigo, o arrimo
e o consolo de seus pais na velhice; quem mais do que o pobre o necessita?
— Sim... mas quantas vezes são eles
a causa de seus vexames e lágrimas?
— Assim como nos alegram e nos
tornam ditosos. A ventura perfeita só existe no céu: somente lá a deliciosa
rosa, a flor da pura fragrância, é sem espinhos. Este mundo não passa de um
cadinho onde a criatura, como o metal, purifica-se para os eternos festins... A
felicidade é um lampejo... uma visão momentânea que serve para nos reanimar no
amargurado caminho. Ânimo, pois, que a enganadora miragem torna-se-á um dia
realidade.
João Gomes e Mariana ouviam-me com
interesse e talvez satisfação. Certo de que padeciam, eu procurava assim desde
logo consolá-los. Parecia-me minhas palavras os reanimavam, como as chuvas do
verão às plantas desalentadas pelos grandes calores.
Continuei:
— Além da esperança, da certeza de
que após as dores virão os sorrisos sem fim, há um bálsamo que nos alenta nas
lutas da mágoa. É a lembrança de que mais padecem outros e que portanto razão
não temos de nos queixarmos. Na verdade, choras porque te falta o pão! E o que
fará Antônio, a quem falta não só o pão como a roupa e o teto, que tu possuis?
Choras, porque um mês de febre reduziu-te à extrema miséria! E o que fará José,
que perdeu seus bens e a vista — a possibilidade de readquiri-los? O que fará o
miserando cego que ao sol e à chuva passa mendigando? O que fará aquele que se
vê para sempre encarcerado pela ira de um instante? Estes, enquanto te
lamentas, invejam tua felicidade. Por isso, em vez de queixumes, agradeçamos em
todas as horas ao bom Deus a sua infinita misericórdia...
— É assim mesmo — murmurou João
Gomes —, bem-aventurados são os que choram.
Mariana enxugava uma lágrima que,
malgrado seu, fugira-lhe dos olhos. O velho ao vê-la mudara de semblante e para
disfarçar a tristeza, levantou-se, olhou para o mar como quem procura divisar
uma jangada, e depois, tirando da choça uma palhinha, sentou-se enrolando-a e
desenrolando-a com os olhos baixos.
Mariana me disse:
— Não se admire de me ver
chorando... Sofro por causa de filhos...
— Conheci-o, quando há pouco
queixava-se, mas não há razão...
— Ainda não os tem... Mesmo se os
tivesse não sofreria tanto como o pobre...
— E por quê?
— Porque o filho do rico não é
recrutado, ou designado para a guerra, não vai à cadeia, sem crimes, somente
por capricho das autoridades. O filho do pobre tudo sofre... Se vota em um... é
perseguido pelo outro... e se não vota é perseguido por ambos. Nunca tem razão,
e ninguém o escuta. Cercam-lhe a casa à meia- noite e sem pena o arrancam dos
braços de sua infeliz mãe, de sua esposa, de seus filhinhos... E para quê? Para
matar paraguaios, quando homens piores o perseguem!
— Todos sofrem, senhora Mariana. Se
estas dores cabem aos pobres, outras não menores tocam aos ricos.
— Qual, meu senhor! Quem faz mal
aos ricos?
— Os ricos têm contra si muitas vezes, além do mais, o próprio ouro e a posição na sociedade. Quantos, vendo no filho um jogador, um libertino, um infame — por causa da riqueza —, e em que fitam-se todos os olhos, não invejam chorando a obscuridade do pobre para ocultar sua vergonha?! E se ele procede bem, como não se magoa o pai, vendo-o contrariado em suas aspirações, acusado pela imprensa, injuriado e caluniado por seus adversários, pelos invejosos, pelos traficantes? Todos neste mundo choram. A sociedade é uma floresta onde tudo se lamenta, desde a mais rasteira erva à mais alta árvore. A ervinha diz: "Como sou infeliz! os animais me pisam, minhas companheiras me sufocam; tudo conspira contra mim... enquanto tu, ó árvore, livre de tais pesares, gozas a luz benéfica do sol e todas as ditas!" — Entretanto, ao mesmo tempo, a grande árvore exclama: "Meu Deus, como é feliz a ervinha em seu retiro: que vida sossegada passa, enquanto eu sofro os embates do vento e os abrasadores raios do sol... e me arruínam os furores da tempestade!" — Querem saber de uma cousa, meus velhos amigos?
— Sim, senhor...
— Ninguém tem razão de queixar-se:
todos devemos conformar-nos com a nossa sorte. Há pouco, ao aproximar-me desta
casa, eu invejava-lhes a vida...
— A nossa? Ora...
— E dizia: Que sossego nestas cabanas;
que tranquilidade no espírito desta pobre gente! Quem me dera também fugir da
cidade e vir habitar junto às ondas, numa choça, com uma jangadinha; minha
esposa na almofada; meus filhos a brincar no terreiro... e eu sem cuidados, sem
ambição, no seio do amor e da ventura!
— E veio encontrar-nos bem
tristes!...
— Infelizmente, sim; mas consola-me
a esperança de lhes ser útil na adversidade.
— Choramos por causa de filhos...
— E não brincam eles ali tão
contentes?
— Aqueles... pobres inocentes;
porém a outra?
— Amor-do-Céu? a sua filha casada?
— Sim... hoje viúva, ou quase
viúva...
— Como? Não repare em minha
curiosidade...
Ouviu-se um soluço no interior da
casa. O velho ergueu-se e comovido disse:
— Não fale nisso agora, minha
velha... Vá buscar a ceia, que é tarde, e o senhor está com fome... Depois lhe
contaremos tudo...
— Pois bem, lhe contaremos
depois...
E retiraram-se para cuidar, sem
dúvida, da ceia.
Eu estava deveras com fome, e por
isso aprovei o adiamento da história. Entretanto, como alguma cousa devia fazer
antes de me chamarem, pus-me a pensar em Amor-do-Céu, na bela rapariga que eu
vira outrora tão alegre.
Maria era o seu nome de batismo; e
Amor-do-Céu o sobrenome. Todos que a conheciam chamavam-na simplesmente
Amor-do-Céu e nunca com mais acerto denominara-se uma criatura humana.
Menina, foi o mimo da praia; moça,
o encanto dos mancebos, e esposa a veneração de todos.
Junto ao colmo de seus pais
erguia-se o dos pais de Vicente, que era pouco mais velho do que ela, mas igual
na ternura e delicadeza d’alma. Os velhos eram dois pescadores amigos, e eles
dois meninos que se queriam. E, como os colmos, viveram sempre juntos na
infância: correndo brincavam ao longo da praia ou no alpendre da casinha, ou
naqueles morros d’alva areia, ou mais adiante à sombra das ubaias.
Na praia, Vicente disputava às
ondas suas róseas conchinhas para Amor-do-Céu, e as ondas pulavam brincando com
ele, enquanto a menina assustada o fitava, batia palmas, dava alguns passos
para frente e voltava exclamando: "Vicente, olha a maré." — E Vicente
respondia: "Deixa estar... deixar estar... que ela não me pega." — E
ufano prosseguia, e mais ufano voltava com o chapeuzinho cheio de conchas que
depunha aos pés de Amor-do-Céu.
Traziam as conchas para o alpendre,
e com elas enchiam as casinhas — as casinhas que na véspera tinham feito para
as bonecas; ou se a maré baixara carregavam uma jangadinha — a jangadinha de
Vicente — e punham-na nos pequenos maceiós, nos poçozinhos d’água tranquila que
na praia ficavam.
Depois volviam aos morros, e,
rolando por seus despenhadeiros, atrás um do outro, riam-se na maior alegria.
Ora, escondendo-se para Vicente procurá-la, a menina agachava-se atrás de um
cômoro, e Vicente como quem não acertava, dizia depois de muito correr:
"Amor-do-Céu, onde estás, que não te acho?"— "Não digo onde
estou!" — gritava ela — e o espreitava surgindo pouco a pouco, até que se
encontravam aplaudindo o caso com muitos risos.
Dos morros passavam ao matagal, e
colhiam ubaias, muricis, ameixas, maracujás ou flores. Vicente subia às árvores
para tirar os ninhos dos pássaros, e Amor-do-Céu procurava no chão os ovos da
nambu e de outras aves preguiçosas.
Quando a noite os surpreendia,
voltavam juntos aos colmos também juntos, e nas suas tipoias repousavam como
dois anjos. No outro dia, a mesma vida, as mesmas cenas, os mesmos sorrisos.
Era um lindo sonho de que deviam despertar um dia, e despertaram infelizmente.
Vicente já era rapazinho e os seios de Amor-do-Céu cresciam sob o cabeção de
cassa.
Por que, meu Deus, os despertastes
daquele inocente enlevo? Não era melhor que tivessem juntos voado para o céu,
como juntos sorriam-se na terra? Seriam dois serafins mais para rodearem o
vosso trono.
A menina tornava-se moça e sua
beleza crescera com ela. Morena, a tez imitava o jambo, e a caravela muita vez
lhe invejara a rósea cor das faces. Seus lábios eram rubros como o guajá e seus
olhos verdes como as ondas, que sua mãe fitara sempre, como sempre ela as
fitara. De seu olhar e sorriso nada sei, pois nunca os entendi: fascinavam o
curioso para que não revelasse o mistério de sua candura.
Um dia... não sei porque, Vicente
baixou os olhos, e estremecia falando com Amor-do-Céu; e Amor-do-Céu corava, e
também estremecia como Vicente. Desde esse dia evitavam-se... porém de um modo
que mais vezes se encontravam, para estremecer corando.
Os velhos reparando nisto riam-se;
e a outra gente da praia contemplava satisfeita aquele enleio.
Por fim, uma tarde talvez
explicaram-se. Como, não sei, mas desde então conheceram que a lei que prendia
a concha ao rochedo, os prendia na vida, e que se amavam como se ama entre os
moços. Desde então... quem lhes poderia contar os suspiros, as confidências, os
sonhos e enlevos, e mais demonstrações do primeiro e extremoso amor?...
Mas já não gozavam daquela plena
liberdade. Era necessário aprender a trabalhar, e seus pais não esqueceram esta
necessidade. Amor-do-Céu teve uma almofada e tarefa de renda, e Vicente
acompanhava seu pai nas lidas do mar, sobre a jangadinha de quatro paus.
No trabalho, porém, quantas
ocasiões de se encontrarem, entenderem-se e prodigalizarem-se afetuosos
cuidados! Do mar, as vezes que podia, olhava Vicente para a porta da casa
adorada; e da porta, a moça olhava para o mar. E antes e depois também as vezes
que podiam, eles, cada qual mais apaixonado, repetiam as frases de todos os
dias.
E assim corria o tempo, e cresciam
eles sem reparar em tal. Vicente estava homem e Amor-do-Céu moça feita. Neste
tempo a madrinha de Amor-do-Céu, que morava na ribeira do Siupé, mandou pedi-la
à comadre para com ela passar um mês. Mariana acedeu contente, porque deste
modo sua filha receberia muitas vezes a bênção de sua madrinha.
Partiu Amor-do-Céu soluçando, e
soluçando ficou Vicente. Era uma ausência de mês; mas um mês é muito para quem
ama e nunca separou-se.
O caso é que o rapaz não pôde
suportá-la, e finda a semana fugiu pelo caminho que seguira a rapariga; e no
outro dia apareceu no Siupé. Pálida e chorosa estava Amor-do-Céu, e arrependida
a madrinha de tê-la convidado para sua companhia. Mas viram-se... A moça
reanimou-se como a planta da várzea nas primeiras chuvas; e a madrinha, que não
era muito tola, conheceu o segredo, explicou-se, e aceitando o jornaleiro que
se oferecia para a lavoura, prometeu interessar-se por ambos.
Dois meses depois casavam-se, com o
assentimento de seus pais e contentamento geral; e a convite da rica dona
estabeleciam efetivamente a sua residência naquela ribeira.
Por que não volveste, Vicente, para
as casinhas de Frecheiras? Por que desprezaste a paz deste retiro, estas ondas
que já te conheciam, estas areias e estas árvores que teus segredos sabiam? E
tu, Amor-do-Céu, por que não aconselhaste o noivo amante? Se tu falasses, ele
te escutaria e talvez estivessem agora bem sossegados na praia de Frecheiras!
Ambos desejaram voltar, mas deviam
grande favor à madrinha, e ela instava tanto e lhes oferecia tantas
conveniências, que não puderam resistir. Demais, Vicente, louco de ventura pela
posse de sua querida, ambicionava riquezas para lhe depor aos pés, que não
encontraria em Frecheiras. Aqui teria certo o alimento, a roupa, o sossego e
mais alguma cousa com muito custo, ao passo que ali mais fácil seria o ganho.
Faria um bom roçado para milho, feijão, arroz, e com o seu produto não só
esperava manter-se do preciso, como comprar um colar e umas arrecadas para
presentear a consorte, e talvez um cavalinho para levá-la à garupa, ao povoado
nos dias de missa. Compraria também uma chapelinha preta e um vestido de chita
fina para ela... E não se lembrava o pobre Vicente de que o homem propõe e Deus
dispõe!
Assim eu pensava, docemente assim
discorria enlevado pela imaginação, quando interrompeu-me João Gomes, chamando-me
para cear.
Entrei. Na saleta, sobre um jirau
coberto de esteira e duma alva toalha, me foi oferecido excelente peixe, caldo,
farinha e um bule de café. Sentei-me numa mala que João Gomes arrastara para
junto da rústica mesa, tirando antes a santa Imagem que nela guardava e ceei
como costumo em viagem, o que quer dizer: — comi muito.
Acabada a refeição e aceso o meu
charuto, entabulei conversa com João Gomes, interrogando-o sobre a safra do
peixe, o estado de sua jangada e redes de pescaria, e o mais que interessa aos
homens do mar.
Mariana levara para dentro os
pratos e a toalha e demorava-se.
— A safra não tem sido boa por
causa das tormentas...
— Das tormentas?
— Muita tormenta de ventos na costa
e o mar sempre feroz; mas, Deus louvado, vamos nos arremediando...
— E não é tempo dos pargos e
tainhas?
— É; porém os pargos estão
vasqueiros... A tainha é que vai aparecendo.
Mariana voltou; e, atiçando a
candeia, que do jirau mudara para um caritó, disse:
— Amor-do-Céu, vem falar aqui como
senhor, anda, minha filha... Calamo-nos, e eu fitei os olhos na porta.
Amor-do-Céu saiu,
apertou-me a mão e sentou-se com
sua mãe perto de nós.
Pobre rapariga! Vê-la bastava para
saber-lhe a mágoa. Seus olhos outrora vivos e ledos volviam-se tristes e
amortecidos, como cansados de chorar; suas faces, cuja cor a caravela invejara,
estavam pálidas e sulcadas, quase como a areia da praia quando baixa o mar. A
última vez que a encontrara, ela ria-se alegre e graciosa como a verdejante
ilha nas horas de bonança; e agora era a ilha após a tempestade.
Houve um instante de profundo
silêncio.
— Já sei — disse eu — que padece
muito, que uma grande dor veio feri-la no seu retiro...
— Ai, sim... só Deus sabe quanto
tenho chorado!
— Seus olhos o dizem, assim como a
cor e sulcos do rosto. A dor é uma tempestade cujos vestígios não se apagam
facilmente: ocultá-los, quem pudera?
— Coitada! — disse Mariana — tem
penado sem descanso. O pobre do pai não pode pregar olhos e nem levou mais um
bocado à boca: toma algum caldo a muito pedido... Eu?... nem falemos...
Mas, qual o motivo de tanto
sofrimento?
— Foi um dos ricos do Suipé que se
intrigou com o meu genro — disse-me João Gomes — e dele vingou-se, conseguindo
do Capitão da Companhia que o designasse para a guerra, pois ele era
infelizmente guarda-nacional. Amarraram-no sem pena, roubando assim o esposo de
minha filha, o pai de meus netinhos...
— E o único arrimo do velho Brito,
que ali ficou chorando ao desamparo — acrescentou Mariana.
— O pai de Vicente, não?
— Sim, senhor. Mudando-se para o
Suipé, de lá Vicente supria o pai de um tudo. O velho, coitado, quase entrevado
numa cama, vivia do que lhe mandava o filho. Não faltava nada: a farinha, o
feijão, o arroz, tudo tinha com fartura, Deus louvado. E Vicente vinha de vez
em quando vê-lo e, nos dizia: "Não se esqueçam de meu pai; façam minhas
vezes e se ele piorar mandem chamar-me, que eu virei na carreira." — Pobre
rapaz, se queria tanto ao pai! E agora o que será do Brito? Nós não lhe faltaremos,
mas sem o filho... ele nos deixará decerto.
— E não pediram a ninguém na
cidade, não se empenharam pela soltura de Vicente?
— Muito — me disse Gomes — mas quem
escuta os pobres neste tempo? Uns riem-se e outros nos contam as crueldades dos
paraguaios...
— E os paraguaios talvez não sejam
tão cruéis como eles! — tornou chorando Mariana.
— São piores que feras, senhora
Mariana.
— Têm comido muita gente —
respondeu-me ela —, eu o sei; mas os de cá não ficam atrás. Quanta mulher sem
marido e filhos na orfandade... Quanto velho morrendo sem arrimo... e o
cemitério a encher-se!
— São as consequências da guerra...
Mas, senhor Gomes, conte-me pelo miúdo essa desgraça.
— Eu tenho andado tão azoado, que
nem sei... Minha filha, conta lá como te roubaram o marido...
Amor-do-Céu, interrompida às vezes
pelas lágrimas, contou- me assim a sua história:
— Como vosmecê sabe, nós morávamos
para a bandas do Siupé, em terras de minha madrinha. Vicente plantava, e tinha
lá umas criaçõezinhas de ovelhas e cabras, e duas cabeças de gado. Todos os
anos ele abria um roçado de quatro cem-passos para legumes, em que labutava de
manhã à noite, ajudado na broca e na derruba por alguns vizinhos, com quem
trocava dias, como se costuma entre os pobres. No princípio, eu o ajudava nas
lidas, ora nas coivaras, ora na planta e na limpa. Mas, depois tive o primeiro
parto; e ele não consentiu mais que eu fosse ao roçado, para que o nosso
filhinho não sofresse um só instante a minha ausência.
Nunca vi querer tanto a filho como
ele. Se voltava da roça, tomava-me o menino, beijava-o e brincava até que a
criança chorava... E ele arrependido e com pena! O filho era a menina de seus
olhos: era o seu riso, como a chuva o prazer dos matos. E se o filho adoecia,
Vicente não trabalhava e esmorecia mais do que meu pai no mar se vem a
tormenta. E era preciso eu ralhar. Minha madrinha nos estimava muito e só teve
uma queixa de nós. Foi quando nos pediu o menino, que era seu afilhado, prometendo
criá-lo e fazê-lo feliz... Tinha invejado o nosso filho. Eu calei-me, mas o meu
coração apertou-se com força, e meu sangue quis parar nas veias. Vicente,
porém, ficou sério e respondeu-lhe que antes lhe daria a vida. Minha madrinha
ficou decerto desgostosa, mas nunca nos deu demonstração. Também já o Vicente
poucas vezes a ocupava, porque os negócios lhe corriam direito, e nos davam com
que nos arremediarmos, sem sermos pesados a ninguém. Antes, ele é que a servia,
não tendo boca para dizer
— não, quando ela o chamava para
seus mandados.
Íamos assim vivendo, dando graças à
Nossa Senhora pela paz e fartura de nossa casa, quando tive o segundo filho,
que foi uma menina. Então Vicente só faltou endoidecer de alegria. Não se
fartava de mirá-la, de compará-la a mim, e de contrariar-me se eu a achava mais
parecida com ele. Era um gosto vê-lo carregando a filhinha e cantando ao punho
da rede para niná-la... Nesse sossego e felicidade Nossa Senhora nos abandonou.
Porque, não sei. Nós não a
ofendemos, nem por pensamento, e nem deixávamos de rezar o Ofício de madrugada,
sempre com a maior devoção. São segredos do céu, meu senhor, que não podemos
adivinhar. O que é certo, é que apareceu uma questão com o Vicente, que até
aquele dia com ninguém questionara.
Foi assim. Perto de nosso roçado
havia uma fazenda de gado do Tenente Melo; e muitas reses entravam dia e noite
no roçado e esmagavam a roça. Vicente corria com elas e tapava os buracos da
cerca, queixando-se algumas vezes ao vaqueiro, sem todavia maltratar as
pobrezinhas, que não tinham culpa de andarem soltas. Vai senão quando, aparece
morto um boi de carro, perto do roçado, e apesar de não ter ferimento e nem
sinal de pancada, os vaqueiros gritaram a uma voz — que fora o Vicente! Era um
falso, e Deus queira perdoá-lo àqueles homens. Vicente tem bom coração e é
muito compadecido dos bichos. Quanta vez, como depois me contava satisfeito,
ele não se empalhou dando água ao animal que morto de sede rodeava a cacimba
cercada, e sem saber quem era o dono! Como poderia ele matar aquela rês? O
mundo é assim mesmo, meu Deus.
O vaqueiro contou a seu amo o caso,
como bem lhe pareceu, e o tenente Melo acreditou na história, mandando logo recado
ao Vicente e cobrando-lhe muito dinheiro pelo boi. Ora, vosmecê sabe, é muito
duro pagar-se aquilo que não se comeu e nem bebeu. Portanto, Vicente com muita
razão defendeu-se, provando sua inocência. Mas, recado vai, recado vem,
aumentou a intriga, e eu já andava com as mãos na cabeça com medo de uma
desgraça. E assim não cessava de pedir a meu marido que vendesse o que ali
tínhamos, pagasse o tal boi, e voltássemos para Frecheiras. Ele me respondia
que não receasse, pois estava disposto a suportar tudo por amor dos filhinhos e
por mim, mas que não fugiria sem ter de quê. Antes me tivesse ouvido!
— E o que fez o tenente Melo?
— O Juiz não era de seu partido, e
por isso, para nos citar precisava testemunhas. O tenente procurou por toda
ribeira quem jurasse contra nós, e felizmente não achou ninguém que quisesse
meter sua alma no inferno.
— Deixou portanto de cobrar o boi.
— Sim, senhor: mas ficou intrigado
com Vicente, e todos os dias gritava que ele lhe pagaria caro o desaforo! O
desaforo?... quando meu marido havia aguentado os seus insultos com uma
prudência de santo! Mas ele, como rico, julgava-se com o direito de pisar os
pobres; e tinha razão, porque muito tempo não precisou para nos castigar...
castigar a inocentes do modo mais cruel deste mundo!
— Qual foi o castigo?
— O estado que dia e noite choro;
este abandono... a infelicidade que me vai matando! Eu lhe conto. Vindo ordem
da cidade para designar guardas, o tenente Melo entendeu que chegara a ocasião;
e como era amigo do capitão da companhia de Vicente, empenhou-se sem descanso,
até que conseguiu vingar-se. Quando eu soube da ordem, pedi a meu marido que se
escondesse, mas ele não quis, porque — quem não deve, não teme, e dizia-se que
os casados com filhos não estavam sujeitos. Não estavam sujeitos!... E quem se
importa com a lei aqui pelos matos? O forte vinga-se do fraco, e o grande do
pequeno...
— Por toda parte é assim: a traíra
engole a piaba nas lagoas e no mar o tubarão persegue as enchovas.
— Foi numa quinta-feira à
meia-noite. Durante o dia, não sei porque estive tão triste, que não pude
deixar de chorar muito. Vicente vexou-se tanto que perguntou-me por que
chorava; e eu não soube responder-lhe. Era um chorar sem causa, e quanto mais
chorava, mais vontade tinha de chorar. Até o menino estava triste e não vadiou
como costumava. Parecia que morrera uma pessoa da família. Eu me lembrava aqui
de Frecheiras, receando que alguém estivesse doente. Ai, como o coração da
gente adivinha! Não atinava com o lugar donde me viria a desgraça, mas era
certa, porque o coração não engana. É que eu ia ficar sem o meu marido, e meus
filhos sem o seu pai... seu pai que os amava tanto...
Amor-do-Céu desatou a chorar
soluçando. Depois continuou.
— Tudo nos anunciava a desgraça...
Eu às vezes não quero acreditar em busões, mas nessa noite cruel até o cachorro
uivava no terreiro, e a candeia estava triste... Vicente mesmo, embora me
animasse e procurasse rir-se, não sabia ocultar-me o seu desassossego. Quando o
cachorro uivou, ele chamou-o pelo nome, que é Leão; e Leão em vez de
festejá-lo, deitou-se a seus pés, como que soluçando.
Fiquei mais medrosa e sem querer me
veio à lembrança o tenente Melo. Então me pondo a considerar, tive tão grande
pressentimento que disse a Vicente:
— Vicente, toma um conselho, vai
dormir no mato esta noite...
— Por quê? — perguntou-me admirado.
— Não sei porque... mas se tu
fosses meu coração descansaria.
— Se é com medo que venham
prender-me — tornou-me ele
—, não vejo razão: não sou
criminoso, e nem presto para recruta, pois tenho mulher e filhos...
Calei-me, que suas palavras eram
sagradas para mim. Nunca teimamos, não só pelo muito amor que eu lhe tinha,
como porque eu nunca vira teimar minha mãe e meu pai. E o exemplo dos pais
passam aos filhos. Demais, Vicente era tão bom, que eu não poderia ser má.
Calei-me, pois, e recolhi-me à camarinha, onde já os meninos dormiam. E ele,
fechando a porta, me acompanhou, e ajoelhou-se a meu lado para rezarmos o terço
do costume.
Ainda não tínhamos pegado no sono,
quando a nossa casa foi cercada da tropa. Pelo barulho conheci que vinha muita
gente, e à frente o tenente Melo. Ah, eu não lhe posso contar o que sofremos
então. Só Nossa Senhora o sabe. Cercando a casa, o tenente gritou:
— Abre a porta, cabra, ou mando
arrebentá-la já!
— Senhor tenente — disse Vicente —,
a quem procura?
— Ao atrevido Vicente para matar
bois no Paraguai — respondeu ele.
— Pois bem! é meia-noite e a casa
do cidadão é inviolável: de manhã me entrego.
— Respondeu muito bem.
— Eu não sei onde o pobre tinha
aprendido aquilo; talvez na cidade quando ia vender os legumes. Mas boca que
tal disseste.
— E o tenente não respeitou a casa
durante a noite?
— Qual, meu senhor! Zangou-se e
mandou botar a porta dentro. Eu me levantei na carreira para vestir-me, e
Vicente correu para o canto onde guardava a espingarda. Vendo isto saltei ainda
quase nua, e agarrei-me com o meu marido, chorando e pedindo-lhe por nosso
amor, pelo amor de nossos filhos, por tudo que mais amava... que nada fizesse:
se entregasse e tivesse fé na justiça divina. Atendendo-me, ele encostou a
espingarda e prometeu-me sofrer com paciência aquele insulto, por minha causa.
Ah, nunca tive tanto vexame! O tenente Melo entrou logo com a tropa, igual a
uma onça assanhada, e amarrou meu marido como se amarra um assassino! E nos
descompôs a todos com os nomes mais injuriosos, como fora de si. Vicente apenas
respondeu-lhe uma vez, lembrando-lhe Deus e a justiça do céu.
E ele zombou de Deus e da justiça
do céu! Os meninos acordando puseram-se a chorar que fazia dó; e eu soluçando
pedia ao malvado homem que soltasse meu marido... Mas ele não me dava atenção e
continuava a injuriar-nos.
Vicente quando ouviu o pranto dos
filhos, estremeceu como se o tivessem apunhalado; e duas lágrimas lhe correram
pelas faces. E o tenente ao vê-las disse à tropa: "Levemos já este diabo
para chorar melhor na cadeia..."
Chamar diabo ao Vicente... como
custava ouvi-lo! E saíram, levando amarrado o meu marido... o pai de meus
filhos... e a minha felicidade!... Ai, se a dor matasse, eu teria morrido
então. Acompanhei o infeliz, mas ele vendo-me lembrou-me os filhos... os seus
dois queridos filhinhos... e mandou-me voltar. Eu não sabia o que fizesse...
Era tão grande o meu desespero que certamente teria ficado doida se meu pai não
chegasse, como chegou de manhã. Foi Nossa Senhora que se compadeceu de mim...
Calou-se a infeliz já não podendo vencer o pranto que a sufocava. Ela e sua mãe
soluçavam, enquanto eu e João Gomes em silêncio enxugávamos as gotas d’água que
nos corriam dos olhos.
Passados alguns instantes,
perguntei a João Gomes:
— E não foi entender-se com o
Capitão da Companhia, ou com o Presidente na cidade?
— Fui; mas nada alcancei. O capitão
me desenganou logo, declarando-me que as ordens eram fortes e que não
disfarçava meu genro. Arrumei-me então para tomar o caminho da cidade. Minha
filha queria acompanhar-me, mas não pôde: seu filhinho adoecera e ela mesmo não
estava boa. Deixei-a pois em casa da madrinha e ordenei-lhe que aí me
esperasse. E com duas cartas, que minha comadre escrevera, segui atrás do
preso.
Todos me diziam que era trabalho
perdido, que o Presidente não disfarçava ninguém enquanto o Lopes e seus
paraguaios não morressem; porém era meu dever dar todas as passadas a favor de
meu genro. Malditos paraguaios, senhor, que nos têm roubado os melhores rapazes
da terra!
Cheguei à cidade, e como quem vai
com fome ao mar, botei os anzóis logo n’água. Entreguei as cartas, e os homens
ainda bem não as tinham lido, me declaravam que era impossível soltar o
Vicente, porque o Presidente não atendia a pedidos. Impossível restituir o
alheio... o marido de minha filha e o pai de meus netos! Em que tempo estamos,
meu Deus?
Ouvindo os homens eu fiquei mais
morto que vivo, e pus-me a chorar lembrando-me de voltar sem meu genro. Então
deram- me um requerimento, e aconselharam-me que eu mesmo fosse apresentá-lo ao
Presidente, e contar-lhe minha história.
Fui, pegando-me com todos os santos
para que me valessem naquele aperto. No primeiro, segundo e terceiro dia os
soldados não me deixaram entrar. S. Exª não falava a ninguém. E como quem
espera a maré, eu sentava-me na escada e levava todo o santo dia com os olhos
pregados na porta, para ver se o homem aparecia; porém, nada... Os soldados
entravam e saíam, e em lugar duma esperança, caçoavam comigo, dizendo-me que o
Paraguai era muito bom; que deixasse seu genro ir... e outras lérias, que eu
ouvia calado com medo de arriscar a sorte do preso.
No quarto dia, felizmente encontrei
na feira-nova um camarada cá de Frecheiras, que ali tinha uma bodega; e
contando-lhe minha vida, ele prometeu arranjar-me a entrada no palácio. E de
fato arranjou-a logo, dando uns vinténs ao ordenança. Entrei com o coração nas
mãos; e parecia-me ouvir tinidos de ferros e gemidos... mas era o terror, pois
nunca me tinha visto em tais assados.
O Presidente estava sentado junto
duma mesa coberta de papéis, como mesa de escrivão; e quando entrei levantou a
cabeça e perguntou-me o que eu queria; mas tão carrancudo como o mar em horas
de tormenta. Ajoelhei-me logo a seus pés, narrando-lhe o sucedido e pedindo-lhe
que me valesse.
— Levante-se e vá buscar um requerimento.
— Aqui está, senhor, o meu
requerimento.
Ele pôs-se a ler e, enquanto lia eu
olhava para aquela mesa cheia de papéis, como a praia de sargaço depois da
tempestade, comigo mesmo dizendo: "Meu Deus, quanta sentença de morte
ali... quanta lágrima de viúva e de órfão, e quantos desenganos nestes papéis
se escondem como cascavéis em folhas secas!"
S. Exª acabou de ler, dizendo-me
que procurasse o despacho na secretaria e que me retirasse.
— Mas, senhor, não dá-me uma
esperança?
— Procure o despacho na secretaria!
— repetiu-me como quem não quer mais falar, e eu retirei-me meio desconfiado do
caso.
Muitos dias alisei o batente da
secretaria atrás do despacho. Eu já não podia mais com tanta demora; não tinha
levado muda e minha roupa estava um carvão. Vicente continuava no calabouço, e
quando o visitava, pobre rapaz, chorava com vontade, falando na mulher e nos
filhos, que ele amava mais... não sei o que diga!
No fim de uma semana consegui o
dito despacho e mandei lê-lo. Rezava assim: Informe o comandante superior.
Corri ao sobrado do comandante, e quando pude agarrá-lo, dei-lhe o papel e ele
botou outro despacho: Informe o comandante do batalhão. Não havia dúvida, meu
negócio corria mal, estava nos informes. Neste dia chegou o vapor do norte; e
quando estrondou tiro, senti uma pancada no coração com tanta força, como se me
tivessem dado uma pedrada no peito. Os homens das cartas tinham- me dito já,
que eu voltasse para levar a informação do tenente-
coronel, que mora no Curral-grande,
como vosmecê sabe. Mas eu demorei-me um bocado, para ver sair o vapor, porque
uma voz no interior me ordenava que ficasse.
Então eu disse: "Me apronto e
vou à praia, e quando a gente embarcar, de lá mesmo empurro-me para
Frecheiras."
Fui... e logo nos primeiros que
embarcaram, senhor, eu vi o Vicente! O Vicente escoltado, embarcado, para
sempre roubado de nosso seio! Oh, não sei contar-lhe a minha dor e ao mesmo
tempo a raiva que tive do presidente!... Esse homem cruel me empalhara para
enganar... Ai, o pobre sofre muito neste mundo! Assim contou-me a infeliz
família a história de sua mágoa.
Todos choravam e suspiravam do mais
íntimo d’alma; e eu comovido os consolava como podia naquela ocasião.
Era tarde quando me agasalhei em
minha rede, e tão fatigado estava que logo adormeci.
No outro dia pela manhã, despedi-me
de João Gomes, de Mariana, de Amor-do-Céu, dos meninos e daquela poética
Frecheiras; e quando montei-me a cavalo, disse ao velho, que viera segurar-me o
estribo:
— Depois da tormenta, vem a bonança...
Tenha fé na Bondade divina: ela tarda, mas não falta. Conto com alguns amigos e
empregarei todos os meios de libertar Vicente. Creia e espere... Adeus.
E sem dar tempo ao agradecimento,
cheguei as esporas ao ruço e parti.
Na Capital, escrevi a um amigo do
Rio de Janeiro, que ali ocupava importante cargo, pedindo-lhe Vicente, como o
maior favor que me poderia prestar. Minha carta foi a reprodução desta
história. Impressionado como estava, descrevi a situação da pobre família de
Frecheiras do modo mais eloquente, procurando assim comover o coração daquele a
quem me dirigia.
Pelas informações que me deram na
secretaria, Vicente seria encontrado ainda na Corte, porque tempo não havia de
seu embarque para os campos da guerra. Portanto esperei ansioso o resultado do
meu pedido.
A família de João Gomes ficara
animada com a esperança de minhas últimas palavras. Sempre que de lá vinha
alguém à cidade, mandava-me dizer o velho — que esperava em mim, como espera em
Deus o legume que emurchece à falta de chuva. E eu respondia — que continuasse
a rezar com devoção e tivesse fé em Deus e em Nossa Senhora, que sua alegria tornaria
como os sorrisos de Jó.
Depois de um mês e alguns dias,
apareceu-me Vicente, de volta do Rio de Janeiro. Foi este um dia de festa para
mim... um prazer para minh’alma!
"Aí vai o seu afilhado —
respondeu-me o amigo — e faço votos por sua felicidade ao lado da encantadora
Amor-do-Céu e dos honrados velhos, a quem apresentará os meus cumprimentos. Não
custou-me dispensá-lo da epidemia dos pântanos do Paraguai. Mostrei sua carta
ao general P... e sua leitura bastou: a inspiração que a ditou fez o
milagre."
— E volta agora para o Siupé,
senhor Vicente? — perguntei-lhe depois.
— Deus me livre; não poderia
habitar onde fui tão desfeiteado e onde tanto sofri. Demais... já não tenho
ambições. Antes quero ser pobre jangadeiro em Frecheiras, do que possuir grande
roçado em outra parte.
— Já não quer então ser rico?
— Quero, mas da graça de Deus.
— Pense sempre assim, para não
invejar as riquezas com as suas demandas e desgostos...
No outro dia partiu Vicente para o
seio dos seus e eu fiquei imaginando a cena que daria lugar a sua presença. E
comigo mesmo dizia: "Meu Deus! como é bom fazer o bem; como estou
contente! Esta alegria é uma grande recompensa, que eu vos agradeço. Se todos
soubessem disto... ninguém maltrataria por certo o seu semelhante, e seria
assim respeitado o vosso santo preceito! — Amai ao próximo como a vós mesmo.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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