4/09/2023

Amor-do-Céu (Conto), de Juvenal Galeno


 

AMOR-DO-CÉU 

Frecheiras! Como és formosa, oh singela virgem das praias do norte!

Como sorrindo despertas ao raiar d’aurora, ouvindo o melodioso gorjeio de tuas aves e o inocente murmúrio das auras nas palmas de teus coqueiros.

Na melancólica hora do crepúsculo da tarde, por que te descai a fronte em misteriosa cisma? Acaso escutas enternecida a triste endecha de teus mares?

Oh, salve virgem singela das praias do norte. Tu és o diamante perdido no deserto.

És o oásis que o extenuado caminheiro depara naquele areal alvíssimo.

És uma ideia, um sonho, a visão da felicidade naqueles morros sem fim.

Que imenso coqueiral circunda-te e que bonitas casinhas te enfeitam.

Nas casinhas tuas filhas trabalham cantando. Na areia brincam as criancinhas.

Perto rugem as vagas e pelas ribas folgam pulando as gaivotas.

Frecheiras! como és formosa, oh Frecheiras!

Eu te saúdo, singela virgem das praias do norte.

***

Frecheiras é uma pequena povoação de pescadores, vinte e seis léguas ao norte da Fortaleza.

À sombra dos coqueiros ocultam-se suas rudes casinhas de palmas e uma ou duas de telhas. Em frente, o mar, os currais de pescaria e as jangadas; dos outros lados, um areal imenso e alvíssimo, sem vegetação e arrumado pelo vento em caprichosos cômoros.

De longe, Frecheiras é um ponto verde no meio de um grande morro de areia, e nos recorda os oásis do deserto. E nada mais é do que uma aldeia de gente mui pobre, que pouco ainda difere das primitivas.

Seu viver não se altera.

Durante o dia os homens pescam até completarem o necessário ao seu alimento e da família. Isto feito, volvem ao colmo e deitam-se na tipoia, fitando a mulher, que perto faz rendas em sua almofada ou os filhinhos que mais longe lançam suas pequeninas jangadas no maceió da praia.

Durante a noite conversa-se com os vizinhos, reza-se e dorme-se sob as quatro palhas, sem o menor cuidado, enquanto lá fora rugem os ventos, as ondas troando os ares.

A ambição, os usos e os prazeres da cidade são ali desconhecidos. Dois simples vestidos são bastantes e o pão de hoje: — o d’amanhã a Deus pertence.

Entretanto naquela palhoças, quem sabe? quantas vezes não se escondem as cenas do mais extremoso afeto! Quantas vezes não escapam delas gemidos dolorosos para se misturarem com os soluços da vaga! É que o coração humano é o mesmo em toda parte. Cofre de amor e de amarguras, ora se assemelha ao lago tranquilo e sereno do vale, ora ao mar revolto, nas convulsões da procela...

E cheguei a Frecheiras, cortando o fio destas suaves reflexões que me despertava a vista daquelas casinhas.

Era ao pôr do sol, em linda tarde de agosto.

Parei à porta de João Gomes, velho pescador, que eu há muito conhecia.

— Ó de casa!

— Ó de fora! Quem é?

— Um seu criado, senhor João Gomes.

— Ah, é o senhor? Criado seja de Deus e da Virgem Maria.

Apeie-se. Então, aqui?

— É verdade, amigo; volto de minhas peregrinações pelas praias e venho como costumo pedir-lhe rancho...

— A casa não é capaz; porém está sempre às suas ordens.

— É muito capaz, senhor Gomes. Como sabe, basta-me peixe, rede e pela manhã uma tigela de café.

— Tudo temos, Deus louvado.

Apeei-me, com o que muito se alegrou o ruço animal que me trouxera, já exausto de tanto caminhar na areia solta da praia.

O velho armou no alpendre uma rede para mim e mandou pelo Totonho, seu filho mais velho, arrumar o meu cavalo.

A dona da casa, a senhora Mariana, veio logo cumprimentar- me, e após ela os filhos, que me cercaram sorrindo, admirados talvez de me ver naquelas paragens.

Noutras viagens notara que a minha presença era uma festa para aquela inocente família; mas, nessa ocasião, o riso servia apenas de véu para ocultar muita angústia e tristeza. Uma infelicidade, portanto, pesava sobre a pobre gente; restava-me penetrar-lhe o mistério e misturar minhas lágrimas com as de sua dor.

Encetei a conversa pelos meninos.

— Então, senhora Mariana, quantos?

— Oito... Se eu fora rica não teria tanto...

— Não sabe por quê?

— Não, senhor...

— É que o filho é o amigo, o arrimo e o consolo de seus pais na velhice; quem mais do que o pobre o necessita?

— Sim... mas quantas vezes são eles a causa de seus vexames e lágrimas?

— Assim como nos alegram e nos tornam ditosos. A ventura perfeita só existe no céu: somente lá a deliciosa rosa, a flor da pura fragrância, é sem espinhos. Este mundo não passa de um cadinho onde a criatura, como o metal, purifica-se para os eternos festins... A felicidade é um lampejo... uma visão momentânea que serve para nos reanimar no amargurado caminho. Ânimo, pois, que a enganadora miragem torna-se-á um dia realidade.

João Gomes e Mariana ouviam-me com interesse e talvez satisfação. Certo de que padeciam, eu procurava assim desde logo consolá-los. Parecia-me minhas palavras os reanimavam, como as chuvas do verão às plantas desalentadas pelos grandes calores.

Continuei:

— Além da esperança, da certeza de que após as dores virão os sorrisos sem fim, há um bálsamo que nos alenta nas lutas da mágoa. É a lembrança de que mais padecem outros e que portanto razão não temos de nos queixarmos. Na verdade, choras porque te falta o pão! E o que fará Antônio, a quem falta não só o pão como a roupa e o teto, que tu possuis? Choras, porque um mês de febre reduziu-te à extrema miséria! E o que fará José, que perdeu seus bens e a vista — a possibilidade de readquiri-los? O que fará o miserando cego que ao sol e à chuva passa mendigando? O que fará aquele que se vê para sempre encarcerado pela ira de um instante? Estes, enquanto te lamentas, invejam tua felicidade. Por isso, em vez de queixumes, agradeçamos em todas as horas ao bom Deus a sua infinita misericórdia...

— É assim mesmo — murmurou João Gomes —, bem-aventurados são os que choram.

Mariana enxugava uma lágrima que, malgrado seu, fugira-lhe dos olhos. O velho ao vê-la mudara de semblante e para disfarçar a tristeza, levantou-se, olhou para o mar como quem procura divisar uma jangada, e depois, tirando da choça uma palhinha, sentou-se enrolando-a e desenrolando-a com os olhos baixos.

Mariana me disse:

— Não se admire de me ver chorando... Sofro por causa de filhos...

— Conheci-o, quando há pouco queixava-se, mas não há razão...

— Ainda não os tem... Mesmo se os tivesse não sofreria tanto como o pobre...

— E por quê?

— Porque o filho do rico não é recrutado, ou designado para a guerra, não vai à cadeia, sem crimes, somente por capricho das autoridades. O filho do pobre tudo sofre... Se vota em um... é perseguido pelo outro... e se não vota é perseguido por ambos. Nunca tem razão, e ninguém o escuta. Cercam-lhe a casa à meia- noite e sem pena o arrancam dos braços de sua infeliz mãe, de sua esposa, de seus filhinhos... E para quê? Para matar paraguaios, quando homens piores o perseguem!

— Todos sofrem, senhora Mariana. Se estas dores cabem aos pobres, outras não menores tocam aos ricos.

— Qual, meu senhor! Quem faz mal aos ricos?

— Os ricos têm contra si muitas vezes, além do mais, o próprio ouro e a posição na sociedade. Quantos, vendo no filho um jogador, um libertino, um infame — por causa da riqueza —, e em que fitam-se todos os olhos, não invejam chorando a obscuridade do pobre para ocultar sua vergonha?! E se ele procede bem, como não se magoa o pai, vendo-o contrariado em suas aspirações, acusado pela imprensa, injuriado e caluniado por seus adversários, pelos invejosos, pelos traficantes? Todos neste mundo choram. A sociedade é uma floresta onde tudo se lamenta, desde a mais rasteira erva à mais alta árvore. A ervinha diz: "Como sou infeliz! os animais me pisam, minhas companheiras me sufocam; tudo conspira contra mim... enquanto tu, ó árvore, livre de tais pesares, gozas a luz benéfica do sol e todas as ditas!" — Entretanto, ao mesmo tempo, a grande árvore exclama: "Meu Deus, como é feliz a ervinha em seu retiro: que vida sossegada passa, enquanto eu sofro os embates do vento e os abrasadores raios do sol... e me arruínam os furores da tempestade!" — Querem saber de uma cousa, meus velhos amigos?

— Sim, senhor...

— Ninguém tem razão de queixar-se: todos devemos conformar-nos com a nossa sorte. Há pouco, ao aproximar-me desta casa, eu invejava-lhes a vida...

— A nossa? Ora...

— E dizia: Que sossego nestas cabanas; que tranquilidade no espírito desta pobre gente! Quem me dera também fugir da cidade e vir habitar junto às ondas, numa choça, com uma jangadinha; minha esposa na almofada; meus filhos a brincar no terreiro... e eu sem cuidados, sem ambição, no seio do amor e da ventura!

— E veio encontrar-nos bem tristes!...

— Infelizmente, sim; mas consola-me a esperança de lhes ser útil na adversidade.

— Choramos por causa de filhos...

— E não brincam eles ali tão contentes?

— Aqueles... pobres inocentes; porém a outra?

— Amor-do-Céu? a sua filha casada?

— Sim... hoje viúva, ou quase viúva...

— Como? Não repare em minha curiosidade...

Ouviu-se um soluço no interior da casa. O velho ergueu-se e comovido disse:

— Não fale nisso agora, minha velha... Vá buscar a ceia, que é tarde, e o senhor está com fome... Depois lhe contaremos tudo...

— Pois bem, lhe contaremos depois...

E retiraram-se para cuidar, sem dúvida, da ceia.

Eu estava deveras com fome, e por isso aprovei o adiamento da história. Entretanto, como alguma cousa devia fazer antes de me chamarem, pus-me a pensar em Amor-do-Céu, na bela rapariga que eu vira outrora tão alegre.

Maria era o seu nome de batismo; e Amor-do-Céu o sobrenome. Todos que a conheciam chamavam-na simplesmente Amor-do-Céu e nunca com mais acerto denominara-se uma criatura humana.

Menina, foi o mimo da praia; moça, o encanto dos mancebos, e esposa a veneração de todos.

Junto ao colmo de seus pais erguia-se o dos pais de Vicente, que era pouco mais velho do que ela, mas igual na ternura e delicadeza d’alma. Os velhos eram dois pescadores amigos, e eles dois meninos que se queriam. E, como os colmos, viveram sempre juntos na infância: correndo brincavam ao longo da praia ou no alpendre da casinha, ou naqueles morros d’alva areia, ou mais adiante à sombra das ubaias.

Na praia, Vicente disputava às ondas suas róseas conchinhas para Amor-do-Céu, e as ondas pulavam brincando com ele, enquanto a menina assustada o fitava, batia palmas, dava alguns passos para frente e voltava exclamando: "Vicente, olha a maré." — E Vicente respondia: "Deixa estar... deixar estar... que ela não me pega." — E ufano prosseguia, e mais ufano voltava com o chapeuzinho cheio de conchas que depunha aos pés de Amor-do-Céu.

Traziam as conchas para o alpendre, e com elas enchiam as casinhas — as casinhas que na véspera tinham feito para as bonecas; ou se a maré baixara carregavam uma jangadinha — a jangadinha de Vicente — e punham-na nos pequenos maceiós, nos poçozinhos d’água tranquila que na praia ficavam.

Depois volviam aos morros, e, rolando por seus despenhadeiros, atrás um do outro, riam-se na maior alegria. Ora, escondendo-se para Vicente procurá-la, a menina agachava-se atrás de um cômoro, e Vicente como quem não acertava, dizia depois de muito correr: "Amor-do-Céu, onde estás, que não te acho?"— "Não digo onde estou!" — gritava ela — e o espreitava surgindo pouco a pouco, até que se encontravam aplaudindo o caso com muitos risos.

Dos morros passavam ao matagal, e colhiam ubaias, muricis, ameixas, maracujás ou flores. Vicente subia às árvores para tirar os ninhos dos pássaros, e Amor-do-Céu procurava no chão os ovos da nambu e de outras aves preguiçosas.

Quando a noite os surpreendia, voltavam juntos aos colmos também juntos, e nas suas tipoias repousavam como dois anjos. No outro dia, a mesma vida, as mesmas cenas, os mesmos sorrisos. Era um lindo sonho de que deviam despertar um dia, e despertaram infelizmente. Vicente já era rapazinho e os seios de Amor-do-Céu cresciam sob o cabeção de cassa.

Por que, meu Deus, os despertastes daquele inocente enlevo? Não era melhor que tivessem juntos voado para o céu, como juntos sorriam-se na terra? Seriam dois serafins mais para rodearem o vosso trono.

A menina tornava-se moça e sua beleza crescera com ela. Morena, a tez imitava o jambo, e a caravela muita vez lhe invejara a rósea cor das faces. Seus lábios eram rubros como o guajá e seus olhos verdes como as ondas, que sua mãe fitara sempre, como sempre ela as fitara. De seu olhar e sorriso nada sei, pois nunca os entendi: fascinavam o curioso para que não revelasse o mistério de sua candura.

Um dia... não sei porque, Vicente baixou os olhos, e estremecia falando com Amor-do-Céu; e Amor-do-Céu corava, e também estremecia como Vicente. Desde esse dia evitavam-se... porém de um modo que mais vezes se encontravam, para estremecer corando.

Os velhos reparando nisto riam-se; e a outra gente da praia contemplava satisfeita aquele enleio.

Por fim, uma tarde talvez explicaram-se. Como, não sei, mas desde então conheceram que a lei que prendia a concha ao rochedo, os prendia na vida, e que se amavam como se ama entre os moços. Desde então... quem lhes poderia contar os suspiros, as confidências, os sonhos e enlevos, e mais demonstrações do primeiro e extremoso amor?...

Mas já não gozavam daquela plena liberdade. Era necessário aprender a trabalhar, e seus pais não esqueceram esta necessidade. Amor-do-Céu teve uma almofada e tarefa de renda, e Vicente acompanhava seu pai nas lidas do mar, sobre a jangadinha de quatro paus.

No trabalho, porém, quantas ocasiões de se encontrarem, entenderem-se e prodigalizarem-se afetuosos cuidados! Do mar, as vezes que podia, olhava Vicente para a porta da casa adorada; e da porta, a moça olhava para o mar. E antes e depois também as vezes que podiam, eles, cada qual mais apaixonado, repetiam as frases de todos os dias.

E assim corria o tempo, e cresciam eles sem reparar em tal. Vicente estava homem e Amor-do-Céu moça feita. Neste tempo a madrinha de Amor-do-Céu, que morava na ribeira do Siupé, mandou pedi-la à comadre para com ela passar um mês. Mariana acedeu contente, porque deste modo sua filha receberia muitas vezes a bênção de sua madrinha.

Partiu Amor-do-Céu soluçando, e soluçando ficou Vicente. Era uma ausência de mês; mas um mês é muito para quem ama e nunca separou-se.

O caso é que o rapaz não pôde suportá-la, e finda a semana fugiu pelo caminho que seguira a rapariga; e no outro dia apareceu no Siupé. Pálida e chorosa estava Amor-do-Céu, e arrependida a madrinha de tê-la convidado para sua companhia. Mas viram-se... A moça reanimou-se como a planta da várzea nas primeiras chuvas; e a madrinha, que não era muito tola, conheceu o segredo, explicou-se, e aceitando o jornaleiro que se oferecia para a lavoura, prometeu interessar-se por ambos.

Dois meses depois casavam-se, com o assentimento de seus pais e contentamento geral; e a convite da rica dona estabeleciam efetivamente a sua residência naquela ribeira.

Por que não volveste, Vicente, para as casinhas de Frecheiras? Por que desprezaste a paz deste retiro, estas ondas que já te conheciam, estas areias e estas árvores que teus segredos sabiam? E tu, Amor-do-Céu, por que não aconselhaste o noivo amante? Se tu falasses, ele te escutaria e talvez estivessem agora bem sossegados na praia de Frecheiras!

Ambos desejaram voltar, mas deviam grande favor à madrinha, e ela instava tanto e lhes oferecia tantas conveniências, que não puderam resistir. Demais, Vicente, louco de ventura pela posse de sua querida, ambicionava riquezas para lhe depor aos pés, que não encontraria em Frecheiras. Aqui teria certo o alimento, a roupa, o sossego e mais alguma cousa com muito custo, ao passo que ali mais fácil seria o ganho. Faria um bom roçado para milho, feijão, arroz, e com o seu produto não só esperava manter-se do preciso, como comprar um colar e umas arrecadas para presentear a consorte, e talvez um cavalinho para levá-la à garupa, ao povoado nos dias de missa. Compraria também uma chapelinha preta e um vestido de chita fina para ela... E não se lembrava o pobre Vicente de que o homem propõe e Deus dispõe!

Assim eu pensava, docemente assim discorria enlevado pela imaginação, quando interrompeu-me João Gomes, chamando-me para cear.

Entrei. Na saleta, sobre um jirau coberto de esteira e duma alva toalha, me foi oferecido excelente peixe, caldo, farinha e um bule de café. Sentei-me numa mala que João Gomes arrastara para junto da rústica mesa, tirando antes a santa Imagem que nela guardava e ceei como costumo em viagem, o que quer dizer: — comi muito.

Acabada a refeição e aceso o meu charuto, entabulei conversa com João Gomes, interrogando-o sobre a safra do peixe, o estado de sua jangada e redes de pescaria, e o mais que interessa aos homens do mar.

Mariana levara para dentro os pratos e a toalha e demorava-se.

— A safra não tem sido boa por causa das tormentas...

— Das tormentas?

— Muita tormenta de ventos na costa e o mar sempre feroz; mas, Deus louvado, vamos nos arremediando...

— E não é tempo dos pargos e tainhas?

— É; porém os pargos estão vasqueiros... A tainha é que vai aparecendo.

Mariana voltou; e, atiçando a candeia, que do jirau mudara para um caritó, disse:

— Amor-do-Céu, vem falar aqui como senhor, anda, minha filha... Calamo-nos, e eu fitei os olhos na porta. Amor-do-Céu saiu,

apertou-me a mão e sentou-se com sua mãe perto de nós.

Pobre rapariga! Vê-la bastava para saber-lhe a mágoa. Seus olhos outrora vivos e ledos volviam-se tristes e amortecidos, como cansados de chorar; suas faces, cuja cor a caravela invejara, estavam pálidas e sulcadas, quase como a areia da praia quando baixa o mar. A última vez que a encontrara, ela ria-se alegre e graciosa como a verdejante ilha nas horas de bonança; e agora era a ilha após a tempestade.

Houve um instante de profundo silêncio.

— Já sei — disse eu — que padece muito, que uma grande dor veio feri-la no seu retiro...

— Ai, sim... só Deus sabe quanto tenho chorado!

— Seus olhos o dizem, assim como a cor e sulcos do rosto. A dor é uma tempestade cujos vestígios não se apagam facilmente: ocultá-los, quem pudera?

— Coitada! — disse Mariana — tem penado sem descanso. O pobre do pai não pode pregar olhos e nem levou mais um bocado à boca: toma algum caldo a muito pedido... Eu?... nem falemos...

Mas, qual o motivo de tanto sofrimento?

— Foi um dos ricos do Suipé que se intrigou com o meu genro — disse-me João Gomes — e dele vingou-se, conseguindo do Capitão da Companhia que o designasse para a guerra, pois ele era infelizmente guarda-nacional. Amarraram-no sem pena, roubando assim o esposo de minha filha, o pai de meus netinhos...

— E o único arrimo do velho Brito, que ali ficou chorando ao desamparo — acrescentou Mariana.

— O pai de Vicente, não?

— Sim, senhor. Mudando-se para o Suipé, de lá Vicente supria o pai de um tudo. O velho, coitado, quase entrevado numa cama, vivia do que lhe mandava o filho. Não faltava nada: a farinha, o feijão, o arroz, tudo tinha com fartura, Deus louvado. E Vicente vinha de vez em quando vê-lo e, nos dizia: "Não se esqueçam de meu pai; façam minhas vezes e se ele piorar mandem chamar-me, que eu virei na carreira." — Pobre rapaz, se queria tanto ao pai! E agora o que será do Brito? Nós não lhe faltaremos, mas sem o filho... ele nos deixará decerto.

— E não pediram a ninguém na cidade, não se empenharam pela soltura de Vicente?

— Muito — me disse Gomes — mas quem escuta os pobres neste tempo? Uns riem-se e outros nos contam as crueldades dos paraguaios...

— E os paraguaios talvez não sejam tão cruéis como eles! — tornou chorando Mariana.

— São piores que feras, senhora Mariana.

— Têm comido muita gente — respondeu-me ela —, eu o sei; mas os de cá não ficam atrás. Quanta mulher sem marido e filhos na orfandade... Quanto velho morrendo sem arrimo... e o cemitério a encher-se!

— São as consequências da guerra... Mas, senhor Gomes, conte-me pelo miúdo essa desgraça.

— Eu tenho andado tão azoado, que nem sei... Minha filha, conta lá como te roubaram o marido...

Amor-do-Céu, interrompida às vezes pelas lágrimas, contou- me assim a sua história:

— Como vosmecê sabe, nós morávamos para a bandas do Siupé, em terras de minha madrinha. Vicente plantava, e tinha lá umas criaçõezinhas de ovelhas e cabras, e duas cabeças de gado. Todos os anos ele abria um roçado de quatro cem-passos para legumes, em que labutava de manhã à noite, ajudado na broca e na derruba por alguns vizinhos, com quem trocava dias, como se costuma entre os pobres. No princípio, eu o ajudava nas lidas, ora nas coivaras, ora na planta e na limpa. Mas, depois tive o primeiro parto; e ele não consentiu mais que eu fosse ao roçado, para que o nosso filhinho não sofresse um só instante a minha ausência.

Nunca vi querer tanto a filho como ele. Se voltava da roça, tomava-me o menino, beijava-o e brincava até que a criança chorava... E ele arrependido e com pena! O filho era a menina de seus olhos: era o seu riso, como a chuva o prazer dos matos. E se o filho adoecia, Vicente não trabalhava e esmorecia mais do que meu pai no mar se vem a tormenta. E era preciso eu ralhar. Minha madrinha nos estimava muito e só teve uma queixa de nós. Foi quando nos pediu o menino, que era seu afilhado, prometendo criá-lo e fazê-lo feliz... Tinha invejado o nosso filho. Eu calei-me, mas o meu coração apertou-se com força, e meu sangue quis parar nas veias. Vicente, porém, ficou sério e respondeu-lhe que antes lhe daria a vida. Minha madrinha ficou decerto desgostosa, mas nunca nos deu demonstração. Também já o Vicente poucas vezes a ocupava, porque os negócios lhe corriam direito, e nos davam com que nos arremediarmos, sem sermos pesados a ninguém. Antes, ele é que a servia, não tendo boca para dizer

— não, quando ela o chamava para seus mandados.

Íamos assim vivendo, dando graças à Nossa Senhora pela paz e fartura de nossa casa, quando tive o segundo filho, que foi uma menina. Então Vicente só faltou endoidecer de alegria. Não se fartava de mirá-la, de compará-la a mim, e de contrariar-me se eu a achava mais parecida com ele. Era um gosto vê-lo carregando a filhinha e cantando ao punho da rede para niná-la... Nesse sossego e felicidade Nossa Senhora nos abandonou.

Porque, não sei. Nós não a ofendemos, nem por pensamento, e nem deixávamos de rezar o Ofício de madrugada, sempre com a maior devoção. São segredos do céu, meu senhor, que não podemos adivinhar. O que é certo, é que apareceu uma questão com o Vicente, que até aquele dia com ninguém questionara.

Foi assim. Perto de nosso roçado havia uma fazenda de gado do Tenente Melo; e muitas reses entravam dia e noite no roçado e esmagavam a roça. Vicente corria com elas e tapava os buracos da cerca, queixando-se algumas vezes ao vaqueiro, sem todavia maltratar as pobrezinhas, que não tinham culpa de andarem soltas. Vai senão quando, aparece morto um boi de carro, perto do roçado, e apesar de não ter ferimento e nem sinal de pancada, os vaqueiros gritaram a uma voz — que fora o Vicente! Era um falso, e Deus queira perdoá-lo àqueles homens. Vicente tem bom coração e é muito compadecido dos bichos. Quanta vez, como depois me contava satisfeito, ele não se empalhou dando água ao animal que morto de sede rodeava a cacimba cercada, e sem saber quem era o dono! Como poderia ele matar aquela rês? O mundo é assim mesmo, meu Deus.

O vaqueiro contou a seu amo o caso, como bem lhe pareceu, e o tenente Melo acreditou na história, mandando logo recado ao Vicente e cobrando-lhe muito dinheiro pelo boi. Ora, vosmecê sabe, é muito duro pagar-se aquilo que não se comeu e nem bebeu. Portanto, Vicente com muita razão defendeu-se, provando sua inocência. Mas, recado vai, recado vem, aumentou a intriga, e eu já andava com as mãos na cabeça com medo de uma desgraça. E assim não cessava de pedir a meu marido que vendesse o que ali tínhamos, pagasse o tal boi, e voltássemos para Frecheiras. Ele me respondia que não receasse, pois estava disposto a suportar tudo por amor dos filhinhos e por mim, mas que não fugiria sem ter de quê. Antes me tivesse ouvido!

— E o que fez o tenente Melo?

— O Juiz não era de seu partido, e por isso, para nos citar precisava testemunhas. O tenente procurou por toda ribeira quem jurasse contra nós, e felizmente não achou ninguém que quisesse meter sua alma no inferno.

— Deixou portanto de cobrar o boi.

— Sim, senhor: mas ficou intrigado com Vicente, e todos os dias gritava que ele lhe pagaria caro o desaforo! O desaforo?... quando meu marido havia aguentado os seus insultos com uma prudência de santo! Mas ele, como rico, julgava-se com o direito de pisar os pobres; e tinha razão, porque muito tempo não precisou para nos castigar... castigar a inocentes do modo mais cruel deste mundo!

— Qual foi o castigo?

— O estado que dia e noite choro; este abandono... a infelicidade que me vai matando! Eu lhe conto. Vindo ordem da cidade para designar guardas, o tenente Melo entendeu que chegara a ocasião; e como era amigo do capitão da companhia de Vicente, empenhou-se sem descanso, até que conseguiu vingar-se. Quando eu soube da ordem, pedi a meu marido que se escondesse, mas ele não quis, porque — quem não deve, não teme, e dizia-se que os casados com filhos não estavam sujeitos. Não estavam sujeitos!... E quem se importa com a lei aqui pelos matos? O forte vinga-se do fraco, e o grande do pequeno...

— Por toda parte é assim: a traíra engole a piaba nas lagoas e no mar o tubarão persegue as enchovas.

— Foi numa quinta-feira à meia-noite. Durante o dia, não sei porque estive tão triste, que não pude deixar de chorar muito. Vicente vexou-se tanto que perguntou-me por que chorava; e eu não soube responder-lhe. Era um chorar sem causa, e quanto mais chorava, mais vontade tinha de chorar. Até o menino estava triste e não vadiou como costumava. Parecia que morrera uma pessoa da família. Eu me lembrava aqui de Frecheiras, receando que alguém estivesse doente. Ai, como o coração da gente adivinha! Não atinava com o lugar donde me viria a desgraça, mas era certa, porque o coração não engana. É que eu ia ficar sem o meu marido, e meus filhos sem o seu pai... seu pai que os amava tanto...

Amor-do-Céu desatou a chorar soluçando. Depois continuou.

— Tudo nos anunciava a desgraça... Eu às vezes não quero acreditar em busões, mas nessa noite cruel até o cachorro uivava no terreiro, e a candeia estava triste... Vicente mesmo, embora me animasse e procurasse rir-se, não sabia ocultar-me o seu desassossego. Quando o cachorro uivou, ele chamou-o pelo nome, que é Leão; e Leão em vez de festejá-lo, deitou-se a seus pés, como que soluçando.

Fiquei mais medrosa e sem querer me veio à lembrança o tenente Melo. Então me pondo a considerar, tive tão grande pressentimento que disse a Vicente:

— Vicente, toma um conselho, vai dormir no mato esta noite...

— Por quê? — perguntou-me admirado.

— Não sei porque... mas se tu fosses meu coração descansaria.

— Se é com medo que venham prender-me — tornou-me ele

—, não vejo razão: não sou criminoso, e nem presto para recruta, pois tenho mulher e filhos...

Calei-me, que suas palavras eram sagradas para mim. Nunca teimamos, não só pelo muito amor que eu lhe tinha, como porque eu nunca vira teimar minha mãe e meu pai. E o exemplo dos pais passam aos filhos. Demais, Vicente era tão bom, que eu não poderia ser má. Calei-me, pois, e recolhi-me à camarinha, onde já os meninos dormiam. E ele, fechando a porta, me acompanhou, e ajoelhou-se a meu lado para rezarmos o terço do costume.

Ainda não tínhamos pegado no sono, quando a nossa casa foi cercada da tropa. Pelo barulho conheci que vinha muita gente, e à frente o tenente Melo. Ah, eu não lhe posso contar o que sofremos então. Só Nossa Senhora o sabe. Cercando a casa, o tenente gritou:

— Abre a porta, cabra, ou mando arrebentá-la já!

— Senhor tenente — disse Vicente —, a quem procura?

— Ao atrevido Vicente para matar bois no Paraguai — respondeu ele.

— Pois bem! é meia-noite e a casa do cidadão é inviolável: de manhã me entrego.

— Respondeu muito bem.

— Eu não sei onde o pobre tinha aprendido aquilo; talvez na cidade quando ia vender os legumes. Mas boca que tal disseste.

— E o tenente não respeitou a casa durante a noite?

— Qual, meu senhor! Zangou-se e mandou botar a porta dentro. Eu me levantei na carreira para vestir-me, e Vicente correu para o canto onde guardava a espingarda. Vendo isto saltei ainda quase nua, e agarrei-me com o meu marido, chorando e pedindo-lhe por nosso amor, pelo amor de nossos filhos, por tudo que mais amava... que nada fizesse: se entregasse e tivesse fé na justiça divina. Atendendo-me, ele encostou a espingarda e prometeu-me sofrer com paciência aquele insulto, por minha causa. Ah, nunca tive tanto vexame! O tenente Melo entrou logo com a tropa, igual a uma onça assanhada, e amarrou meu marido como se amarra um assassino! E nos descompôs a todos com os nomes mais injuriosos, como fora de si. Vicente apenas respondeu-lhe uma vez, lembrando-lhe Deus e a justiça do céu.

E ele zombou de Deus e da justiça do céu! Os meninos acordando puseram-se a chorar que fazia dó; e eu soluçando pedia ao malvado homem que soltasse meu marido... Mas ele não me dava atenção e continuava a injuriar-nos.

Vicente quando ouviu o pranto dos filhos, estremeceu como se o tivessem apunhalado; e duas lágrimas lhe correram pelas faces. E o tenente ao vê-las disse à tropa: "Levemos já este diabo para chorar melhor na cadeia..."

Chamar diabo ao Vicente... como custava ouvi-lo! E saíram, levando amarrado o meu marido... o pai de meus filhos... e a minha felicidade!... Ai, se a dor matasse, eu teria morrido então. Acompanhei o infeliz, mas ele vendo-me lembrou-me os filhos... os seus dois queridos filhinhos... e mandou-me voltar. Eu não sabia o que fizesse... Era tão grande o meu desespero que certamente teria ficado doida se meu pai não chegasse, como chegou de manhã. Foi Nossa Senhora que se compadeceu de mim... Calou-se a infeliz já não podendo vencer o pranto que a sufocava. Ela e sua mãe soluçavam, enquanto eu e João Gomes em silêncio enxugávamos as gotas d’água que nos corriam dos olhos.

Passados alguns instantes, perguntei a João Gomes:

— E não foi entender-se com o Capitão da Companhia, ou com o Presidente na cidade?

— Fui; mas nada alcancei. O capitão me desenganou logo, declarando-me que as ordens eram fortes e que não disfarçava meu genro. Arrumei-me então para tomar o caminho da cidade. Minha filha queria acompanhar-me, mas não pôde: seu filhinho adoecera e ela mesmo não estava boa. Deixei-a pois em casa da madrinha e ordenei-lhe que aí me esperasse. E com duas cartas, que minha comadre escrevera, segui atrás do preso.

Todos me diziam que era trabalho perdido, que o Presidente não disfarçava ninguém enquanto o Lopes e seus paraguaios não morressem; porém era meu dever dar todas as passadas a favor de meu genro. Malditos paraguaios, senhor, que nos têm roubado os melhores rapazes da terra!

Cheguei à cidade, e como quem vai com fome ao mar, botei os anzóis logo n’água. Entreguei as cartas, e os homens ainda bem não as tinham lido, me declaravam que era impossível soltar o Vicente, porque o Presidente não atendia a pedidos. Impossível restituir o alheio... o marido de minha filha e o pai de meus netos! Em que tempo estamos, meu Deus?

Ouvindo os homens eu fiquei mais morto que vivo, e pus-me a chorar lembrando-me de voltar sem meu genro. Então deram- me um requerimento, e aconselharam-me que eu mesmo fosse apresentá-lo ao Presidente, e contar-lhe minha história.

Fui, pegando-me com todos os santos para que me valessem naquele aperto. No primeiro, segundo e terceiro dia os soldados não me deixaram entrar. S. Exª não falava a ninguém. E como quem espera a maré, eu sentava-me na escada e levava todo o santo dia com os olhos pregados na porta, para ver se o homem aparecia; porém, nada... Os soldados entravam e saíam, e em lugar duma esperança, caçoavam comigo, dizendo-me que o Paraguai era muito bom; que deixasse seu genro ir... e outras lérias, que eu ouvia calado com medo de arriscar a sorte do preso.

No quarto dia, felizmente encontrei na feira-nova um camarada cá de Frecheiras, que ali tinha uma bodega; e contando-lhe minha vida, ele prometeu arranjar-me a entrada no palácio. E de fato arranjou-a logo, dando uns vinténs ao ordenança. Entrei com o coração nas mãos; e parecia-me ouvir tinidos de ferros e gemidos... mas era o terror, pois nunca me tinha visto em tais assados.

O Presidente estava sentado junto duma mesa coberta de papéis, como mesa de escrivão; e quando entrei levantou a cabeça e perguntou-me o que eu queria; mas tão carrancudo como o mar em horas de tormenta. Ajoelhei-me logo a seus pés, narrando-lhe o sucedido e pedindo-lhe que me valesse.

— Levante-se e vá buscar um requerimento.

— Aqui está, senhor, o meu requerimento.

Ele pôs-se a ler e, enquanto lia eu olhava para aquela mesa cheia de papéis, como a praia de sargaço depois da tempestade, comigo mesmo dizendo: "Meu Deus, quanta sentença de morte ali... quanta lágrima de viúva e de órfão, e quantos desenganos nestes papéis se escondem como cascavéis em folhas secas!"

S. Exª acabou de ler, dizendo-me que procurasse o despacho na secretaria e que me retirasse.

— Mas, senhor, não dá-me uma esperança?

— Procure o despacho na secretaria! — repetiu-me como quem não quer mais falar, e eu retirei-me meio desconfiado do caso.

Muitos dias alisei o batente da secretaria atrás do despacho. Eu já não podia mais com tanta demora; não tinha levado muda e minha roupa estava um carvão. Vicente continuava no calabouço, e quando o visitava, pobre rapaz, chorava com vontade, falando na mulher e nos filhos, que ele amava mais... não sei o que diga!

No fim de uma semana consegui o dito despacho e mandei lê-lo. Rezava assim: Informe o comandante superior. Corri ao sobrado do comandante, e quando pude agarrá-lo, dei-lhe o papel e ele botou outro despacho: Informe o comandante do batalhão. Não havia dúvida, meu negócio corria mal, estava nos informes. Neste dia chegou o vapor do norte; e quando estrondou tiro, senti uma pancada no coração com tanta força, como se me tivessem dado uma pedrada no peito. Os homens das cartas tinham- me dito já, que eu voltasse para levar a informação do tenente-

coronel, que mora no Curral-grande, como vosmecê sabe. Mas eu demorei-me um bocado, para ver sair o vapor, porque uma voz no interior me ordenava que ficasse.

Então eu disse: "Me apronto e vou à praia, e quando a gente embarcar, de lá mesmo empurro-me para Frecheiras."

Fui... e logo nos primeiros que embarcaram, senhor, eu vi o Vicente! O Vicente escoltado, embarcado, para sempre roubado de nosso seio! Oh, não sei contar-lhe a minha dor e ao mesmo tempo a raiva que tive do presidente!... Esse homem cruel me empalhara para enganar... Ai, o pobre sofre muito neste mundo! Assim contou-me a infeliz família a história de sua mágoa.

Todos choravam e suspiravam do mais íntimo d’alma; e eu comovido os consolava como podia naquela ocasião.

Era tarde quando me agasalhei em minha rede, e tão fatigado estava que logo adormeci.

No outro dia pela manhã, despedi-me de João Gomes, de Mariana, de Amor-do-Céu, dos meninos e daquela poética Frecheiras; e quando montei-me a cavalo, disse ao velho, que viera segurar-me o estribo:

— Depois da tormenta, vem a bonança... Tenha fé na Bondade divina: ela tarda, mas não falta. Conto com alguns amigos e empregarei todos os meios de libertar Vicente. Creia e espere... Adeus.

E sem dar tempo ao agradecimento, cheguei as esporas ao ruço e parti.

Na Capital, escrevi a um amigo do Rio de Janeiro, que ali ocupava importante cargo, pedindo-lhe Vicente, como o maior favor que me poderia prestar. Minha carta foi a reprodução desta história. Impressionado como estava, descrevi a situação da pobre família de Frecheiras do modo mais eloquente, procurando assim comover o coração daquele a quem me dirigia.

Pelas informações que me deram na secretaria, Vicente seria encontrado ainda na Corte, porque tempo não havia de seu embarque para os campos da guerra. Portanto esperei ansioso o resultado do meu pedido.

A família de João Gomes ficara animada com a esperança de minhas últimas palavras. Sempre que de lá vinha alguém à cidade, mandava-me dizer o velho — que esperava em mim, como espera em Deus o legume que emurchece à falta de chuva. E eu respondia — que continuasse a rezar com devoção e tivesse fé em Deus e em Nossa Senhora, que sua alegria tornaria como os sorrisos de Jó.

Depois de um mês e alguns dias, apareceu-me Vicente, de volta do Rio de Janeiro. Foi este um dia de festa para mim... um prazer para minh’alma!

"Aí vai o seu afilhado — respondeu-me o amigo — e faço votos por sua felicidade ao lado da encantadora Amor-do-Céu e dos honrados velhos, a quem apresentará os meus cumprimentos. Não custou-me dispensá-lo da epidemia dos pântanos do Paraguai. Mostrei sua carta ao general P... e sua leitura bastou: a inspiração que a ditou fez o milagre."

— E volta agora para o Siupé, senhor Vicente? — perguntei-lhe depois.

— Deus me livre; não poderia habitar onde fui tão desfeiteado e onde tanto sofri. Demais... já não tenho ambições. Antes quero ser pobre jangadeiro em Frecheiras, do que possuir grande roçado em outra parte.

— Já não quer então ser rico?

— Quero, mas da graça de Deus.

— Pense sempre assim, para não invejar as riquezas com as suas demandas e desgostos...

No outro dia partiu Vicente para o seio dos seus e eu fiquei imaginando a cena que daria lugar a sua presença. E comigo mesmo dizia: "Meu Deus! como é bom fazer o bem; como estou contente! Esta alegria é uma grande recompensa, que eu vos agradeço. Se todos soubessem disto... ninguém maltrataria por certo o seu semelhante, e seria assim respeitado o vosso santo preceito! — Amai ao próximo como a vós mesmo.

 

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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